SUMÁRIO
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O conceito de residência habitual deve ser interpretado no contexto em que se insere, ou seja, o art.º 16.º do Código do IRS deve ser lido como um todo. Tanto a al. a) como a al. b) do n.º 1 do art.º 16.º do Código do IRS impõem uma conexão efetiva com o território português.
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Se a qualidade de residente, nos termos da al. a) resulta, automaticamente, de um critério fáctico, meramente numérico, a presença em Portugal, a al. b) exige, pela falta de maior presença no território, um elemento adicional de intenção. O referido artigo impõe, assim, a vontade de estar regularmente presente no território nacional, utilizando, para o efeito, uma determinada habitação.
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A residência habitual é, assim, igualmente um critério fáctico determinado pela permanência regular (habitual) de uma pessoa singular numa determinada habitação e, onde, como tal se presume ter organizada a sua vida.
Decisão Arbitral
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Relatório
É Requerente A..., titular do NIF..., com residência na Rua ..., ..., em Vila do Conde, doravante designado de Requerente ou Sujeito Passivo.
É Requerida a Autoridade Tributaria e Aduaneira, doravante designada de Requerida ou AT.
O Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante abreviadamente designado por RJAT).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66B/2012, de 31 de dezembro, e a Autoridade Tributária foi notificada em 26-03-2024.
A Requerente, não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico, designou como Árbitra, a Dra. Rita Guerra Alves, aceite por esta, nos termos legalmente previstos.
Em 17-05-2024, as partes foram devidamente notificadas dessa designação e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7º do Código Deontológico.
Desta forma, o Tribunal Arbitral Coletivo, foi regularmente constituído em 05-06-2024, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, e automaticamente notificada à Autoridade Tributária e Aduaneira para, querendo, se pronunciar.
No dia 08-07-2024, dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT. As Partes foram também notificadas para apresentarem alegações escritas finais e o Tribunal indicou a data previsível para prolação da decisão arbitral, com advertência à Requerente da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente até essa data (v. ata que se dá por reproduzida e gravação áudio disponível no SGP do CAAD).
A Requerida apresentou as suas alegações em 02-08-2024, reafirmando, no essencial, as posições assumidas nos respetivos articulados. A Requerente optou por não apresentar.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
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Argumentos Das Partes
O ora Requerente deduziu pedido de pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação, em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, n.º 2024..., respeitante ao ano de 2017, da qual resultou um valor a pagar de € 6.491,57 (seis mil, quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e sete cêntimos).
A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, o Requerente alegou, com vista à declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação, o seguinte:
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Uma vez que a pretensão do Requerente quanto ao estatuto de não residente fiscal em território português, à data da respetiva liquidação, não foi atendida, em 15.05.2023 o Requerente apresentou recurso hierárquico.
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Como fundamento do indeferimento do recurso hierárquico, e no que diz respeito à questão da residência fiscal, é mencionado que o Requerente consta como residente em Portugal no ano de 2017.
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No despacho ora em crise pode ler-se que é necessário apresentar o Certificado de Residência Fiscal emitido pelas autoridades fiscais de França para comprovar a sua condição de residente fiscal nesse país.
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Não se verificando, no ano a que os rendimentos respeitam, qualquer dos requisitos de que o artigo 16º do CIRS faz depender a qualificação de Residente das pessoas singulares, não pode o sujeito passivo ser qualificado como residente fiscal em Portugal.
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O Requerente durante o ano de 2017, prestou trabalho, ao abrigo do contrato individual de trabalho, em França.
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E no período que ora importa, ou seja, no decurso do ano de 2017, o Requerente esteve embarcado durante 204 dias (duzentos e quatro dias).
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No ano em crise, o Requerente não auferiu rendimentos em Portugal.
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O Requerente nos anos em causa não exerceu qualquer atividade em Portugal.
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Pelo que, e no que ao ano de 2017 importa, não apresentou declaração de IRS em Portugal, tendo antes cumprido as suas obrigações fiscais em França.
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Sendo o trabalho do requerente prestado no local em que tiver atividade a entidade empregadora e sempre dentro do território de França, aí desempenhando as funções como marítimo, outra conclusão não poderemos retirar senão a de que foi em França que o mesmo, em 2017, permaneceu, necessariamente, mais do que 183 (cento e oitenta e três) dias.
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Alega a Requerente, que não fica preenchida a al. a) do n.º 1 do art.º 16.º do CIRS, que consagra um critério de verificação puramente objetiva: a presença por um determinado número de dias mínimo no território português (mais de 183 (cento e oitenta e três) dias).
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Efetivamente, o Requerente, ao não ter permanecido mais de 183 (cento e oitenta e três) dias em território português, não é considerado residente fiscal em Portugal no ano de 2017, nos termos do disposto no artigo 16.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS.
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Quanto a aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS impõe três requisitos, de cuja verificação cumulativa depende a qualificação como residente. Verifica-se, no entanto, que o Requerente, não preenche o primeiro requisito, ou seja, tendo a sua residência e um contrato de trabalho em França, desde logo, não teve uma permanência em Portugal nos anos em causa.
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Desse modo, atento o não preenchimento de um dos requisitos e sendo eles cumulativos, afasta a necessidade de verificação do cumprimento dos restantes.
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É em França que trabalha, que reside (ainda que em alto mar), que aufere os seus rendimentos e que paga os impostos legalmente exigíveis. Sendo aí que se encontra todo o centro dos seus interessas económicos.
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Quando se desloca a Portugal é, naturalmente, com o intuito de estar com a família e aqui passar fins de semana, férias de verão e de Natal.
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Pelo exposto o Requerente, não cumpre com a qualificação de residente fiscal em Portugal no ano de 2017, nos termos da alínea a) e b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS.
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Termina o Requerente peticionando que o presente pedido de pronúncia arbitral seja julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser: a) declarado ilegal o ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e de juros compensatórios n.º 2024..., respeitante ao ano de 2017, da qual resultou um valor a pagar de € 6.491,57 (seis mil, quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e sete cêntimos); b) condenada a Autoridade Tributária a restituir dos montantes indevidamente penhorados/cobrados, acrescidos de juros indemnizatórios, contados, à taxa legal, sobre esses montantes, desde a data do pagamento indevido até ao momento do efetivo e integral reembolso desses montantes.
A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente resposta, na qual, em síntese abreviada, alegou o seguinte:
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A matéria objeto de análise refere-se à determinação da (não) residência fiscal do ora Requerente em Portugal no ano de 2017 e, consequentemente, a (não) sujeição a tributação dos rendimentos obtidos no estrangeiro (França), nos termos do artigo 15.º do CIRS.
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O Requerente considera que no ano de 2017 foi residente em França, país onde esteve a trabalhar e foi tributado, não podendo ser considerado residente em Portugal por não ter aqui permanecido mais de 183 (cento e oitenta e três) dias e não ter cá auferido quaisquer rendimentos.
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Por consulta ao Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes verifica-se que o ora Requerente não alterou o seu domicílio fiscal para França, tendo mantido a sua residência em Portugal.
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Por ter sido comunicado pelas autoridades fiscais de França através do SITI (Sistema Integrado de Troca de Informações) à administração fiscal portuguesa que foi pago ao ora Requerente, a título de trabalho dependente e pensões (categoria A e H), o montante total de € 45.136,00 (quarenta e cinco mil, cento e trinta e seis euros), foi elaborada a declaração oficiosa/DC que está na base da liquidação contestada.
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Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º da LGT, o domicílio fiscal do sujeito passivo é o local da residência habitual da pessoa singular, sendo ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária, nos termos do n.º 4 do mesmo preceito, sendo, contudo, esta presunção ilidível.
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Ora, o Requerente, apesar de alegar que no ano de 2017 era residente em França, não apresentou o certificado de residência fiscal ao abrigo do artigo 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Reino Unido emitido pelas autoridades competentes.
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O facto de o ora Requerente ter trabalhado em França no ano 2017 não significa por si só que foi residente para efeitos fiscais naquele país.
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Não foram juntos documentos que demonstrem a sua residência no estrangeiro, indicando os elementos juntos pelo próprio ora Requerente sempre a morada em Portugal, conforme recibos de vencimento das entidades empregadoras, e a própria liquidação francesa por si junta.
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Assim, não tendo sido comprovada a sua residência fiscal em França, e tendo sido tributado naquele país como não residente, verifica-se que a liquidação não está ferida de qualquer ilegalidade, uma vez que foi considerado na liquidação o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos da CDT, pelo que deve manter-se na ordem jurídica.
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Sobre o pagamento de juros indemnizatórios, alega a Requerida, que manifesta a legalidade da liquidação em causa, não pontificam motivos que justifiquem o pagamento de juros indemnizatórios.
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Termina a Requerida, alegando que deverá a presente ação ser julgada improcedente, por não provada, e a Requerida absolvida do pedido.
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Termina a Requerida afirmando que a liquidação contestada não se encontra ferida de qualquer ilegalidade, pelo que deverá o presente pedido improceder.
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Do Mérito
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Questões Decidendas
Atenta a posição das partes, adotadas nos argumentos por cada uma apresentados, constituem questões centrais a dirimir – as quais cumpre, pois, apreciar e decidir:
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Ilegalidade da liquidação em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2024..., respeitante ao ano de 2017, da qual resultou um valor a pagar de € 6.491,57 (seis mil, quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e sete cêntimos).
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Direito do Requerente ao reembolso desse montante e a juros indemnizatórios;
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Direito do Requerente a custas de parte.
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Fundamentação De Facto
Consideram-se provados os seguintes factos, assente nos factos e na prova documental e testemunhal constante do processo que não mereceu impugnação:
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O Requerente durante o ano de 2017, prestou trabalho, ao abrigo do contrato individual de trabalho, em França – conforme documentos 5 e 6 do PPA.
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No decurso do ano de 2017, o Requerente esteve embarcado durante 204 dias (duzentos e quatro dias) - conforme doc. 5, 7 a 13 do PPA.
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No ano de 2017 o Requerente não auferiu rendimentos em Portugal. Cf. PA
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O Requerente nos anos de 2017 não exerceu qualquer atividade em Portugal. Cf. PA.
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No ano de 2017, o Requerente não apresentou declaração de IRS em Portugal, tendo antes cumprido as suas obrigações fiscais em França – cfr. Doc 14 do PPA.
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Factos Não Provados
Dos factos com interesse para a decisão da causa, todos objetos de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.
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Fundamentação Da Fixação Da Matéria De Facto
Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7, e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental e o PPA junto aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
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Matéria De Direito
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Delimitação das questões a decidir:
Tendo em consideração a posição das Partes e a matéria de facto dada como assente, as questões jurídicas que importa solucionar, no que respeita à legalidade do ato tributário em apreciação, são: a de saber se o Requerente preenche os requisitos elencados na alínea a) ou b) do artigo 16.º do CIRS, para ser considerado como residente fiscal português no ano de 2017, e a de saber se a indicação ou não alteração pelo Requerente do seu domicílio fiscal, deve ser entendido como a sua residência fiscal à luz do disposto no artigo 19.º da Lei Geral Tributária.
Iniciamos, pela análise do regime fiscal de residência em território português previsto no artigo 16.º do CIRS na redação dada pela Lei n.º 20/2012, de 14/05, aplicável à data dos factos.
Artigo 16.º
Residência
1 - São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:
a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;
b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;
c) (…);
d) (…).
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se como dia de presença em território português qualquer dia, completo ou parcial, que inclua dormida no mesmo.
3 - As pessoas que preencham as condições previstas nas alíneas a) ou b) do n.º 1 tornam-se residentes desde o primeiro dia do período de permanência em território português, salvo quando tenham aí sido residentes em qualquer dia do ano anterior, caso em que se consideram residentes neste território desde o primeiro dia do ano em que se verifique qualquer uma das condições previstas no n.º 1.
É à luz deste normativo que a questão é apreciada, concretamente apurar se o Requerente, preencheu os pressupostos e condições previstos no artigo 16.º do Código do IRS, de forma a ser suscetível de se concluir pela sua residência fiscal em território português no ano de 2017.
Sobre os critérios de residência fiscal há jurisprudência que se seguirá de perto, em particular as decisões proferidas no CAAD, designadamente o Acórdão Arbitral proferido no Processo n.º 332/2016-T e o Acórdão Arbitral proferido no Processo n.º 214/2017-T.
Primeiramente, observemos se o Requerente cumpre com o pressuposto do n.º 1 alínea a) do artigo 16.º, do Código do IRS.
Assim, sobre a alínea a) do artigo 16.º, é pacífico que se cinge à presença física (corpus) num território (in casu o território nacional) para imputar o país de residência fiscal; deste modo, para cumprimento do pressuposto, o Requerente haveria de ter permanecido mais de 183 (cento e oitenta e três) dias em território português, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 (doze) meses com início ou fim no ano em causa, o que no presente caso não se verificou.
Neste sentido conclui-se que o Requerente não preenche o critério previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, para ser considerado como residente fiscal no ano de 2017, uma vez que não permaneceu em Portugal os 183 (cento e oitenta e três) dias legalmente exigidos pelo normativo.
Passemos de seguida à análise da alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, para dizer que este normativo exige uma ligação física menos qualificada, mas impõe uma análise casuística que permita, ainda assim, assegurar que existe uma conexão efetiva com o território. Esta conexão tem-se por verificada através de um elemento subjetivo mediato, a intenção de ser residente (animus), que deve ser analisado de uma perspetiva objetiva, ou seja, através de elementos imediatos que permitam a reconstrução da vontade do indivíduo a partir dos indícios por si revelados.
Repare-se que a existência de critérios de residência puramente artificiais, sem que tenham por base uma conexão efetiva com o território, encontram restrições à sua aplicação ou por via do Direito Internacional Público (Cf. Rui Duarte Morais, Imputação de Lucros de Sociedades Não Residentes Sujeitas a um Regime Fiscal Privilegiado, Porto: Publicações Universidade Católica, 2005, p. 35), ou num momento posterior por via de aplicação dos ADTs (Cf. Klaus Vogel, On Double Taxation Conventions, Third Edition, Deventer: Kluwer Law International, 1997, pp. 232-233).
Prosseguindo a nossa análise, vejamos o entendimento espelhado no Acórdão Arbitral proferido no Processo n.º 214/2017-T, o qual subscrevemos:
(…) caso da alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, exige-se uma ligação física menos qualificada, o que implica uma análise casuística que permita, ainda assim, assegurar que existe uma conexão efetiva com o território, neste caso Português.
Esta conexão tem-se por verificada através de um elemento subjetivo mediato, a intenção de ser residente (animus), que deve ser analisado de uma perspetiva objetiva, ou seja, através de elementos imediatos que permitam a reconstrução da vontade do indivíduo a partir dos indícios por si revelados.
Assim, a alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS serve duas funções essenciais: em primeiro lugar, considerar residente em Portugal um indivíduo que apenas deslocalize a sua residência para o território nacional, no segundo semestre do ano, quando já não é possível cumprir com o critério dos 183 dias; e, em segundo lugar, considerar residentes os indivíduos que, apesar da sua ligação ao território, verificada através de um local onde residem habitualmente, possam intencionalmente contornar a regra da permanência.
Como é referido em termos doutrinais e jurisprudenciais, a alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS impõe três requisitos, de cuja verificação cumulativa depende a qualificação como residente:
i) a permanência em Portugal;
ii) a disposição de uma habitação; e
iii) a verificação de condições que façam supor que a habitação será mantida e ocupada como residência habitual.
Como escreve André Salgado de Matos “a al. b) do n.º 1 do art. 16.º do Código do IRS serve duas funções essenciais: em primeiro lugar, considerar residente em Portugal um indivíduo que apenas deslocalize a sua residência para o território nacional, no segundo semestre do ano, de forma a não ser possível cumprir com o critério dos 183 dias; e, em segundo lugar, considerar residentes os indivíduos que, apesar da sua ligação ao território, verificada através de um local onde residem habitualmente, possam intencionalmente contornar a regra da permanência” (Cf. André Salgado de Matos, Código do Imposto do Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) Anotado, Lisboa: Instituto Superior de Gestão, 1999, pp. 206-207).”
E nas palavras de Alberto Xavier “[a] intenção de manter e ocupar a habitação como residência habitual, não é objecto de prova directa, antes resulta de condições objectivas que a façam supor.”(Cf. Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, 2.ª Edição Actualizada, Coimbra: Almedina, 2007, p. 286).
Retomando os autos e uma vez que a intenção a demonstrar se refere à manutenção e ocupação de uma residência habitual, importa determinar, como ponto prévio, o que se entende por residência habitual para que seja claro o que deve resultar da intenção do indivíduo.
Ora, o conceito de residência habitual deve ser interpretado no contexto em que se insere, ou seja, o art. 16.º deve ser lido como um todo. Tal como referido, tanto a al. a) como a al. b) do n.º 1 do art. 16.º do Código do IRS impõem uma conexão efetiva com o território português.
Se a qualidade de residente, nos termos da al. a) resulta, automaticamente, de um critério fáctico, meramente numérico, a presença em Portugal, a al. b) exige, pela falta de maior presença no território, um elemento adicional de intenção. O referido artigo impõe, assim, a vontade de estar regularmente presente no território nacional, utilizando, para o efeito, uma determinada habitação. A residência habitual é, assim, igualmente um critério fáctico determinado pela permanência regular (habitual) numa determinada habitação e, onde, como tal se presume ter organizada a sua vida.
Como sustentou o Supremo Tribunal Administrativo, “[é] evidente que, sendo a residência habitual o local onde a pessoa normalmente vive e tem o seu centro de vida, não medeiam grandes diferenças entre o «domicílio fiscal» e a «habitação permanente»: há entre as duas figuras uma relação íntima, que se traduz em ambas pressuporem um lugar com o qual certa pessoa está em ligação, o local onde tem a sua existência organizada e que, como tal, lhe serve de base de vida.”(Cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11/23/2011, proferido no processo 0590/11), bem como o Tribunal Central Administrativo Sul, referindo que“[o] conceito de residência habitual (o qual coincide com o conceito de domicílio voluntário), deve buscar-se no direito interno, consubstanciando-se como o local onde uma pessoa singular normalmente vive e de onde se ausenta, em regra, por períodos mais ou menos curtos (cfr.artº.82, do C.Civil).” (Cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 12/11/2012, proferido no processo 05810/12).
Igualmente Alberto Xavier “Para que exista uma residência habitual deverá resultar claro que a habitação mantida em Portugal, pelas suas características, se destina a uma permanência duradoura e não a uma mera passagem de curta duração” (Cf. Alberto Xavier, Direito Tributário…op. cit. 286)”
Retomando os autos, efetivamente, a alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS impõe três requisitos, de cuja verificação cumulativa depende a qualificação como residente: i) a permanência em Portugal; ii) a disposição de uma habitação; e iii) a verificação de condições que façam supor que a habitação será mantida e ocupada como residência habitual;
Verifica-se, no entanto, que o Requerente, não preenche o primeiro requisito, ou seja, tinha a sua residência e um contrato de trabalho em França, logo, não teve uma permanência em Portugal fiscalmente relevante no ano 2017.
O referido artigo impõe, assim, a vontade de estar regularmente presente no território nacional, utilizando, para o efeito, uma determinada habitação. A residência habitual é, assim, igualmente um critério fáctico determinado pela permanência regular (habitual) numa determinada habitação e onde como tal se presume ter organizada a sua vida.
Desse modo, atento o não preenchimento de um dos requisitos e sendo cumulativos, afasta a necessidade de verificação do cumprimento dos restantes. Não deixa de se referir que, no tocante a este segundo elemento de conexão, não se apurou que o Requerente intencionasse a utilização de uma casa em Portugal para residência e, muito menos, que existissem condições que fizessem supor a intenção de que tal habitação seria mantida e ocupada como residência habitual.
Pelo exposto o Requerente, não cumpre com a qualificação de residente fiscal em Portugal no ano de 2017, nos termos da alínea a) e b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS.
Aqui chegados, compete agora a análise da questão, de ter indicado como o seu domicílio fiscal em 2017 Portugal, e não ter procedido a sua devia alteração para a sua morada em França.
Nestes termos, pese embora já se tenha concluído que o Requerente no ano de 2017 não era residente fiscal português, cumpre decidir se a indicação pelo Requerente do seu domicílio fiscal de um imóvel localizado em Portugal, deve ser entendido como sua residência fiscal à luz do artigo 19.º, da Lei Geral Tributária.
Sobre esta questão, os conceitos de domicílio fiscal e de residente fiscal para efeitos de IRS, não são sinónimos.
Com efeito, vejamos o que dispõe o artigo 19.º, da Lei Geral Tributária (doravante “LGT”), que consagra o conceito de domicílio fiscal, para o que aqui releva, o seguinte:
“1 - O domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário:
a) Para as pessoas singulares, o local da residência habitual;
b) Para as pessoas colectivas, o local da sede ou direcção efectiva ou, na falta destas, do seu estabelecimento estável em Portugal.
2 - O domicílio fiscal integra ainda o domicílio fiscal eletrónico, que inclui o serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital, bem como a caixa postal eletrónica, nos termos previstos no serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital e no serviço público de caixa postal eletrónica.
3 - É obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária.
4 - É ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária.
5 - Sempre que se altere o estatuto de residência de um sujeito passivo, este deve comunicar, no prazo de 60 dias, tal alteração à administração tributária.
6 - Os sujeitos passivos residentes no estrangeiro, bem como os que, embora residentes no território nacional, se ausentem deste por período superior a seis meses, bem como as pessoas colectivas e outras entidades legalmente equiparadas que cessem a actividade, devem, para efeitos tributários, designar um representante com residência em território nacional.
7 - Independentemente das sanções aplicáveis, depende da designação de representante nos termos do número anterior o exercício dos direitos dos sujeitos passivos nele referidos perante a administração tributária, incluindo os de reclamação, recurso ou impugnação.
8 - O disposto no número anterior não é aplicável, sendo a designação de representante meramente facultativa, em relação a não residentes de, ou a residentes que se ausentem para, Estados membros da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que esse Estado membro esteja vinculado a cooperação administrativa no domínio da fiscalidade equivalente à estabelecida no âmbito da União Europeia.
(...)
11 - A administração tributária poderá rectificar oficiosamente o domicílio fiscal dos sujeitos passivos se tal decorrer dos elementos ao seu dispor.”
Sobre esta questão já se pronunciou de forma extensa e bastante precisa o Tribunal Arbitral no âmbito do processo n.º 36/2022-T, que entendemos serem aqui aplicáveis:
“13. Como salienta Rui Duarte Morais (Sobre o IRS, Almedina, Coimbra, 2006, pp 17 e 18) “são diferentes as noções de residência e domicílio fiscal, ainda que relativamente aos residentes o local do domicílio fiscal coincida com o da sua residência habitual (art. 19.º, n.º 1, al. a) da Lei Geral Tributária).
Enquanto o conceito de residência integra a hipótese de normas tributárias substantivas, determinantes da existência e da extensão da obrigação de imposto, a questão do domicílio fiscal projecta-se em consequências processuais. [A questão de saber se alguém é ou não residente em Portugal é independente da do domicílio fiscal. Aquele que efectivamente transferiu a sua residência para o estrangeiro não pode mais ser considerado residente em Portugal, mesmo que nos registos da administração fiscal continue a figurar como domiciliado em Portugal (mesmo que por omissão dele, sujeito passivo, em promover a necessária alteração). A nosso ver, o domicílio fiscal não constitui, no plano internacional, qualquer presunção de residência.”]
A este propósito, afigura-se também pertinente considerar o seguinte posicionamento de Pedro Roma (Residência Fiscal Parcial em IRS, Almedina, Coimbra, 2018 pp 120-121): “(…) o conceito de “não residência fiscal” não se encontra expressamente contemplado no ordenamento jurídico-fiscal português.
Tal como analisado por José Calejo Guerra [Cf. José Calejo Guerra – A (não) residência fiscal no Código do IRS e seus requisitos: do conceito legal à distorção administrativa, Cadernos de Justiça Tributária, n.º 6, outubro-dezembro 2014, pp. 16-22], também entendemos que o conceito de não residência fiscal resulta a contrario do próprio Código do IRS, uma vez que todos aqueles que não preencherem um dos critérios de residência fiscal previstos no artigo 16.º do Código do IRS deverão ser considerados não residentes fiscais em Portugal.
Este Autor acrescenta, ainda, que a não residência fiscal é, pois, uma definição legal não escrita que se encontra sob a alçada da reserva relativa de lei da Assembleia da República, que resulta do artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP. Nesta medida, é defendido que a administração tributária não pode introduzir, através da sua atuação (ainda que baseada em orientações administrativas), quaisquer exigências que, de algum modo, dificultem ou impeçam que um qualquer sujeito passivo, que não preencha nenhum critério de residência fiscal em Portugal, seja considerado não residente fiscal.
Na verdade, de acordo com a atual prática administrativa, a administração tributária exige a apresentação de um comprovativo de residência no estrangeiro para proceder à alteração do estatuto de residência fiscal dos sujeitos passivos para não residentes em Portugal, (…). À luz daquele entendimento, que subscrevemos, entendemos que esta prática da administração tributária apenas se poderá reputar de ilegal, por violação do princípio da legalidade tributária, que encontra cobertura legal no artigo 8.º da LGT e cobertura constitucional no já citado artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP.”
Os citados entendimentos doutrinais encontram acolhimento na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, sendo disso exemplo, entre outros, os seguintes arestos:
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Acórdão do TCAS, de 11.11.2021, proferido no processo n.º 2369/09.7BELRS,
assim sumariado (na parte que aqui importa reter):
“(…)
II. Os conceitos de domicílio fiscal (previsto no art. 19.º da LGT) e de residente fiscal para efeitos de IRS não são sinónimos.
III. O dever de comunicação, previsto quer no n.º 1 do art. 43.º do CPPT quer no então art. 19.º, n.º 2, da LGT (atual n.º 3), não se trata de formalidade ad substanciam, pelo que a sua preterição não tem necessária e definitivamente impacto em termos de tributação.
(…)
V. Não obstante o domicílio fiscal do Impugnante, previsto no art.º 19.º da LGT, contemplar uma morada em Lisboa, esta circunstância distingue-se do conceito de residência fiscal para efeitos de IRS e não consubstancia qualquer presunção inilidível de que a residência fiscal é na morada ali constante.”
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Acórdão do TCAS, de 08.07.2021, proferido no processo n.º 803/05.0BESNT,
assim sumariado (na parte que aqui importa reter):
“(…)
III. Saber se alguém é ou não residente em Portugal não está dependente do domicílio fiscal, por este não constituir, no plano internacional, qualquer presunção de residência.
IV. O conceito de residência integra a hipótese de normas tributárias substantivas, determinantes da existência e da extensão da obrigação de imposto, enquanto o domicílio fiscal projecta-se em consequências processuais.”
Bem com a mudança do domicílio fiscal para Portugal não tem, por si só, o alcance de converter o contribuinte em residente para efeitos fiscais em Porgugal, se o mesmo fizer prova em sentido contrário.
E, no caso concreto, como resulta da factualidade assente, o Requerente logrou fazer essa mesma prova, documental, designadamente através dos documentos juntos aos autos.
Por conseguinte do que se vem expondo, dá-se total procedência ao pedido do Requerente, de declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, referente ao ano de 2017.
Assim sendo é de considerar ilegal, por violação de lei, o ato tributário de liquidação em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
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Pedido de reembolso da quantia paga e juros indemnizatórios
Veio ainda o Requerente pedir a condenação da Requerida no reembolso da quantia paga indevidamente, no montante de € 6.491,57 (seis mil, quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescida de juros indemnizatórios.
A procedência do pedido de anulação do ato de liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral tem por consequência vincular a AT nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, a “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui, para além da restituição do indevido, “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Igual consequência decorre do disposto no n.º 1 do artigo 100.º, da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, que estabelece “1 - A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.
O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º, da LGT, que fixa o momento a partir do qual os mesmos são devidos, por erro imputável aos serviços (n.ºs 1 e 2) ou por “outras circunstâncias” (n.º 3), bem como a respetiva taxa (n.º 4) e a consequência do atraso na execução da sentença transitada em julgado (n.º 5).
Nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º, da LGT, aditada pela Lei n.º 9/2019, de 1 de fevereiro, com entrada em vigor no dia imediato ao da sua publicação e com efeitos retroativos a 1 de janeiro de 2011, “São também devidos juros indemnizatórios (…) d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.
Como consequência da anulação do ato de liquidação de IRS, o Requerente tem direito a ser reembolsado da quantia paga, no valor total de € 6.491,57 (seis mil, quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e sete cêntimos), bem como aos respetivos juros.
Face a todo o exposto e às invocadas normas legais, decide-se pela procedência do pedido do Requerente.
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Decisão
Face a todo o exposto, o presente Tribunal Arbitral, decide:
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando-se a ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de IRS n.º 2024... de 2017 objeto do processo, condenando-se a Requerida a restituir à Requerente a quantia paga, no montante de € 6.491,57 (seis mil, quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescida de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea d), da LGT.
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Valor do Processo
Fixa-se o valor do processo em € 6.491,57 (seis mil, quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e sete cêntimos), correspondente ao valor da liquidação, atendendo ao valor económico do processo aferido pelo valor da liquidação de imposto impugnada.
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Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00 seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se
Lisboa, 24 de setembro de 2024
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Rita Guerra Alves