Sumário:
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A fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma sucinta, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspetos de facto e de direito que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela AT na determinação do ato; por isso, a obscuridade, a contradição ou a insuficiência da motivação equivalem a falta de fundamentação (cf. artigo 153.º, n.º 2, do CPA), por impedirem uma cabal apreensão do iter cognoscitivo e volitivo que determinou a AT a praticar o ato com o sentido decisório que lhe conferiu.
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O mecanismo do exercício do direito à dedução serve para assegurar a neutralidade característica do IVA, evitando o efeito cumulativo e assegurando que o imposto é suportado em definitivo pelo consumidor final.
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A existência de uma relação direta e imediata entre os bens e serviços adquiridos e uma ou várias atividades de fornecimento de bens ou de prestação de serviços que conferem o direito à dedução é, em regra, indispensável para que o direito à dedução do IVA incorrido nos bens e serviços adquiridos seja reconhecido ao sujeito passivo e para determinar a extensão desse direito.
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No entanto, em conformidade com a jurisprudência do TJUE, não existindo um link direto e imediato das operações a montante com as operações a jusante, a dedução do IVA será ainda assim permitida desde que as operações a montante possam ser enquadradas no conjunto das despesas gerais relacionadas com a atividade económica do sujeito passivo.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. No dia 20 de fevereiro de 2024, A..., Lda., NIPC..., com sede em ..., ..., ...-... Batalha (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante, abreviadamente designado RJAT), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à ilegalidade do ato de liquidação adicional de IVA n.º 2023..., referente ao período de dezembro de 2019, e da respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2023..., da qual resultou o valor total a pagar de € 21.159,98.
A Requerente juntou 4 (quatro) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas.
É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).
2. Como resulta do pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA), a Requerente alega, essencialmente, o seguinte:
A Requerente é uma sociedade por quotas que tem o seguinte objeto social: “Fabrico de matérias plásticas para fins industriais”, sendo que, em sede de IVA, encontra-se enquadrada no regime normal com periodicidade mensal.
Até 2019, o capital social da Requerente era detido pelos seus dois sócios-gerentes (pessoas individuais), tendo, nesse ano, as quotas representativas do capital social sido transmitidas para duas sociedades comerciais, cujo capital era detido pelos referidos dois sócios-gerentes, passando, deste modo, de uma participação direta para uma participação indireta na Requerente.
Para a concretização daquela operação, os responsáveis pela Requerente contratualizaram serviços de consultoria fiscal à sociedade “B..., S.A.”, visando o apoio à reorganização da estrutura acionista da Requerente, incluindo a avaliação da própria sociedade.
A Requerente foi sujeita a um procedimento de inspeção tributária, de âmbito geral e incidente sobre o período tributável de 2019, na sequência do qual a AT procedeu ao apuramento de um montante de IVA, alegadamente, indevidamente deduzido de € 21.160,00. Conforme resulta do respetivo RIT, a AT entendeu, além do mais, que “o apoio prestado pela B..., SA, relacionado com a venda das participações sociais (quotas) que forma o capital social do SP, constituem um serviço prestado aos próprios titulares dessas participações sociais (quotas) e no seu interesse, e não no interesse do SP”; pelo que “não se verificando qualquer conexão entre os serviços em causa, adquiridos pela A..., Lda., com as operações tributáveis que realiza e que constituem a sua atividade, tal falta de conexão veda a possibilidade do exercício do direito à dedução do imposto relacionado com os referidos serviços, em cumprimento do disposto no art. 20.º do CIVA”.
A Requerente alega que procedeu ao pagamento do montante de € 21.159,98, resultante do ato de liquidação adicional de IVA controvertido, o qual é manifestamente ilegal, na parte em que considera que não há direito à dedução do IVA suportado na aquisição dos serviços faturados pela “B..., S.A.”; por tal motivo, a Requerente considera ter direito ao recebimento de juros indemnizatórios, calculados sobre aquele valor indevidamente pago, computados desde o pagamento indevido até à emissão da nota de crédito.
A Requerente termina o seu pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA) peticionando o seguinte:
“Nestes termos, e nos demais de direito que Va. Exas. doutamente suprirão, requer-se que se dignem a julgar totalmente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por fundado e provado, e, em consequência, que se dignem a:
a) Declarar e a ordenar a anulação da liquidação adicional de IVA ora impugnada, relativa ao exercício de 2019, por enfermar de vícios determinativos da sua ilegalidade, por erro nos pressupostos de direito e de facto e, por consequência, anuláveis, nos termos do artigo 163.º do CPA;
b) Reconhecer o direito da Requerente aos juros indemnizatórios, calculados sobre os montantes a restituir e computados desde o pagamento indevido até à emissão da nota de crédito.”
3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e notificado à AT em 26 de fevereiro de 2024.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 10 de abril de 2024, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 2 de maio de 2024.
5. No dia 5 de junho de 2024, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou os argumentos aduzidos pelo Requerente, tendo concluído pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
A Requerida não requereu a produção de quaisquer provas; na mesma ocasião, a Requerida procedeu à junção aos autos do processo administrativo (doravante, PA).
6. No dia 6 de junho de 2024, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, a conceder prazo para as partes, querendo, apresentarem alegações escritas e a indicar o dia 31 de outubro de 2024 como data limite para a prolação da decisão arbitral.
7. As partes não apresentaram quaisquer alegações.
II. Saneamento
8. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
Não existem quaisquer exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e que cumpra conhecer.
III. Fundamentação
III.1. De Facto
§1. Factos ProvadosROVADOS
9. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, constituída em 05.02.1977, e que tem o seguinte objeto social: “Fabrico de matérias plásticas para fins industriais”.
b) Em sede de IVA, a Requerente encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal. [cf. documento n.º 4 anexo ao PPA e PA]
c) No início do ano de 2019, o capital social da Requerente era detido pelos seguintes dois sócios-gerentes [cf. documento n.º 4 anexo ao PPA e PA]:
(i) C..., NIF..., detentor de uma quota correspondente a uma participação social de 50% do capital social; e,
(ii) D..., NIF..., detentor de uma quota correspondente a uma participação social de 50% do capital social.
d) No final do ano de 2019, o capital social da Requerente era detido pelas seguintes entidades [cf. documento n.º 4 anexo ao PPA e PA]:
(i) “E..., Lda.”, sociedade de direito português, NIPC..., detentora de uma quota no montante de € 249.399,00, correspondente a uma participação social de 50% do capital social; e,
(ii) “F..., Lda.”, sociedade de direito português, NIPC..., detentora de uma quota no montante de € 249.399,00, correspondente a uma participação social de 50% do capital social.
e) No decurso do ano de 2019, as quotas representativas do capital social da Requerente foram transmitidas para as aludidas sociedades comerciais, cujo capital social era detido pelos referidos sócios-gerentes, passando, deste modo, de uma participação direta para uma participação indireta no capital social da Requerente; concretizando [cf. documento n.º 4 anexo ao PPA e PA]:
(i) a quota no capital social da Requerente detida por C... foi transmitida para a sociedade “E..., Lda.”, na qual o transmitente detinha uma participação social correspondente a 60% do capital social; e,
(ii) a quota no capital social da Requerente detida por D... foi transmitida para a sociedade “F..., Lda.”, na qual o transmitente detinha uma participação social correspondente a 70% do capital social.
f) Para a concretização da referida operação, os responsáveis da Requerente contratualizaram serviços de consultoria fiscal à sociedade “B..., S.A.”. [cf. documento n.º 3 anexo ao PPA e PA]
g) A sociedade “B..., S.A.” emitiu as seguintes faturas à Requerente [cf. documento n.º 3 anexo ao PPA e PA]:
(i) A fatura n.º 2019/382, datada de 19.12.2019, no montante de € 107.010,00, IVA incluído, com o seguinte descritivo: “Nossos honorários pelo apoio prestado durante o período de tributação de 2019”; e
(ii) A fatura n.º 2019/387, datada de 19.12.2019, no montante de € 6.150,00, IVA incluído, com o seguinte descritivo: “Nossos honorários no âmbito da avaliação da empresa”.
h) A coberto da Ordem de Serviço n.º OI2023..., a Requerente foi sujeita a um procedimento de inspeção tributária de âmbito geral e incidente sobre o ano de 2019, realizado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Leiria, que culminou com a elaboração do respetivo Relatório de Inspeção Tributária (RIT), validamente notificado à Requerente e que aqui se dá por inteiramente reproduzido, do qual resultou, além de outras, a seguinte correção meramente aritmética, em sede de IVA, referente ao período de 2019/12M, com a fundamentação que também se reproduz [cf. documento n.º 4 anexo ao PPA e PA]:
Descrição
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Imposto em falta (€)
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IVA indevidamente deduzido
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21.160,00
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“V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades
(…)
V.3 – Em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA)
V.3.1 – IVA indevidamente deduzido
O regime a que obedece o direito à dedução de IVA encontra-se previsto nos arts. 19.º a 26.º do Código do IVA (CIVA).
Estabelece o art. 19.º do CIVA, que:
“1 - Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuaram:
a) O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos;
(…)
Por sua vez o art. 20.º, n.º 1 do CIVA determina que:
“1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:
a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;
b) Transmissões de bens e prestações de serviços que consistam em:
i) Exportações e operações isentas nos termos do artigo 14.º;
(…)
O art. 20.º estabelece determinadas limitações ao exercício do direito à dedução, nomeadamente, um requisito de conexão entre os bens/serviços adquiridos e a atividade exercida pelo SP.
De acordo com os lançamentos contabilísticos retratados no Quadro I do presente relatório (ponto V.1 – Gastos não aceites fiscalmente), cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, o SP deduziu IVA, nos montantes de 20.010,00 e 1.150,00, mediante lançamentos a débito na conta de IVA dedutível 2432313 – Outros bens e serviços – taxa normal (lançamentos com identificadores 2019-12-19 CMP 2780 e 2019-12-19 CMP 2631, respetivamente). Os referidos montantes de imposto foram incluídos na declaração periódica de IVA do período 2019.12.
De harmonia com a argumentação exposta no ponto V.1 – Gastos não aceites fiscalmente, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, os documentos de suporte aos lançamentos em causa, têm subjacente a aquisição de serviços de apoio na venda total ou parcial, do capital da A..., incluindo a avaliação da própria sociedade e a prestação de apoio na elaboração do relatório técnico relacionado com a mesma operação.
A operação de venda das quotas da sociedade concretizou-se no próprio período de 2019.
Ora, a transmissão por parte dos titulares do capital da A..., Lda, das respetivas quotas, não constitui uma operação enquadrável no âmbito da atividade desenvolvida pela sociedade, mas antes, na esfera dos seus sócios. Os efeitos decorrentes da identificada operação de venda das quotas produzem-se na esfera dos transmitentes e adquirentes das quotas e não na esfera da própria sociedade, pois o interesse na venda/aquisição das quotas refletem-se nos titulares do capital e não na sociedade.
Para que o IVA possa ser dedutível, exige-se que se verifique uma relação direta e imediata entre as despesas suportadas e o exercício da atividade económica do SP.
Neste caso, conforme se expôs no ponto V.1.1 – Gastos não aceites fiscalmente, os encargos suportados pelo SP com os serviços aqui em causa, não têm qualquer relação com o exercício da sua atividade, nem sequer podem integrar as suas despesas gerais, pelo que, não podem considerar-se elementos constitutivos dos bens que fornece ou dos serviços que presta.
Por conseguinte, não se verificando qualquer conexão entre os serviços em causa, adquiridos pela A..., Lda, com as operações tributáveis que realiza e que constituem a sua atividade, tal falta de conexão veda a possibilidade do exercício do direito à dedução do imposto relacionado com os referidos serviços, em cumprimento do disposto no art. 20.º do CIVA.
O Quadro que segue resume os montantes de IVA indevidamente deduzidos, encontrando-se os mesmos em falta (arts. 20.º, n.º 1 e 27.º, n.º 1, ambos do CIVA).
Quadro III
Data
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Movimento
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Fornecedor
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Montante
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Período
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19/12/2019
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2019-12-19 CMP 2780
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B..., SA
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20 010,00
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2019.12
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19/12/2019
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2019-12-19 CMP 2631
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B..., SA
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1 150,00
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2019.12
|
”
i) Sequentemente, a AT emitiu a liquidação adicional de IVA n.º 2023..., referente ao período de 1912M, da qual resultou um “corte ao valor do reembolso pedido” no valor de € 21.159,98 e um “reembolso autorizado” no valor de € 45.037,27, tendo ainda sido emitida a demonstração de acerto de contas n.º 2023 ..., no montante a pagar de € 21.159,98, com data limite de pagamento a 07.12.2023. [cf. documentos n.ºs 1 e 2 anexos ao PPA]
j) No dia 20.02.2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD]
§2. Factos não Provados
10. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:
a) Os serviços prestados pela “B..., S.A.” à Requerente consubstanciaram um apoio transversal à reestruturação societária do grupo onde se insere a Requerente.
b) Os serviços prestados pela “B..., S.A.” à Requerente constituíram serviços de assessoria fiscal, com vista à reorganização da estrutura societária do grupo onde se insere a Requerente, com o objetivo de maximizar a sua eficiência e valor.
c) Os serviços prestados pela “B..., S.A.” à Requerente abrangeram diversas matérias respeitantes à atividade da Requerente e apenas uma reduzida parte respeitou à venda das participações sociais no capital social da Requerente.
d) Os responsáveis pela Requerente foram unânimes ao considerar que as operações de reestruturação do grupo concretizadas permitiriam, por razões de racionalidade e eficiência económica, facilitar a gestão do negócio, identificar novas oportunidades no setor e possivelmente angariar novos clientes que permitiriam a expansão do negócio.
e) A Requerente pagou o montante de € 21.159,98, resultante da demonstração de acerto de contas n.º 2023... .
§3. Motivação quanto à Matéria de Facto
11. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consubstanciadas em afirmações meramente conclusivas e, por isso, insuscetíveis de prova e cuja veracidade terá de ser aquilatada em face da concreta matéria de facto consolidada.
Conforme indicado em cada uma das alíneas do probatório, a convicção do Tribunal resultou da apreciação crítica e de uma adequada ponderação, à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade, do acervo probatório de natureza documental (incluindo o constante do PA) que foi carreado para os autos, em conjugação com as alegações das partes nos respetivos articulados quando reportadas a factos pertinentes para a decisão que não se mostraram controvertidos.
12. Relativamente aos factos não provados, estes foram assim considerados em virtude da inexistência de quaisquer elementos probatórios suscetíveis de os comprovarem.
Com efeito, a fim de demonstrar a ligação dos serviços prestados pela “B..., S.A.” à sua atividade, a Requerente alude à existência de um grupo empresarial/societário, no qual estará alegadamente inserida, e a uma reestruturação societária do mesmo com o objetivo de maximizar a sua eficiência e valor, sem que, no entanto, identifique qual seja tal grupo, nem em que é que se consubstanciou a sua alegada reestruturação e de que modo é que os serviços prestados pela “B..., S.A.” foram para tal necessários e, por essa via, estão ligados à sua atividade; além disso, a Requerente também não carreou para os autos, como se lhe impunha, quaisquer elementos probatórios suscetíveis de comprovarem tal factualidade.
No tocante ao pagamento do montante de € 21.159,98, resultante da demonstração de acerto de contas n.º 2023..., apesar de a Requerente alegar que o fez, o certo é que também quanto a este facto não carreou para os autos qualquer elemento probatório suscetível de o comprovar.
III.2. De Direito
§1. O thema decidendum
13. A questão jurídico-tributária que está no epicentro do dissídio entre as partes e que, por isso, o Tribunal Arbitral é chamado a apreciar e decidir, consiste em determinar se a liquidação adicional de IVA n.º 2023..., referente ao período de 2019/12M, padece dos seguintes vícios invalidantes que lhe são imputados pela Requerente: (i) vício de falta/insuficiência da fundamentação; e, (ii) vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, consubstanciado na violação do direito à dedução do IVA, estatuído nos artigos 19.º, n.º 1, alínea a) e 20.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA.
O Tribunal Arbitral é, ainda, chamado a pronunciar-se sobre a restituição de imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.
§2. As Posições das Partes
14. A propósito da aludida questão jurídico-tributária, a Requerente propugna, nuclearmente, o seguinte:
A Requerente começa por aludir à “violação do direito de fundamentação”, estatuído no artigo 268.º, n.º 3, da CRP e no artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, alegando que, no RIT subjacente à emissão da liquidação adicional de IVA em referência, a AT procedeu a uma fundamentação sumária sem referência às disposições legais alegadamente aplicáveis ao caso concreto; ademais, a AT não justifica e não concretiza, de forma suficiente e clara, o seu entendimento para concluir pela não dedutibilidade do IVA em referência, não provando os factos que alega e que permitam subsumir os mesmos às normas que genericamente refere. Por isso, a Requerente não entende o percurso lógico-jurídico trilhado pela AT para chegar à conclusão das correções concretizadas no RIT; deste modo, importa concluir que a AT não cumpriu, como era seu ónus, o seu dever de fundamentação.
Noutra ordem de considerações, a Requerente afirma que foi violado o “direito à dedução do IVA suportado com a aquisição de serviços de consultoria”, resultante do disposto nos artigos 19.º, n.º 1, alínea a) e 20.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA, alegando que, contrariamente ao afirmado pela AT, os aludidos serviços abrangeram diversas matérias respeitantes à sua atividade e apenas uma reduzida parte respeitou à venda das participações sociais no seu capital social, sendo, ainda, que foram prestados com vista à reorganização da estrutura societária do grupo onde se insere a Requerente, com o objetivo de maximizar a sua eficiência e valor. Por isso, os montantes deduzidos pela Requerente não podem deixar de se qualificar como fazendo parte das despesas ligadas ao conjunto da sua atividade económica, sob pena de violação do princípio da neutralidade fiscal. Ademais, a operação materializada pela Requerente apresenta um nexo direto com a organização da atividade exercida pelo grupo e constitui o prolongamento direto, permanente e necessário da sua atividade tributável. Destarte, a Requerente incorreu em despesas relacionadas com atos preparatórios da reorganização do seu grupo devendo, por isso, ser reconhecido o seu direito à dedução do IVA incorrido no âmbito da referida reorganização.
15. Por seu turno, a Requerida aduz, essencialmente, a seguinte argumentação:
Relativamente ao alegado vício de falta de fundamentação, a Requerida afirma que no RIT é percetível porque é que os serviços de inspeção tributária entenderam que a situação em análise se subsumia às normas legais por si apontadas, estando perfeitamente indicadas as razões por que não se verifica qualquer conexão entre os serviços adquiridos pela Requerente com as operações tributáveis que realiza e que constituem a sua atividade, sendo esta falta de conexão que veda a possibilidade do exercício do direito à dedução do imposto relacionado com os referidos serviços, em cumprimento do disposto no artigo 20.º do Código do IVA.
É, pois, indubitável que a Requerente ficou em condições de conhecer o iter cognoscitivo seguido pela AT, tendo ficado devidamente esclarecida das razões que levaram à correção efetuada pela AT. E, tanto assim é, que apresentou o pedido de pronúncia arbitral em que expressou o seu desacordo contra esta correção.
Deste modo, não se encontra preterida a formalidade de fundamentação do RIT, pois a Requerente entendeu qual foi o percurso lógico-jurídico seguido pela AT para sustentar a correção aqui em causa; efetivamente, o que se verifica é uma discordância com a correção promovida e não uma qualquer obscuridade ou contradição que possam qualificar-se como falta de fundamentação.
No tangente ao IVA que a AT reputa como indevidamente deduzido, a Requerida começa por dizer que, como resulta do RIT e de acordo com a informação fornecida pela própria Requerente, os serviços prestados pela “B..., S. A.” estão relacionados com o apoio prestado, durante o período de 2019, na tentativa de venda total ou parcial da própria sociedade (Requerente). Nesta conformidade, entende a Requerida que o apoio prestado pela “B..., S. A.”, relacionado com a venda das participações sociais (quotas) que formam o capital da Requerente, constituem um serviço prestado aos próprios titulares dessas participações sociais (quotas) e no seu interesse, e não no interesse da sociedade; porquanto, diz a Requerida, trata-se de informação útil aos detentores das quotas, para a tomada de decisão sobre a venda (ou outra operação), no intuito de concretizar objetivos próprios, e não inserido no escopo da Requerente. Assim, os efeitos patrimoniais, fiscais ou outros, resultantes da transmissão das quotas, repercutem-se diretamente na esfera dos sócios da sociedade e não na esfera da própria sociedade cujas quotas foram transmitidas no ano em análise; tanto mais que a Requerente não é titular de quotas próprias, pelo que a transmissão das quotas que integram o seu capital social não se reflete na sua esfera, mas apenas na esfera dos titulares das quotas.
Deste modo, os encargos suportados pela Requerente com os serviços aqui em causa, não têm qualquer relação com o exercício da sua atividade, pelo que tal falta de conexão veda a possibilidade do exercício do direito à dedução do imposto relacionado com os referidos serviços, em cumprimento do disposto no artigo 20º do Código do IVA; com efeito, não se pode considerar que os serviços aqui em causa façam parte das despesas gerais da Requerente e que, por isso, venham a constituir elementos constitutivos do preço dos bens ou dos serviços que a Requerente presta.
Cumpre apreciar e decidir.
16. Atento o disposto no artigo 124.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, tendo sido apenas arguidos vícios conducentes à anulação do ato tributário controvertido e não tendo a Requerente estabelecido entre eles uma relação de subsidiariedade, a respetiva apreciação deveria principiar pelo vício de violação de lei, por ser aquele cuja procedência determina mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos; contudo, apreciaremos primeiramente o vício de falta/insuficiência da fundamentação pois, como salienta Jorge Lopes de Sousa[1], “o STA tem vindo a reconhecer que à regra sobre a ordem de conhecimento de vícios (…) têm de ser abertas excepções, necessariamente, quando a apreciação dos vícios de violação de lei depende da averiguação dos fundamentos da decisão, o que sucede quando sem se conhecer a motivação da decisão não é possível apreciar a legalidade do acto”.
§3. Do vício de falta/insuficiência da fundamentação
17. A exigência legal e constitucional de fundamentação do ato tributário é decorrente dos artigos 268.º, n.º 3, da CRP, 77.º da LGT e 152.º e 153.º do CPA, tendo essa fundamentação de assentar em razões de facto e de direito que suportem formalmente a decisão administrativa.
Com efeito, como estatui o artigo 77.º, n.º 1, da LGT, a decisão do procedimento tributário deve ser fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.
Por sua vez, no concernente aos atos tributários de liquidação, o n.º 2 do mesmo artigo 77.º estabelece os parâmetros mínimos de fundamentação, determinando que estes atos podem conter uma fundamentação sumária que, no entanto, não pode deixar de conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.
Importa, desde já, salientar que para apurar se um ato tributário está, ou não, fundamentado é, antes de mais, necessário fazer “a distinção entre fundamentação formal e fundamentação material ou substancial: uma coisa é saber se a Administração deu a conhecer os motivos que a determinaram a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto; outra, bem diversa e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa” (acórdão do STA, proferido em 02.02.2022, no processo n.º 03014/11.1BEPRT).
Como é consensual na jurisprudência, as exigências de fundamentação não são rígidas, variando de acordo com o tipo de ato e as circunstâncias concretas em que este foi proferido; assim, o ato estará suficientemente fundamentado se um destinatário normalmente diligente ou razoável, colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto ato, ficar em condições de conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida e consciente, entre a aceitação do ato ou o acionamento dos meios legais de impugnação graciosa ou contenciosa, e de forma a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efetivo controle da legalidade do ato, aferindo do seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual (ver, neste sentido, os acórdãos do STA, proferidos em 03.12.2014, 07.06.2017 e 02.02.2022, nos processos n.ºs 01674/13, 0723/15 e 03014/11.1BEPRT, respetivamente). Acresce dizer que, como é enfatizado no acórdão do STA, proferido em 02.02.2022, no processo n.º 03014/11.1BEPRT, o dever legal de fundamentação do ato administrativo, para além daquela função exógena, tem “também uma função endógena, consistente na própria ponderação do ente administrador, de forma cuidada, séria e isenta”.
Destarte, a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma sucinta, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspetos de facto e de direito que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela AT na determinação do ato; por isso, a obscuridade, a contradição ou a insuficiência da motivação equivalem a falta de fundamentação (cf. artigo 153.º, n.º 2, do CPA), por impedirem uma cabal apreensão do iter cognoscitivo e volitivo que determinou a AT a praticar o ato com o sentido decisório que lhe conferiu. Como é explicitado no acórdão do STA, proferido em 02.02.2022, no processo n.º 03014/11.1BEPRT: “Haverá obscuridade quando as afirmações feitas pelo autor da decisão não deixarem perceber quais as razões porque decidiu da forma que decidiu. Por outras palavras, os fundamentos do acto devem ser claros, por forma a colher-se com perfeição o sentido das razões que determinaram a prática do acto, assim não sendo de consentir a utilização de expressões dúbias, vagas e genéricas. Ocorrerá contradição da fundamentação quando as razões invocadas para decidir, justificarem não a decisão proferida, mas uma decisão de sentido oposto (contradição entre fundamentos e decisão), e quando forem invocados fundamentos que estejam em oposição com outros. Por outras palavras, os fundamentos da decisão devem ser congruentes, isto é, que sejam premissas que conduzam inevitavelmente à decisão que funcione como conclusão lógica e necessária da motivação aduzida. Por último, a fundamentação é insuficiente se o seu conteúdo não é bastante para explicar as razões por que foi tomada a decisão. Em conclusão, a fundamentação deve ser suficiente, no sentido de que não fiquem por dizer razões que expliquem convenientemente a decisão final.”
No referente à fundamentação de direito, a jurisprudência tem reiteradamente afirmado que para que a mesma se considere suficiente não é sempre necessária a indicação dos preceitos legais aplicáveis, bastando a referência aos princípios pertinentes, ao regime jurídico ou a um quadro legal bem determinado, devendo considerar-se o ato fundamentado de direito quando ele se insira num quadro jurídico (ver, neste sentido, o acórdão do STA, proferido em 12.03.2014, no processo n.º 01674/13 e a jurisprudência aí referida).
18. Volvendo ao caso concreto, temos que a única fundamentação formal do ato tributário controvertido a considerar é a que consta do relatório de inspeção tributária que lhe serviu de suporte (cf. facto provado h)) e que integra o próprio ato, pois foi por ele apropriada (cf. documento n.º 1 anexo ao PPA), sendo pois esta a fundamentação que é contemporânea da prática do ato, não relevando qualquer fundamentação a posteriori, conforme tem sido reiteradamente decidido pelo STA (ver, neste sentido, o acórdão proferido em 28.10.2020, no processo n.º 02887/13.8BEPRT).
Compulsado o RIT, designadamente o segmento que é reproduzido no facto provado h), não podemos deixar de concluir que ali constam, de forma clara, os critérios que conduziram à liquidação adicional de IVA controvertida e que indiciam, suficientemente, o percurso cognoscitivo e valorativo percorrido pela AT, em termos tais que um destinatário normal e razoável – hipoteticamente colocado na situação do real destinatário e no concreto contexto circunstancial que rodeou a prática do ato – facilmente poderia apreender e sindicar. Aliás, o pedido de pronúncia arbitral é prova disso mesmo, pois nele a Requerente demonstra inequivocamente ter apreendido as razões de facto e de direito que estão na génese da dita liquidação adicional de IVA e que, por entender incorretas, a levaram a impugnar tal ato tributário que, nas suas próprias palavras, enferma de “vícios determinativos da sua ilegalidade, por erro nos pressupostos de direito e de facto”.
Nesta conformidade, entendemos que o ato de liquidação adicional de IVA controvertido não padece do invocado vício de falta/insuficiência de fundamentação que, assim, é julgado improcedente.
§4. Da violação do direito à dedução do IVA
§4.1. Enquadramento Normativo
19. O Código do IVA resulta da transposição, para a ordem jurídica interna, de diversas Diretivas europeias relativas à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devendo a interpretação da lei interna ser, neste domínio, convergente com os princípios e regras postulados na respetiva disciplina europeia, designadamente, na Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (“Diretiva IVA”).
O n.º 2 do artigo 1.º da Diretiva IVA estatui o seguinte:
“O princípio do sistema comum do IVA consiste em aplicar aos bens e serviços um imposto geral sobre o consumo exatamente proporcional ao preço dos bens e serviços, seja qual for o número de operações ocorridas no processo de produção e de distribuição anterior ao estádio de tributação.
Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço.
O sistema comum do IVA é aplicável até ao estádio do comércio a retalho, inclusive.”
Estamos perante um imposto plurifásico que onera as operações que se realizam ao longo da cadeia económica apenas na medida do valor que cada operador acrescenta aos bens e serviços, pelo que cada operador tem a faculdade de deduzir ao imposto que liquida nas suas vendas o imposto incorrido nas suas compras, entregando ao Estado apenas a diferença, quando o saldo seja positivo. Destarte, o mecanismo do crédito de imposto e o encadeamento da liquidação-dedução visam assegurar a neutralidade típica do IVA, prevenindo o efeito cumulativo e garantindo que o imposto é suportado em definitivo pelo consumidor final. A Diretiva IVA reconhece, pois, aos sujeitos passivos o direito de deduzir ao imposto liquidado num Estado-Membro o imposto que nesse mesmo Estado tenham incorrido na aquisição de bens ou serviços, desde que estes se destinem à realização de operações tributadas ou de operações com isenção completa.
O artigo 1.º, n.º 1, do Código do IVA estatui que estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado as transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal, as importações de bens e as operações intracomunitárias efetuadas no território nacional.
O artigo 19.º do Código do IVA, epigrafado “Direito à dedução”, determina, além do mais, o seguinte que aqui importa destacar:
“1. Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuaram:
a) O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos;
(…)
2. Só confere direito a dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos, em nome e na posse do sujeito passivo:
a) Em faturas passadas na forma legal;
(…)
6. Para efeitos do exercício do direito à dedução, consideram-se passadas na forma legal as faturas que contenham os elementos previstos nos artigos 36.º ou 40.º, consoante os casos.
(…)”
O subsequente artigo 20.º, atinente às “Operações que conferem o direito à dedução”, preceitua, além do mais, o seguinte que aqui importa reter:
“1. Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:
a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;
(…)”
§4.2. O direito à dedução do IVA
20. O direito à dedução (assente no designado método da dedução do imposto ou método do crédito de imposto ou método subtrativo indireto ou ainda método das faturas) é um dos pilares do IVA, provavelmente o mais importante; efetivamente, “o que faz do IVA um imposto sobre o valor acrescentado é a faculdade que se atribui a cada operador económico de deduzir ao imposto que liquida nas suas vendas o imposto incorrido nas suas compras, entregando ao Estado apenas a diferença, quando o saldo seja positivo.”[2]
Isto mesmo tem sido destacado pelo TJUE em diversas decisões, como é o caso do acórdão Petroma (proferido em 8 de maio de 2013, no processo C-271/12): “o direito à dedução constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA que não pode, em princípio, ser limitado e que se exerce imediatamente em relação à totalidade dos impostos que tenham onerado as operações efetuadas a montante (…). O regime das deduções assim estabelecido visa aliviar inteiramente o empresário do peso do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante dessa forma a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, independentemente do seu fim ou do seu resultado, na condição de essas atividades estarem elas mesmas, em princípio, sujeitas a IVA.”
O mecanismo do exercício do direito à dedução serve, assim, para assegurar a neutralidade característica do IVA, evitando o efeito cumulativo e assegurando que o imposto é suportado em definitivo pelo consumidor final; porquanto, permite ao sujeito passivo expurgar do seu encargo o IVA suportado a montante e, dessa forma, não o refletir como custo operacional da sua atividade, retirando, assim, o efeito cumulativo ou de cascata, propiciando a neutralidade económica do imposto. O direito à dedução do IVA suportado a montante tem, pois, um relevo especial no sistema deste imposto[3].
O mecanismo do exercício do direito à dedução está regulamentado nos artigos 167.º a 192.º da Diretiva IVA que, no essencial, prevê que os sujeitos passivos têm o direito a deduzir ao imposto liquidado num Estado-Membro o imposto que nesse mesmo Estado tenham suportado na aquisição de bens ou serviços, desde que estes se destinem exclusivamente à realização de operações tributadas ou de operações com isenção completa. Nos casos em que os bens e serviços adquiridos pelos sujeitos passivos de IVA se destinarem exclusivamente à realização daquelas operações, o direito à dedução do imposto suportado a montante é integral; se se destinarem indistintamente à realização destas operações e de outras que não confiram direito à dedução, o imposto suportado a montante só é dedutível em parte, estabelecendo a Diretiva IVA diferentes métodos de cálculo para o efeito.
Numa perspetiva subjetiva, o artigo 168.º da Diretiva IVA estatui que o direito à dedução só pode ser exercido por quem seja sujeito passivo de IVA, tal como a própria Diretiva os define; assim, são titulares do direito à dedução os sujeitos passivos referidos no artigo 9.º da Diretiva IVA – as pessoas que de modo independente se dediquem a uma atividade económica continuada, qualquer que seja a sua natureza – assim como aqueles que realizem atos isolados, sempre que os Estados-Membros decidam considerá-los como sujeitos passivos nos termos do artigo 12.º da Diretiva IVA. São ainda abrangidos pelo direito à dedução aqueles que se tornem devedores do imposto por via do mecanismo de reverse charge previsto nos artigos 194.º a 199.º da Diretiva IVA.
Numa perspetiva objetiva, o artigo 168.º, alínea a), da Diretiva IVA estabelece que por princípio os sujeitos passivos podem deduzir o imposto suportado na aquisição de todos e quaisquer bens e serviços a outros sujeitos passivos, desde que estes sejam utilizados para as suas operações tributadas. Também por princípio, apenas ficam excluídos do direito à dedução os bens ou serviços que suscitem confusão entre a esfera pessoal e a esfera empresarial, aos quais alude o artigo 176.º da Diretiva IVA.
Como é enfatizado por Sérgio Vasques, a “referência a “operações tributadas” serve para deixar claro que só quando se dá a aplicação efectiva do imposto nas operações activas se torna possível a dedução do imposto incorrido nas operações passivas. Ao contrário, quando as operações activas beneficiem de isenção simples, fica excluído por princípio o direito à dedução e o sujeito passivo passa a ocupar posição semelhante à de um consumidor final, suportando na sua esfera o imposto relativo às suas aquisições. Só quando as operações activas beneficiem de isenção completa é que se mantém intocado o direito à dedução, sendo a essas isenções que se refere o artigo 169.º, nas suas alíneas b) e c).”[4]
A existência de uma relação direta e imediata entre os bens e serviços adquiridos e uma ou várias atividades de fornecimento de bens ou de prestação de serviços que conferem o direito à dedução é, pois, em regra, indispensável para que o direito à dedução do IVA incorrido nos bens e serviços adquiridos seja reconhecido ao sujeito passivo e para determinar a extensão desse direito.
Contudo, o TJUE veio esclarecer que aquela relação direta e imediata não é exigível relativamente a cada output individualmente considerado, admitindo que tal conexão se verifique relativamente à atividade do sujeito passivo globalmente considerada[5].
Assim, na ausência de um nexo operação a operação, o direito à dedução subsiste se se verificar uma ligação, direta e imediata, com o conjunto da atividade económica desenvolvida, na medida em que esta confira esse direito, ou seja, desde que exista aquela relação entre as aquisições a montante e as atividades tributáveis do sujeito passivo[6].
Ademais, como resulta do acórdão Portugal Telecom (proferido em 6 de setembro de 2012, no processo C-496/11), o TJUE admite “igualmente um direito a dedução a favor do sujeito passivo, mesmo na falta de um nexo direito e imediato entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução, quando os custos dos serviços em causa fazem parte das suas despesas gerais e são, enquanto tais, elementos constitutivos do preço dos bens que fornece ou dos serviços que presta. Estes custos têm, com efeito, um nexo direto e imediato com o conjunto da atividade económica do sujeito passivo”.
O TJUE tem, pois, vindo a acompanhar a tendência interpretativa que dá prevalência à neutralidade no sistema do IVA, afastando-se de fórmulas restritivas na sua aplicação concreta e, por isso, tem salientado, em diversas ocasiões, que as normas da Diretiva IVA que preveem limitações do direito à dedução – artigos 176.º e 177.º – têm caráter excecional no âmbito do sistema IVA, derrogando o princípio da neutralidade, pelo que devem ser sempre objeto de interpretação estrita[7].
Como é sintetizado por Mariana Gouveia de Oliveira[8], tendo em conta a Diretiva IVA e a jurisprudência do TJUE, é possível diferenciar três testes para aferir o direito à dedução do IVA:
“1. IVA suportado em inputs directamente relacionados com outputs tributáveis;
2. IVA suportado em inputs directamente relacionados com uma das actividades económicas prosseguidas;
3. IVA suportado em custos gerais da actividade económica.
(…)
O primeiro teste resulta directamente de uma interpretação literal do n.º 2 (segundo parágrafo) do artigo 1.º da Directiva IVA. Prevê esta norma uma exigência quanto à ligação entre os custos suportados nos inputs e os preços dos bens e serviços (…)
Em qualquer caso, estamos a falar de uma relação directa e imediata entre o input e o output passado, presente ou futuro.
(…)
Quando não exista um direct link entre os inputs e os outputs tributados, ainda assim pode ser reconhecido o direito integral à dedução do IVA se for estabelecido um direct link entre os inputs e um conjunto delimitado de actividades económicas tributadas.
(…)
Por fim, de acordo com a jurisprudência do TJUE, na ausência de um direct link com os outputs tributados (individualmente ou com o conjunto da actividade tributada), há ainda que aferir se o direito à dedução dos bens e serviços adquiridos deverá ainda ser reconhecido sempre que as despesas efectuadas com a sua aquisição se qualifiquem como despesas gerais da actividade e integrem os elementos constitutivos do preço das operações realizadas pelos sujeitos passivos que conferem direito à dedução.
(…)
Sobre este último critério, parece-nos ser importante salientar que a sua verificação deve implicar uma dupla análise: por um lado a análise de uma relação funcional, i.e., a existência de uma ligação funcional/causal entre o input e a actividade tributável do sujeito passivo e, por outro, uma relação económica, i.e., um reflexo ao nível do preço dos outputs.
(…) Assim, entendemos que se deverá partir de uma análise simultaneamente funcional e económica, que afere se os inputs se relacionam com a “manutenção da fonte produtora” da actividade tributável, à semelhança do critério utilizado para efeitos de aferição dos gastos dedutíveis em sede de IRC e se esses custos são susceptíveis de se projectarem na formação dos preços dos outputs tributáveis (ainda que, no caso concreto, por vicissitudes externas, se acabem por não repercutir efectivamente).”
A propósito do aludido “critério utilizado para efeitos de aferição dos gastos dedutíveis em sede de IRC”, Gustavo Lopes Courinha[9] salienta que o critério atualmente relevante na lei é o da exigência de uma relação entre o gasto e a atividade da empresa e, desse modo, “a generalidade dos gastos, ainda que não obrigatórios, excessivos, desrazoáveis e improdutivos podem ser fiscalmente aceites, desde que motivados pela prossecução do fim empresarial”; são as designadas “business related expenses, ou despesas enquadradas (e assim justificadas) por um motivo empresarial, o que traduz de certo modo a transposição da doutrina do business purpose test”. Ainda a este propósito, o mesmo autor conclui afirmando o seguinte[10]: “Na atual redação da lei fica, por isso, essencialmente excluído um grande conjunto de despesas: aquelas cuja efetivação não se pode imputar aos interesses societários, mas aos interesses pessoais dos sócios ou de terceiros. E isso implica que, quanto a um conjunto muito vasto de despesas, onde se dá a interseção entre a esfera pessoal e societária ou entre diversas esferas societárias, se deva concluir que, em regra, não existe um interesse coletivo da empresa.”
Noutra ordem de considerações, importa frisar que, em conformidade com a jurisprudência do TJUE, o princípio da neutralidade do IVA exige que a dedução do imposto pago a montante seja concedida caso os requisitos substanciais tenham sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Assim, de acordo com o TJUE, desde que a Administração fiscal disponha dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das operações, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito à dedução, condições adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito[11].
§4.3. O caso concreto: subsunção normativa
21. Feito o antecedente enquadramento normativo, jurisprudencial e doutrinal referente ao direito à dedução do IVA, importa agora volver ao caso concreto e, tendo em vista aquilatar a (i)legalidade do ato tributário controvertido, importa então apurar se a Requerente tem ou não direito a deduzir o IVA referente aos serviços prestados pela “B..., S.A.”, a que se reportam as faturas identificadas no facto provado g), dedução essa que não foi aceite pela AT, com os fundamentos constantes do RIT (cf. facto provado h)).
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
22. Atendendo aos factos provados c), d), e) e f) e aos factos não provados a), b), c) e d), considerando o que se deixou dito em sede de motivação quanto à matéria de facto, concretamente quanto aos factos não provados, e tendo ainda presente que recai sobre o sujeito passivo o ónus da prova da existência dos factos tributários que alegou como pressuposto do direito à dedução do IVA (cf. artigo 74.º, n.º 1, da LGT), afigura-se que a Requerente não logrou demonstrar a existência de um nexo direto e imediato entre os serviços prestados pela “B..., S.A.” e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução, nem a existência de um nexo direto e imediato entre esses mesmos serviços e o conjunto da sua atividade económica.
A Requerente não demonstrou, pois, que os custos dos serviços prestados pela “B..., S.A.” fazem parte das sua despesas gerais e são, enquanto tais, elementos constitutivos do preço dos bens que fornece ou dos serviços que presta; por isso, estamos perante custos sem “um nexo direito e imediato com o conjunto da atividade económica do sujeito passivo”, o que, na perspetiva da referenciada jurisprudência do TJUE, afasta o direito à dedução do respetivo IVA.
Destarte, os serviços prestados pela “B..., S.A.”, a que se reportam as faturas identificadas no facto provado g), não podem qualificar-se como despesas gerais da Requerente, pois não foi comprovada a existência de uma relação direta e imediata com o conjunto da sua atividade económica de forma a justificar a dedução do respetivo IVA, uma vez que a existência dessa relação pressupõe a incorporação do seu custo nos preços dos bens ou serviços fornecidos pela Requerente no âmbito da sua atividade económica de fabrico de matérias plásticas para fins industriais (cf. facto provado a)), o que não foi demonstrado.
Em conclusão, como é salientado no RIT, “a transmissão por parte dos titulares do capital da A..., Lda, das respetivas quotas, não constitui uma operação enquadrável no âmbito da atividade desenvolvida pela sociedade, mas antes, na esfera dos seus sócios. Os efeitos decorrentes da identificada operação de venda das quotas produzem-se na esfera dos transmitentes e adquirentes das quotas e não na esfera da própria sociedade, pois o interesse na venda/aquisição das quotas refletem-se nos titulares do capital e não na sociedade.”
Nesta conformidade, é manifesto que o IVA suportado com os serviços prestados pela “B..., S.A.”, a que respeitam as faturas identificadas no facto provado g), foi indevidamente deduzido pela Requerente, inexistindo por isso qualquer erro nos pressupostos de facto e de direito subjacentes à emissão da liquidação adicional de IVA controvertida.
Por consequência, julga-se improcedente o vício de violação de lei invocado pela Requerente, mantendo-se válido o ato de liquidação adicional de IVA controvertido.
Atenta a improcedência do pedido de declaração de ilegalidade e anulação do ato de liquidação adicional de IVA controvertido, ficam prejudicados os demais pedidos formulados pela Requerente.
23. A finalizar, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou cuja apreciação seria inútil (cf. artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
IV. Decisão
Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:
-
Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira dos pedidos formulados pela Requerente;
-
Condenar a Requerente no pagamento das custas processuais.
V. Valor do Processo
Atento o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 21.159,98 (vinte e um mil cento e cinquenta e nove euros e noventa e oito cêntimos).
VI. Custas
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), cujo pagamento fica a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 11 de outubro de 2024.
O Árbitro,
(Ricardo Rodrigues Pereira)
[1] Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Volume II, 6.ª Edição, Lisboa: Áreas Editora, 2011, p. 341.
[2] Sérgio Vasques, O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Coimbra: Almedina, 2015, p. 333.
[3] Xavier de Basto e Maria Odete Oliveira (“Desfazendo mal-entendidos em matéria de direito à dedução de Imposto sobre o Valor Acrescentado: As recentes alterações do artigo 23.º do Código do IVA”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 1, Número 1, Primavera, 2008, p. 38) referem o seguinte: “O direito a deduzir o imposto suportado nos bens e serviços instrumentais à produção constitui, como é bem conhecido, a peça fundamental do sistema do imposto sobre o valor acrescentado.”
[4] Sérgio Vasques, ob. cit., p. 338.
[5] Neste sentido, os acórdãos SKF (proferido em 29 de outubro de 2009, no processo C-29/08) e Midland Bank (proferido em 8 de junho de 2000, no processo C-98/98).
[6] Neste sentido, os acórdãos Cibo (proferido em 27 de setembro de 2001, no processo C-16/00) e PPG Holdings (proferido em 18 de julho de 2013, no processo C-26/12) do TJUE.
[7] Neste sentido, os acórdãos Ampafrance e Sanofi (proferido em 19 de setembro de 2000, nos processos C-177/99 e C-181/99), PARAT (proferido em 23 de abril de 2009, no processo C-74/08) e Oasis East (proferido em 30 de setembro de 2010, no processo C-395/09).
[8] “As SGPS e o direito à dedução em sede de IVA”, Cadernos IVA 2013, Sérgio Vasques (Coord.), Coimbra: Almedina, 2014, pp. 282-286.
[9] Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Coimbra: Almedina, 2019, pp. 101 e 102.
[10] Idem, ibidem, p. 115.
[11] Neste sentido, os acórdãos Ecotrade (proferido em 1 de dezembro de 1998, no processo C-200/97), Nidera (proferido em 21 de outubro de 2010, no processo C-385/09), Dankowski (proferido em 22 de dezembro de 2010, no processo C-438/09) e SEM (proferido em 12 de julho de 2012, no processo C-284/11).