Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 230/2024-T
Data da decisão: 2024-10-22  Liquidação Outros 
Valor do pedido: € 18.752,22
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR). Conformidade com o direito europeu. Repercussão de impostos indiretos. Ónus da prova da repercussão.
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SUMÁRIO:

I-A norma do artigo 2.º da Lei n.º 24-E/2022 não consagra uma presunção legal pois não tira uma ilação dum facto conhecido para firmar um facto desconhecido, conforme estabelece o artigo 349º do Código Civil.

II-O segmento do referida norma da Lei n.º 24-E/2022  “sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” deve ser entendida como indicação programática do legislador no âmbito dum princípio jurídico e não como aquilo que inexoravelmente ocorre, sem prejuízo da ponderação pelo tribunal da indicação legislativa à luz da globalidade da prova produzida.

III-Constituindo a repercussão fiscal da CSR um facto positivo, o ónus da prova impende sobre      quem o invoca, nos termos do art. 74º, nº 1, da Lei Geral Tributária, pelo que, não tendo sido feita a prova da repercussão, nem estabelecendo a lei a presunção legal da mesma, improcede necessariamente a pretensão da Requerente.

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I – Relatório

 

1.No dia 18.02.2024, a Requerente,  A..., LDA, com Número de Pessoa Coletiva..., com sede na ..., ..., ..., ..., requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação  das liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (doravante apenas designada por “CSR”) subjacentes às faturas constantes do documento que juntou com a petição inicial  como doc. nº 2, bem como da decisão de indeferimento tácito  que recaiu sobre o Pedido de Revisão Oficiosa com o n.º ...2023..., apresentado em 20/07/2023, contra as mencionadas  liquidações.

 

A Requerente peticiona, ainda, o reembolso Requerente de todas as quantias que alega ter suportado, no montante global de € 18.752,22,  acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 29.04.2024.

 

3. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, no essencial, os seguintes:

 

  1. No âmbito da sua atividade, a Requerente suportou um montante de € 18.752,22 (dezoito mil setecentos e cinquenta e dois euros e vinte e dois cêntimos) a título de CSR, correspondente ao valor da referida contribuição, liquidado por um sujeito passivo terceiro e que lhe foi repercutida, enquanto consumidora final, no período compreendido entre junho de 2019 e dezembro de 2022.
  2. Através do Despacho da Oitava Secção do TJUE, do dia 7 de fevereiro de 2022, no âmbito do Processo n.º C-460/21, este Tribunal veio a considerar a CSR ilegal por violação do Direito da União Europeia, nomeadamente por violação da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo.
  3. Sucede que, apesar do facto da CSR ser liquidada pela Entidade que comercializa os produtos petrolíferos, a mesma é repercutida no consumidor final do combustível, sendo sobre este que recai o encargo financeiro da contribuição através do mecanismo da repercussão legal.
  4. Atendendo ao exposto, vem a Requerente solicitar a respetiva restituição integral do montante de € €18.752,22, em resultado da ilegalidade subjacente à liquidação e consequente repercussão da mesma.
  5. A procedência do presente Pedido não só deverá determinar o reembolso à Requerente do imposto indevidamente pago e entregue nos cofres do Estado, como ainda o pagamento dos juros indemnizatórios incidentes sobre aqueles, nos termos do disposto no artigo 43.º e 100.º da LGT e no artigo 61.º do CPPT.

 

4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se, em síntese, com os fundamentos seguintes:

 

Por exceção,

 

Da incompetência do Tribunal em razão da matéria

 

  1. Tratando-se a CSR de uma contribuição e não um imposto, o tribunal arbitral não é materialmente competente para conhecer do mérito do pedido em apreço por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, pelos quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos.
  2. Sempre ocorreria a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, uma vez que resulta do teor do pedido de pronúncia arbitral e sua fundamentação, que o que a Requerente suscita junto desta instância arbitral é a legalidade do regime da CSR, no seu todo, pelo que, pretendendo a Requerente, em rigor, a não aplicação de diplomas legislativos aprovados por Lei da Assembleia da República, decorrentes do exercício da função legislativa, visa, com a presente ação, suspender a eficácia de atos legislativos o que não se insere no âmbito da competência do tribunal arbitral uma vez que a instância arbitral constitui um contencioso de mera anulação de atos tributários.
  3. Ainda que se considerasse a competência do tribunal arbitral para a apreciação da ilegalidade dos atos de liquidação de ISP/CSR, nunca poderia o tribunal arbitral pronunciar-se sobre atos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, que não são atos de tributários e que, para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto.

 

Da ilegitimidade processual e substantiva da Requerente

 

  1. A Requerente não é sujeito passivo nos termos e para o efeito do disposto no artigo 4.º do CIEC, pelo não têm legitimidade para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral.
  2. Carece igualmente a Requerente de legitimidade à luz do disposto no artigo 18.º, n.º 4, alínea a), do Decreto-Lei n.º 398/98 de 17 de dezembro (Lei Geral Tributária – LGT), pois que, no caso concreto, não está em causa uma alegada situação de repercussão legal, porquanto a repercussão da CSR tem uma natureza meramente económica ou de facto.
  3. Por outro lado, no caso sub judice, as faturas apresentadas não materializam atos de repercussão de CSR, nem atestam que tal tributo foi suportado pela Requerente acrescendo que a Requerente repassa, necessariamente, no preço dos serviços prestados, os gastos em que incorre, nomeadamente, com a aquisição de combustíveis, pelo que as entidades potencialmente lesadas com o encargo da CSR, seriam os consumidos finais de tais serviços, e não a Requerente, contrariamente ao alegado no artigo 5.º do pedido arbitral.
  4. Assim, é de concluir que a Requerente não tem legitimidade nem para apresentar o pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral, nos termos do n.º 2, do artigo 15.º do CIEC e dos n.º 3 e 4, al. a), do artigo 18.º da LGT.

 

Ineptidão da Petição inicial – Da falta de objeto

 

  1. A Requerente limita-se a identificar faturas de aquisição de combustíveis aos seus fornecedores, alegando que terá sido esta entidade que, na qualidade de sujeito passivo de ISP/CSR, terá procedido à introdução no consumo dos produtos que vieram a ser adquiridos pela Requerente, sem, no entanto, identificar quaisquer atos de liquidação de ISP/CSR praticados pela administração tributária e aduaneira, nem as Declarações de Introdução no Consumo (DIC) submetidas pelos alegados sujeitos passivos de imposto pelo que o presente pedido arbitral não respeita os pressupostos legais de aceitação do requerimento/petição inicial, por violação da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, requisito essencial à aceitação do pedido, havendo ineptidão da petição inicial determinativa da nulidade de todo o processo e da absolvição da instância, conforme artigos 186.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º alínea b) e 278.º, n.º 1, alínea b), do CPC, aplicáveis ex vi da alínea e), do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT.

 

Ineptidão da Petição inicial – ininteligibilidade do pedido e contradição entre este e a causa de pedir

 

  1. A Requerente estrutura o seu pedido apresentando como causa de pedir, para efeitos de reembolso do que foi pago, a repercussão de um tributo alegadamente inválido por desconformidade desse tributo com o Direito da União.
  2. Ocorre contradição entre o pedido (a anulação das liquidações e do indeferimento tácito da revisão dessas liquidações) e a causa de pedir (a repercussão de um tributo inválido por desconformidade desse tributo com o Direito da União).
  3. Assim,  verifica-se  a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial por uma dupla razão: a não-identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral, o que compromete irremediavelmente, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º, a finalidade da petição inicial, e a contradição entre o pedido e a causa de pedir, levando à nulidade de

todo o processo nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 186.º e da alínea b) do artigo 577.º, ambos do CPC.

 

Da caducidade do direito de ação

 

  • A falta de identificação dos atos de liquidação em alegada discussão impede a aferição da tempestividade dos pedidos de revisão oficiosa das liquidações formulados pela Requerente.
  • Uma vez que a contagem do prazo para a apresentação dos referidos pedidos se inicia a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do ato de liquidação (global), para a apreciação da tempestividade da apresentação do pedido arbitral não pode deixar de ser previamente apreciada a questão da tempestividade do pedido de revisão, o que face à impossibilidade de identificação dos atos tributários em litígio, é impossível.
  • No entanto,  tudo leva a crer que, o pedido de revisão oficiosa e, consequentemente, o pedido arbitral, são intempestivos.
  • Porquanto, tomando por referência o alegado pela Requerente, aquisições no período compreendido entre junho de 2019 a dezembro de 2022, em 20-07-2023, há muito que se encontrava ultrapassado o prazo da reclamação graciosa de 120 (cento e vinte) dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISP/ CSR, previsto no artigo 78.º, n.º 1, primeira parte da LGT.
  • Verifica-se que o vício do pedido arbitral decorrente da falta de identificação do(s) ato(s) tributário(s) em crise tem, entre outros, como efeito a impossibilidade de se aferir em pleno da tempestividade dos pedidos de revisão oficiosa e de consequente reembolso por alegado pagamento de valores a título da alegada repercussão económica da CSR, e, consequentemente, da tempestividade do pedido arbitral.
  • A acrescer ao facto de a Requerente não ser sujeito passivo de ISP/CSR e ao facto de não lograr provar o pagamento dos respetivos valores, em  em 20-07-2023 já teria terminado o prazo de 3 (três) anos previsto no nº 3 do artigo 15.º do CIEC para requerer o reembolso do alegado valor pago por alegada repercussão económica de CSR daí que,  pelo menos no que se refere a todas as aquisições efetuadas pela Requerente em datas anteriores a  20-07-2020 e mesmo que apenas parcialmente, constata-se a caducidade do (alegado) direito de ação por parte da Requerente.
  • Ainda que se considerasse o prazo de quatro anos previsto na LGT, o que apenas se admite para efeitos de raciocínio, até esse já estaria ultrapassado relativamente às liquidações anteriores a 20-07-2019  o que consubstancia uma exceção perentória, devendo, nessa medida, a Requerida ser absolvida do pedido,  e caso  assim não se entenda, sempre consubstanciará uma exceção dilatória por assim ser qualificada especialmente nos termos e para o efeito do disposto nos artigos 89.º n.º1, 2 e 4 al. k) do Código do Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), devendo, nessa medida, ser a Requerida absolvida do pedido ou da instância.

 

Por impugnação,

 

  1. Alega   a     Requerente    ter    suportado  entre 2019 e 2022  um  montante  global  de

€ 18.752,22€, liquidado a título de CSR.

  1. Sucede que, não logra a Requerente fazer prova do que alega, designadamente que a Requerente pagou e suportou integralmente o encargo do pagamento da CSR por repercussão.
  2. Devendo funcionar plenamente as regras do ónus da prova, não se dando como provados os alegados factos invocados no pedido arbitral, sendo que, nos termos do artigo 74.º da LGT, o ónus da prova de factos constitutivos de direito recai sobre quem os invoque.
  3. De acordo com o artigo 344.º do Código Civil – CC - (Inversão do ónus da prova), as regras do ónus da prova (previstas nos artigos 342.º e 343.º) só se invertem quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido e, de um modo geral, sempre que a lei o determine ou quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, situações que não se verificam no caso em concreto.
  4. Pelo que, exigir que seja a Requerida a fazer prova de que não houve repercussão, isto é, fazer prova de facto negativo, configura uma exigência de prova diabólica, a qual é inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade, da tutela jurisdicional efetiva e do processo equitativo, preceituados nos artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, e do direito ao contraditório e à ampla defesa.
  5. Acresce que as faturas apresentadas pela Requerente contêm uma parcela com a designação “desconto”, sem descritivo da respetiva natureza e conteúdo, o que contribui para a falta de rigor e, por si só, suscita dúvidas quanto a própria presunção da repercussão da CSR, pelo menos no que se refere ao seu quantum.
  6. Assim, em conformidade com o demonstrado, considera-se que nenhum dos elementos de prova apresentados, sustentam qualquer alegado facto invocado no pedido arbitral, nomeadamente que o valor pago pelos combustíveis que a Requerente adquiriu, tem incluída a totalidade (ou sequer, parte) da CSR paga pelo sujeito passivo de ISP/CSR, nem constitui prova bastante quanto aos valores alegadamente pagos/suportados a título de CSR, o que deve ser devidamente valorado em termos de prova, sendo certo que impendia sobre a Requerente o ónus de tal prova.
  7. Sendo que a prova de pagamento da CSR é um facto positivo e não é prova suficiente justificar a ocorrência de uma efetiva repercussão desse tributo assente em meros juízos presuntivos, sem efetuar a demonstração objetiva da realidade dos factos através de elementos de prova que se relacionem com os fatores inerentes às transações comerciais que foram realizadas.
  8. Consequentemente, é forçoso concluir que não logra a Requerente fazer prova de que efetivamente ocorreu repercussão, parcial ou total, da CSR, na aquisição dos combustíveis aos seus fornecedores e que, nessa sequência, efetuou o pagamento e suportou, a final, o encargo da CSR.

 

5. A Requerente pronunciou-se por escrito sobre as exceções invocadas pela R. pugnando pela sua improcedência, com invocação de jurisprudência arbitral em sentido contrário ao sustentado pela Requerida e que, por razões de economia processual, o tribunal se dispensa de reproduzir, sem prejuízo da sua ponderação na decisão da matéria em causa.

 

6. Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, à luz do disposto nos artigos 16º, al. c), do RJAT e do princípio da proibição da prática de atos inúteis.

Foi ainda dispensada a apresentação  de alegações, por não se mostrarem necessárias.

 

II - SANEAMENTO

 

7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.

8. As partes estão devidamente representadas e gozam de personalidade e capacidade judiciárias.

9.  O processo não enferma de nulidades.

 

10. Tendo em consideração a matéria de exceção suscitada pela Requerida, importa apreciar, preliminarmente, estas matérias, começando pela da incompetência do Tribunal, que é de conhecimento prioritário [artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT].

 

Da incompetência do Tribunal em razão da matéria

 

No decisão do processo nº 1049/2023-T pode ler-se o seguinte:

“A competência contenciosa dos tribunais arbitrais em matéria de arbitragem tributária, tal como resulta do artigo 2.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), compreende a apreciação de pretensões que visem a “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” e a “declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.

O artigo 4.º, n.º 1, do RJAT faz ainda depender a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que deverá estabelecer, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

E o diploma que, em execução desse preceito, define o âmbito e os termos da vinculação da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, que no seu n.º 2, sob a epígrafe “Objeto de vinculação”, e com a alteração resultante da Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, dispõe o seguinte:

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com exceção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação;

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo”.

A referência a serviços e organismos que se vinculavam à jurisdição arbitral era feita para a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, que foram, entretanto, extintas, tendo-lhes sucedido a Autoridade Tributária e Aduaneira.

A Portaria n.º 112-A/2011, também chamada Portaria de vinculação, fixa, por conseguinte, um segundo nível de delimitação das pretensões que poderão ser sujeitas à jurisdição arbitral. Tratando-se de um mero regulamento de execução, a Portaria não poderia ir além do estabelecido na lei quanto ao âmbito de competência material dos tribunais arbitrais, mas poderia estabelecer restrições quanto ao âmbito da vinculação à arbitragem tributária, mormente por referência ao tipo de litígios e ao valor do processo.

Ainda a este propósito, o acórdão proferido no Processo n.º 48/2012-T, depois seguido por diversos outros arestos, consignou o seguinte:

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do [RJAT].

Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o artigo 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele artigo 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este tribunal arbitral”.

No caso, a Portaria de vinculação, aparentemente, estabelece duas limitações: refere-se a pretensões “relativas a impostos”, de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos tribunais arbitrais, e a impostos cuja administração esteja cometida à Autoridade Tributária. Haverá de concluir-se, nestes termos, que a vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que respeitem a impostos - com a exclusão de outros tributos - e a impostos que sejam geridos pela Autoridade Tributária.

A constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos.

A LGT, aprovada em 1998, passou a incluir entre os diversos tipos de tributos, os impostos e outras espécies criadas por lei, designadamente as taxas e as contribuições financeiras a favor das entidades públicas, definindo, em geral, os pressupostos desses diversos tipos de tributos no subsequente artigo 4.º.

A doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas. Como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, a diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos  e certas despesas públicas (responsáveis pelas prestações públicas de que as contribuições são contrapartida), aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas” (Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1095). Neste sentido, as contribuições são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efetivas (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 287).

Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem também reconhecido a existência dessas diferentes categorias jurídico-tributárias, designadamente para efeito de extrair consequências quanto à competência legislativa, admitindo que as taxas e outras contribuições de carácter bilateral só estão sujeitas a reserva parlamentar quanto ao seu regime geral, mas não quanto à sua criação individual e quanto ao regime concreto, podendo portanto ser criadas por diploma legislativo governamental e reguladas por via regulamentar desde que observada a lei-quadro (cfr., entre outros, o acórdão n.º 365/2008).

Ou seja, não há dúvida que as contribuições financeiras se distinguem dos impostos.

A Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º), que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A., sendo que o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo desta entidade é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável (artigo 2.º).

A mesma contribuição corresponde à contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, e constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da Infraestruturas de Portugal, S.A, no que respeita à respetiva conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento, ainda que a exigência da contribuição não prejudique a eventual aplicação de portagens em vias específicas ou o recurso da entidade concessionária a outras formas de financiamento (artigo 3.º).

A contribuição incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1) e é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (artigo 5.º, n.º 1).

O produto da Contribuição de Serviço Rodoviário constitui receita própria da atualmente denominada Infraestruturas de Portugal, S.A. (artigo 6.º).

A atividade de conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, que é objeto de financiamento através da Contribuição de Serviço Rodoviário foi atribuída, em regime de concessão, à EP - Estradas de Portugal, E. P. E. pelo Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de novembro, que aprovou as bases da concessão e nas quais se prevê que, entre outros rendimentos, essa contribuição constitua receita própria dessa entidade (Base 3, alínea b)). E, por outro lado, nelas se estabelece, como uma das obrigações da concessionária, a prossecução dos “objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental” (Base 2, n.º 4, alínea b)).

À luz do regime jurídico sucintamente descrito, dificilmente se poderia concluir que a Contribuição de Serviço Rodoviário constitui uma contribuição financeira.

Como se refere no acórdão proferido no Processo n.º 269/2021, corroborado pelo acórdão tirado no Processo n.º 304/2022, a Contribuição de Serviço Rodoviário não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 3.º, n.º 2), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (artigo 6.º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP - Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (artigo 3.º, n.º 2).

Por outro lado, nada permite afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da atividade administrativa que se encontra atribuída à EP - Estradas de Portugal, E. P. E. é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Quando é certo que o artigo 2.º da Lei n.º 55/2007 declara expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E. (...) é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Nestes termos, o financiamento da rede rodoviária nacional é assegurado pelos respetivos utilizadores, que são os beneficiários da atividade pública desenvolvida pela EP - Estradas de Portugal, E. P. E., verificando-se, no entanto, que a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”.

Não existindo, deste modo, qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos sujeitos passivos.

Resta acrescentar que o regime jurídico da CSR não é equiparável ao previsto para a Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB) ou para a Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE), que são caracterizadas como típicas contribuições financeiras, não tendo qualquer aplicação ao caso a jurisprudência constante dos acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 182/2019-T, 138/2019-T, 123/2019-T, que tiveram por objeto a CSB, nem a dos acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 248/2019-T e 585/2020-T, que incidiram sobre a CESE.

Por todo o exposto, a alegada exceção da incompetência material do tribunal arbitral com fundamento na qualificação da CSR como contribuição financeira, mostra-se ser improcedente.

 

Acompanhando-se este entendimento, entende-se ser improcedente a exceção de incompetência do tribunal arbitral com este fundamento.

 

Incompetência material do tribunal em razão da causa de pedir

 

Pode ler-se, ainda, na decisão arbitral acima citada:

“A Autoridade Tributária suscita ainda a exceção da incompetência do tribunal arbitral para conhecer do presente pedido na medida em que se pretende discutir a legalidade do regime da CSR no seu todo.

A arguição assenta num evidente equívoco.

A Requerente formulou um pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade do ato de liquidação de CSR referente aos meses de março de 2019 a dezembro de 2022, invocando como causa de pedir, a desconformidade da contribuição com a Diretiva 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao Regime Geral dos Impostos Especiais de Consumo.

Estando em causa, no caso vertente, a desconformidade da CSR com a Diretiva 2008/118/CE, não pode deixar de concluir-se pela competência contenciosa do tribunal para a apreciação do litígio.

As normas de direito europeu derivado, como normas de direito internacional convencional, vigoram diretamente na ordem jurídica interna com a mesma relevância das normas de direito interno, vinculando imediatamente o Estado e os cidadãos (artigo 8.º da Constituição).

A impugnação judicial de um ato de liquidação pode ser deduzida com fundamento em qualquer ilegalidade (artigo 99.º do CPPT), nada permitindo distinguir entre a ilegalidade resultante de normas de direito interno ou de direito convencional.

Torna-se claro que não existe qualquer obstáculo a que o tribunal arbitral se pronuncie sobre o fundamento de ilegalidade do ato de liquidação baseado em desconformidade da CSR com o direito europeu, sendo manifestamente improcedente a invocada exceção de incompetência do tribunal em razão da causa de pedir”.

 

O tribunal acompanha também este entendimento, sendo, consequentemente, também improcedente a exceção de incompetência material com este fundamento.

 

Incompetência em razão da apreciação da legalidade de atos de repercussão de CSR extravasar o âmbito material da arbitragem tributária

 

A Requerente veio requerer a constituição de tribunal arbitral na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito de pedido de revisão oficiosa, apresentado pela Requerente.

Consta do pedido a seguinte pretensão:

 

Nestes termos e nos demais de direito ao caso aplicáveis (…), deve o presente pedido de pronúncia arbitral ser declarado totalmente procedente determinando-se, em consequência::

 (…)”.

B. A anulação dos atos tributários de liquidação da CSR em apreço;

 

 

Assim, inexiste  qualquer dúvida de que os atos de liquidação de imposto constituem objeto do processo arbitral pelo que, também à luz deste fundamento de incompetência do tribunal, improcede a exceção suscitada.

 

Da ilegitimidade processual e substantiva da Requerente

 

Para decisão da questão da legitimidade da impugnante, afigura-se de especial relevo o seguinte:

  1. De acordo com o art. 2º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto “O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP – Estradas de Portugal, E.P.E., tendo em conta o disposto no Plano Rodoviário Nacional, é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável”;
  2. Nos termos do previsto no artigo 3.º, “a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como está verificada pelo consumo dos combustíveis”.

Daqui resulta que a lei pretende tributar os consumidores de combustíveis, como utilizadores da rede rodoviária nacional. A repercussão da CSR a estes consumidores/utilizadores foi, pois,  o propósito do legislador, pelo que esta repercussão é legal, no sentido de prevista e querida pelo ordenamento jurídico (embora não obrigatória, diferentemente do que sucede em IVA).

Acresce que, com a entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro (diploma que também extinguiu a CSR), o legislador introduziu no artigo 2.º do CIEC uma referência expressa à imposição legal de repercussão dos impostos especiais de consumo, tendo, no artigo 6.º da referida Lei, sido atribuída natureza interpretativa a tal alteração legislativa. Assim, a natureza legal da repercussão do imposto que já resultava clara dos arts. 2º e 3º da Lei n.º 55/2007, veio a ser reforçada pelo art. 2º do CIEC, na redação do Redação dada Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro.

 

Neste sentido, escreveu, ainda antes desta alteração legislativa, Jorge Lopes de Sousa:

“Nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o do direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18º, nº 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face dos respetivos regimes legais, a lei exige os pagamentos dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende Tributar” [CPPT, anotado e comentado, Vol. I, 2006, pag. 106 (anotação ao art. 9º)].

E, na mesma linha, Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade:

“Há que referir ainda os casos de repercussão legal do imposto. Esta verifica-se em se de IVA e de impostos especiais de consumo”. (“CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO”, Volume I, Almedina, 2017, p. 98).

Assim,  é de considerar que do art. 18º, nº 4, al. a) resulta, desde logo, a consagração do direito à impugnação por parte dos consumidores/utilizadores de combustíveis, como repercutidos. Mesmo que assim não fosse e se considerasse que os consumidores de combustíveis utilizadores da rede rodoviária nacional não suportam a CSR por repercussão legal, sempre seria de considerar que, face ao art. 9º, nºs  1, “in fine”, e 4,  do CPPT, ao princípio da tutela judicial efetiva, a Requerente tem legitimidade processual.

Efetivamente, face a estas regras e princípios, alegando a Requerente ter suportado por repercussão um imposto cujo regime jurídico visa tributar a sua capacidade contributiva, não existe fundamento jurídico  para que lhe seja negado o direito de invocar a sua ilegalidade e impugnar o tributo na jurisdição fiscal, com base em pretensa ilegitimidade processual, tanto mais  que, nos termos do art. 7º do CPTA, aplicável ex vi art. 29º, nº 1, al. c) do RJAT e por força do princípio da tutela judicial efetiva “Para efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”.

Questão distinta, será, em sede de apreciação do mérito da causa, a questão da prova da efetiva repercussão e de quem suportou efetivamente o imposto. Para aferição da legitimidade, releva apenas a relação controvertida tal como é configurada pela Requerente (art. 30º, nº 3, “in fine” CPC) ou, em termos substancialmente equivalentes, na expressão do CPTA, “o autor é parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida” (art. 9º, nº 1, do CPTA).

Como explicam Mário Aroso de Almeida-Carlos Alberto Fernandes Cadilha:

“Através da mesma fórmula verbal - e à semelhança do que já sucedera com a nova redacção dada ao nº 3 do artigo 26º do CPC (resultante da reforma de 1996) – o artigo 9º, nº 1, toma posição explícita sobre a velha querela relativa ao critério de determinação da legitimidade, dando agora como assente que a legitimação processual é aferida pela relação controvertida tal como é apresentada pelo autor.” [1] (COMENTÁRIO DA CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS, Almedina, 2ª edição revista – 2007).

 

Neste sentido, pode ler-se na já citada decisão arbitral proferida no processo 1049/2023-T, o seguinte:

Analisando esta questão, cabe começar por referir que, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do CPTA, subsidiariamente aplicável, e da correspondente disposição do artigo 30.º, n.º 3, do CPC, a legitimidade processual é aferida pela relação jurídica controvertida tal como é apresentada pelo autor. E, deste modo, há que atender à relação jurídica tal como o autor a apresenta e configura, isto é, à pretensa relação jurídica, e não à relação jurídica material, tal como ela se constituiu na realidade, sendo por isso indiferente, para a verificação da legitimidade, a questão de saber se o direito existe na titularidade de quem o invoca ou contra quem é feito valer, matéria que diz antes respeito à questão de fundo e poderá, quando muito, determinar a improcedência da ação (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, págs. 45 e segs.).

Alegando a Requerente, na petição inicial, que pretende impugnar os atos tributários de liquidação da contribuição de serviço rodoviário (CSR) incidentes, em determinado período de tempo, sobre os fornecedores de combustíveis e cujo encargo tributário se repercutiu na sua esfera jurídica, não pode deixar de entender-se que o contribuinte dispõe de legitimidade processual para deduzir o pedido, independentemente de saber se houve uma efetiva repercussão ou se as faturas de aquisição de combustível corporizam o valor pago a título de CSR. (…). Quer as disposições da Lei n.º 55/2007, especificamente aplicáveis à contribuição de serviço rodoviário, quer a disposição geral do artigo 2.º do CIEC, consagram um princípio de repercussão legal do imposto, significando que o encargo do imposto não seja suportado pelo sujeito passivo, mas pelo contribuinte que intervém no processo de comercialização dos bens ou serviços. Havendo de admitir-se, por efeito da norma do artigo 18.º, n.º 4, alínea a), da LGT, que as entidades repercutidas dispõem de legitimidade procedimental e processual para deduzirem reclamação graciosa ou recurso hierárquico ou impugnação judicial contra o acto tributário de liquidação do imposto que é objeto de repercussão (cfr. Lopes de Sousa, Código de Processo e Procedimento Tributário Anotado e Comentado, vol. I, Lisboa, 2011, pág. 115, e Serena Cabrita Neto/Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, pág. 98).

Para além da legitimidade ativa da Requerente se encontrar coberta pela referida disposição da LGT, essa legitimidade é também reconhecida pela regra geral do artigo 9.º, n.º 1, do CPPT, segundo a qual “têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido”. Ou seja, ainda que se entendesse que a situação do caso não corresponde a repercussão legal, mas a mera repercussão económica ou de facto, não pode deixar de considerar-se que a entidade que suporta o imposto no âmbito da cadeia de comercialização dispõe de legitimação para impugnar o ato de liquidação com fundamento em ilegalidade.

Alega ainda a Autoridade Tributária que, face ao regime especial dos artigos 15.º e 16.º do CIEC, apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do ISP e da CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago, e, como tal, os adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do ato tributário e consequente pedido de reembolso do imposto.

Há que fazer notar, a este propósito, que o artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 55/2007 apenas remete para o CIEC o procedimento de liquidação e cobrança do imposto, remissão que igualmente é efetuada para a LGT e o CPPT, significando que, nesse âmbito, haverá de ter-se em consideração as disposições conjugadas do CIEC e da demais legislação tributária aplicável.

Por outro lado, o regime específico previsto nos artigos 15.º e seguintes do CIEC abrange o reembolso com fundamento em erro na liquidação ou em caso de expedição ou exportação, ao passo que o que está em causa no presente processo arbitral não é um qualquer pedido de reembolso, mas a declaração de ilegalidade dos atos tributários de repercussão do imposto por violação do direito europeu.

E, nesses termos, a questão da legitimidade ativa terá de ser analisada à luz das regras processuais aplicáveis, e não do regime específico do reembolso do imposto que consta das citadas disposições do CIEC.

Por todo o exposto, a alegada exceção de ilegitimidade ativa, tal como se encontra formulada, é improcedente e nada obsta ao prosseguimento do processo no tocante aos falados atos de liquidação como meio de obter a consequente anulação dos atos de repercussão.

A Autoridade Tributária refere ainda que a Requerente, não sendo sujeito passivo do imposto, carece não apenas de ilegitimidade processual, mas também de ilegitimidade substantiva, que constitui uma exceção perentória e conduz à absolvição do pedido.

Como é entendimento corrente, a chamada a legitimidade substancial ou substantiva tem a ver com a efetividade da relação material, interessando já ao mérito da causa e, nesse sentido, constitui um requisito da procedência do pedido (cfr. acórdão da Relação do Porto de 4 de outubro de 2021, Processo n.º 10910/20).

Não é possível considerar verificada liminarmente a inviabilidade da pretensão deduzida em juízo com base em meras alegações da parte contra quem vem deduzido o pedido, quando essa é a questão de fundo que carece de ser analisada em função do direito aplicável face aos factos que venham a ser dados como provados ou não provados.

Nem a alegação aduzida pela Requerida poderá caracterizar uma exceção perentória. As exceções perentórias consistem na invocação de factos que, em face da lei substantiva, possam integrar uma causa impeditiva, extintiva ou modificativa do direito invocado pelo autor na ação e que assim determinem a improcedência total ou parcial do pedido. São impeditivos os factos que excluem ou impedem a eficácia do direito alegado (incapacidade, falta ou vícios de vontade), modificativos os que alteram a relação jurídica modificando a natureza da prestação ou as condições da sua exigibilidade (alteração das circunstâncias em que foi celebrado um contrato), extintivos os que fazem cessar o direito tornando inviável o respetivo exercício (caducidade, prescrição, cumprimento da obrigação).

Assim sendo, o que vem alegado quanto à legitimidade substantiva não integra a defesa por exceção e apenas poderá relevar em sede de apreciação do mérito.

O que vem de dizer-se é igualmente aplicável quanto à alegada inexistência de prova de efetiva repercussão da CSR por efeito da aquisição de combustíveis. Essa é matéria de prova que terá de ser analisada no âmbito da decisão arbitral e que não integra, em si, uma qualquer exceção perentória.[2]

 

Face ao exposto e acompanhando a decisão arbitral que se acaba de citar, julga-se improcedente a exceção em causa.

 

Ineptidão da petição inicial

 

A Requerida invoca a ineptidão da petição inicial, com a consequente nulidade de todo o processo, ao abrigo dos artigos 186.º, n.º 1, 576, n.ºs 1 e 2 e 577.º, al. b) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.

O RJAT não contém regime próprio em matéria de exceções e nulidades processuais, aplicando-se nesta matéria, a título subsidiário, o disposto no CPPT, no CPTA e no CPC, como decorre do previsto no artigo 29.º, n.º 1, a), c) e), do RJAT.

A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória cuja verificação conduz à abstenção de conhecimento do mérito da causa e à absolvição do réu da instância (artigo 278º, n.º 1, al. b) do CPC). Trata-se de uma exceção de conhecimento oficioso, conforme preceituado no artigo 196.º do CPC e também no artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, al. b), do CPTA e no artigo 98.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPPT.

Vejamos.

 

Da ineptidão da petição inicial por falta de objeto e por ininteligibilidade do pedido

 

Do artigo 186.º, n.º 1 do CPC consta uma lista fechada de situações geradoras de ineptidão da petição inicial:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

De acordo com o n.º 3 do mesmo dispositivo, ainda que os factos essenciais alegados sejam insuficientes, se a ré contestar apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a), decorrendo da contestação que interpretou convenientemente a petição inicial e os pedidos, impugnando expressamente o que foi alegado pelo Autor e, em consequência, requerendo a sua absolvição daqueles, não procede a arguição de ineptidão da petição inicial que eventualmente seja arguida com aquele fundamento.

A exceção relacionada com a ineptidão da petição inicial por falta de objeto não procede, porquanto não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC. Nem, aliás, a Requerida identifica, na sua resposta, em qual das situações elencadas naquele normativo é subsumível a alegada ineptidão por falta de objeto.

E ainda que se considerasse que a situação se pudesse subsumir à al. a), do nº 1, do nº 2 do art. 186º do CPC, o certo é que cotejadas as posições das partes expressas nos articulados, verifica-se que a Requerida interpretou convenientemente a petição inicial, tendo apresentado a sua resposta sem revelar  qualquer dúvida quanto à pretensão da Requerente, pelo que o nº 3 do art. 186º do CPC sempre imporia a improcedência da exceção em causa.

A eventual dificuldade que a AT possa ter na identificação das liquidações a que ela própria procedeu é um problema de organização dos seus serviços, que não pode ser imputado nem trazer desvantagem à Requerente. A Requerente fez tudo quanto poderia ter feito, juntando os documentos que tinha à sua disposição. Exigir à Requerente a identificação dos atos de liquidação numa situação com este recorte, constituiria uma interpretação dos normativos sob apreciação em desalinho com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP, improcedendo, pois, a exceção em causa com este fundamento.

 

Ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido  e a causa de pedir

 

Decorre do artigo 581º, nº 4º, do Código de Processo Civil que nas ações de anulação a causa de pedir é “a nulidade especifica que se invoca que se invoca para obter o efeito pretendido”. Ou seja,  a causa de pedir é o vício invocado como fundamento da anulabilidade, no caso a ilegalidade abstrata das liquidações por desconformidade do direito nacional, em que se baseiam, com o Direito da União Europeia.

Assim, a pretensão anulatória está, manifestamente,  em harmonia com a causa de pedir invocada, pelo que, não se verifica a apontada ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de  pedir.

Nestes termos, improcede a exceção de ineptidão da petição inicial,  também com este fundamento.

Julga-se, consequentemente, totalmente  improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial.

 

Caducidade do direito de ação

 

Pode ler-se, ainda, no já citado acórdão proferido no proc. 1049/2023-T:

A Autoridade Tributária alega ainda que a falta de identificação dos atos de liquidação impede aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa, na medida em que a contagem do prazo para a sua apresentação se inicia a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do ato de liquidação. E considera, por outro lado, que o pedido de revisão oficiosa não poderia ser apresentado no prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, porquanto esse prazo apenas é aplicável quando o ato de liquidação seja imputável a um erro dos serviços, e, na situação do caso, encontrando-se a Administração vinculada ao princípio da legalidade e tendo efetuado a liquidação em estrita observância das normas legais, não ocorreu qualquer erro de direito imputável aos serviços.

Como se deixou já exposto, a Requerente deduziu um pedido de pronúncia arbitral contra os atos tributários de liquidação da CSR e consequentes atos de repercussão. E não sendo a Requerente o sujeito passivo do imposto, nem o direto responsável pela sua liquidação, mas apenas a entidade que alegadamente suporta o encargo por efeito da repercussão, não lhe compete o ónus de identificação e de comprovação dos atos de liquidação repercutidos, sendo antes sobre a Autoridade Tributária que impede o ónus de realizar, no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, as diligências oficiosas que permitissem verificar a existência dos atos de liquidação do imposto.

E assim sendo, a alegada falta de identificação dos atos de liquidação não é imputável à Requerente.

Acresce que - como se afirma, entre outros, nos acórdãos do STA de 14 de Março de 2012 (Processo n.º 01007/11) e de 8 de Março de 2017 (Processo n.º 01019/14) - a revisão oficiosa do ato tributário pode ser efetuada a pedido do contribuinte no prazo de quatro anos contados da liquidação (ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago) quando houver erro imputável aos serviços, devendo entender-se como tal o erro material, o erro de facto ou o erro de direito, independentemente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação.

É o que resulta do disposto no artigo 78.º, n.º 7, da LGT, pelo qual a revisão oficiosa, nos termos previstos no n.º 1 desse artigo, pode ser desencadeada pelo sujeito passivo mediante requerimento dirigido ao órgão competente da Administração Tributária e com base nos mesmos pressupostos legais: no prazo de quatro anos e com fundamento em erro imputável aos serviços. O que se tem entendido como uma decorrência do princípio da justiça e da verdade material (cfr., neste sentido, Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento Tributário, 5.ª edição, Coimbra, págs. 227-228; Serena Cabrita Neto/Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, pág. 605, e Leonardo Marques dos Santos, “A revisão do ato tributário, as garantias dos contribuintes e a fiscalidade internacional”, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, Economia, Finanças Públicas e Direito Fiscal, Vol. II, págs. 14 e segs.).

Conforme é também jurisprudencialmente aceite, existindo um erro de direito numa liquidação efetuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, em resultado da obrigação genérica de a administração tributária atuar em plena conformidade com a lei”.

 

Por outo lado, como se pode ler, sobre a mesma questão, na decisão arbitral proferida no proc. 491/2023-T:

“Como se lê no acórdão do STA de 12.02.2001, recuperado recentemente no acórdão do STA de 03.06.2020, «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...)» (cf. acórdão do STA de 03.06.2020, processo n.º 018/10).

E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais – que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, acesso direto à Constituição – não tem a Administração Tributária o poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e, por maioria de razão, normas contrárias ao direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado – e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto – estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto (acórdão Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, § 31).

Assim, havendo (…) erro imputável aos serviços, o prazo para apresentar o pedido de revisão oficiosa é de 4 anos após a liquidação, e não de 120 dias”.

 

Em linha com esta jurisprudência, entende-se que o prazo para apresentação do pedido de revisão oficiosa in casu é de quatro anos após a liquidação ou, a todo o tempo, se o tributo não tiver sido pago, improcedendo, deste modo, a argumentação da Requerida para fundamentar a alegada caducidade do direito de ação.

Assim, julga-se também improcedente a exceção de caducidade do direito de ação.

 

11. Não foram suscitadas outras exceções de que cumpra conhecer.

 

12. Cumpre solucionar as seguintes questões:

a) Ilegalidade das liquidações objeto do processo.

b) Direito da Requerente à restituição do imposto.

c) Direito da Requerente a juros indemnizatórios.

 

III – A matéria de facto relevante

 

13. Factos Provados

 

Com relevância para decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

13.1.  Entre junho  de 2019 e Dezembro de 2022 a Requerente comprou  o gasóleo mencionado nas faturas  constantes do documento que juntou com  a petição inicial   como documento nº 2.

13.2. A Requerente  apresentou, no dia 20/07/2023, junto da Autoridade Tributária e Aduaneira  pedido de Revisão Oficiosa, contra os atos de liquidação de CSR subjacentes às faturas constantes do documento que juntou com  a petição inicial   como documento nº 2 (cfr. pags. 1 e segs. do processo administrativo)

13.3. Até à data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, a Autoridade Tributária não deu qualquer resposta ao pedido da Autora.

 

14. Factos não provados

 

Com interesse para a decisão da causa, não se provou que a Requerente, no período compreendido entre junho de 2019 e dezembro de 2022, suportou  por repercussão o  montante de € 18.752,22 (dezoito mil setecentos e cinquenta e dois euros e vinte e dois cêntimos) a título de CSR, correspondente ao valor deste imposto liquidado por sujeito passivo terceiro.

 

 

15. Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto

 

No que se refere aos factos provados a decisão assenta na ausência de controvérsia entre as partes relativamente aos mesmos, bem como, nos documentos constantes do processo.

Relativamente aos factos não provados, a decisão assenta na ausência de produção de prova pela Requerente em grau suficiente para firmar a convicção do Tribunal sobre a verificação dos mesmos. Efetivamente, a Requerente  apresentou faturas de compra do combustível. Porém, em nenhuma destas  consta a referência a imposto de CSR pago ou suportado pela Requerente. Por outro lado, esta não apresentou qualquer documento emitido pelas suas fornecedores referentes à alegada  repercussão do imposto.

Sendo de admitir, à luz do normal acontecer e da teleologia do imposto, ser verosímil que os sujeitos passivos de CSR repercutam o valor do imposto no preço de venda do combustível, tal não basta para que se considere feita a prova da repercussão, tanto mais que também é verosímil que os mesmos sujeitos passivos possam, por razões comerciais (pelo menos em parte), incorporar nos seus custos o imposto, sendo facto conhecido que também alguns sujeitos passivos do tributo têm deduzido pretensões anulatórias quanto ao imposto em causa, não existindo consenso social de que a repercussão total tenha sempre lugar.

Como refere Luís Filipe Pires de Sousa:

A concludência da máxima da experiência, qualquer que seja a forma que assume em concreto, deve ser avaliada no caso especificamente examinado. E, na formulação desse juízo, deve atender-se à relevância científica da regra em causa ou ao consenso social que a mesma suscite.” (Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2020, reimpressão, p.70).

Não se desconhece que há quem sustente que a Lei n.º 24-E/2022 no seu artigo 2.º  consagra uma  presunção legal de repercussão dos IEC nos contribuintes que consumam bens sujeitos a impostos especiais sobre o consumo.

Esta é já, porém, essencialmente, uma questão jurídica, de que se tratará em sede de matéria de direito.

 

 

IV - O Direito aplicável

 

16. Da ilegalidade das liquidações: a questão da violação do Direito da União

 

A Requerente, louvando-se no Despacho do Tribunal de Justiça proferido no processo C-460/21, solicita ao Tribunal arbitral que desaplique as normas da Lei n.º 55/2017, de 31 de agosto  e declare a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR.

O referido Despacho foi proferido na sequência de um pedido de reenvio prejudicial efetuado por um Tribunal arbitral do CAAD, no processo n.º 564/2020-T.

Entre outras, o Tribunal de Justiça foi chamado a responder à seguinte questão: “O artigo 1.°, n.º 2, da Diretiva [2008/118], e designadamente a exigência de “motivos específicos”, deve ser interpretado no sentido de que a finalidade de um imposto é meramente orçamental quando a sua criação é feita com o objetivo de financiar empresa pública concessionária da rede nacional de estradas, por ocasião da renovação da sua concessão, e à qual a receita do imposto fica genericamente afetada, e a sua estrutura não atesta a intenção de desmotivar um qualquer consumo?”.

Entendeu o Tribunal de Justiça que a resposta à questão prejudicial poderia ser claramente deduzida da jurisprudência ou não suscitava qualquer dúvida razoável, pelo que estariam verificados os pressupostos para que pudesse pronunciar-se através de Despacho fundamentado, nos termos do artigo 99.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

 

O que aconteceu, em termos que o Tribunal arbitral sintetiza da seguinte forma (§§ 20-36):

a)         A Diretiva 2008/118/CE não se opõe a que os Estados-membros estabeleçam outras imposições indiretas para além do imposto especial sobre o consumo mínimo. Mister é que tais imposições, no sentido de não entravar as trocas comerciais, sejam cobradas por “motivos específicos” e sejam conformes com as normas fiscais da União aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto (artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva).

b)         O facto de um imposto ter uma finalidade orçamental não obsta a que possa ter uma finalidade específica na aceção da Diretiva. Mas a existência de um motivo ou finalidade específicos pressupõe que se possa estabelecer, a partir do regime jurídico do tributo, uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa.

c)         A alocação da receita do tributo ao financiamento de atribuições administrativas, em particular a adjudicação da receita da CSR ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional, constitui um elemento relevante, ainda que insuficiente, para que se logre identificar um motivo específico.

d)         Para que se considere que a imposição indireta prossegue efetivamente uma finalidade específica, mormente de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, é necessário que o produto desse imposto seja obrigatoriamente utilizado para reduzir os custos sociais e ambientais associados à utilização da rede rodoviária nacional.

O que não acontece com a CSR, cuja receita se destina, mais amplamente, a assegurar o financiamento da atividade de conceção, projeto, construção, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional. Acresce que a estrutura da CSR, nomeadamente a matéria coletável ou a taxa de tributação, não espelha, em termos suficientemente precisos, o propósito de reduzir a sinistralidade, dissuadir os sujeitos passivos do tributo de utilizarem a rede rodoviária nacional ou incentivar a adoção de comportamentos menos nocivos para o ambiente.

e)         A CSR tem uma finalidade puramente orçamental, na aceção da Diretiva 2008/118/CE.

 

É certo que, em sede de reenvio prejudicial de interpretação, o Tribunal de Justiça se limita a esclarecer o modo como devem ser interpretadas as disposições de Direito da União (originário ou derivado) pertinentes para a resolução do caso concreto, não se debruçando sobre a questão principal do processo, que é reduto de competência do órgão jurisdicional nacional.

Contudo, no Despacho analisado, o Tribunal de Justiça afirma claramente que as finalidades específicas apontadas pela AT – a redução da sinistralidade e a sustentabilidade ambiental – não se mostram suficientemente respaldadas na estrutura do tributo, em termos de matéria coletável ou da taxa de tributação aplicável. Esta asserção não é infirmada pelo que eventualmente resulte do clausulado do contrato de concessão da rede rodoviária nacional. O Tribunal de Justiça é muito claro no sentido de que não se prova uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa só porque a entidade a quem está legalmente alocada a respetiva receita assumiu compromissos no âmbito da redução da sinistralidade ou da proteção do ambiente.

Não tendo sido alegados elementos que permitam chegar a outra conclusão, entende o Tribunal arbitral que a CSR é uma imposição indireta que não prossegue um motivo específico na aceção da Diretiva 2008/118/CE.

 

17. Apreciação da pretensão da Requerente

 

Vejamos então se, à luz da matéria de facto provada, assiste à Requerente razão no que respeita às pretensões deduzidas.

A Requerente alega que “(…) suportou um montante de € 18.752,22 (dezoito mil setecentos e cinquenta e dois euros e vinte e dois cêntimos) a título de CSR, correspondente ao valor da referida contribuição liquidado por um sujeito passivo terceiro e que lhe foi repercutida, enquanto consumidora final, no período compreendido entre junho de 2019 e dezembro de 2022.”

Não resultou, porém,  da prova produzida no processo que o imposto em causa, pago pelos sujeitos passivos de imposto, tenha sido repercutido  à Requerente, conforme emerge da  decisão que incidiu  sobre a  matéria de facto.

 

Vejamos, todavia, se da lei resulta uma presunção legal de repercussão do imposto.

 

O artigo 2.º da Lei n.º 24-E/2022 estabelece que «Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária», colocando-se a questão se saber se a norma consubstancia  uma presunção legal de repercussão do imposto no consumidor/utilizador do combustível.

Decorre do artigo 349º do Código Civil que a presunção legal é a ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. E, nos termos do nº 1 do art. 350º do Mesmo Código “Quem tem a favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”. A presunção legal inverte, pois, o ónus da prova (art. 344º, nº 1, do Código Civil).

Sobre as presunções legais dizem-nos ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA que “são as que têm assento na própria lei. É a norma legal que, verificado um facto, dá como provado um outro facto, ficando assim comprometida, de algum modo, a liberdade de apreciação do julgador”.[3]

Também sobre o tema refere RITA LYNCE DE FARIA:

“(…) a presunção facilita a atividade probatória na medida em que a parte que beneficia da presunção pode limitar-se a demonstrar um facto cuja prova é claramente mais fácil que a do facto que teria de provar se não existisse a presunção. Ocorre uma modificação do tema da prova  que, na sua essência, se consubstancia  na substituição do facto a provar: a parte em vez de demonstrar o facto mais difícil ou completo (a+b+c) demonstra apenas o facto mais singelo (x) e que conduz àquele”.[4]

Face ao que antecede, não pode deixar de se concluir   que a norma do artigo 2.º da Lei n.º 24-E/2022 não consagra uma presunção legal. Esta norma não tira uma ilação dum facto conhecido para firmar um facto desconhecido o que, de resto, teria de ser estabelecido de forma clara, atentas as consequências probatórios das presunções legais. A expressão “sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributáriadeve ser entendida como indicação programática do legislador no âmbito dum princípio jurídico.

Na verdade, como se pode ler no despacho do TJUE de 7 de fevereiro de 2022, proferido no Processo n.º C-460/21:

“44

(…), ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85EU:C:1988:97, n.o 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C‑147/01EU:C:2003:533, n.o 96).”

 

 

45

Não se pode no entanto admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário. Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção (Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o., C‑192/95 a C‑218/95EU:C:1997:12, n.os 25 e 26).”[5]

 

A conclusão a que se acaba de chegar não significa a irrelevância do sistema interno do imposto que efetivamente aponta, nos termos referidos, para que o imposto seja repercutido no consumidor/utilizador. Ao nível da apreciação da matéria de facto produzida pelos adquirentes de combustível, a indicação legislativa pode  ser ponderada pelo tribunal à luz da globalidade da prova produzida. O que aqui se não  entende é que a compra do combustível seja, só por si, e sem necessidade de produção da  prova da concreta ocorrência da repercussão, suficiente para se considerar esta, automaticamente, provada, uma vez que, como resulta do supra exposto, a lei não consagrou uma presunção legal, não estabelecendo, por esta via, a inversão do ónus da prova.

Ora, constituindo a repercussão fiscal da CSR um facto positivo, o ónus da prova impende sobre quem o invoca, nos termos do art. 74º, nº 1, da Lei Geral Tributária pelo que, não tendo sido feita a prova da repercussão, improcede necessariamente a pretensão anulatória relativamente a este imposto.

Face à improcedência dos pedidos principais, fica necessariamente prejudicado o conhecimento dos pedidos acessórios de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

V - Decisão

 

Termos em que se decide:

  1. Julgar improcedentes as exceções dilatórias e perentórias invocadas;
  2. Julgar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica os atos de liquidação impugnados, bem como o  indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa;
  3. Julgar prejudicado o conhecimento do pedido acessório de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

VI. Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 18.752,22 (dezoito mil setecentos e cinquenta e dois euros e vinte e dois cêntimos), indicado pela Requerente sem oposição da Requerida.

 

VII. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

Notifique-se.

 

Lisboa, 22  de Outubro  de 2024

 

                                O Árbitro

 

 

                               Marcolino Pisão Pedreiro

 

 

 



[1] O art. 26º do CPC referido corresponde ao atual art. 30º do CPC.

[2] Cfr., também AC TCAN 00036/06.8BEVIS, de 13-12-2019:  "(...) a parte terá legitimidade como autor, se de acordo com a relação jurídica por ele delineada e atendendo ao direito substantivo aplicável valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista" e AC TCAS 07902/14, de 09-06-2016"(...) o princípio geral em matéria de legitimidade procedimental activa, é o da titularidade da respectiva relação material controvertida aferida essa titularidade de acordo com a alegação feita pelo contribuinte (...)".

[3] MANUAL DE PROCESSO CIVIL, Coimbra Editora, 2ª Ed revista e actualizda, 1985, pag. 502.

[4] A INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA NO DIREITO CIVIL PORTUGUÊS, Lex, Lisboa, 2001, p. 34, apud Luís Filipe Pires de Sousa DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL COMENTADO, Almedina, 2020, reimpressão, p. 41.

[5] Destaque nosso.