Decisão Arbitral
Processo de Arbitragem Tributária
Processo nº 807/2014 – T
A Árbitro Dra. Filipa Barros (árbitro singular), designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 13 de Fevereiro de 2015, acorda no seguinte:
I. RELATÓRIO
A sociedade A, Lda, NIPC …, com sede na …, adiante “Requerente”, vem, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do artigo 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante referido por “RJAT”[1], requerer a constituição de Tribunal Arbitral para pronúncia sobre a ilegalidade e consequente anulação das liquidações de IVA, no valor total de € 36.934,62, referentes ao ano de 2010, e dos correspondentes juros compensatórios.
Para fundamentar o seu pedido, considera a Requerente, em síntese, que no âmbito do exercício da sua atividade de produção e de venda por grosso de produtos de pastelaria, nomeadamente de produtos de panificação e de todo o tipo de bolos, são frequentes a realização de abates de mercadorias, por força dos desperdícios de produção típicos da atividade, ao que acresce artigos devolvidos pelos clientes por não terem sido vendidos dentro dos prazos de validade.
Por conseguinte, apesar de serem realizadas as correspondentes comunicações de abate as quais sempre foram enviadas ao serviço de finanças da área da sua sede, face à natureza rapidamente perecível dos produtos em causa, estas não são podem ser efetuadas com a antecedência de 15 dias, conforme estabelecido no artigo 38.º n.º 3 alínea c), do Código do IRC.
Não obstante, defende a Requerente que os produtos alimentares constantes das comunicações de abate foram destruídos e inutilizados tendo tais autos sido presenciados e assinados por testemunhas, encontrando-se, consequentemente, ilidida a presunção de transmissão dos bens prevista no artigo 86.º do Código do IVA - presunção juris tantum -, devendo ser anulados os atos de liquidação adicional de IVA relativos ao ano de 2010, constantes do Relatório de Inspeção Tributária, respeitantes às desvalorizações e abates no valor de €36.934,62.
Em apoio da tese da não sujeição à observância do prazo de 15 dias previsto, previsto no artigo 38.º n.º 3 alínea c), do Código do IRC, a Requerente defende que as perdas de mercadorias não correspondem a desvalorizações excepcionais, tratando-se antes de ajustamentos em inventário, até pelo carácter regular e normal das perdas em questão. Tais ajustamentos em inventário (registados na conta 684, subconta 6842 quebras) deram lugar às correspondentes deduções no apuramento do lucro tributável, sendo reconhecidos no período de tributação, não devendo, por conseguinte, ser enquadradas no artigo 38.º do Código do IRC.
No dia 11 de Dezembro de 2014, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e, de imediato, notificado à Requerida nos termos legais.
A Requerente não procedeu à nomeação de Árbitro.
Assim, nos termos e para os efeitos do disposto do nº 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, por decisão do Exmo. Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente previstos, foi designado árbitro do Tribunal Arbitral Singular a Exma. Dra. Filipa Barros, que comunicou, ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo estipulado no artigo 4.º do Código Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa.
Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 13 de Fevereiro de 2015, seguindo-se os pertinentes trâmites legais.
A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta na qual defende a improcedência do pedido de pronúncia arbitral. Para tanto, invoca que através da verificação das contas (38 e 684) constataram os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) que no ano de 2010 se encontraram registadas como perdas em inventários /regularizações de existências abates no valor de €306.910,38. Todavia, da análise aos documentos contabilísticos verificou-se a falta de observância do disposto no artigo 38.º do Código do IRC, no que toca ao cumprimento das formalidades prévias a observar num abate. Tal facto, implicou a impossibilidade de comprovação do abate, bem como a efetiva destruição / inutilização dos bens constantes das relações discriminativas em causa.
Assim, entende a Requerida que os requisitos legais previstos no artigo 38.º n.º 3, alínea c), do Código do IRC são aplicáveis ao caso em apreço não tendo o legislador pretendido salvaguardar qualquer sector de atividade, pelo que a Requerente deveria ter feito a comunicação escrita do abate com a antecedência 15 dias.
Acresce, que segundo o entendimento da Requerida os requisitos enunciados no artigo 38.º n.º 3, alínea a), do Código do IRC também não foram cumpridos, pois perante a ausência de uma entidade independente que ateste que os alimentos abatidos naquelas quantidades não podiam ser comercializados ou utilizados no processo produtivo, não existe justificação dos factos que originaram as desvalorizações excepcionais pretendidas.
Nessa medida, a AT coloca em causa a sustentabilidade da prova apresentada pela Requerente, baseada num documento interno que não observa a antecedência mínima de 15 dias legalmente exigível, assinado e presenciado sempre pelas mesmas testemunhas, mantendo uma constância quinzenal de valores e de tipos de bens, não sendo os procedimentos usados aptos a comprovar a efetiva destruição das mercadorias, ainda mais quando estão em causa montantes de abates tão significativos e de carácter regular.
Em 25 de Março de 2015, realizou-se a primeira reunião do tribunal arbitral, nos termos e com os objectivos previstos no artigo 18.º do RJAT.
Foram inquiridas quatro testemunhas arroladas pela Requerente, a saber, a Senhora B, o Senhor C, a Senhora D e a Senhora E.
A Requerente solicitou a junção aos autos de documento relativo às facturas emitidas pelo F, o qual foi admitido e concedido prazo de vista à Requerida para exercício do direito ao contraditório.
Foram apresentadas alegações escritas pela Requerente, seguidas das alegações da Requerida.
Nas alegações apresentadas as partes reiteraram no essencial as posições defendidas nos respectivos articulados, nos termos seguidamente sintetizados.
a) Alegações da Requerente
A Requerente sublinha que não estamos no âmbito do artigo 38.º do Código do IRC, uma vez que as perdas de mercadorias objeto do litígio constituem uma realidade inevitável da atividade que desenvolve, atendendo às vicissitudes do processo produtivo e de distribuição.
De acordo com a prova produzida deverá concluir-se que as perdas de mercadorias em causa, não correspondem a perdas motivadas por circunstâncias anormais e excepcionais.
Não são, por conseguinte, desvalorizações excepcionais causadas por factos anómalos e esporádicos, são antes perdas normais de mercadorias atenta a sua especial natureza, que carecem de destruição e de abate periódico.
Assim, a Requerente não está obrigada a observar o prazo de quinze dias de antecedência em relação à data da realização do abate, conforme exigido no artigo 38.º do Código do IRC.
E mesmo que estivesse – o que apenas por hipótese de raciocínio se concebe – constata-se que é materialmente impossível respeitá-lo, por força das características dos produtos e das mercadorias em presença.
A Requerente sublinha ainda que ficou demonstrada a natureza rápida e facilmente perecível dos produtos, facto que determina a impossibilidade de comunicação prévia do abate com 15 dias de antecedência em relação à inutilização/abate das mercadorias.
De qualquer modo, e ainda que a AT tivesse razão relativamente à não aceitação das deduções inerentes às mercadorias abatidas para efeitos de determinação da matéria tributável, em sede de IRC, isso não quer dizer que o mesmo teria que se passar no tocante ao IVA.
Sendo que nestes autos é o IVA que está em causa. Porquanto, ainda que se concluísse pela bondade das correções da matéria tributável de IRC, por falta de observância do prazo de 15 dias, isso não significa que necessariamente tivessem que estar certas as liquidações de IVA impugnadas. Uma coisa é a AT afirmar que a Requerente não respeitou o prazo de 15 dias, e recusar a dedução à matéria tributável inerente às mercadorias abatidas, outra coisa completamente distinta, será imputar à Requerente um IVA de produtos que ela não alienou, e sujeitá-los a tributação em sede deste imposto.
Ora, a presunção consagrada no artigo 86.º do Código do IVA é passível de prova em contrário, sendo que esta matéria se encontra apreciada pelo Ofício Circulado n.º 35.264 da Direção de Serviços do IVA no qual se dispõe que não existe obrigação legal de proceder a qualquer diligência prévia ou participação junto dos Serviços da Administração Fiscal, podendo, não obstante, o sujeito passivo reunir elementos justificativos das faltas nas suas existências dos bens destruídos ou inutilizados como forma de ilidir a presunção prevista no referido normativo, devendo proceder à prévia comunicação aos serviços dos factos atinentes ao abate para que estes, se assim entenderem, exerçam o devido controle.
Em conclusão, refere a Requerente que tais diligências foram asseguradas, estando devidamente comprovadas documental e testemunhalmente, encontrando-se afastada a presunção prevista no artigo 86.º do Código do IVA, devendo, assim, ser julgado procedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações adicionais de IVA impugnadas.
b) Alegações da Requerida
Nas alegações finais a Requerida reforça os argumentos invocados na Resposta e, complementarmente, concentra-se sobre os factos e a produção de prova testemunhal.
Relativamente ao tipo de produtos constantes das listas de abates de inventário, refere que estes são sempre os mesmos apenas variando as quantidades, não se detetando a presença de produtos altamente perecíveis que justificariam uma remoção frequente.
Por outro lado, não existe comprovação dos factos que levaram ao abate, ou seja uma declaração a atestar que aqueles alimentos naquelas quantidades, não poderiam ser comercializados ou utilizados no processo produtivo, por o prazo de validade ter terminado. Sublinha-se que para a comprovação dos factos alegados nunca se verifica a intervenção de uma qualquer entidade externa, assim como nunca foi exibida pela Requerente qualquer prova da existência de procedimentos de controlo internos, ou seja, listas internas que estiveram na base daquele resultado de quantidades.
Relativamente às comunicações remetidas pela Requerente, reforça-se que são sempre feitas pela esposa de um dos sócios gerentes e testemunhadas por dois sócios gerentes, consequentemente aquelas não se encontram certificadas por nenhuma pessoa independente aos órgãos de gestão da sociedade. Assim, um documento interno que não observa a antecedência mínima, muitas vezes feito posteriormente ao próprio abate não pode ser considerado apto a comprovar a efetiva destruição de mercadorias, ainda mais de valor tão significativo.
A Requerida duvida da realização dos abates, pois refere que nenhuma testemunha presenciou a destruição dos bens em causa, sendo estranha a destruição de quantidades, produtos e valores de matérias primas sempre semelhantes, mesmo relativamente a matérias primas com prazo de validade muito alargado, como o açúcar e a farinha. Também coloca em causa o método de apuramento de quantidades de material de embalagem destruído, por não haver uma separação física entre o conteúdo e a embalagem sendo o material indistintamente depositado num contentor.
A Requerida coloca ainda em causa o tratamento contabilístico dado pela Requerente, pois tendo em consideração o sector de atividade em causa os desperdícios alimentares deverão ser considerados quebras normais inerentes ao processo produtivo, e portanto não seriam objecto de qualquer tratamento contabilístico, pois presume-se que o próprio preço de venda absorve tais perdas.
Finalmente, e em relação às faturas apresentadas pela Requerente relativas às remoções de resíduos pelos Serviços Municipalizados de ..., apesar de reconhecer a existência destas remoções, sublinha a incongruência entre as datas dos abates e as datas das facturas emitidas por estes serviços.
Nestes termos, conclui que nunca existiu qualquer controle sobre o conteúdo dos contentores de resíduos recolhidos nas instalações da Requerente, quer no que toca à identificação dos bens, quer no que toca à quantidade das mercadorias, pugnando pela manutenção das correções efectuadas pelos SIT, e pela incapacidade da Requerente ilidir a presunção constante do artigo 86.º do Código do IVA, devendo considerar-se verificada a transmissão efetiva da totalidade dos bens constantes dos autos de abate.
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Face às alegações produzidas pelas partes, a questão principal a decidir nos presentes autos, passa por aferir se as perdas de inventário, objeto de abate, se encontram sujeitas ao regime previsto no artigo 38.º do Código do IRC, normativo que disciplina as formalidades prévias a observar num abate, estabelecendo que o abate deverá ser comunicado com uma antecedência mínima de 15 dias, por forma a que AT possa comprovar a natureza e quantidade dos bens destruídos, e a efetiva destruição, ou se pelo contrário, o artigo 38.º não é aplicável ao caso vertente, podendo o sujeito passivo apresentar meios alternativos a prova da destruição dos bens constantes dos autos de abate, e assim, ilidir a presunção de transmissão dos bens prevista no artigo 86.º do Código do IVA.
II. SANEAMENTO DO PROCESSO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas, (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março).
III. FUNDAMENTAÇÃO
1. Factos dados como provados
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos no âmbito do processo administrativo, nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e documentos juntos supervenientemente, a resposta apresentada pela Autoridade Tributária e Aduaneira e, finalmente, no depoimento das testemunhas nos pontos indicados.
1) A Requerente é uma sociedade comercial que exerce a atividade de produção e de venda por grosso de produtos de pastelaria, nomeadamente produtos de panificação e todo o tipo de bolos. Os produtos acabados são, na sua quase totalidade, embalados para posterior comercialização.
2) A grande maioria dos seus clientes são empresas de catering e comércio retalhista de produtos alimentares;
3) A Requerente tem instalações de produção própria em edifício fabril situado na sede;
4) Em termos de IVA, a Requerente encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal;
5) Ao abrigo da Ordem de serviço OI 2014..., a Autoridade Tributária realizou uma ação inspetiva que incidiu sobre o exercício de 2010;
6) Verificou-se, neste âmbito, que a Requerente reconhece perdas em inventários/ regularizações de existências, que são objecto de registo contabilístico mediante autonomização nas contas “#38 - Regularização de inventário” e “#684 - Perdas em inventários”;
7) Os registos contabilísticos de regularização de inventário não resultam de factos extraordinários, mas antes de quebras normais, constantes e regulares que fazem parte da atividade da Requerente (depoimento da testemunha B);
8) Na atividade da Requerente são inevitáveis as perdas de mercadorias no processo de fabrico e comercialização: os produtos sobram porque apresentam defeitos de fabrico e não podem ser consumidos, ou porque ultrapassam rapidamente os prazos de validade, ou porque são devolvidos pelos retalhistas onde são colocados à consignação ou, porque resultam de desperdícios inerentes ao processo de fabrico como as farinhas que são usadas para as massas não aderirem às mesas de produção e que caindo no chão não podem ser reutilizadas, as canelas e outros condimentos deitados sobre os bolos cujo excesso é sempre inutilizado (depoimento das testemunhas C e D);
9) Em termos nacionais é aceite neste sector de atividade uma percentagem média de quebras normais na ordem dos 25% a 30% (depoimento da testemunha C);
10) A Requerente tem laboração continua, produzindo inclusivamente aos domingos e feriados;
11) No exercício de 2010 a Requerente registou abates de mercadorias no valor de € 306.910,38;
12) A Requerente enviou ao serviço de finanças da área da sua sede as correspondentes comunicações de abate tendo junto as relações discriminativas com as quantidades e valorização dos bens a abater;
13) Tais comunicações de abate são elaboradas com base nos registos diários de produção lançados no sistema informático (depoimento da testemunha E);
14) O responsável de cada turno deverá inscrever na folha de ocorrência da fábrica todos os percalços, acidentes de produção ou informações relevantes relativas ao processo de fabrico, as quantidades perdidas que justificam as quebras e a valorização dos desperdícios de produção (depoimento da testemunha E);
15) Os motoristas que fazem a distribuição dos produtos pelos clientes entregam aos serviços administrativos, diariamente, o registo das mercadorias devolvidas que, por seu turno, são objeto de lançamento informático servindo posteriormente de base à realização dos autos de abate (depoimento da testemunha E);
16) Os abates das mercadorias constantes das comunicações foram sempre testemunhadas por dois sócios gerentes da Requerente;
17) A recolha dos desperdícios identificados nos autos de abate é feita geralmente ao sábado de manhã, sendo recolhidos pelos serviços municipalizados de ... que entram no recinto da empresa e procedem à remoção dos contentores de desperdício de 1100 Litros, de acordo com as indicações e supervisão da Requerente (depoimento das testemunhas D e E);
18) As comunicações de abate nunca foram efetuadas com o período mínimo de antecedência de 15 dias;
19) Não é possível determinar em termos concretos, com antecedência de 15 dias, a quantidade e tipo de produtos que serão objeto de quebras/desperdícios (depoimento da testemunha D);
20) A natureza dos produtos fabricados é rapidamente perecível, não sendo viável manter dentro da fábrica, durante 15 dias produtos estragados, ou devolvidos pelos clientes, sob pena de incumprimento de regras de segurança alimentar e sérios riscos de contaminação dos demais produtos em bom estado (depoimento da testemunha D);
21) Idealmente, a remoção dos desperdícios de matérias primas e produtos acabados deverá ocorrer com periodicidade máxima de 5 dias (depoimento da testemunha D);
22) Nos termos do despacho n.º DI2012… a Autoridade Tributária abriu procedimento para verificação da destruição dos bens tendo constatado do seguinte:
23) “Aos treze de Outubro de 2012, pelas 11h00, na sede da empresa (...) verificámos a existência no local de vários caixotes de lixo e salientamos o facto de no interior dos mesmos se encontrarem produtos indistintamente misturados, impossibilitando, desde modo, o confronto dos produtos e respectivas quantidades existentes dentro dos contentores de plástico, com a relação enviada pelo sujeito passivo ao serviço de finanças”, e que “na data e hora indicada na comunicação do abate, o camião dos Serviços Municipalizados de ... que deveria transportar os resíduos industriais não utilizáveis para o aterro sanitário, não se encontrava na sede da empresa”.
24) Tendo a Autoridade Tributária questionado o sócio gerente Sr. G, sobre a impossibilidade de efetuar a identificação do tipo e quantidades de bens, em auto de declarações, este respondeu “ser essa a forma como habitualmente junta os resíduos de forma a poderem ser recolhidos pelos serviços municipalizados, em contentores de 1.000 litros”;
25) Os serviços municipalizados de ... realizam recolhas de resíduos quinzenalmente nas instalações fabris da Requerente, utilizando contentores de cerca de 1100 Litros de capacidade, adequados à natureza dos resíduos a recolher;
26) A faturação emitida pelos serviços municipalizados de ... é mensal e contempla a prestação dos seguintes serviços: remoções de mercadorias e produtos inutilizados constantes dos autos de abate, remoção de papel e cartão para reciclagem não incluído nos autos de abate, lixo não constante dos autos de abate e fornecimentos de água;
27) Na sequência de e-mail enviado pela Autoridade Tributária em 15 de Abril de 2015, dirigido aos Serviços Intermunicipalizados de Águas e Resíduos de ... e ..., esclareceram estes últimos o seguinte “após análise da situação com várias equipas que procederam à recolha de resíduos na empresa, verifica-se que tanto a recolha de resíduos indiferenciados (3.ª, 5.ª e Sábado, entre as 6h e as 13h) como a recolha de embalagens (4.ªf à noite) são efetuadas no exterior da empresa. A exceção é a recolha de papel /cartão, que é efetuada à 4.ªf entre as 6h e as 13h, e em que a viatura entra na empresa para recolher os contentores.”
28) Resulta do Relatório de Inspeção Tributária, que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, além do mais, o seguinte:
“O sujeito passivo enviou, com 5 dias de antecedência, as correspondentes comunicações de abate, ao serviço de finanças da área onde os abates iam ocorrer, juntando as relações discriminativas com as quantidades e valorização dos bens a abater. No entanto, tal prazo torna-se exíguo, no sentido de permitir aos serviços da Administração Tributária de procederem à verificação presencial de tais abates, pelo que o sujeito passivo deveria cumprir o prazo estipulado no artigo 38.º do CIRC, utilizado para efetuar tais comunicações em casos análogos.
Logo ficou impossibilitada a comprovação dos correspondentes abates, bem assim como da efetiva destruição /inutilização dos bens constantes das relações discriminativas desses abates.
(....)
Atendendo a que tais gastos não se consideram comprovadamente indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nos termos do artigo 23.º do CIRC, não tendo sido cumpridos os requisitos estipulados no artigo 28.º do CIRC, para que tais ajustamentos sejam considerados como gasto do período de tributação estes terão de ser acrescidos ao resultado tributável do exercício de 2010, sendo o seu montante de € 306.910,38 (vide anexo I).
Refere-se que se encontram junto ao processo cópias de todos os requerimentos enviados ao serviço de finanças, relativos aos abates.
E, consequentemente, dado que tais ajustamentos de inventários não podem ser considerados como gasto do período, deverá ser liquidado o correspondente IVA, nos termos do artigo 86.º do CIVA, atendendo a que conjugado com a alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do CIVA , salvo prova em contrário, presumem-se adquiridos os bens que se encontrem em qualquer dos locais em que o sujeito passivo exerce a sua atividade e presumem-se transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que se não encontrem em qualquer desses locais. ”;
29) Do ponto IX do referido relatório são propostas as seguintes correções para o exercício de 2010, em sede de IRC:
Resultado Tributável
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2010
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Resultado tributável declarado
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€70.585,64
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Valor a corrigir
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€306.910,38
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Resultado tributável corrigido
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€377.496,02
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30) Em sede de IVA considerou-se que a empresa não entregou nos cofres do Estado o imposto que deveria ter liquidado, no ano de 2010, relativamente aos ajustamentos em inventários / abates no montante total de €36.934,62, conforme mapa mensal junto ao PA, que se dá por integralmente reproduzido;
31) A posição da Requerente baseia-se no Ofício-Circulado n.º 35 264 emitido pela Direção de Serviços do IVA;
32) A Requerente foi notificada das liquidações adicionais de IVA para pagamento a 30 de Novembro de 2014 e respectivos juros;
33) A Requerente foi notificada para exercer o direito de audição sobre o Projeto de Relatório da Inspeção Tributária, mas não o exerceu;
34) Em 10 de Dezembro de 2014, a Requerente deduziu o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo. (cfr. requerimento electrónico ao CAAD).
2. Factos não provados
Dos factos com interesse para a decisão da causa, objecto de impugnação, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.
3. Motivação
A convicção do Tribunal ao estabelecer o quadro factual supra, fundou-se no Processo Administrativo instrutor, nos documentos que instruíram as peças processuais das partes e no depoimento das testemunhas arroladas pela Requerente, nomeadamente dos testemunhos acima identificados, os quais nos mereceram credibilidade em face do que se pretendia esclarecer.
4. Matéria de Direito
A questão a decidir é a de saber se o regime das desvalorizações excepcionais previsto no artigo 38.º do Código do IRC é aplicável a bens do inventário da Requerente, discutindo-se no caso dos autos se a Requerente estaria obrigada a realizar uma comunicação prévia com antecedência de 15 dias sobre a data da realização do abate das suas mercadorias objeto de desperdício.
Se tal questão for respondida em sentido afirmativo, de que tal normativo se aplica ao caso vertente e de que se verificou um incumprimento do prazo de comunicação prévia, haverá ainda que indagar a correlação entre o incumprimento do artigo 38.º do Código do IRC e a verificação da presunção legal prevista no artigo 86.º do Código do IVA, nos termos da qual se presumem transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que não se encontrem em qualquer dos locais em que o contribuinte exerce a sua atividade.
Vejamos cada uma das questões supra identificadas.
1) Os desperdícios diários que resultam de matérias-primas, produtos acabados e material de embalagem inutilizados, decorrentes da atividade de fabrico e comercialização da Requerente, submetidos a abates periódicos, deverão ser enquadrados no regime fiscal do artigo 38.º do Código do IRC, sobre a epígrafe “desvalorizações extraordinárias”?
A AT considera que por força da inobservância do artigo 38.º do Código do IRC[2], normativo que disciplina as formalidades prévias a observar num abate, se impossibilitou a comprovação do abate das mercadorias constantes dos autos de abate preparados pela Requerente, bem como da efetiva destruição e inutilização desses bens. Perante tal constatação, as desvalorizações de mercadorias não podem ser consideradas como gasto do período, sendo de liquidar o correspondente IVA, nos termos do artigo 86.º do Código do IVA.
Salvo devido respeito entendemos não ser esse o melhor entendimento.
Está em causa a interpretação do artigo 38.º do Código do IRC, o qual dispunha o seguinte:
“Artigo 38.º Desvalorizações excecionais”
1 — Podem ser aceites como perdas por imparidade as desvalorizações excepcionais referidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 35.º provenientes de causas anormais devidamente comprovadas, designadamente, desastres, fenómenos naturais, inovações técnicas excepcionalmente rápidas ou alterações significativas, com efeito adverso, no contexto legal.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o sujeito passivo deve obter a aceitação da Direcção-Geral dos Impostos, mediante exposição devidamente fundamentada, a apresentar até ao fim do primeiro mês do período de tributação seguinte ao da ocorrência dos factos que determinaram as desvalorizações excepcionais, acompanhada de documentação comprovativa dos mesmos, designadamente da decisão do competente órgão de gestão que confirme aqueles factos, de justificação do respectivo montante, bem como da indicação do destino a dar aos activos, quando o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização destes não ocorram no mesmo período de tributação.(Rectificado pela Dec.Rectificação n.º 67-A/2009 - 11/09) (Ver nota 1)
3 - Quando os factos que determinaram as desvalorizações excepcionais dos activos e o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização ocorram no mesmo período de tributação, o valor líquido fiscal dos activos, corrigido de eventuais valores recuperáveis pode ser aceite como gasto do período, desde que:(Rectificado pela Dec.Rectificação n.º 67-A/2009 - 11/09)
a) Seja comprovado o abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização dos bens, através do respectivo auto, assinado por duas testemunhas, e identificados e comprovados os factos que originaram as desvalorizações excepcionais;
b) O auto seja acompanhado de relação discriminativa dos elementos em causa, contendo, relativamente a cada activo, a descrição, o ano e o custo de aquisição, bem como o valor líquido contabilístico e o valor líquido fiscal;(Rectificada pela Dec.Rectificação n.º 67-A/2009 - 11/09)
c) Seja comunicado ao serviço de finanças da área do local onde aqueles bens se encontrem, com a antecedência mínima de 15 dias, o local, a data e a hora do abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização e o total do valor líquido fiscal dos mesmos.
4 - O disposto nas alíneas a) a c) do número anterior deve igualmente observar-se nas situações previstas no n.º 2, no período de tributação em que venha a efectuar-se o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização dos activos.(Rectificado pela Dec.Rectificação n.º 67-A/2009 - 11/09)
5 — A aceitação referida no n.º 2 é da competência do director de finanças da área da sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável do sujeito passivo ou do director dos Serviços de Inspecção Tributária, tratando-se de empresas incluídas no âmbito das suas atribuições.
6 — A documentação a que se refere o n.º 3 deve integrar o processo de documentação fiscal, nos termos do artigo 130.º”
No caso vertente a Requerente não coloca sequer em causa a alegação da Requerida quanto ao incumprimento do prazo de 15 dias de antecedência para a comunicação prévia em relação ao abate das mercadorias, apresentando elementos concretos e credíveis que permitem demonstrar a existência de circunstâncias inerentes à própria atividade que a impedem de assegurar tal prazo.
Por conseguinte, as perdas de inventário resultantes da produção diária ou de sobras por defeitos de fabrico ou ainda por força da devolução de produtos não vendidos pelos clientes da Requerente que atuam ao abrigo do regime de consignação, são quebras que, do ponto de vista contabilístico, resultam da destruição de bens do ativo corrente, e não bens do ativos fixo tangível.
Ora, a este respeito, seguimos de perto a recente jurisprudência emitida pelo CAAD[3] no âmbito de um caso em tudo semelhante ao destes autos. Depois de uma profícua explicação sobre as origens do artigo 38.º do Código do IRC, o qual remonta ao anterior artigo 10.º do Decreto Regulamentar n.º 2/90, de 12 de Janeiro sob epígrafe “desvalorizações excecionais de elementos do ativo imobilizado”, o Tribunal Arbitral concluiu que o regime previsto no artigo 38.º do Código do IRC não se destina à identificação e comprovação dos factos que originam perdas económicas dos bens do inventário. Ora, no caso vertente, tal como no caso sobre que versa o referido Acórdão, estamos indubitavelmente perante matérias primas destinadas à produção de produtos de pastelaria e de produtos acabados que não foram comercializados, ou porque se deterioraram no decurso do processo de fabrico ou porque foram devolvidos e passaram os respectivos prazos de validade.
Assim, estão em causa bens do inventário, e não bens do ativo fixo tangível da Requerente, ou bens do ativo não corrente.
O artigo 38.º do Código do IRC consagrava um regime especial de reconhecimento de gastos decorrentes de eventos anormais ou excecionais sobre elementos do imobilizado corpóreo, não sendo de todo aplicável ao abate de bens do inventário.
Aliás, note-se que o artigo 38.º do Código do IRC, vigente a partir dos exercícios de 2010, e aplicável à desvalorização excepcional dos ativos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 35.º do Código do IRC (atualmente revogado) o qual permite a consideração como gasto fiscalmente dedutível das “desvalorizações excepcionais verificadas em ativos fixos tangíveis, ativos intangíveis, ativos biológicos não consumíveis e propriedades de investimento”.
Conforme refere a supra identificada Jurisprudência Arbitral, que aqui seguimos, a entrada em vigor da denominada Reforma do IRC confirma este âmbito de aplicabilidade, na medida em que mantém as desvalorizações excepcionais (agora enquadradas como perdas por imparidade) circunscritas ao valor recuperável de bens do ativo fixo. Tanto assim, que o atual artigo 31.º-B do Código do IRC (por revogação do artigo 38.º) tem por epígrafe “perdas por imparidade em ativos não correntes”.
Certo é que ao longo das alterações ao regime das desvalorizações excepcionais, o legislador manteve o regime consagrado em 2005: (i) a identificação e comprovação das causas anormais, (ii) a comunicação com 15 dias de antecedência e (iii) o auto de abate dos bens assinado por duas testemunhas e acompanhado de uma relação discriminada desses bens. No entanto, tal regime não é aplicável à inutilização de bens do ativo corrente e é desses bens que trata o processo em apreço.
Com efeito, conforme decorre da Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 18, os bens do inventário são os “detidos para venda no decurso ordinário da atividade empresarial ou no processo de produção para tal venda”. Constituem ainda inventário os “materiais ou consumíveis a serem aplicados nos processos de produção ou na prestação de serviços”.
Facto que tanto a Requerente como a Requerida não ignoram, porquanto as perdas económicas são registadas nas contas “#38 - Regularização de inventário” e “#684 - Perdas em inventários”.
Acresce a menção aos termos “mercadorias” e “existências” evidenciados em vários documentos carreados pelas Partes para os autos, sendo o caso do relatório de inspeção relativo aos atos praticados em 2010. Ora, a NCRF 1 classifica tais bens como ativo corrente, na medida em que os mesmos são detidos com a finalidade de negociação num ciclo económico de até 12 meses. Este enquadramento contabilístico é plenamente aceite pelo Código do IRC, que no n.º 3 do artigo 17.º, dispõe que a contabilidade deve:
“a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de atividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código.”
Por conseguinte, a inserção sistemática do regime de desvalorização excecional do artigo 38.º e a sua referência à dedução das perdas em imparidades dos “ativos fixos tangíveis e intangíveis” constantes do artigo 35.º, complementa este enquadramento, e leva-nos a concluir, à semelhança do recente Acórdão do CAAD, cujo entendimento preconizamos, o seguinte:
- Que o Código do IRC não contém (agora e à data da prática dos factos) um regime específico de reconhecimento de perdas em bens do inventário;
- O regime previsto no artigo 38.º do Código do IRC é estritamente aplicável a bens do ativo fixo, afastando da sua previsão os bens do inventário;
- O artigo 38.º não é convocável no que tange à identificação e comprovação dos factos que originaram as perdas económicas regulares nos bens do inventário;
- O abate dos bens do inventário deverá assentar em critérios que permitam aferir da sua existência, comprovando-se a sua concreta verificação, por forma a ilidir (ou não) a presunção de transmissibilidade dos bens;
- Tais critérios não carecem de uma observação estrita do regime contido no artigo 38.º do Código do IRC.
Aliás, e no que toca à natureza regular das perdas de inventário apuradas pela Requerente, veja-se a posição adoptada pela jurisprudência do Tribunal Central Administrativo do Sul, que tem sido também defendida noutros Acórdãos: “As quebras normais são as verificadas com alguma regularidade e resultam do exercício da atividade, porque inerentes ao processo produtivo e/ou ao manuseamento dos bens; as quebras anormais são as de ocorrência imprevisível, extraordinária e resultantes de factos alheios ao exercício da atividade (acidentes, roubos incêndios)”[4].
Por outro lado, a própria AT esclareceu, para efeitos de IVA, no Oficio Circulado n.º 35264, de 24/10/1986, quanto aos requisitos de prova sobre a não transmissão de bens que tenham sido inutilizados ou destruídos, nomeadamente em virtude de defeitos de fabrico ou obsolescência, que não existe obrigação legal de proceder a qualquer prévia diligência ou participação junto dos serviços da Administração Fiscal, nos moldes anteriormente previstos no citado artigo 24.º- A do Código do Imposto de Transações.
Daqui resulta desde logo, que existindo ajustamentos a efetuar ao valor dos inventários, por quebras normais inerentes ao próprio processo produtivo do sujeito passivo, que sejam objecto de registo contabilístico, importará identificar o motivo subjacente ao abatimento e comprovar o seu quantitativo e subsequente abate. Contudo, tal verificação não passa, necessariamente, pela observância de um prazo mínimo e prévio de 15 dias, ou pela assinatura de um auto de abate por duas testemunhas, como defende a Requerida.
Por conseguinte, e na linha do entendimento definido pelo STA, impõe-se, por um lado aferir, de acordo com critérios objetivos, a existência de perda material dos bens identificados pela Requerente, constantes dos autos de abate e, por outro, apurar em que medida, tais perdas ou quebras se encontram comprovadas em termos razoáveis[5].
Ora, no caso em exame, resulta do probatório, que a Requerente comprovou, em termos razoáveis, as quebras de inventário apuradas em função de circunstâncias concretas que resultam do seu processo produtivo e de comercialização de bens.
2) Do não cumprimento dos requisitos previstos do artigo 38.º do Código do IRC quanto às condições a observar no abate de bens do inventário poderá resultar a verificação da presunção da transmissão de bens estatuída no artigo 86.º do Código do IVA?
Conforme referimos a argumentação da Requerida quanto à aplicação ao caso vertente do artigo 38.º do Código do IRC, não colhe, havendo que considerar o enquadramento contabilístico e fiscal supra enunciado aplicável no abate de bens do inventário.
O relatório de inspeção tributária - que fundamenta o ato tributário cuja anulação é solicitada pela Requerente - começa por identificar o motivo da realização desse ato inspectivo: por “se ter constatado a impossibilidade de aferição concreta do número e natureza dos bens objecto de destruição / inutilização e por não ter sido possível assistir ao abate dos mesmos”.
Todavia, é notório que o ato inspectivo não curou de analisar a efetividade das perdas e respectivo abate. Tendo-se bastado pela constatação que “os requerimentos não foram efectuados com o período mínimo de 15 dias”. Logo, conclui que “ficou impossibilitada a comprovação dos correspondentes abates, bem assim como a efetiva destruição / inutilização dos bens constantes das relações discriminativas dos bens em causa”. Partindo do incumprimento do artigo 38.º do Código do IRC, o relatório de inspeção conclui que “tais ajustamentos de inventário não podem ser consideradas gasto do período, devendo ser liquidado o correspondente IVA, nos termos do artigo 86.º do Código do IVA”.
Neste sentido, e por força do incumprimento do prazo prévio e mínimo de 15 dias, o relatório de inspeção funda tanto a falta de comprovação dos abates como a efetiva inutilização dos bens, no regime do artigo 38.º do Código do IRC a partir do qual, sem mais, faz nascer a presunção de transmissibilidade dos bens.
Ora, como já se referiu o abate de bens do inventário não se rege pelo artigo 38.º do Código do IRC, não existindo qualquer normativo tributário que exija a comunicação prévia dos abates e que essa deva ser num determinado número mínimo de dias.
Por conseguinte, como já se referiu, os SIT alicerçaram as suas conclusões quanto à verificação da presunção de transmissão de bens prevista no artigo 86.º do Código do IVA, num facto genérico e não aplicável à Requerente – o não cumprimento das formalidades previas ao abate previstas no artigo 38.º do Código do IRC, em especial o prazo de 15 dias de aviso prévio em relação à data da realização dos abates periódicos de bens.
Além do referido, sucede que a AT no exercício da sua competência de fiscalização da conformidade da atuação dos contribuintes com a lei, atua no uso de poderes estritamente vinculados, submetida ao princípio da legalidade, cabendo-lhe o ónus de prova da existência de todos os pressupostos do ato de liquidação adicional, designadamente a prova da verificação dos pressupostos que determinaram às correções que suportam a liquidação.
Neste sentido, a AT está onerada com a demonstração da factualidade que a levou a desconsiderar as perdas de inventcontabilizados ement a e plica anventnizativos internos mercializaço valor dos peito aos requisitos de prova sobre a nário contabilizadas pela Requerente em termos de abalar a presunção de veracidade das operações inscritas na contabilidade e nos respectivos documentos de suporte de que aquela goza em homenagem ao princípio da declaração e da veracidade da escrita vigente no nosso direito fiscal – artigo 75.º da Lei Geral Tributária (LGT) - passando, a partir daí, a competir ao contribuinte o ónus de prova de que a escrita é merecedora de credibilidade.
Também por esta razão os artigos 268.º da Constituição da República Portuguesa e 77.º da LGT consagram o dever de fundamentação expressa dos atos praticados pela Administração, designadamente pela Administração Tributária, quando afectem direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.
Ora, embora o ato tributário em apreço se encontre suficientemente fundamentado, no sentido em que se apresenta através de uma exposição sucinta e lógica dos factos e das regras jurídicas em que se funda, permitindo ao seu destinatário fazer, como aliás fez, uma reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela entidade decidente[6], o certo é que a AT embora suspeite da veracidade dos autos de abate preparados pela Requerente, opta por fundamentar as suas dúvidas em critérios puramente formais e em circunstâncias que, por si só, nada revelam, sobre a natureza artificiosa ou meramente injustificada das regularizações de inventário efetuadas pela Requerente.
Com efeito, de acordo com o relatório dos SIT, a AT estribou as conclusões que serviram de fundamento à não aceitação da dedutibilidade fiscal dos custos em sede de IRC e a liquidação adicional de IVA, na análise de um conjunto de elementos e de aspetos que deixam totalmente em aberto a questão de saber se estamos perante uma efetiva situação de quebras de inventário, própria da atividade da Requerente e materializada na destruição dos produtos inutilizados ou não comercializados.
Os argumentos usados pela AT são vagos e equívocos, vejamos:
- Verificação das relações mensais discriminativas das mercadoria a abater, tendo constatado que os produtos, quantidades e valores são similares em cada abate;
- A comunicação de abate ser sempre feita pela esposa de um dos sócios gerentes e as testemunha são sempre dois sócios gerentes, inexistindo certificação por uma pessoa independente dos órgão de gestão da sociedade;
- Falta de evidência de que o prazo de validade dos produtos tivesse terminado e deste modo fosse inevitável a inutilização dos produtos;
- O sujeito passivo só enviou as comunicações de abate com 5 dias de antecedência, sendo tal prazo exíguo para que a AT proceda à verificação presencial dos abates.
Ora, embora tais averiguações possam constituir um ponto de partida, certo é que a AT tem a possibilidade e o dever, no uso dos seus poderes inspetivos, de analisar o comportamento concreto do contribuinte, apurando por exemplo, o destino que é dado aos produtos inutilizados, analisando a adequação dos registos informáticos (cuja existência foi invocada pelas testemunhas da Requerente), que serviram de suporte à regularização de todas as quebras, bem como a correspondência com as quantidades de produto efetivamente inutilizadas e não vendidas. Ora, os SIT nunca colocaram em causa a contabilidade da Requente, presumindo-se a sua veracidade nos termos da LGT.
Independentemente da não observação presencial do abate físico das mercadorias nas instalações da Requerente, foi carreada prova documental interna (faturas mensais relativas ao ano de 2010 dos serviços municipalizados de ...), prova documental externa à contabilidade da Requente (Ofício dos SITARL) e ainda prova testemunhal de que as destruições de mercadorias ocorrem periodicamente, ao Sábado, duas vezes em cada mês, sendo os produtos inutilizados levados em contentores de resíduos próprios para tratamento de resíduos.
Não existem, por conseguinte, motivos razoáveis para considerar que o abate dos produtos identificados pela Requerente nos autos de abate enviados à AT não corresponde à realidade sendo, consequentemente, de afastar a presunção de que tais mercadorias se devem considerar transmitidas para efeitos de IVA.
Resta-nos, finalmente, analisar a questão à luz do disposto no artigo 86.º do Código do IVA.
3) Enquadramento da questão no âmbito da presunção prevista no artigo 86.º do Código do IVA
Nos termos do artigo 86.º do Código do IVA, sob a epígrafe “Presunção de aquisição e de transmissão de bens”, dispõe-se o seguinte:
“Salvo prova em contrário, presumem-se adquiridos os bens que se encontrem em qualquer dos locais em que o sujeito passivo exerce a sua atividade e presumem-se transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que se não encontrem em qualquer desses locais.”
O artigo 86º do Código do IVA estabelece claramente uma presunção legal iuris tantum, ou seja, suscetível de prova em contrário. Aliás, o artigo 73º da LGT afirma claramente que as presunções consignadas em normas de incidência tributária (como é o caso) admitem sempre prova em contrário, em concretização dos princípios constitucionais vigentes no domínio fiscal.
Nos casos de presunção legal ilidível mediante prova em contrário, ocorre a inversão do ónus da prova, ficando aquele que tem a seu favor a presunção legal dispensado de provar o facto a que a presunção legal conduz (artigos 344º, nº 1 e 350º, nº 1 do Código Civil). No caso, dado que a Autoridade Tributária e Aduaneira tinha a seu favor a presunção legal de transmissão dos bens consignada no artigo 86º do Código do IVA, competia à Requerente provar que, apesar dos bens já não estarem na sua posse, não os havia alienado a terceiros.
Segundo a Requerente, foi feita prova cabal da realização do abate de mercadorias registadas como perdas de inventários no valor de € 306.910,38, apoiando-se, para tanto, no seguinte encadeamento de factos principais:
1) A Requerente dedica-se à produção e comercialização de produtos de pastelaria sendo necessário regular e periodicamente proceder a abates, em virtude de um conjunto de fatores: sobras de produto, desperdícios de produção, prazos de validade; defeitos de fabrico, devolução de retalhistas a quem são vendidos à consignação;
2) Os abates são inerentes ao processo produtivo da Requerente, normais e não resultam de desvalorizações excecionais;
3) Os produtos são rapidamente perecíveis e para evitar riscos de contaminação são diariamente colocados em contentores próprios para posterior recolha pelos serviços municipalizados de ...;
4) De acordo com as informações lançadas pelos responsáveis de turno no sistema informático, a Requerente elabora autos de destruição, assinados por duas testemunhas, donde constam as relações dos bens destruídos e inutilizados, e respectivas quantidades;
5) As comunicações de abate são enviadas com a antecedência de 5 dias relativamente à data da destruição e, embora se trate de um prazo diminuto, a Requerente não pode, sob pena de infringir regras de segurança alimentar, manter por mais tempo produtos altamente perecíveis nas suas instalações;
6) A recolha, transporte e abate destes produtos é efectuada com intervenção de entidades terceiras (serviços municipalizados de ...) encontrando-se documentado no processo o serviço de recolha dos contentores durante todo ao ano de 2010, bem como um Ofício dos SITAR de ..., que atesta o procedimento quinzenal de remoção de resíduos nas instalações da Requerente;
7) As recolhas de resíduos para abate são realizadas aos Sábado, tendo a Requente laboração continua.
Face à prova produzida afigura-se inequívoco que a atividade da Requerente gera desperdícios regulares e significativos, podendo representar cerca de 30% da faturação.
Relativamente à alegação da Requerida, de que a Requerente não efetuou a comunicação prévia com a antecedência devida (tendo-o feito com pré aviso de somente 5 dias) e de que os autos de abate são elaborados sempre pelas mesmas testemunhas e jamais foram certificados por entidades independentes à empresa por forma a comprovar as quantidades abatidas e a efetiva destruição de mercadorias, importa notar, conforme já referimos supra, que nenhum destes requisitos é exigido por lei.
Por conseguinte, a jurisprudência e a própria doutrina administrativa têm entendido que se deve admitir, para efeitos de afastamento da presunção, todos os meios de prova ao dispor do contribuinte, tendo a Requerente carreado os elementos pertinentes, incluindo documentais e testemunhais, à comprovação da correlação entre a natureza da sua atividade e a necessidade de realizar abates periódicos e regulares de desperdícios alimentares e material de embalagem/acomodação de produtos. Demonstrou-se ainda que as remoções são efetuadas por entidades externas à Requerente, fazendo uso de contentores de 1100 Litros, sendo cobrado pelo serviço prestado de recolha de resíduos um valor idêntico ao longo de todo o ano de 2010[7].
Neste quadro, não pode deixar de se considerar verificado o mencionado abate e, por conseguinte, afastada a presunção do artigo 86º do Código do IVA por prova em contrário, produzida e adquirida processualmente, concluindo-se que os bens resultantes dos desperdícios de produção e comercialização foram de facto abatidos e não alienados a terceiros.
E, para afastar a presunção legal de transmissão, entendemos não ser exigível a Requerente contratar uma entidade externa certificadora que demonstre e justifique cada quebra de inventário identificada nos autos de abates. Aliás, a Requerente demonstrou que dispõe de uma técnica superior responsável pelo controlo de qualidade e higiene alimentar, funcionária da Requerente, que se encontra diariamente nas instalações (fábrica) controlando todo o processo produtivo (cfr. depoimento da testemunha Inês Raimundo). Acresce que os responsáveis de turno deverão verificar a ocorrência de quebras, quantificar e reportá-las informaticamente, para que os serviços administrativos elaborem as respectivas listas de desperdícios.
Conforme clarificou a AT em sede de um Pedido de Informação Vinculativa a propósito de um tema semelhante ao dos presentes autos[8], não são de exigir autos de destruição de abate ou apólices de seguro (tratando-se de furtos) quando “as quebras resultam do exercício normal da atividade não revestindo natureza extraordinária ou imprevisível” (...) devendo atender-se à existência de (i) sistemas de controlo, (ii) elaboração de listagens para quebras identificadas e não identificadas (iii) preparação de documentos internos de suporte aos registos contabilísticos e (iv) o facto das quebras não se afastarem dos limites razoáveis para o sector de produção.
Por outras palavras, importa criar no julgador a convicção de que os elementos em causa não foram alienados a terceiros, sendo certo que inexistem sinais a corporizar tal hipótese.
Por outro lado, com a prova produzida, a Requerente almejou o objectivo de ilidir a presunção prevista no artigo 86.º do Código do IVA, ao demonstrar as circunstâncias inerentes à sua atividade e um conjunto substancial de elementos de prova que atestam, em termos razoáveis, o volume de quebras de inventário declaradas, durante o ano de 2010, tanto em matérias primas, como produtos acabados, como em material de embalagem (conforme depoimentos das testemunhas C, D e E).
Acresce que nestes casos, é aceite pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, o recurso à prova indireta, ou seja, a “factos indiciantes, dos quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados. A conclusão ou prova não se obtém directamente, mas indirectamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova”.[9]
Por outro lado, como acima se fez notar, a Requerida não conseguiu abalar a presunção de veracidade que assiste aos elementos e valores declarados pelo contribuinte (cfr. artigo 75.º, n.º 1 da LGT), a acrescer ao facto da Requerente ter demonstrado, sem dificuldade, todas as recolhas de desperdícios de produção ao longo do ano de 2010, contando com a intervenção nesse processo de entidades externas não relacionadas (empresa municipal de serviços de recolha e transportes dos resíduos e desperdícios identificados pela Requerente).
Neste contexto, ilidida a referida presunção (como foi), cabia à Requerida fundamentar, em termos concretos, eventuais divergências em matéria de quantificação e/ou valorização dos bens abatidos, e estabelecer os correspondentes pressupostos de facto, por forma a afastar os valores declarados pelo sujeito passivo (ora Requerente), que beneficiam da mencionada presunção de veracidade.
No entanto, a Requerida limitou-se a assinalar surpresa quanto à constância dos abates, estranhando o facto das testemunhas que assinam os autos de destruição serem sempre as mesmas, a impossibilidade de contagem física dos bens, por estes serem indistintamente colocados ou “amontoados” em contentores e, ainda, o facto dos Serviços Municipalizados de ... que deveriam transportar os resíduos não comparecerem no horário identificado na comunicação ao Serviço de Finanças.
Ora, sucede que todas estas circunstâncias são usuais, e diretamente resultantes do tipo de atividade da Requerente. Um simples juízo de experiência permite concluir que os bens colocados em contentores de 1100 Litros se encontram naturalmente amontoados, aguardando a remoção por empresas especializadas no tratamento de resíduos e que tais bens não serão objecto de comercialização.
Parece-nos desrazoável impor ao sujeito passivo um processo de armazenagem de resíduos diferente daquele que dispõe, ou uma etiquetagem dos inúmeros desperdícios, desde logo, pelos custos inerentes de espaço e de logística que esse processo envolveria. Também nos parecesse difícil sujeitar os Serviços Municipalizados ao cumprimento de horários. Estas circunstâncias, conjugadas com os demais sinais dos autos, levam-nos à conclusão de que a Requerida não conseguiu abalar suficientemente a presunção legal de veracidade dos valores dos abates declarados pela Requerente.
A fragilidade dos elementos carreados pela Requerida resulta sobretudo das fragilidades de averiguação dos SIT no decurso do próprio processo inspetivo, que se concentraram na constatação do incumprimento do prazo de 15 dias de aviso prévio em relação ao abate.
Pura e simplesmente, a Requerida considera que não ocorreu qualquer abate pela impossibilidade de identificar e quantificar os bens colocados nos contentores de 1100 Litros e também, porque na hora indicada na comunicação do abate o Camião dos Serviços Municipalizados de ... não se encontrar na sede da empresa. Assim, presume transmitida a totalidade dos bens constantes das listagens de abate apesar de, paradoxalmente, ter notificado os SITARL que confirmam a ocorrência das remoções quinzenais.
Em matéria de quantificação, o principal argumento da Requerida assenta na constância das quantidades de desperdício mensal que totalizam 18,10% do total das existências iniciais acrescidas das compras.
Ora como acima referido, estas alegações apresentam debilidades, são vagas e foram rebatidas de forma convincente pela Requerente.
A que acresce o facto, não menos relevante, de que, caso tal tais alegações fossem procedentes, as mesmas nunca se traduziriam na desconsideração total do abate, como sustenta a Requerida, mas apenas parcial. E neste caso caberia à Requerida determinar os pressupostos quantitativos da tributação, a qual, reitera-se, nunca poderia corresponder à incidência de imposto sobre o valor total dos abates ocorridos.
Ora, em matéria de quantificação a Requerida não cumpriu o ónus que sobre si impendia, relativamente à prova dos respetivos pressupostos de facto.
De relembrar a este respeito que a Requerida não procedeu ao apuramento de quaisquer elementos concretos que permitissem uma quantificação, ainda que aproximada, das hipotéticas divergências entre os autos de abate da Requerente e os abates efetivamente realizados, no ano de 2010, optando por sustentar, sem fundamento, que seria de desconsiderar na íntegra os abates realizados e declarados pela Requerente, numa aplicação da presunção legal (artigo 86º do Código IVA) à totalidade dos bens constantes das listagens enviadas ao Serviço de Finanças.
Assim, apesar de a Requerida coligir alguns factos-índice passíveis de questionar, em parte, o valor das regularizações de inventário apresentadas pela Requerente, certo é que sempre subsistiria o deficit instrutório com a incerteza relativa à quantificação (que nunca poderia ser integral). Com efeito, a AT está subordinada ao princípio do inquisitório e da descoberta da verdade material, devendo realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material (cfr. artigo 58º da LGT).
Deve ainda referir-se que a presunção administrativa do quantum do abate insere-se já no domínio da tributação por métodos indiretos, que o legislador elegeu como um método de quantificação da matéria colectável claramente residual e excepcional (cfr. artigos 83º nº 2, 84º e 85º nº 1 da LGT). E a tributação segundo métodos indiretos sempre implicaria a observância, pela AT, do respectivo normativo especialmente previsto na lei, o que não sucedeu (cfr. artigos 81º nº 1 in fine, 82º nº 3 e nº 4, 87º, 88º e 90º e ss. da LGT).
Por outro lado, diz-nos o artigo 100º nº 1 do CPPT que, sempre que da prova produzida resulte fundada dúvida sobre a quantificação do facto tributário, deve o ato impugnado ser anulado.
Como acima referido, a Requerente logrou explicar os procedimentos internos e externos relacionados com a forma de controlo e documentação das quebras normais de inventário e das suas rotinas de abate, apresentando, finalmente, valores de quebras consideráveis, porém abaixo da média do sector em que atua.
Pelo contrário, a Requerida não apresentou qualquer critério ou metodologia de quantificação do eventual valor aceitável de quebras normais para este sector, tendo ficado clara a remoção quinzenal de desperdícios por parte dos Serviços Municipalizados de ..., que realizam o transporte e destruição de produtos inutilizados pela Requerente durante o seu processo de fabrico e comercialização.
No limite, mesmo que se considerasse estar (somente) perante uma situação de incerteza de quantificação (e não, como sustentamos, de omissão dos pressupostos de facto relativos ao quantum), seria de convocar, como se disse, a aplicação do disposto no artigo 100.º, n.º 1 do CPPT, segundo o qual, “Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado”.
O artigo 100.º, n.º 1 do CPPT mais não é do que a aplicação da regra geral sobre o ónus da prova no procedimento tributário enunciada no artigo 74.º, n.º 1 da LGT (idêntica à prevista no artigo 342.º n.º 1 e nº 2 do Código Civil) e que vigora no contencioso administrativo em geral: "há-de caber, em princípio, à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, quando se mostrem verificados estes pressupostos"[10].
A propósito do ónus da prova e da sua valoração, no contexto tributário, vejam-se vários Acórdãos do STA, no sentido supra exposto[11]. A Requerente, como se disse, logrou provar factualidade impeditiva do direito de tributação da Autoridade Tributária e Aduaneira legalmente presumido, i.e., provou o abate (artigo 342º, nº 2 do Código Civil).
Importa ainda referir que a Requerente atuou ao abrigo de Circulares e Orientações administrativas emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira e, por conseguinte, qualquer comportamento que tenha por base estes pronunciamentos administrativos tem uma mais intensa tutela jurídica, sob pena de lesão grave da tutela da confiança corporizada numa atuação conforme a uma posição emitida pela Administração Tributária[12].
Em conclusão, seja por um princípio de tutela da confiança, seja por falta de preenchimento dos pressupostos de facto (quantitativos) que incumbia à Requerida (como entendemos suceder na situação vertente), seja por falta de certeza (non liquet) quanto à quantificação do facto tributário, deve fazer-se aplicação desta regra sobre o ónus da prova, decidindo a questão contra quem tem o ónus de quantificação nos casos em que a liquidação advém da Autoridade Tributária e Aduaneira e não do contribuinte[13].
À face do exposto, conclui-se nesta matéria assistir razão à Requerente, devendo as liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios ser anuladas por vício de violação de lei e por erro nos pressupostos.
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IV - Decisão
Termos em que, o Tribunal Arbitral Singular decide:
a) Julgar integralmente procedente o pedido de pronúncia arbitral; e
b) Anular os atos tributários de liquidação adicional de IVA e respectivos juros compensatórios.
Fixa-se o Valor do processo em € 36.934,62, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.
O montante das Custas é fixado em €1.836,00 ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem (RCPAT), sendo tal montante integralmente suportado pela Requerida (Autoridade Tributária e Aduaneira), de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.
Notifique.
Lisboa, 15 de Julho de 2015.
A Árbitro
(Filipa Barros)
[1] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.
[2] Este artigo foi entretanto revogado pela Lei n.º 2/2014 de 16 de Janeiro.
[3] Processo Arbitral n.º 701/2014-T de 8 de Maio de 2015.
[4] Acordão do Tribunal Central Administrativo Sul, processo n.º 6540/02 de 2 de Julho de 2002.
[5] Vide neste sentido Acórdão do STA, de 11 de Junho de 1997, processo n.º 012610, 2ª Secção.
[6] Vide neste sentido Acórdão do S.T.A. de 4/3/87, in Ads, 319º-849.
[7] Neste sentido, vide Decisão Arbitral, Processo n.º 111/2013-T de 20 de Fevereiro de 2014.
[8] Processo A509 2009009, de 29 de Junho de 2009.
[9] Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, Coimbra, 1972, p. 154.
[10] Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 2ª. edição, Almedina, 2001, p.269.
[11] Acórdãos STA processos n.º 26.635, de 17.04.2002; n.º 243/03, de 07.05.2003; n.º 1568/03, de 24.03.2004; n.º 810/04, de 27.10.2004, e os Acórdãos do TCA Norte, 1834/04 - Viseu, de 24.01.2008; 1203/09.8BEBRG, de 08.11.2012, e 383/08.4BEBRG, de 28.02.2013.
[12] Caso Emelka, C-181/04 a C-183/04, de 14/09/2006 em que o TJCE aborda o problema dos atos públicos que vinculam o Estado na sua atuação junto dos cidadãos, mesmo que seja discutível a legalidade da decisão.
[13] Jorge Lopes de Sousa, in CPPT, anotado e comentado, Vol II, 6.ª edição, 2011, Áreas Editora, pp. 132 e segs.).