Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 167/2024-T
Data da decisão: 2024-10-15   Outros 
Valor do pedido: € 225.624,83
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR); competência dos tribunais arbitrais; ineptidão da petição; legitimidade.
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SUMÁRIO:

  1. A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) é um tributo que se qualifica como imposto e não como contribuição, pelo que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar matérias a ela respeitantes.
  2. Os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de actos de liquidação de CSR e já não de actos de repercussão daquele imposto.
  3. A falta de identificação dos actos de liquidação de CSR contestados, cuja declaração de ilegalidade e anulação se requer, implica a ineptidão do pedido de pronúncia arbitral.
  4. Ao não suportar o encargo da CSR por repercussão legal, a Requerente carece de legitimidade processual para contestar a legalidade dos actos de liquidação daquele imposto.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os Árbitros Carla Castelo Trindade, João Pedro Rodrigues e Pedro Guerra Alves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

            1. A..., Lda., NIPC..., com sede no ..., ...-... Vila Verde (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”).

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 9 de Fevereiro de 2024 e automaticamente notificado à Requerida.

 

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 1 de Abril de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 19 de Abril de 2024.

 

            5. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta, em 14 de Maio de 2024, defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

            6. Em 15 de Maio de 2024, foi a Requerente notificada para exercer o direito ao contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida e para, querendo, juntar ao processo cópia das liquidações objecto de impugnação, nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea c) do RJAT. A Requerente respondeu ao referido despacho através de requerimento apresentado em 27 de Maio de 2024.

 

            7. Em 28 de Junho de 2024, a Requerente juntou aos autos documento correspondente a declaração emitida pela B..., S.A. (“B...”).

 

8. Em 23 de Setembro de 2024, foi proferido despacho arbitral a admitir a junção aos autos do documento referido no ponto anterior, a conferir prazo de vista e exercício do contraditório à Requerida e, bem assim, a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações, remetendo-se para a decisão final a apreciação da matéria de excepção, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.

 

II. OBJECTO DO PROCESSO

 

            9. A Requerente apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral contra as liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) referentes ao período compreendido entre 4 de Julho de 2019 e 31 de Dezembro de 2022.

 

            10. A final a Requerente formulou os seguintes pedidos:

 

TERMOS EM QUE se requer a V. Exas. que:

a) Declarem a ilegalidade das normas dos artigos l.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º da Lei n. 55/2007, de 31 de Agosto, nas redacções vigentes em 2019 a 2022, por incompatibilidade com o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, e recusem a sua aplicação;

b) Declarem a anulação das liquidações de CSR subjacentes às vendas e faturas identificadas no presente pedido, por ilegalidade das mesmas, anulação essa que deverá ser parcial da liquidação de ISP, se não destacável totalmente a liquidação de CSR desta, ou total desta;

c) Subsidiariamente, e sem prescindir, declarem a ilegalidade da cobrança e repercussão da CSR incidente sobre as transações supra identificadas sobre a Requerente;

d) Determinem o reembolso do montante suportado a título de CSR e identificado no presente pedido pela Requerente com os fundamentos anteriores;

e) Condenem a AT no pagamento de juros indemnizatórios devidos sobre o montante suportado a título de CSR desde o momento do pagamento das facturas identificadas no presente pedido.”.

 

            11. Para sustentar os seus pedidos, invocou em síntese a Requerente que o regime da CSR é contrário ao Direito da União Europeia, nomeadamente ao n.º 2, do artigo 1.º da Directiva 2008/11 8/CE, de 16/12/2008, relativa ao regime geral dos Impostos Especiais de Consumo, ao artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e ao artigo 4.º, e 8.º, n.º 1 e 2, alínea a) da LGT. Contrariedade esta que, segundo a Requerente, tem sido reconhecida pela jurisprudência arbitral na sequência do despacho proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) no processo C-460/21. Alegou também a Requerente que ao comprar produtos petrolíferos (gasóleo) para consumo e incorporação no processo produtivo, foi a sua capacidade contributiva que foi tributada por força do fenómeno da repercussão, já que o preço dos mesmos não foi repercutido em mais ninguém. Deste modo, defendeu a Requerente que por força do princípio do primado previsto no artigo 8.º, n.º 4 da CRP, o Estado português está obrigado a reembolsar a CSR que foi ilegalmente liquidada e repercutida na sua esfera, por ser a CSR um imposto cobrado em violação do Direito Europeu.

 

III. SANEAMENTO

 

            12. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT e nos artigos 1.º a 3.º da Portaria de Vinculação.

 

            13. Para efeitos de saneamento do processo cumpre apreciar as excepções de (i) incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, (ii) ineptidão do pedido de pronúncia arbitral, (iii) ilegitimidade processual e substantiva da Requerente e (iv) caducidade do direito de acção por intempestividade do pedido de revisão oficiosa, o que será feito por esta ordem, quanto a cada um dos pedidos formulados, no âmbito da análise do mérito da causa, logo após a fixação da matéria de facto provada e não provada.

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

 

§1 – Factos provados

 

            14. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade comercial que tem como objecto social a indústria de camionagem, podendo dedicar-se a qualquer outro ramo de indústria e comércio em que os sócios acordem e seja permitido por lei;
  2. Entre 4 de Julho de 2019 e 31 de Dezembro de 2022, a Requerente adquiriu 122,84 litros de gasóleo à C..., S.A. (“C...”) , NIF ..., pelo preço de € 170,64;
  3. Entre 1 de Janeiro de 2019 e 31 de Dezembro de 2022, a Requerente adquiriu 2.032.533,33 litros de gasóleo à B..., S.A., NIF ..., pelo preço sem IVA de € 2.360.559,49;
  4. A B... emitiu a seguinte declaração:

B..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa, pela presente declara, para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível fornecido às entidades melhor identificadas no quadro infra (doravante coletivamente designadas por “ENTIDADES DO GRUPO D...”), foi por si integralmente repercutida na esfera das ENTIDADES DO GRUPO D... .

”;

  1. Em 13 de Julho de 2023, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa relativamente a actos de liquidação de CSR referentes ao período compreendido entre 4 de Julho de 2019 e 31 de Dezembro de 2022;
  2. Até à presente data não foi proferida decisão expressa de indeferimento do referido pedido de revisão oficiosa;
  3. Em 7 de Fevereiro de 2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição de arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

§2 – Factos não provados

 

            15. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, não se consideram provados os seguintes factos:

  1. A AT liquidou a quantia total de € 225.624,83, a título de CSR, em relação ao gasóleo referente às facturas emitidas pela C... e pela B... (“fornecedoras de combustível”) à Requerente;
  2. As fornecedoras de combustível pagaram integralmente o montante de CSR referido na alínea anterior;
  3. A Requerente suportou economicamente o encargo da CSR, na quantia global de € 225.624,83, referente às facturas de gasóleo adquirido às fornecedoras de combustível;
  4. A Requerente é o consumidor final do gasóleo adquirido às fornecedoras de combustível, não tendo repercutido o encargo da CSR no preço dos bens e serviços prestados aos seus clientes.

 

§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

16. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos pertinentes para a decisão da causa, com base na sua relevância jurídica e tendo em consideração as várias soluções plausíveis das questões de Direito suscitadas pelas partes, bem como o dever de discriminar os factos provados e não provados. Porém, o Tribunal Arbitral não tem um dever de pronúncia quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes, em conformidade com o disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e nos artigos 596.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (“CPC”) e 607.º, n.º 3, ambos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

17. O Tribunal formou a sua íntima e prudente convicção quanto aos factos provados e não provados através do exame de todos os elementos probatórios carreados aos autos, que foram apreciados e avaliados com base no princípio da livre apreciação dos factos e nas regras da experiência, normalidade e racionalidade, em conformidade com os ditames fixados nos artigos 16.º, alínea e) do RJAT e 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

18. Quanto aos factos julgados como não provados nos pontos 1) e 2) supra, entendeu o presente Tribunal que a declaração junta pela B..., desacompanhada das Declarações de Introdução no Consumo (“DIC”) globalizadas, dos consequentes actos de liquidação e dos respectivos comprovativos de pagamento não permite certificar a efectiva liquidação e pagamento da CSR pela introdução no consumo das quantidades de gasóleo adquirido pela Requerente e titulado pelas facturas juntas aos autos. Isto sem contar que relativamente à C..., não consta sequer dos autos qualquer declaração ou outro elemento probatório em que esta entidade alegue a liquidação, pagamento e posterior repercussão da CSR na esfera da Requerente.

 

19. Quanto ao facto dado como não provado no ponto 3) supra, é essencial precisar, em primeiro lugar, que a prova da repercussão tem como pressuposto inevitável a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelos sujeitos passivos deste imposto no momento da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos – factualidade que a Requerente não logrou provar, tal como acima explanado.

 

20. Em segundo lugar, considera este Tribunal que a Requerente não cumpriu o critério fixado pelo TJUE no despacho Vapo Atlantic, proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no processo n.º C‑460/21, no que respeita à prova da repercussão da CSR. Nas palavras daquele Tribunal:

 

“(…) ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C-147/01, EU:C:2003:533, n.º 96).

45 Não se pode no entanto admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário. Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção (Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o., C-192/95 a C-218/95, EU:C:1997:12, n.ºs 25 e 26).

46 O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42).

(…)

48 Nestas condições, há que responder à segunda e terceira questões que o direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indireto contrário à Diretiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros e, consequentemente, no enriquecimento sem causa do sujeito passivo.”. (destaque nosso)

 

            21. Transpondo as considerações do TJUE para os presentes autos, dá-se como assente que a repercussão da CSR pelas fornecedoras de combustível sobre a Requerente não pode em caso algum ser presumida.

 

            22. O que é compreensível, desde logo porque ao contrário do que afirma a Requerente, mormente em sede de exercício do contraditório, não está aqui em causa uma “repercussão legal”, assente numa qualquer norma prevista na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto que instituiu a CSR. Pelo contrário, a repercussão deste tributo é tão só “expectável” perante o respectivo regime e funcionamento, não passando, porém, de um fenómeno económico que pode assumir uma configuração e amplitude variáveis. Como explica Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399:

A repercussão (…) pod[e] operar por mais que uma forma sobre os preços. A forma mais comum é a da repercussão descendente, que se verifica quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem, fazendo com que o comprador o suporte: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes sobem o preço na mesma medida, fazendo com que os consumidores o suportem. A repercussão transversal verifica-se quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem diferente daquele que é onerado pelo tributo: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes diluem esse aumento através do agravamento do preço da generalidade das bebidas alcoólicas. Enfim, a repercussão ascendente verifica-se quando o vendedor subtrai o tributo ao preço de um bem de que é comprador, obrigando os fornecedores a suportar-lhe o peso económico: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes obrigam as empresas cervejeiras a baixar o preço nessa mesma medida.

A repercussão constitui um fenómeno que depende em larga medida das condições económicas que rodeiem uma transacção”.

 

            23. Portanto, a ocorrência do fenómeno de repercussão descendente não pode simplesmente ser presumida por mais que tenha sido querida na lógica de funcionamento do tributo. Impõe-se, diversamente, uma análise do contexto e dos vários factores que conformam cada transacção comercial para daí extrair a conclusão de que o encargo da CSR foi total ou parcialmente “repassado” ao longo dos vários intervenientes do circuito económico até atingir o consumidor final.

 

            24. Ora, este exercício de prova não foi realizado pela Requerente, que se limitou a estabelecer meros juízos presuntivos de que suportou a CSR em virtude de uma suposta – embora inexistente – obrigação legal de repercussão do encargo daquele tributo.

 

25. A Requerente procurou provar a repercussão através da junção aos autos de facturas e de declaração da B... – mas já não da C...–, onde esta fornecedora de combustível se limitou a afirmar de forma genérica e abstracta que repercutiu o encargo da CSR.

 

26. Sucede que das facturas e da referida declaração não decorre, sem mais, a prova da repercussão. É que tal declaração não versa as concretas transacções realizadas entre a fornecedora de combustível e a Requerente; não faz a correspondência entre as operações praticadas e as declarações de introdução no consumo dos combustíveis transaccionados; não estabelece a relação entre as transacções e as DIC com as correspondentes liquidações emitidas pela AT e, finalmente, não demonstra a incorporação do encargo da CSR nas facturas de venda de gasóleo à Requerente, nem tão pouco em que grau e/ou medida é que tal incorporação se processou.

 

            27. Acresce que mesmo que a Requerente tivesse provado a liquidação e repercussão da CSR nos termos enunciados, sempre inexistiriam elementos nos autos para certificar que o encargo da CSR se cristalizou na sua esfera jurídica, isto é, que foi a Requerente a entidade que em última instância foi onerada com o tributo em causa, porquanto não incorporou o seu custo no preço do serviços prestados aos seus clientes que podem situar‑se no circuito ou cadeia económico-comercial como os verdadeiros consumidores finais. Foi por isso que não se deu como provado o facto constante do ponto 4) supra.

 

            28. Sublinha-se ainda que entendeu o Tribunal Arbitral não deferir o pedido da Requerente, que requereu que fossem oficiadas as fornecedoras de combustível para que estas declarassem “a) Se liquidaram CSR entre 2019-01-01 a 2022-12-3; b) Se requereram reembolso de CSR liquidada nestas datas; c) Se repercutiram valor de CSR liquidado nestas datas a compradores; d) Em especial à entidade B..., se incluiu CSR nos fornecimentos titulados por faturas (…)” emitidas à Requerente e objecto do presente processo. Por um lado, porque se entende resultar do disposto no artigo 2.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, que são as partes a suportar directamente os encargos com a produção de prova e, consequentemente, que é sobre elas que recai o dever de produzir a prova que entendam necessária a sustentar as respectivas posições. Por outro lado, e acima de tudo, porque decorre da natureza voluntária da jurisdição arbitral e do facto de os tribunais arbitrais não disporem de poderes de autoridade sobre terceiros, a inviabilidade de compelir (ou punir a ausência de) prestação de declarações ou disponibilização de documentos por outras entidades alheias ao processo arbitral e não vinculadas a esta jurisdição, independentemente da respectiva natureza.

 

29. Por fim, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, que apesar de serem apresentadas como factos, consistem em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

IV.1. Questões prévias – saneamento

           

            30. Para efeitos de saneamento, revela-se necessário fixar a posição das partes quanto a cada uma das excepções invocadas pela Requerida.

 

            31. Relativamente à incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, invocou em primeiro lugar a Requerida que a CSR deve ser qualificada como contribuição financeira e não como imposto, encontrando-se excluída da arbitragem tributária por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. Em segundo lugar, alegou que a Requerente pediu a declaração de ilegalidade do regime da CSR no seu todo, pretendendo com a presente acção a não aplicação de diplomas legislativos aprovados pela Assembleia da República. Em terceiro lugar, defendeu que mesmo que se considerasse que o Tribunal Arbitral era competente para apreciar a ilegalidade dos actos de liquidação de ISP/CSR, nunca poderia este pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos daqueles actos, que não são actos tributários e que não correspondem a uma repercussão legal, mas meramente económica ou de facto. Em sede de contraditório, veio a Requerente defender que a CSR deve ser materialmente qualificada como um imposto, invocando diversa jurisprudência do CAAD a seu favor, referindo ainda que a AT acaba por admitir esta qualificação ao invocar na sua fundamentação o regime de reembolso de impostos ao abrigo do Código dos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”).

 

            32. Quanto à ineptidão da petição inicial por falta de objecto processual, defendeu a Requerida que a mesma decorria da não identificação dos actos tributários impugnados no pedido de pronúncia arbitral, mais alegando não ser possível estabelecer a correlação entre os actos de liquidação praticados a montante pelos fornecedores de combustíveis (sujeitos passivos da CSR) e as facturas de compra mencionadas pela Requerente. Em sede de contraditório, invocou em síntese a Requerente que não lhe competia identificar os actos de liquidação, que não praticou e não conhece, remetendo para o entendimento da jurisprudência arbitral constante do acórdão proferido no processo n.º 410/2023-T, onde se decidiu que não estavam verificadas em caso semelhante nenhuma das situações previstas no artigo 186.º do CPC, sendo que a eventual dificuldade da AT em identificar os concretos acto de liquidação impugnados apenas lhe podia ser imputável.

 

            33. No que respeita à ilegitimidade, argumentou a Requerida que o reembolso por erro e a anulação das liquidações de CSR apenas pode ser solicitada pelos sujeitos passivos que declararam a introdução da CSR no consumo, não sendo esse o caso da Requerente. Já esta veio defender-se em sede de contraditório ao alegar que o artigo 9.º do CPPT confere legitimidade a quem prove interesse legalmente protegido e o substituído ou repercutido têm, manifestamente, interesse em matérias fiscais. Mais contra-alegou a Requerente que o princípio da tutela jurisdicional efectiva impõe uma interpretação ampla daquela norma jurídica e que o artigo 18.º da LGT é uma norma de direito material substantiva sobre a qualidade de sujeito passivo e não sobre a qualidade de parte legítima em litígio tributário.

 

            34. Por fim, arguiu ainda a Requerida a caducidade do direito de acção. Em primeiro lugar, porque na data em que foi apresentado o pedido de revisão já se encontrava ultrapassado o prazo de 120 dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISP/ CSR, previsto no artigo 78.º, n.º 1, primeira parte da LGT. Em segundo lugar, porque ao inexistir erro imputável aos serviços, não podia a Requerente valer-se do prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, segunda parte da LGT. Em terceiro lugar, porque no âmbito dos IEC, os pedidos de reembolso apresentados nas alfândegas devem ser apreciados à luz do disposto nos artigos 15.º a 20.º do Código dos IEC, que estabelecem um prazo de 3 anos para requerer o reembolso do alegado valor pago por alegada repercussão económica de CSR, prazo esse que já teria decorrido pelo menos no que se refere a todas as aquisições efectuadas pela Requerente em datas anteriores à apresentação do pedido de revisão em 13.07.2020. A Requerente nada referiu a este respeito.

 

IV.1.1. Pedido de declaração de ilegalidade e recusa de aplicação das normas jurídicas

 

§1 – Competência do Tribunal Arbitral

 

35. Respeitando a ordem dos pedidos formulados pela Requerente, há que analisar em primeiro lugar as excepções por referência ao pedido de declaração de ilegalidade abstracta e recusa de aplicação das normas jurídicas que conformam o regime jurídico da CSR.

 

            36. A competência material dos Tribunais Arbitrais encontra-se prevista no artigo 2.º do RJAT, o qual determina que podem ser conhecidas na jurisdição arbitral matérias respeitantes à apreciação da legalidade de actos de liquidação, autoliquidação, retenção na fonte, pagamento por conta, fixação da matéria tributável se inexistir liquidação, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.

 

37. Do mencionado elenco não resulta a competência dos Tribunais Arbitrais para declarar a ilegalidade de normas jurídicas em si consideradas, mas tão só de actos tributários que podem ou não ser conformes com as normas que lhe servem de fundamento globalmente consideradas. O que se compreende, dado que a arbitragem tributária visa constituir uma forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária e a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de actos praticados no exercício da função política e legislativa está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal nos termos previstos no artigo 4.º, n.º 3, alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro na redacção em vigor à data.

 

38. Neste preciso sentido decidiu o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido no processo n.º 0811/08, em 21 de Janeiro de 2009, ao deixar claro que:

 

Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal (al. a) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF).

Está, por outro lado, excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de actos praticados no exercício da função política e legislativa (al. a) do n.º 2 do artigo 4.º do ETAF).

Entendendo-se a função legislativa como a actividade permanente do poder político que consiste na elaboração de regras de conduta social de conteúdo primacialmente político, revestindo determinadas formas previstas na Constituição e a função administrativa como o conjunto de actos de execução de actos legislativos, traduzida na produção de bens e na prestação de serviços destinados a satisfazer necessidades colectivas que, por virtude de prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbem ao poder político do Estado-colectividade (v. Ac. do STA de 16/3/2004, in recurso 1343/03).

Todavia, ao contrário do que a recorrente afirma, a norma que ela pede seja declarada ilegal não é uma norma administrativa mas sim uma norma legislativa, emitida no desempenho da função legislativa, da competência do Governo e da AR.

E a impugnação de normas no contencioso administrativo prevista no artigo 72.º, n.º 1 do CPTA tem por objecto apenas a declaração da ilegalidade de normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo, ou seja, apenas podem ser impugnadas as normas emanadas pela Administração no exercício da função administrativa, isto é, regulamentos e não normas legais.

Neste sentido, veja-se o que a esse respeito dizem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha, in Comentário ao CPTA, a p. 373: «Como resulta da primeira parte do n.º 1 deste artigo (72.º do CPTA), as normas que podem ser objecto do pedido de declaração de ilegalidade são apenas as normas administrativas, ou seja aquelas que sejam emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo. Trata-se assim de normas editadas pela Administração (estadual, directa ou indirecta, regional, autárquica) no exercício da função administrativa.».”.

 

            39. Pelo exposto, declara-se o presente Tribunal materialmente incompetente para apreciar o primeiro pedido formulado pela Requerente, respeitante à declaração de ilegalidade de normas jurídicas, absolvendo-se consequentemente a Requerida desta parte da instância arbitral.

 

IV.1.2. Pedido de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de CSR

 

§1 – Competência do Tribunal Arbitral

 

            40. Cumpre então analisar a competência do Tribunal Arbitral para conhecer o segundo pedido formulado pela Requerente, respeitante à declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações de CSR subjacentes às vendas e facturas identificadas no pedido de pronúncia arbitral.

 

            41. Esta mesma questão foi já objecto de ampla e diversa apreciação pelos Tribunais Arbitrais, cuja jurisprudência cumpre aqui considerar por força do disposto no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil. Para o efeito, remete-se para o decidido no acórdão arbitral proferido no processo n.º 848/2023-T, em 12 de Junho de 2024, no qual se mencionou o seguinte:

 

27. Quanto à apreciação da competência material deste Tribunal Arbitral para conhecer dos pedidos formulados pela Requerente, seguem-se aqui de perto as conclusões a que chegou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 29 de Fevereiro de 2024, no processo n.º 467/2023‑T.

 

28. Assim, impõe-se em primeiro lugar aferir se, em termos gerais, o pedido formulado pela Requerente é arbitrável, isto é, se a apreciação de pretensões referentes à CSR se encontra ou não inserida no âmbito de competência material da arbitragem tributária.

 

29. Ao que aqui importa, a competência dos Tribunais Arbitrais é delimitada no RJAT nos seguintes termos:

“Artigo 2.º

Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável

1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”. (negrito nosso)

 

30. Âmbito material este que é por sua vez circunscrito na Portaria de Vinculação, da seguinte forma:

“Artigo 2.º

Objecto da vinculação

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”

 

31. Apesar de a concatenação das referidas normas jurídicas não apresentar uma resposta incontestável quanto à arbitrabilidade de actos de liquidação de contribuições, que parecem ter sido em parte excluídos do âmbito material da arbitragem tributária pela Portaria de Vinculação – o que tem reflexo na jurisprudência arbitral que não é uniforme nesta matéria –, certo é que resulta incontroversa a inclusão no âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais a apreciação da legalidade de actos de liquidação de impostos.

 

32. Revela-se, assim, necessário, qualificar a CSR enquanto “contribuição” ou “imposto”, para daí extrair as necessárias consequências quanto à competência material deste Tribunal Arbitral. Esta análise tem sido amplamente discutida e desenvolvida pela jurisprudência, que importa aqui considerar em cumprimento do desiderato de interpretação e aplicação uniforme do direito que emana do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.

 

33. Nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 31/2023-T, 508/2023-T e 520/2023-T a CSR foi qualificada como uma contribuição, o que levou aqueles Tribunais Arbitrais a julgar procedente a excepção de incompetência material. No acórdão proferido em 16 de Novembro de 2023, no processo n.º 520/2023-T, referiu-se a este respeito o seguinte:

 

“(…) nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considera «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.”.

 

34. Em sentido contrário, pronunciaram-se os Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022‑T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T, que qualificaram a CSR como imposto e, consequentemente, consideraram-na arbitrável. Por todos, cita‑se nesta sede o acórdão proferido em 24 de Outubro de 2023, no processo n.º 644/2022-T, que registou a este respeito o seguinte:

 

“Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coactivo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto.

Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT.

Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito activo respectivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).

Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da actividade da Infraestruturas de Portugal. Na sua concepção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.

Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008 (…)

Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respectiva natureza.

Não há, nesse ponto, qualquer paralelo entre a CSR e a CESE (Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético), relativamente à qual uma decisão arbitral (Proc. n.º 714/2020-T) entendeu procedente a excepção de incompetência ratione materiae. A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária cuja receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, tendo por base, portanto, uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional, o que configura uma bilateralidade genérica ou difusa – que pura e simplesmente não encontramos na CSR.”

 

35. Cabendo tomar posição, e evitando repetições desnecessárias e contrárias à economia processual que se exige, acompanha este Tribunal Arbitral a jurisprudência que qualifica a CSR como um imposto, já que este é um tributo que efectivamente não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições. Por conseguinte, nem se revela necessário indagar se as contribuições se inserem ou não no âmbito material da arbitragem, uma vez que resulta incontroverso do RJAT e da Portaria de vinculação que tal âmbito abrange a apreciação da legalidade de questões referentes a impostos.”.

 

            42. Dito isto, conclui-se que o presente Tribunal Arbitral é materialmente competente para apreciar a legalidade de actos de liquidação de CSR, que se subsumem directa e expressamente no âmbito de competência material previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. Por conseguinte, julga-se improcedente a excepção dilatória invocada pela Requerida a este respeito.

 

§2 – Ineptidão do pedido de pronúncia arbitral e Ilegitimidade

 

            43. Por se considerar que as excepções de ineptidão e de ilegitimidade estão de certo modo interligadas entre si quanto ao fundamento do sentido decisório, proceder-se-á à sua análise conjunta.

 

            44. Estas excepções também foram conhecidas pelo Tribunal Arbitral no já citado acórdão proferido no processo n.º 848/2023-T, em 12 de Junho de 2024, ao qual novamente se adere:

 

47. A título de contextualização, cumpre começar por sublinhar que o contencioso tributário é um contencioso de plena jurisdição que confere aos particulares uma tutela jurisdicional efectiva quanto a todas as lesões de direitos e interesses legalmente protegidos em matéria tributária. Ainda assim, esta plena jurisdição é “mitigada”, porquanto reconhece limitações no que respeita aos poderes condenatórios e substitutivos que assistem aos Tribunais.

 

48. No que em concreto respeita ao domínio da impugnação judicial e da arbitragem tributária que lhe é alternativa, o contencioso tributário continua a ser essencialmente de mera anulação, com excepção dos poderes condenatórios de reembolso do imposto indevidamente pago, de condenação no pagamento de juros indemnizatórios e de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida.

 

49. Para além disso, no domínio daqueles meios processuais o contencioso tributário continua a ser de mera legalidade, de tipo, natureza ou matriz “objectivista”, que tem no acto tributário, maxime de liquidação, o seu elemento central (neste sentido vide Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5.ª ed., Coimbra Editora, 2014, pp. 292-293).

 

50. Significa isto que a impugnação judicial e o pedido arbitral são meios processuais que não visam uma tutela da relação jurídico-tributária globalmente considerada, mas tão só dos concretos actos tributários contestados. Consequentemente, aqueles meios processuais dependem necessariamente da imputação de vícios a um determinado acto tributário previamente praticado e devidamente identificado que consiste no objecto do processo, cuja anulação ou declaração de nulidade ou inexistência se requer.

 

51. Neste mesmo sentido, referiu-se no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) de 16 de Dezembro de 2020, proc. n.º 0545/13.2BEVIS, que “o contencioso tributário é de mera apreciação da legalidade, consistindo na formulação de um pedido jurisdicional tendo em vista a anulação de um acto jurídico (tributário – liquidação) da administração, ou seja é um contencioso de anulação, e não de substituição”.

 

52. Dada a primazia que assume o acto tributário, torna-se particularmente relevante o cumprimento pelos particulares dos requisitos da petição inicial e do pedido de constituição de Tribunal Arbitral/pedido de pronúncia arbitral no que respeita à identificação dos actos de liquidação contestados.

 

53. Assim, determina-se no CPPT o seguinte:

 

“Artigo 108.º

Requisitos da petição inicial

1 - A impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o ato impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido.”. (destaque nosso)

 

54. Já no RJAT estabelece-se, ao que importa, o seguinte:

 

“Artigo 10.º

Pedido de constituição de tribunal arbitral

(…) 2 – O pedido de constituição de tribunal arbitral é feito mediante requerimento enviado por via electrónica ao presidente do Centro de Arbitragem Administrativa do qual deve constar:

(…) b) A identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral;”. (destaque nosso)

 

55. Compreende-se que em concretização do princípio do dispositivo a lei faça recair o ónus de identificação dos actos de liquidação sobre quem exerce o impulso processual de os impugnar. Se assim não fosse, isto é, se quem tomasse a iniciativa de contestar a legalidade de um acto de liquidação não tivesse o dever de o identificar e caracterizar, bem como de invocar os elementos essenciais que conformam o pedido e a causa de pedir, poder-se-ia verificar o prosseguimento de uma acção com um objecto processual inexistente ou, pelo menos, não devidamente delimitado.

 

56. Tal hipótese não pode, naturalmente, ser admitida. Por um lado, porque é em função do objecto processual que o Tribunal afere o cumprimento dos pressupostos que lhe permitem apreciar o mérito, designadamente a competência material, a legitimidade das partes, a tempestividade do pedido e a competência em razão do valor. Por outro lado, porque sem objecto o processo será inútil, já que no limite a acção poderá prosseguir sem que o Tribunal consiga aferir perante o concreto acto de liquidação contestado a verificação dos vícios invocados pelo impugnante. Isto sem contar que a final a decisão não terá efeito útil prático, já que o Tribunal não poderá declarar a ilegalidade e consequente anulação de um acto que desconhece.

 

57. Vejam-se a este respeito as seguintes conclusões a que chegou o STA no acórdão de 07 de Fevereiro de 2018, proc. n.º 01400/17:

 

“A única questão a decidir consiste em saber se está correcta a decisão ora sindicada que se decidiu pelo indeferimento liminar da petição de impugnação com fundamento no facto de a petição inicial ser inepta, por falta de objecto e, ainda, por ininteligibilidade do pedido, determinante da sua nulidade, a qual entendeu ser do conhecimento oficioso do tribunal, de harmonia com o disposto nos artigos 98.º do CPPT, 195.º n.º 1 e 186.º, n.º 2, alínea a), estes últimos do CPC, aplicável por remissão do artigo 2.º, alínea e), do CPPT.

Importa saber se foram cometidos erros de julgamento de direito, e se terá sido violado o princípio da cooperação, consagrado no artigo 7º, n.º 1, do CPC, e, bem assim, o direito de acesso à justiça e aos tribunais, proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.

(…)

Dispõe o artigo 108º do CPPT o seguinte:

Artigo 108.º

Requisitos da petição inicial

1 – A impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o acto impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido.

2 – Na petição indicar-se-á o valor do processo ou a forma como se pretende a sua determinação a efectuar pelos serviços competentes da administração tributária.

3 – Com a petição, elaborada em triplicado, sendo uma cópia para arquivo e outra para o representante da Fazenda Pública, o impugnante oferecerá os documentos de que dispuser, arrolará testemunhas e requererá as demais provas que não dependam de ocorrências supervenientes.

A impugnante não identificou o acto impugnado e, não incumbia ao tribunal a quo substituir-se à Impugnante na identificação e junção do ato impugnado. Ocorre total ausência de indicação do acto de liquidação passível de ser impugnado, no âmbito da presente impugnação judicial e daí decorre a falta de objecto da impugnação e a ininteligibilidade do pedido apresentado na petição inicial. A ora recorrente concede, aliás que a sua petição inicial era imprecisa (vide supra conclusão e)), mas nada fez, nem quando notificada para a tornar precisa, desde logo neste elemento essencial – indicação do acto lesivo para si ou seja o acto impugnado que constituiria o objecto da acção que dirigiu ao tribunal.

É exacto que atenta a falta de objecto da impugnação e, bem assim, a ininteligibilidade do pedido formulado na petição inicial, o tribunal “a quo” nunca poderia emitir primeiro uma decisão sobre a tempestividade da impugnação, que obedece aos prazos previstos no artº 102º do CPPT e depois, caso se verificasse a tempestividade da mesma, uma decisão de mérito, por não ter sido materializado o ataque a um qualquer ato de liquidação de um tributo com indicação de causa(s) de pedir inteligíveis.

Esta é uma situação bem distinta de outros casos apreciados por este STA onde se expressou que o indeferimento liminar só terá lugar quando for de todo em todo impossível o aproveitamento da petição inicial, isto tendo em atenção que o princípio da pronúncia sobre o mérito se sobrepõe a questões formais que não interfiram e ponham em causa o mesmo.

Mas no presente caso nem sequer estamos imediatamente numa situação de evidência da improcedência da pretensão do autor. Estamos ainda a montante, na omissão de identificação do próprio acto impugnado e daí que o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, sendo que a concretizar-se redundaria em manifesto desperdício de actividade judicial. Nestas circunstâncias não se contraria o sentido decisório dos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 21.05.2014, recurso 69/14, de 6.03.2014, recurso 509/13, de 26.09.2012, recurso 377/12, de 16.05.2012, recurso 212/12, de 12.01.2011, recurso 766/10 e de 24.02.2011, recurso 765/10, todos in www.dgsi.pt.

No caso apreço, consideramos que o entendimento veiculado na decisão recorrida justifica o despacho de indeferimento liminar por impossibilidade da lide sendo correcta a fundamentação, supra destacada, em que se sustenta a decisão e que também para aqui se aporta.

Permitimo-nos ainda destacar aqui a asserção do Sr. Procurador Geral Adjunto neste STA inserta no seu parecer, consistente em que:

“(…) da simples leitura da fundamentação do despacho de indeferimento liminar, emerge que não foi proferida uma decisão atentatória dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e da promoção do acesso à justiça ou pro actione, consagrados no artigo 20.º da CRP.

A não ser assim, inexistiriam decisões de natureza meramente formal, o que, por absurdo, levaria ao prosseguimento de ações, à partida, sem a mínima viabilidade, desperdiçando os meios materiais e humanos disponíveis e os dinheiros públicos, já de si escassos e, ademais, ocupando artificialmente os tribunais, já tão assoberbados, com questões de antemão condenadas ao insucesso”.

Acresce referir que atenta a falta de indicação e de junção do ato impugnado, que, necessariamente, o deveria instruir, por parte da Impugnante, não se impunha à Meritíssima Juíza do TAF de Sintra que interviesse de novo, no processo antes de proferir o despacho ora sindicado pois que o convite foi feito logo com a cominação do que sucederia caso não fosse satisfeito o convite formulado. Em consequência, não houve qualquer decisão surpresa para a ora recorrente e também não ocorreu violação do princípio da cooperação.

Finalmente cremos que o Mº Juiz não violou qualquer dever de «gestão processual», princípio que permite ao juiz dirigir activamente o processo, tomando as providências necessárias ao seu andamento célere e legal, o que inclui a adopção dos actos indispensáveis à regularização da instância.

É que, perante petição inicial, ostensivamente deficiente de elementos exigidos por lei, tomou a iniciativa própria e adequada traduzida na notificação/convite para identificação/junção aos autos do acto impugnado lesivo dos direitos da impugnante. Saíram goradas as suas diligências, por manifesta falta de colaboração da própria impugnante que erradamente entendeu que podia transferir para o Tribunal a obrigação de juntar aos autos um documento que não identificou, e não alegou que estivesse em poder da parte contrária, atinente ao acto impugnado também não identificado, sendo que a existir a sua junção estava no âmbito do princípio do dispositivo que à parte assiste não sendo caso para aplicação do disposto no artº 429º do novo CPC.

Nestas circunstâncias muito bem andou a Meritíssima Juiz de Direito do TAF de Sintra, ao decidir indeferir liminarmente a presente petição de impugnação judicial.”. (destaque nosso)

 

58. Num sentido próximo, vejam-se as considerações do Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 28 de Setembro de 2021, proc. n.º 693/2020-T:

 

“Analisado o pedido Arbitral na globalidade, verifica-se, em primeiro lugar, que a Requerente se limita, no pedido final, e de forma abstracta, a dizer que deve ser decretada “a anulação do ato tributário impugnado com todas as consequências legais”, ficando o intérprete sem saber muito bem qual seja esse acto tributário, porquanto o mesmo não é identificado de forma clara, nem ao longo do articulado nem a afinal.

(…)

O RJAT não contém regime próprio em matéria de excepções e nulidades processuais, aplicando-se, nesta matéria, a título subsidiário, o disposto no CPPT, no CPTA e no CPC, como decorre do previsto no art. 29.º, n.º 1, a), c) e e) do RJAT.

De acordo com o estabelecido no art. 186.º, n.º 2, do CPC, há lugar a ineptidão da petição inicial quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir e quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

Na presente instância, a imprecisão quanto à identificação do pedido e a omissão dos factos correspondentes à identificação e caracterização dos actos tributários em causa, representam factualidade essencial, por isso integrante da causa de pedir. Trata-se, além do mais, de conteúdo que, pela sua essencialidade, deve, nos termos do estabelecido no art. 10.º, n.º 2, b), do RJAT, constar necessariamente do pedido de pronúncia arbitral.

Com efeito, o pedido é um elemento da petição inicial que, para além de ser importante para o réu (de modo a devidamente poder conformar a sua defesa), assume carácter essencial para o tribunal, na medida em que é com base no pedido que o tribunal aquilata o tipo de actividade jurisdicional que lhe é solicitada e define as balizas e objecto de conhecimento do mérito que lhe são permitidos e devidos. Conclusões que, no presente caso, em face do teor da petição inicial, e, em particular, da ausência, nela, da formulação de pedido, o tribunal não consegue apurar, não se reunindo, pois, as condições mínimas para que este possa conhecer do mérito.

Verifica-se, portanto, um dos tipos de deficiências “de carácter substancial, que irremediavelmente” comprometem “a finalidade da petição inicial” (ANTUNES VARELA, SAMPAIO e NORA e Miguel BEZERRA, Manual de Processo Civil, 1985, Coimbra Editora, p. 244), constituindo causa de ineptidão da petição inicial. Esta consubstancia, por seu turno, irregularidade geradora da nulidade de todo o processo (cfr. art. 186.º, n.º 1 do CPC), cuja previsão legal, enquanto excepção dilatória, consta do art. 89.º, n.º 4, b) do CPTA. Representa, por outro lado, nulidade insanável, como decorre do estipulado no art. 98.º, n.º 1, a), do CPPT, determinando, consequentemente, a absolvição da Requerida da instância (cfr. art. 576.º, n.º 2 do CPC).” (destaque nosso)

 

59. Retomando ao presente processo, constata-se que a Requerente peticiona a final a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de CSR praticados pela AT, porém, não identifica quais os específicos e concretos actos em causa nem junta aos autos qualquer prova, rectius documental, onde tal identificação seja feita.

 

60. Dos elementos probatórios produzidos pela Requerente apenas constam facturas que titulam aquisições de gasóleo rodoviário, bem como uma declaração da entidade fornecedora de combustível onde esta afirma que, enquanto sujeito passivo de CSR, repercutiu integralmente a totalidade do encargo do imposto na Requerente.

 

61. Por muito que as facturas e a mencionada declaração da fornecedora de combustível titulassem actos de repercussão de CSR – o que não ficou provado –, certo é que aquelas não são actos de liquidação, o que significa que a Requerente não cumpriu o ónus legal que lhe é imposto pelo artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT.

 

62. Incumprimento este que a Requerente não supriu, apesar de ter sido devidamente notificada para o efeito. Numa tentativa de colmatar a falta de identificação dos actos de liquidação, no pedido de pronúncia arbitral e no exercício do contraditório, a Requerente remeteu para que a AT o incumprimento do ónus da prova, invocando para o efeito a inversão decorrente do n.º 2, do artigo 74.º, da LGT.

 

63. Ora, tal como se referiu, o dever de identificação das liquidações impugnadas recai sobre a Requerente por força do princípio do dispositivo associado ao impulso processual de impugnação (artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT), sem contar que o incumprimento deste ónus é processualmente valorado contra a Requerente por ser esta que tem de demonstrar os factos constitutivos dos seus direitos (artigo 74.º, n.º 1 da LGT). Em todo o caso, e sem prejuízo de não existir fundamento para transferir para a AT a obrigação de identificação e junção aos autos das liquidações contestadas, a verdade é que inexistem elementos no processo que permitam à AT – e muito menos ao Tribunal Arbitral – estabelecer um nexo causal entre as facturas que alegadamente titulam a repercussão da CSR e as liquidações que lhe estão a montante.

 

64. Tal como evidenciou a Requerida, a B... apresenta declarações de DIC’s diárias em diferentes alfândegas, sendo cada uma delas competente para emitir a DIC globalizada e consequente liquidação (artigos 10.º, n.º 6, 10.º-A e 11.º do Código dos IEC ex vi artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto). Portanto, as facturas a que alude a Requerente podem corresponder a qualquer uma das DIC globalizadas submetidas pela B...  nas diferentes alfândegas.

 

65. Isto sem contar que a liquidação e pagamento da CSR situam-se no circuito económico a montante das vendas de combustíveis rodoviários efectuadas pela B... à Requerente, inexistindo uma correspondência temporal entre liquidações e facturas emitidas. O que implica que as facturas a que alude a Requerente podem estar associadas a várias das liquidações que foram emitidas à B..., sem que a factura de um determinado mês corresponda à liquidação globalizada desse mês.

 

66. Isto sem contar ainda que no giro comercial é comum que um operador económico declare para introdução no consumo a partir de um seu Entreposto Fiscal produtos que são propriedade de outro fornecedor de combustíveis. Nestas situações, o operador económico que apresenta a DIC é o sujeito passivo a quem é liquidada a CSR, ainda que seja o outro fornecedor de combustíveis quem irá vender, através do Entreposto Fiscal do sujeito passivo que apresentou a DIC, os produtos aos seus clientes. Portanto, as facturas a que alude a Requerente podem respeitar a liquidações de que foi objecto a B... ou qualquer outro fornecedor de combustíveis a quem aquela possa ter solicitado a declaração para introdução no consumo.

 

67. Conclui-se, assim, que a identificação dos actos de liquidação pela AT seria excessivamente difícil ou até mesmo inviável, já que as facturas juntas pela Requerente aos autos poderiam corresponder a qualquer uma das DIC globalizadas e a qualquer uma das liquidações emitidas nas diferentes alfândegas no período compreendido entre Abril de 2019 e Dezembro de 2022. Isto, sem contar que poderá nem sequer existir coincidência entre o sujeito passivo de CSR e a fornecedora de combustível à Requerente, que pode não ter sido a responsável pela introdução no consumo e pelo pagamento da CSR liquidada. A identificação dos actos de liquidação carecia de ser feita pelos verdadeiros sujeitos passivos de CSR, que não são parte no processo e sobre os quais este Tribunal Arbitral não dispõe de poderes de autoridade, pelo que não seria possível recorrer ao regime previsto no artigo 429.º do CPC.

 

68. Esta impossibilidade prática de identificação dos actos de liquidação pela Requerente é mais facilmente compreensível se for tido em consideração, em primeiro lugar, que nos termos do artigo 15.º do CIEC a legitimidade para contestar a legalidade das liquidações de CSR apenas assiste aos sujeitos passivos deste imposto e, em segundo lugar, que o ordenamento jurídico prevê formas específicas de tutela dos direitos dos repercutidos, concretamente através de acções de repetição do indevido contra os repercutentes. É este, de resto, o entendimento que tem sido sufragado pela jurisprudência arbitral, designadamente nos processos n.ºs 296/2023-T, 375/2023-T, 332/2023-T e 408/2023-T já citados.

 

69. Para efeitos elucidativos, atente-se no seguinte excerto do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral em 1 de Fevereiro de 2024, proc. n.º 296/2023-T:

 

“III.7. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de liquidação (inerentemente ligados a actos de repercussão) por solicitação dos repercutidos

Numa passagem do seu manual , Sérgio Vasques afirma que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito.”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral” .

  Qualquer que seja a posição a adoptar em tese geral – e, salvo disposição legal em contrário, não há razões para pôr em causa a possibilidade de os contribuintes de facto serem admitidos a invocarem perante os Tribunais, incluindo arbitrais, a ilegalidade dos impostos que efectivamente pagaram –, tem de se ter em conta o quadro legislativo, e este foi invocado pela AT na sua Resposta para pôr em causa a possibilidade de a repercutida poder vir pedir a revisão de liquidações que lhe eram alheias . Fê-lo a coberto do argumento da ineptidão do PPA por não incluir “A identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral;”, como expressamente exigido na alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT; fê-lo também com base na caracterização da relação da Requerente com a sua Fornecedora de Combustível como “uma relação comercial de direito privado entre empresas, à qual a administração tributária é estranha” (o que era especialmente relevante para a questão anterior); mas fê-lo igualmente com base numa alegada restrição legal do círculo de sujeitos que podem solicitar o reembolso da CSR, fazendo a equiparação desses pedidos de reembolso a pedidos de revisão (…)

A questão é: pode ela suscitar a revisão das liquidações de CSR em que não teve intervenção – e que, aliás, não consegue identificar – ainda que apenas na medida em que tais liquidações contendam com os pagamentos por ela feitos? Rectius: pode ela, supondo que todo o iter procedimental que desembocou no PPA cumpre os requisitos (o que ainda teria de se apurar) – pode a Requerente, perguntava-se, suscitar a revisão das liquidações conjuntas (e acumuladas) de ISP e CSR no segmento que invoca dizer-lhe respeito?

A questão está em saber se, portanto, no quadro processual que ficou descrito, pode este Tribunal declarar a ilegalidade das “liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva Fornecedora de Combustíveis”, ainda que delimitando o âmbito da ilegalidade de tais liquidações pela correspondência aos “atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente no decurso do ano de 2021” – uma vez que, em tudo o que as exceda, não foi formulada qualquer pretensão arbitral.

(…) qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”), assim redigida:

 “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.”.

Por sua vez, as disposições relevantes desse artigo 4.º (epigrafado “Incidência subjectiva”), para as quais tal norma remete, têm a seguinte redacção:

“1 - São sujeitos passivos de impostos especiais de consumo:

a) O depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado;

(…)

2 - São também sujeitos passivos, sem prejuízo de outros especialmente determinados no presente Código:

a) A pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação;”

Desde a redacção inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, também a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjectiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.

  Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados – e só quando preencham requisitos adicionais – podem suscitar questões sobre, como se escreve no n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”.”.

 

70. A idêntica conclusão, ainda que com fundamentos diversos, chegou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 15 de Janeiro de 2024, proc. n.º 375/2023-T:

 

“37. Em resultado do acima exposto, conclui-se, em síntese, o seguinte:

i. A referida Lei n.º 55/2007 define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;

ii. As ora Requerentes não são consumidoras finais, o que significa que os gastos em que incorrem são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;

iii. Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis às Requerentes, não há razões para crer que estas, no exercício de uma atividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenham também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes, os quais nem sequer são os consumidores finais (os próprios clientes).

 

38. Ora, não sendo as ora Requerentes os sujeitos passivos da CSR, nem repercutidos legais desta contribuição, não lhes assiste legitimidade processual, a menos que, como interessadas, aleguem e demonstrem factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, i.e., a menos que evidenciem a existência de um interesse direto e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre as mesmas impende.

 

39. Contudo, o único facto que as Requerentes alegam para este efeito é o de lhes ter sido repercutida a CSR. Qualificam esta repercussão, erradamente, como legal, embora não indiquem onde está prevista essa repercussão – que, a ser “legal”, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza (a qual, porém, não existe).

 

(…) 41. Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a Lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo, contrariamente ao que as ora Requerentes afirmam (nas suas palavras, o apontado “consumidor de combustíveis”, que, todavia, na realidade, a Lei não aponta...).

 

42. Rigorosamente, as ora Requerentes são tão-só clientes comerciais dos sujeitos passivos que liquidaram a CSR. Não são os sujeitos passivos dos actos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integram, nem são parte da relação tributária, nem são repercutidos legais. E também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenham sido as Requerentes a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:

i. Que a CSR foi repercutida às ora Requerentes, quais os montantes e em que períodos;

ii. Que, por sua vez, o preço dos serviços de transportes que prestam aos seus clientes não comportam a repercussão de CSR (ou a medida em que não a comportam, se se tratar de repercussão parcial), por forma a poderem sustentar que suportaram, de forma efectiva, o encargo do imposto e o respetivo quantum.

 

43. As ora Requerentes limitaram-se a juntar declarações genéricas dos seus fornecedores de combustíveis, as quais estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. Não lograram, por isso, atestar que suportaram o tributo contra o qual reagem. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhes poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral, tendo em conta que não são sujeitos passivos, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutidos legais da CSR.

 

44. Aliás, compreende-se que o legislador não tenha adoptado um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.

 

45. Por fim, não se diga que as ora Requerentes ficaram desprovidas de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma acção civil de repetição do indevido instaurada contra os seus fornecedores, se reunirem os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspectiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (vd. artigo 20.º da Constituição).

 

46. De assinalar, adicionalmente, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respetiva liquidação precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (vd. Acórdão de 1/10/2003, processo n.º 0956/03).”. (destaque nosso)

 

71. Percebe-se, assim, que a Requerente não tenha logrado identificar os actos de liquidação de CSR cuja legalidade pretende contestar. É que tal impugnação apenas pode ser feita pelos sujeitos passivos a quem as liquidações foram dirigidas, sendo tal restrição de justificada pelas dificuldades práticas que resultariam de uma atribuição irrestrita de legitimidade. Resulta, assim, das citadas decisões arbitrais que mesmo que a Requerente lograsse identificar os actos de liquidação de CSR, sempre lhe faltaria legitimidade processual para contestar a respectiva legalidade por força do disposto no artigo 15.º do CIEC e no artigo 18.º, n.ºs 3 e 4, alínea a), da LGT. Solução que, conforme se referiu, não obsta à efectivação do direito a uma tutela jurisdicional efectiva, concretizada através de acção de restituição do indevido.

 

72. Pelo que sempre estaria verificada a excepção dilatória de ilegitimidade da Requerente, o que determina a absolvição da Requerida da instância nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

 

73. Em face de tudo o exposto, e sem necessidade de maiores considerações, julga este Tribunal Arbitral procedente a ineptidão da petição inicial por falta de objecto, o que consubstancia uma nulidade insanável e determina a absolvição da Requerida da instância arbitral por procedência de excepção dilatória, nos termos conjugados do artigo 98.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, do artigo 89.º, n.º 4, alínea b) do CPTA e dos artigos 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea b), do CPC.

 

45. Tendo em conta a mencionada argumentação, conclui também o presente Tribunal Arbitral que a falta de identificação dos actos de liquidação cuja legalidade é contestada no presente processo implica a absolvição da Requerida da instância por procedência da excepção dilatória de ineptidão do pedido de pronúncia arbitral por falta de objecto, nos termos dos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT. De igual modo, conclui também o presente Tribunal Arbitral que ao não ser sujeito passivo de imposto e ao não ter suportado o encargo da CSR por repercussão legal nem por mera repercussão económica, a Requerente carece de legitimidade processual activa nos termos conjugados do artigo 15.º do Código dos IEC e do artigo 18.º, n.ºs 3 e 4, alínea a), da LGT, o que implica a absolvição da Requerida da instância nos termos dos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

 

IV.1.3. Pedido de declaração de ilegalidade da cobrança e repercussão da CSR

 

§1 – Competência do Tribunal Arbitral

 

            46. Resta apreciar o pedido subsidiário de declaração de ilegalidade dos actos de repercussão da CSR incidentes sobre as transacções praticadas entre a Requerente e as fornecedoras de combustível, titulados pelas facturas emitidas por estas últimas que se encontram juntas aos autos.

 

            47. Remete-se uma vez mais para o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral no processo n.º 848/2023-T, em 12 de Junho de 2024, que ao que importa decidiu o seguinte:

 

37. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente peticionou, por um lado, a declaração de “ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário adquiridos pela Requerente no decurso do período compreendido entre abril de 2019 e dezembro de 2022” e, por outro lado, a declaração de ilegalidade “das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas DIC submetidas pela respetiva fornecedora de combustível, determinando‐se, nessa medida, a sua anulação, com as demais consequências legais”.

 

38. Do teor de tais pedidos resulta desde logo que não assiste razão à AT quando sustenta que a Requerente questiona a desconformidade jurídico-constitucional do regime da CSR como um todo, peticionando a suspensão da eficácia de acto legislativo emanado pela Assembleia da República no exercício das suas competências. Tal pedido não foi definitivamente formulado pela Requerente, pelo que improcedem quaisquer desconformidades que lhe pudessem ser assacadas.

 

39. Prosseguindo pela análise ao primeiro pedido, avança-se desde já que a apreciação da legalidade de actos de repercussão de CSR extravasa o âmbito material da arbitragem tributária.

 

40. Os actos de repercussão materializam “um fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem”, tal como evidencia Sérgio Vasques, ob. cit., p. 399.

 

41. Fenómeno este que não se subsume a nenhuma das realidades visadas pelo artigo 2.º do RJAT anteriormente transcrito, que determina que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de actos de liquidação (alínea a) do n.º 1) e de actos de fixação da matéria tributável/matéria colectável/valores patrimoniais na eventualidade de não terem originado qualquer acto de liquidação (alínea b) do n.º 1).

 

42. Com efeito, independentemente da posição que se adopte sobre a natureza jurídica dos actos de repercussão – i.e., saber se são actos que integram uma relação jurídico-tributária complexa ou se são um fenómeno económico de natureza estritamente privada – certo é que aqueles não são actos tributários em sentido lato, porque não envolvem o apuramento da matéria colectável/tributável através da aplicação de uma norma tributária substantiva a um caso concreto e muito menos actos tributários de liquidação stricto sensu, que tornam certa, líquida e exigível a obrigação tributária através da operação aritmética de aplicação da taxa legal à matéria tributável previamente determinada (neste sentido vide Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Almedina, 2017, p. 278).

 

43. Este é, de resto, o entendimento que tem sido defendido pela jurisprudência que se pronunciou sobre o tema, concretamente pelos Tribunais Arbitrais constituídos nos processos n.º 296/2023-T, 375/2023-T, 332/2023-T, 408/2023-T e 467/2023-T. Por todos, reproduz-se nesta sede em reforço das considerações já realizadas, o excerto das conclusões a que chegou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 1 de Fevereiro de 2024, no processo n.º 296/2023‑T:

 

“III.6. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de repercussão

Como os Colectivos que decidiram os processos n.os 408/2023-T e 375/2023-T, o presente Tribunal arbitral entende que não tem competências para apreciar directamente – e sem mais – actos de repercussão. Ainda que se possam integrar numa relação tributária complexa, tais actos ocorrem a jusante dos actos de liquidação e a competência que o legislador atribuiu aos tribunais arbitrais esgota-se – no que ao caso importa – na sindicância dos actos de liquidação. Isso decorre directamente das normas legais, mas corresponde também ao ensinamento da doutrina: Alberto Xavier, distinguindo a substituição tributária da repercussão, escrevia que nesta temos “um devedor de imposto, que é do mesmo passo contribuinte, e um terceiro que não desempenha qualquer papel na obrigação tributária.”

Para Leite de Campos/Benjamim Rodrigues/Lopes de Sousa, entre o terceiro repercutido “e o sujeito activo não existe vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do sujeito activo. A sua obrigação não nasce da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga o direito de o sujeito passivo de repercutir e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar o sujeito passivo quando este exerça o seu direito. Daqui decorre, nomeadamente, que as relações entre o sujeito passivo e o repercutido inadimplente se regem pelo Direito privado.”

 

Sendo isso assim em tese geral, face ao elenco das competências dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, e que constam dos artigos 2.º a 4.º do RJAT, nem sequer é preciso discutir a natureza jurídica desses actos de repercussão porque, qualquer que seja, não estão contemplados na única potencial norma atributiva de competência a este Tribunal: a da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT: “A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;”. Quer dizer que este Tribunal se declara liminarmente incompetente para apreciar o primeiro pedido da Requerente (declarar a ilegalidade dos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente).”.

 

            48. Em conformidade com a fundamentação do acórdão citado, julga-se o presente Tribunal Arbitral incompetente para apreciar a legalidade de actos de repercussão da CSR por não estarem os mesmos abrangidos pelo âmbito material da arbitragem tributária, o que implica a absolvição da Requerida desta parte da instância por procedência de excepção dilatória, em conformidade com o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) todos do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

49. Em face do exposto, ficou a Requerida absolvida da instância arbitral quanto a todos os pedidos formulados pela Requerente, razão pela qual fica prejudicada, porque inútil, a apreciação das demais questões suscitadas no processo.

 

V. DECISÃO

 

Termos em que se decide julgar:

  1. Julgar procedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para declarar a ilegalidade e recusar a aplicação das normas jurídicas que conformam o regime jurídico da CSR e, em consequência, absolver a Requerida desta parte da instância;
  2. Julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o pedido de declaração de ilegalidade de actos de liquidação de CSR;
  3. Julgar procedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade quanto ao pedido de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de CSR e, em consequência, absolver a Requerida desta parte da instância;
  4. Julgar procedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o pedido de declaração de ilegalidade de actos de repercussão de CSR e, em consequência, absolver parcialmente a Requerida desta parte da instância;
  5. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 225.624,83.

 

VII. CUSTAS

 

            Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 4.284,00, a suportar pela Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 15 de Outubro de 2024

 

Os árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Presidente e Relatora)

 

 

 

João Pedro Rodrigues

(Vencido, de acordo com declaração anexa)

 

Pedro Guerra Alves,

com declaração de voto vencido quanto a exceção da incompetência do tribunal em razão da matéria

 

 

Declaração de Voto

A ineptidão da petição inicial constitui uma nulidade processual, de conhecimento oficioso, que determina a absolvição do réu da instância (artigos 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), 577.º, alínea b), 576.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 98.º, n.º 1, alínea a) do CPPT)

Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, norma subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT,  a petição será inepta quando: [a)] faltar ou for ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; [b)] o pedido estiver em contradição com a causa de pedir; ou, finalmente, quando [c)] se cumulem pedidos ou causas de pedir substancialmente incompatíveis. Mais se refere, no n.º 3, do referido artigo 186.º do CPC, que quando arguida “a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.

Como consta do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pretende controverter os atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário, referentes aos meses de janeiro de 2019 e dezembro de 2022. Trata-se de um pedido que se encontra formulado em termos claros e percetíveis, sendo perfeitamente inteligível a pretensão da Requerente e, bem assim, a causa de pedir que aqui assenta num “facto ou complexo de factos aptos para pôr em movimento uma norma de lei, um facto ou complexo de factos idóneos para produzir efeitos jurídicos”, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, pp. 56 e ss.. Do mesmo passo, não se verifica qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir, nem se cumulam pedidos ou causas de pedir incompatíveis, o que, ademais, nem vem posto em causa pela Requerida.

No âmbito do nosso sistema jurídico-tributário reconhece-se legitimidade a quem suporte o imposto por repercussão legalmente intencionada para controverter os atos de liquidação originários, pressupostos da efetiva repercussão subsequente, e de, por essa via, obter o reembolso dos valores indevidamente repercutidos. Trata-se de uma opção também presente noutros ordenamentos jurídicos, como o espanhol, onde os “obrigados a suportar a repercussão” têm legitimidade para controverter “atuações ou omissões dos particulares em matéria tributária”, tais como “as relativas às obrigações de repercutir e suportar a repercussão prevista legalmente”, tendo “direito a solicitar o reembolso de impostos indevidos” junto da administração tributária.

É certo que o legislador pátrio, apesar de prever a legitimidade impugnatória dos repercutidos, absteve-se de regular especificamente a matéria de forma a atender às vicissitudes da repercussão, da sua correlação com os correspetivos atos de liquidação e de reembolso, designadamente através da existência de um filtro administrativo, como sucede no âmbito do regime espanhol  (v. artigo 35.º, n.º 2, alínea g), artigo 227.º, n.º 4, alínea a), da Ley General Tributaria e artigo 14.º do Reglamento general de desarrollo de la Ley 58/2003, de 17 de diciembre, General Tributaria, en materia de revisión en via administrativa). Porém, na inexistência dessa regulamentação, não pode obnubilar-se que o ónus de identificação e comprovação dos atos de liquidação tem de ter forçosamente em conta o facto de a Requerente não poder ser considerada sujeito passivo da relação jurídico-tributária, mas de apenas lhe ser atribuída legitimidade para promover a impugnação dos atos tributários que a atinjam por via da repercussão, de modo que, a opção do legislador em conferir legitimidade impugnatória a quem suporte o encargo do imposto por repercussão, implica necessariamente que a identificação dos atos de liquidação se faça sem o conhecimento da liquidação concretamente em causa (v.g. com a data e n.º), outrossim por interposição dos atos que titulam a repercussão do imposto – que são a ratio determinante da possibilidade impugnatória prevista na lei –, sob pena de impossibilidade de reação.

Acompanha-se, assim, o entendimento vertido, entre outros, no Acórdão tirado no Processo n.º 1049/2023, onde se considerou inexistir ineptidão da petição inicial quando os atos de liquidação sejam “identificados e documentados pelo único meio possível qual seja a emissão de faturas pelo fornecedor do combustível” e no Acórdão prolatado no Processo n.º 982/2023, também subscrito pelo ora relator, onde se deixou consignado que a “exigência de identificação das liquidações, numa situação deste tipo, em que o repercutido não tem possibilidade de as identificar e a identificação não é imprescindível para apurar a legalidade da cobrança de CSR ínsita nas faturas, seria incompaginável com o princípio constitucional da proporcionalidade e o direito à tutela judicial efetiva, garantido pelos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, pois inviabilizaria a possibilidade prática de a Requerente impugnar contenciosamente actos que lhe aplicam tributação e lesam a sua esfera jurídica”.

 

João Pedro Rodrigues