Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 575/2024-T
Data da decisão: 2024-10-07  IRS  
Valor do pedido: € 20.428,74
Tema: Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares – Requisitos da residência no território nacional - Revogação do acto impugnado. Anulação administrativa. Prosseguimento para apreciar pedido de juros indemnizatórios.
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SUMÁRIO

 

1-    Nos termos do disposto na alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do artigo 29.º, n.º1 alínea e), do RJAT, a instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide;

2-    A Requerida satisfez de modo voluntário a pretensão dos Requerentes através do acto de revogação de IRS objecto de controvérsia, nada dizendo sobre o pagamento de juros indemnizatórios;

3-    O evento que determinou a apreciação do mérito da causa verificou-se depois da constituição do Tribunal Arbitral;

4-    Tendo os Requerente apresentado, cumulativamente com o pedido de anulação da liquidação de IRS, um pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios, a não satisfação deste pedido pela decisão administrativa que anulou a liquidação justifica a manutenção do interesse processual quanto ao pedido de juros indemnizatórios.

 

 

  1. Relatório

 

1.  A..., portador do número de identificação fiscal ..., e B..., portadora do número de identificação fiscal..., casados, residentes Rua ..., nº..., ...- ... São Mamede de Infesta, vieram, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 95.º n.ºs 1 e 2, al. a) e d), da Lei Geral Tributária (LGT), 99.º, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), 2.º, n.º1, alínea a) e 10.º n.ºs 1, alínea e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e com os seguintes 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do actos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) identificada sob o n.º 2022 ... de IRS, num montante global de EUR: € 20.428,74 (vinte mil quatrocentos e vinte e oito euros e setenta e quatro cêntimos), referente ao período de tributação de 2021.

Mais, solicitam que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) seja condenada no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT, desde a data em que indeferiu a pretensão dos Requerentes pelo despacho impugnado.

 

2.  O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Requerida.

 

3. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que a ora signatária foi nomeada pelo CAAD em 14 de Junho de 2024, e as partes, devidamente notificadas, não manifestaram intenção de o recusar, pelo que o Tribunal ficou constituído em 2 de Julho de 2024.

 

4.    A Requerida, após notificação para responder, em 20 de Setembro de 2024, notificou o CAAD de que foi revogado o acto objecto de litígio, a saber, a liquidação a liquidação de IRS Liquidação n.º 2022... de 2022, referente ao ano de 2021, conforme Informação n.º ... da DSRI, que mereceu despacho de concordância da Senhora Sudirectora Geral da Área da Gestão Tributária, proferido em 1 de Setembro de 2024.

 

5.   Em 20 de Setembro de 2024, este Tribunal exarou o seguinte Despacho: “Tendo a Requerida na presente data apresentado requerimento no qual informa sobre a revogação do acto, notifique-se a Requerente para, no prazo de dez dias, se pronunciar sobre o mesmo.”

 

6. Em 1 de Outubro de 2024, vieram os Requerentes invocar que, “5. Assim, face ao despacho de revogação ora proferido, haverá de se julgar a presente lide parcialmente inútil, como consequência de acto praticado pela própria AT (com o que daí decorre) no que respeita à anulação do despacho que indeferiu a reclamação graciosa e quanto à liquidação que constituiu objecto daquela reclamação (aqui objectos imeditado e mediato),

6. sem prejuízo do que deverá ser conhecido o pedido de condenação da AT à restituição do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios contados desde a data em que o despacho ora revogado foi proferido.

7. Tanto mais que a AT já dispunha de todos os elementos que lhe permitiram agora determinar a revogação da decisão antes proferida e a liquidação posta em crise – o que só fez depois de obrigar os Requerente a lançar mão do processo arbitral,”

 

II - Saneamento do Processo

 

1. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.

 

2. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

 

3. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

III – Fundamentação

 

1. Matéria de facto

 

            1.1. Factos provados

 

            Consideram-se provados os seguintes factos, com relevância para a decisão:

 

a) A..., contribuinte fiscal n.º..., procedeu à entrega da declaração de IRS do ano 2020, em 2021-04-02, indicado ser residente fiscal em Portugal.

b) Em 4 de Abril de 2022 o Requerente procedeu à entrega da declaração de IRS do ano 2021, indicando a residência parcial de 2021-01-01 a 2021-04-30 (residente) e o resto do ano como não residente em Portugal.

c) Posteriormente, o sujeito passivo deduziu reclamação graciosa solicitando a anulação da liquidação de IRS de 2021, alegando que foram não residentes e dessa forma não deveriam ter sido tributados enquanto residentes parciais.

d) A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 18 de Janeiro de 2024 da Chefe Divisão da Direcção de Finanças de Aveiro, não tendo sido aceite a sua pretensão quanto à residência fiscal.

f) No projecto de decisão da reclamação graciosa a AT fundamentou que a declaração de IRS foi liquidada atendendo os dados submetidos pelo sujeito passivo, isto é, de forma voluntária o sujeito passivo procedeu à entrega da declaração de IRS do ano 2021, tendo indicado a residência parcial e sido tributado apenas como residente pelos rendimentos obtidos em Portugal durante esse período do ano por si indicado (de Janeiro a Abril).

g) A Requerida, após notificação para responder, em 20 de Setembro de 2024, notificou o CAAD de que foi revogado o acto objecto de litígio, a saber, a liquidação a liquidação de IRS Liquidação n.º 2022... de 2022, referente ao ano de 2021, conforme Informação n.º... da DSRI, que mereceu despacho de concordância da Senhora Sudirectora Geral da Área da Gestão Tributária, proferido em 1 de Setembro de 2024, concluindo a final, “(…)30.Pelo que, atendendo aos elementos fornecidos pelo sujeito passivo e aos que a AT dispõe, o centro de interesses vitais do sujeito passivo situou-se nos EUA, país onde tinha objetivamente as suas relações económicas mais estreitas (local onde trabalhou desde maior parte do ano) e relações familiares (cônjuge e filho), pelo que deverá ser considerado residente fiscal nos EUA.

31.Concluindo, da análise aos documentos apresentados pelo sujeito passivo confirma-se que deverá ser atendido o pedido do sujeito passivo anulando-se o ato contestado, uma vez que apresentou certificado de residência fiscal dos EUA que comprova que foi residente fiscal naquele país durante o ano de 2021.

Conclusão Após apreciação do pedido de pronúncia arbitral, afigura-se-nos deve ser deferido o pedido, revogando-se o ato impugnado referente ao IRS do ano 2021.”

 

 

            1.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não existem factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.

 

              2. Matéria de direito

 

2.1. Inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de anulação da liquidação de IMI

O objecto principal do processo arbitral reporta-se a actos de liquidação de tributos dos tipos referidos no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT.

O interesse em agir ou interesse processual, que é um pressuposto processual ou uma condição da acção que «consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção».( [1] ) Esse interesse tem de existir no momento em que o processo se inicia, mas tem de manter-se ao longo dele, justificando a sua falta a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide. ( [2] )

Se o contribuinte entende que não tem interesse processual e aceita a inutilidade superveniente da lide proposta pela Autoridade Tributária e Aduaneira na sequência de anulação administrativa, o Tribunal Arbitral não pode deixar de concluir pela inutilidade superveniente da lide, pois, no âmbito de uma relação processual disponível, não pode substituir-se àquele na definição do seu próprio interesse.

No caso em apreço, conclui-se do requerimento apresentado pelos Requerentes em 1 de Outubro de 2024 que apenas mantém interesse processual quanto ao pedido de juros indemnizatórios, o que tem implícita a não manutenção desse interesse quanto ao pedido de anulação da liquidação.

Sendo assim, tem de decidir-se a inutilidade superveniente parcial da lide quanto ao pedido de anulação da liquidação, como propôs a Autoridade Tributária e Aduaneira.

Por isso, verifica-se uma excepção dilatória que é causa de extinção parcial da instância e implica a absolvição da Requerida da instância, na parte respectiva, nos termos dos artigos 277.º, alínea e), e 278.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

2.2. Utilidade do processo quanto à apreciação do pedido de juros indemnizatórios

 

Tendo os Requerentes apresentado, cumulativamente com o pedido de anulação da liquidação de IRS, um pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios, a não satisfação deste pedido pela decisão administrativa que anulou a liquidação, justifica a manutenção do interesse processual quanto ao pedido de juros indemnizatórios.

Por isso, não ocorre inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de juros indemnizatórios.

 

2.3. Apreciação do pedido de juros indemnizatórios 

 

Importa, assim, apreciar o pedido de juros indemnizatórios.

Nestas circunstâncias, preconiza a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que deve encontrar-se preenchido o pressuposto do “erro imputável aos serviços” que o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, reclama para o nascimento da obrigação de juros indemnizatórios.

Como se refere no Acórdão do STA, no Processo n.º 049/16, de 10 de Maio, que acompanhamos: “Foi esta a solução sustentada pelo citado acórdão de 02-12-2015, do Pleno desta Seção, Proc. 01524. Como se escreveu no acórdão deste STA, de 30-05-2012, proc. 410:

“Diz o n.º 1 do art. 43.º da LGT, ao abrigo da qual foi proferida a condenação ora recorrida: «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».
Ou seja, quando um acto de liquidação de um tributo for declarado em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial viciado por erro imputável aos serviços e do qual tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, há direito a juros indemnizatórios, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT.

Como salienta JORGE LOPES DE SOUSA, «[a] utilização da expressão «erro» e não «vício» ou «ilegalidade» para aludir aos factos que podem servir de base à atribuição de juros, revela que se teve em mente apenas os vícios do acto anulado a que é adequada essa designação, que são o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito.

Com efeito, há vícios dos actos administrativos e tributários a que não é adequada tal designação, nomeadamente os vícios de forma e a incompetência, pelo que a utilização daquela expressão «erro» tem um âmbito mais restrito do que a expressão «vício».

Por outro lado, é usual utilizar-se a expressão «vícios» quando se pretende aludir genericamente a todas as ilegalidades susceptíveis de conduzirem à anulação dos actos, como é o caso dos arts. 101.º (arguição subsidiária de vícios) e 124.º (ordem de conhecimento dos vícios na sentença) ambos do CPTT.

Por isso, é de concluir que o uso daquela expressão «erro» tem um alcance restritivo do tipo de vícios que podem servir de base ao direito a juros indemnizatórios» (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume I, anotação 5 ao art. 61.º, pág. 531..)

O mesmo Autor explica as razões por que a LGT restringiu o direito a juros indemnizatórios aos casos de anulação por vício substancial e já não o reconheceu relativamente aos vícios de forma ou incompetência que determinem a anulação do acto: o reconhecimento de um vício destes últimos tipos «não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, qualquer juízo sobre o carácter indevido da prestação pecuniária cobrada pela Administração Tributária com base no acto anulado, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou cobrar ou a falta de competência da autoridade que a exigiu.

Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito.

Por isso, se pode justificar que, nestas situações, não havendo dúvidas em que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada através da fixação de juros indemnizatórios a favor daquele.”

É pressuposto da atribuição de juros indemnizatórios que o erro em que laborou a AT lhe seja imputável (cfr. artigo 43.º da LGT). Sucede que no caso em apreço o erro é imputável ao contribuinte. Contudo, o contribuinte apresentou documentos que permitiam à AT decidir a reclamação ao contribuinte, pelo que, não o tendo feito, o erro passou a ser imputável à AT.

Assim sendo, são devidos juros indemnizatórios a partir do decurso de quatro meses após a apresentação da reclamação (n.º 1 do artigo 57.º da LGT).

Termos em que entendemos igualmente que deve proceder o pedido de pagamento de juros indemnizatórios por se encontrarem verificados os respectivos requisitos, devendo a Requerida ser condenada ao pagamento de juros indemnizatórios desde a data do decurso de quatro meses após a apresentação da reclamação até à data do efectivo reembolso.

 

     

IV. Dispositivo

 

1. Decisão

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar parcialmente extinta a instância quanto ao pedido de anulação da liquidação de IRS impugnada e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância;
  2. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios desde a data do decurso de quatro meses após a apresentação da reclamação até à data do efectivo reembolso.

 

 

 

2. Valor do processo

 

Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de 20.428,74 (vinte mil quatrocentos e vinte e oito euros e setenta e quatro cêntimos) que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação de IRS por parte da AT, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

3. Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, nº2 e 24.º, n.º 4 do RJAT e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em 1224,00 €, que fica a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, do CPC).

 

Lisboa, 7 de Outubro de 2024

 

 

A Árbitra

 

Clotilde Celorico Palma

 

 

 



[1]               ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, p. 170.

[2]               ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, p. 179.