SUMÁRIO:
I – As normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a) do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária. – Vide Acórdão do TC n.º 149/2024, de 27.02 e n.º 405/2023, de 19.06.2024.
II – Em consequência, os atos de liquidação de ASSB relativos aos períodos de tributação de 2021 e de 2022, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida, são ilegais.
Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Alberto Amorim Pereira e Magda Feliciano, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:
DECISÃO ARBITRAL
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RELATÓRIO
A... S.A. (doravante abreviadamente designada por “Requerente”), titular do número de identificação de pessoa coletiva ... e matriculado na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o mesmo número, com sede social na ..., ..., ..., ...-..., Lisboa, veio solicitar a constituição de Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), apresentando PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL o qual terá por objeto a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa com o número de processo ...2023..., proferida pelo Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes (“UGC”) da Autoridade Tributária e Aduaneira– cfr. cópia da decisão final que se junta como Documento n.º 1 e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais – que havia sido instaurado contra os atos de autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário (“ASSB”), referentes aos anos 2021 e 2022, emitidos subsequentemente à entrega das Declarações Modelo 57 (tal como regulamentado pela Portaria n.º 191/2020, de 10 de agosto), que deram origem aos Documentos de liquidação n.ºs... e..., respetivamente (cuja cópia se junta sob a designação de Documentos n.º 2 e 3 e se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais), num montante total de € 134.191,09 (cento e trinta e quatro mil cento e noventa e um euros e nove cêntimos), o qual foi devidamente pago (conforme comprovativos que se juntam sob a designação de Documentos n.ºs 4 e 5 e se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais), devendo o Tribunal funcionar com intervenção de coletivo de três árbitros, atento o disposto na alínea a) do n.º 3 do art.º 5.º do RJAT.
É Requerida a AT.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 26 de março de 2024.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 17 de maio de 2024, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O TAC encontra-se, desde 5 de junho de 2024, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 5 de julho de 2024.
Por despacho de 29 de julho de 2024, o TAC proferiu a seguinte decisão:
“1. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito e a prova produzida é meramente documental.
2. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença.
3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, no prazo de 15 dias a contar desta notificação.
4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.
Notifiquem-se as partes do presente despacho.”
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DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS
II.1 Posição da Requerente
A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:
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O Requerente é uma instituição financeira de crédito portuguesa sujeita à supervisão do Banco de Portugal e que se rege pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”).
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Atenta a sua qualidade de instituição de crédito com sede em Portugal, o Requerente encontra-se sujeito ao pagamento do ASSB, tributo que é (auto)liquidado anualmente através da submissão da Declaração Modelo 57.
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Neste contexto, e muito embora entenda tratar-se de um tributo ilegal, o Requerente submeteu as referidas Declarações Modelo 57, respetivamente:
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referente ao período de tributação de 2021, no dia 14 de dezembro de 2021, dando origem ao Documento de liquidação n.º ... (cfr. Documento n.º 2 reproduzido), tendo o valor aí apurado de € 59.290,02 (cinquenta e nove mil, duzentos e noventa euros e dois cêntimos) que foi pago dentro do prazo previsto para o efeito (cfr. Documento n.º 4 reproduzido);
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referente ao período de tributação de 2022, no dia 20 de junho de 2022, dando origem ao Documento de liquidação n.º ... (cfr. Documento n.º 3 reproduzido), tendo o valor aí apurado de € 74.901,07 (setenta e quatro mil, novecentos e um euro e sete cêntimos) que foi pago dentro do prazo previsto para o efeito (cfr. Documento n.º 5 reproduzido).
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Atento o exposto, por não concordar com os atos de autoliquidação de ASSB pagos, relativos aos exercícios de 2021 e 2022 e, em face da jurisprudência recentemente proferida acerca desta temática, o Requerente vem, nesta sede, solicitar a anulação daqueles atos tributários e, consequentemente, o reembolso do imposto.
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Invoca os seguintes vícios:
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Da inconstitucionalidade do ASSB por violação do princípio da igualdade, na dimensão de proibição do arbítrio;
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Da inconstitucionalidade do ASSB por violação do princípio da igualdade, nas dimensões de proibição da criação de impostos desproporcionais e não genéricos;
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Da inconstitucionalidade do ASSB por violação do princípio da igualdade, na dimensão de obrigatoriedade de criação de impostos que tenham como pressuposto a existência de capacidade contributiva;
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Da violação da Lei de Enquadramento Orçamental enquanto Lei de valor reforçado (princípios da não consignação e da discriminação).
II.2. Posição da Requerida
Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:
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Tendo em consideração os argumentos articulados pela Requerente no ppa seguindo a ordem ali indicada, contesta-se no geral os fundamentos aduzidos contra os atos de autoliquidação impugnados, chamando à colação o informado e decidido no procedimento de reclamação graciosa.
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SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 10º do RJAT.
Não foram suscitadas exceções de que cumpra conhecer.
O processo não enferma de nulidades.
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Fundamentação
IV.1. Matéria de facto
Factos dados como provados
Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:
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O Requerente é uma instituição financeira de crédito portuguesa sujeita à supervisão do Banco de Portugal e que se rege pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”).
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Atenta a sua qualidade de instituição de crédito com sede em Portugal, o Requerente encontra-se sujeito ao pagamento do ASSB, tributo que é (auto)liquidado anualmente através da submissão da Declaração Modelo 57.
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Neste contexto, e muito embora entenda tratar-se de um tributo ilegal, o Requerente submeteu as referidas Declarações Modelo 57, respetivamente:
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referente ao período de tributação de 2021, no dia 14 de dezembro de 2021, dando origem ao Documento de liquidação n.º ... (cfr. Documento n.º 2 reproduzido), tendo o valor aí apurado de € 59.290,02 (cinquenta e nove mil, duzentos e noventa euros e dois cêntimos) que foi pago dentro do prazo previsto para o efeito (cfr. Documento n.º 4 reproduzido);
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referente ao período de tributação de 2022, no dia 20 de junho de 2022, dando origem ao Documento de liquidação n.º ... (cfr. Documento n.º 3 reproduzido), tendo o valor aí apurado de € 74.901,07 (setenta e quatro mil, novecentos e um euro e sete cêntimos) que foi pago dentro do prazo previsto para o efeito (cfr. Documento n.º 5 reproduzido).
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A 4 de dezembro de 2023, o Requerente apresentou reclamação graciosa contra dos actos identificados acima;
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Em 29 de dezembro de 2023 AT indeferiu expressamente a reclamação graciosa apresentada;
Factos dados como não provados
Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.
Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais, bem como nos documentos juntos aos autos, quer pela Requerente (com o pedido), quer pela Requerida (no processo administrativo) e em factos não questionados pelas partes.
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
IV.2. Matéria de Direito
O adicional de solidariedade sobre o setor bancário (ASSB) foi criado pelo artigo 18.º da Lei n.º 27-A/ 2020, de 29 de julho, que altera a Lei do Orçamento do Estado para 2020 (Lei n.º 2/2020, de 31 de março) e cujo regime jurídico consta do Anexo VI a essa Lei.
O ASSB tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores (artigo 1.º, n.º 2) e tendo como sujeitos passivos as instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português, as filiais, em Portugal, de instituições de crédito que não tenham a sua sede principal e efetiva da administração em território português e as sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigo 2.º, n.º 1).
O ASSB tem como âmbito de incidência objetiva o passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos e o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço apurado pelos sujeitos passivos, com as especificações constantes do artigo 3.
O artigo 4.º do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020 refere-se à quantificação da base de incidência, definindo, no seu n.º 1, como passivo o “conjunto dos elementos reconhecidos em balanço que, independentemente da sua forma ou modalidade, representem uma dívida para com terceiros”, com as exceções constantes das diversas alíneas desse número, e como instrumento financeiro derivado o que seja qualificado como tal pelas normas de contabilidade aplicáveis, com exceção dos instrumentos financeiros derivados de cobertura ou cujas posições em risco se compensem mutuamente (artigo 4.º, n.ºs 1, 2 e 3). O n.º 4 desse artigo 4.º esclarece ainda que a base de incidência apurada nos termos do artigo 3.º e dos números anteriores é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte.
Os artigos 5.º, 6.º. 7.º e 8.º referem-se, respetivamente, às taxas aplicáveis à base de incidência e aos procedimentos de liquidação e cobrança, e o artigo 9.º, sob a epígrafe “Consignação da Receita”, declara que a receita do adicional de solidariedade sobre o setor bancário constitui receita geral do Estado, sendo integralmente consignado ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social
Tendo em conta a natureza das questões suscitadas como fundamento do pedido arbitral, interessa ainda ter em consideração a disposição transitória do artigo 21.º, n.º 1, da Lei n.º 27-A/ 2020, que é do seguinte teor:
“Artigo 21.º
Disposição transitória
1 — Em 2020 e 2021, a liquidação e o pagamento do adicional de solidariedade sobre o setor bancário previsto no regime que consta do anexo VI à presente lei efetua-se de acordo com as seguintes regras:
a) A base de incidência apurada nos termos dos artigos 3.º e 4.º do regime é calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020, e nas contas relativas ao segundo semestre de 2020, no caso do adicional de solidariedade devido em 2021, publicadas em cumprimento da obrigação estabelecida no Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2019, de 31 de janeiro, que atualiza o enquadramento normativo do Banco de Portugal sobre os elementos de prestação de contas;
b) A liquidação é efetuada pelo próprio sujeito passivo, através de declaração de modelo oficial aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, que deve ser enviada até ao dia 15 de dezembro de 2020 e 2021, respetivamente;
[…]”.
Resta referir que a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 33/XIV, que originou a Lei n.º 27-A/2020, em consonância com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2020, de 6 de junho de 2020, limita-se a assinalar que “[é] igualmente criado um adicional de solidariedade sobre o setor bancário, cuja receita é adstrita a contribuir para suportar os custos da resposta pública à atual crise, através da sua consignação ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.
Por seu lado, e por estarem em causa liquidações de ASSB relativamente a 2022, e pagas em 2023, refira-se que, pela Lei 99/2021, de 31 de dezembro manteve-se–se em vigor em 2022 o adicional de solidariedade sobre o setor bancário.
IV.2.A. Da qualificação jurídica do tributo
As partes convergem na qualificação deste tributo como imposto. Porém, sendo esta uma questão de direito, não pode o tribunal considerá-la ultrapassada por acordo entre as partes.
Também nós consideramos estar-se, inquestionavelmente – cremos – perante um imposto.
Assumindo como pressuposto a trilogia dos tributos constitucionalmente admitida, temos que o ASSB não é, claramente, uma taxa, porquanto ao seu pagamento não corresponde uma qualquer contraprestação individualizada por parte de um qualquer ente público. O ASSB não é, também, uma contribuição financeira, na medida em que o “grupo” sujeito ao pagamento deste tributo (as instituições de crédito sedeadas ou operando em Portugal) não corresponde a um “grupo” que usufrua de especiais vantagens resultantes da atuação do ente público assim financiado, ou a um “grupo” que surja como especial causador da necessidade da existência de determinado serviço público. Na realidade, sendo a segurança social universal, podemos dizer que aproveita a todos e não a um qualquer “grupo”.
Sendo assim, por exclusão, estaremos necessariamente perante um imposto.
A qualificação legislativa deste tributo como sendo um adicional assume particular relevância no caso concreto. Embora o nomen não vincule o intérprete, porque este imposto foi apelidado pelo legislador como sendo um adicional, haverá natural tendência para entender o ASSB como sendo acessório de outro tributo, tido por principal, (a Contribuição sobre o Sector Bancário), pelo que, materialmente, partilharia a legitimidade constitucional deste.
Com Filipe Vasconcelos Fernandes,”o entendimento e aferição da conformidade constitucional do regime que cria o ASSB pode e deve efetuar-se com a necessária autonomia face à jurisprudência existente e contínua face sobre a CSB, dada a diferença de pressupostos e qualificação jurídica-tributária de cada um dos referidos tributos.
Encontrando-se, por isso totalmente excluída a alusão a um “caso estruturalmente semelhante” – para nos referirmos a uma expressão habitualmente utilizada na jurisprudência do TC – na medida em que a jurisprudência já existente e relativa à CSB se projeta sobre pressupostos e realidades totalmente distintos daqueles que agora relevam ao nível do regime que cria o ASSB”.
Se o legislador com poderes constituintes, em 1997, decidiu prever a existência de três espécies de tributos, foi porque reconheceu serem diferentes. E fez corresponder ao imposto um regime mais exigente ao nível da reserva de lei parlamentar.
Mas resultam também diferentes os princípios, materialmente constitucionais, conformadores de cada uma destas espécies tributárias, no que nos interessa, impostos e contribuições financeiras.
Mais,
O ASSB nem sequer é um tributo acessório da CSB, pois não remete para as normas de incidência desta. O ASSB é um tributo completo, pois a Lei que o criou prevê todos os seus elementos essenciais, nomeadamente a incidência subjetiva e objetiva. O que acontece é como que uma “duplicação” da CSB, o que mostra bem que o uso do termo “adicional” não obedeceu a qualquer razão técnico-legislativa, mas ao propósito político de atribuir ao ASSB um nome suscetível de “camuflar” a sua natureza jurídica.
IV.2.B. Da violação da lei de enquadramento orçamental
Vem a Requerente invocar a violação da Lei de Enquadramento Orçamental (doravante LEO), nomeadamente, a violação do princípio da não consignação de receitas e o princípio da especificação orçamental.
Por um lado, entende a Requerente que, estando perante um imposto, ocorre violação do princípio da não-consignação de receitas, pela alocação da cobrança do ASSB ao FEFSS, o que determina a violação de um princípio fundamental da gestão financeira do Estado e que deve ser respeitado.
Não podemos, contudo, concordar com este argumento. Na verdade, é inequívoco que relativamente ao respaldo legal desta opção legislativa, a mesma decorre da alínea c) do n.º 2 do artigo 16.º da LEO, que configura uma exceção ao princípio da não consignação, formulada nos seguintes termos: “c) As receitas afetas ao financiamento da segurança social e dos seus diferentes sistemas e subsistemas, nos termos legais”.
Aliás, como se pode verificar, consubstancia uma exceção ao princípio da não consignação a afetação de receitas ao financiamento dos sistemas e subsistemas da segurança social.
Ora, é claríssimo que a Requerente não pode olvidar que o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social é um património autónomo que tem por objetivo assegurar a estabilização financeira do sistema contributivo de Segurança Social, constituindo-se como uma reserva.
Ora, o n.º 1 e n.º 5 do artigo 90.º da Lei de Bases da Segurança Social, Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, sob a epigrafe “Formas de financiamento”, dispõe que:
“1 - A proteção garantida no âmbito do sistema de proteção social de cidadania é financiada por transferências do Orçamento do Estado e por consignação de receitas fiscais.
(…)
5 - Podem constituir ainda receitas da ação social as verbas consignadas por lei para esse efeito, nomeadamente as provenientes de receitas de jogos sociais”.
Assim sendo, a segurança social não apresenta unicidade na sua forma de financiamento, recorrendo desde transferências do OE, a consignação de receitas fiscais e a contribuições.
Como resultado do princípio de diversificação das fontes de financiamento, a segurança social apresenta, na própria LBSS, art.º 92, as diversas fontes admissíveis para o seu financiamento e, como tal, constituem fontes de financiamento, as quotizações dos trabalhadores, as contribuições das entidades empregadoras, as transferências do Estado e outras entidades públicas, as receitas fiscais legalmente previstas, os rendimentos de património próprio e os rendimentos do património consignados ao reforço do fundo de estabilização financeira da segurança social, o produto de comparticipação previsto na lei ou regulamentos, o produto de sanções pecuniárias, as transferências de organismos estrangeiros e o produto de eventuais excedentes da execução do OE de cada ano, bem como outras legalmente previstas ou permitidas.
Perante o exposto, assente que o ASSB é consignado, por lei, ao FEFSS, é inequívoco que se enquadra na exceção ao princípio da não consignação de quaisquer receitas à cobertura de determinadas despesas, contemplada na alínea c) do artigo 16.º da LEO.
Por outro lado, alega também a Requerente que o ASSB viola o princípio da especificação orçamental, uma vez que nos mapas orçamentais do Orçamento de Estado para 2020 e no Orçamento Suplementar para 2020 não há qualquer referência específica ao ASSB.
Não se entende, contudo, este argumento, uma vez que o artigo 18.º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho (Orçamento de Estado Suplementar 2020), aprovou o regime do ASSB (Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho), cuja receita é adstrita a contribuir para suportar os custos da resposta pública à atual crise, através da sua consignação ao FEFSS. Assim e como um fundo está exclusivamente consignado ao FEFSS, a Requerente não tem razão, dado que, o ASSB foi aprovado no âmbito do Orçamento Suplementar de 2020 pela Assembleia da República, verificando-se assim que este órgão soberano, concedeu autorização à Administração Tributária para a liquidação e cobrança do ASSB no ano de 2020, pelo que esta argumentação improcede em toda a linha.
IV.2.C. Da violação da Constituição, em especial do princípio da igualdade
Tendo impugnado a autoliquidação do ASSB relativamente ao período de tributação de 2021 e de 2022, a Requerente alega ainda que o artigo 1.º do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020 viola o princípio da igualdade, na sua vertente de proibição do arbítrio, ao impor ao setor financeiro um ónus acrescido no que respeita ao financiamento do Sistema Previdencial da Segurança Social que não tem fundamento substancial válido, e ainda a violação do princípio da capacidade contributiva, na medida em que o imposto incide sobre determinados elementos do passivo dos contribuintes e não tem qualquer correlação com os indicadores possíveis de revelação dessa capacidade, como seja o rendimento, o consumo ou o património.
Para dar resposta a estas questões deve começar por efetuar-se, ainda que em termos sucintos, a caracterização dos princípios constitucionais da igualdade fiscal e da capacidade contributiva.
Conforme refere Casalta Nabais, o princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo «a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério - o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)» (Direito Fiscal, 11ª edição, Coimbra, 2021, págs. 154-155).
Configurando-se o princípio geral da igualdade como uma igualdade material, o princípio da capacidade contributiva – segundo o mesmo autor - enquanto tertium comparationis da igualdade no domínio dos impostos, não carece de um específico e directo preceito constitucional. O seu fundamento constitucional é o princípio da igualdade articulado com os demais princípios e preceitos da respetiva “constituição fiscal” e, em especial, aqueles que decorrem já dos princípios estruturantes do sistema fiscal que constam dos artigos 103.º e 104.º da Constituição (ob. cit., pág. 155).
Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva – dentro da mesma linha de entendimento - «afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação o dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto» (ob. cit., pág. 157).
Também o Tribunal Constitucional tem analisado o princípio da igualdade fiscal sob o prisma da capacidade contributiva, como se pode constatar designadamente no acórdão n.º 142/2004, onde se consigna que «[o] princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação».
O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adotadas pelo legislador fiscal, tem conduzido também à ideia, expressa por exemplo no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará «a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objeto do mesmo».
O Tribunal Constitucional tem vindo, portanto, a afastar-se de um controlo meramente negativo da igualdade tributária, passando a adotar o princípio da capacidade contributiva como critério adequado à repartição dos impostos; mas não deixa de aceitar a proibição do arbítrio como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema.
Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 306/2010 e n.º 695/2014).
Como se deixou exposto, o ASSB tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras e incide sobre instituições de crédito sediadas em território português e filiais ou sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigos 1.º e 2.º).
Tem uma estrutura de incidência objetiva e subjetiva similar ao previsto para a Contribuição sobre o Sector Bancário (artigo 3.º), com a significativa diferença de a receita do adicional de solidariedade sobre o setor bancário constituir receita geral do Estado, consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (artigo 9.º).
Importa fazer notar, num primeiro momento, que, não obstante a similitude de incidência com a Contribuição sobre o Setor Bancário (CSB), o ASSB não pode ser entendido como uma tributação acessória ou adicional do CSB, nem constitui uma contribuição de estabilidade financeira.
A Contribuição sobre o Sector Bancário foi criada pelo artigo 141.º da Lei do Orçamento do Estado para 2011, entretanto alterada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, como uma contribuição extraordinária, que constitui receita do Fundo de Resolução, criado mediante a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 31-A/2012, de 10 de fevereiro, ao Regime das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (artigo 153.º-F, alínea a)) e definido como pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, que funciona junto do Banco de Portugal (artigo 153.º-B). O Fundo tem por objeto prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução adotadas pelo Banco de Portugal e desempenhar todas as demais funções que lhe sejam conferidas pela lei no âmbito da execução de tais medidas (artigo 153.º-C) e nele participam obrigatoriamente, entre outras entidades, as instituições de crédito com sede em Portugal (artigo 153.º-D).
O próprio Relatório do Orçamento de Estado para 2011 explica a génese da Contribuição sobre o Sector Bancário em termos suficientemente elucidativos quanto aos objetivos que se pretendiam atingir, aí se afirmando (pág. 73):
«A Proposta do Orçamento do Estado para 2011 procede ainda à criação de uma contribuição sobre o sector bancário na linha daquelas que foram já́ introduzidas noutros Estados Membros, com o propósito de aproximar a carga fiscal suportada pelo sector financeiro da que onera o resto da economia e de o fazer contribuir de forma mais intensa para o esforço de consolidação das contas públicas e de prevenção de riscos sistémicos, protegendo também, assim, os trabalhadores do sector e os mecanismos de segurança social.
A contribuição incide, assim, sobre as instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português, sobre as filiais de instituições de crédito que não tenham a sua sede principal e efetiva da administração em território português e sobre as sucursais, instaladas em território português, de instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração em Estados terceiros».
Face ao seu regime jurídico, a CSB tem por base uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto dos regulados à respetiva entidade ou agência de regulação. Não se reconduz à taxa stricto sensu, visto que não incide sobre uma prestação concreta e individualizada que a Administração dirija aos respetivos sujeitos passivos, nem se caracteriza como um imposto, pois que não se verifica o requisito de unilateralidade: não tem como finalidade exclusiva a angariação de receita (não se destina a que «as instituições participantes concorram para os gastos da comunidade, em cumprimento de um qualquer dever de solidariedade»), antes se pretendendo que o sector financeiro contribua para a cobertura do risco sistémico que é inerente à sua atividade.
E a sua natureza não é afastada pela circunstância de as receitas provenientes da CSB serem consignadas ao Fundo de Resolução, porquanto o Fundo tem por objeto prestar apoio financeiro à aplicação de medidas pelo Banco de Portugal e visa a prevenção dos riscos sistémicos do sector bancário. Esse mesmo objetivo é assinalado na nota preambular da Portaria nº 121/2011, de 30 de março, onde se refere que os elementos essenciais da CSB são definidos «em termos semelhantes aos de contribuições já introduzidas por outros Estados Membros da União Europeia, com o duplo propósito de reforçar o esforço fiscal feito pelo sector financeiro e de mitigar de modo mais eficaz os riscos sistémicos que lhe estão associados».
Como se concluiu no acórdão do STA de 19 de Junho de 2019 (Processo n.º 02340/13), a motivação legislativa constante dos diplomas que regularam a contribuição para o sector bancário e o Fundo de Resolução legitima a ilação de que a contribuição visou, em primeiro lugar e desde o início, atenuar as consequências resultantes das intervenções públicas no sector financeiro, face à situação de crise financeira então desencadeada no âmbito desse mesmo sector, reconduzindo-se a um instrumento de apoio na prevenção dos inerentes riscos do sistema, não se destinando a colmatar necessidades genéricas de financiamento do Estado.
Trata-se, nestes termos, de um tributo que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários e visando prevenir riscos a este grupo associados, se efetiva na compensação de eventual intervenção pública na resolução de dificuldades financeiras das entidades desse sector, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira (cfr., neste preciso sentido, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 706/2018-T).
Contrariamente, o ASSB é um verdadeiro imposto que constitui receita geral do Estado e se encontra consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, e, embora destinado a fazer face de modo indistinto às necessidades de financiamento da segurança social, se carateriza como um imposto sectorial na medida em que incide exclusivamente sobre o sector financeiro.
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2020, de 6 de junho de 2020, que, na sequência da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, aprovou o Programa de Estabilização Económica e Social, refere-se no ponto 4.3.5 à criação de um adicional de solidariedade sobre o setor bancário, “cuja receita é adstrita a contribuir para suportar os custos da resposta pública à atual crise”. Esse mesmo propósito é mencionado na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 33/XIV, que originou a Lei n.º 27-A/2020, e a que, num momento anterior, já se fez referência.
O artigo 1.º, n.º 2, do Regime do ASSB, já transcrito, refere ainda que o tributo tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores.
No entanto, o próprio Relatório da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), incidente sobre a proposta de alteração da lei orçamental para 2020 (Relatório n.º 13/2020), consigna que “a iniciativa legislativa não tem justificação no contexto COVID-19, antes sendo apresentada pelo Governo para contribuir, de modo permanente, para a diversificação das fontes de financiamento das pensões pagas pelo sistema previdencial da Segurança Social Pública” e acrescenta que, “do ponto de vista técnico, não se entende a necessidade de justificar publicamente a criação do imposto como sendo uma compensação por o sector das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras estar isento de IVA nas transmissões efetuadas”, quando “deveria também dizer-se que as operações deste sector são tributadas por uma miríade de taxas do imposto do selo”.
E, com efeito, dificilmente se compreende a justificação fornecida pelo legislador quando pretende associar a sujeição das instituições de crédito ao ASSB à despesa fiscal decorrente da isenção aplicável a serviços e operações financeiras.
A isenção de IVA relativamente a operações bancárias e financeiras está expressamente prevista na Diretiva 2006/112/CE (artigo 135.º) e artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA limita-se a efetuar a transposição dessa regra para o direito interno. E, por outro lado, o conteúdo das isenções não pode ser alterado pelos Estados Membros, dado que estão em causa conceitos autónomos de direito europeu que têm por objetivo evitar divergências na aplicação do regime do IVA, devendo ainda ser objeto de uma interpretação restritiva, na medida em que constituem derrogações ao princípio geral segundo o qual o imposto sobre o valor acrescentado é cobrado sobre todas as prestações de serviços efetuadas a título oneroso por um sujeito passivo (cfr. acórdãos do TJUE, nos Processos n.ºs C-348/1987 e C-455/05).
Acresce que, como esclarece Clotilde Celorico Palma, “[a]s isenções em sede de IVA assumem uma natureza objetiva, ou seja, para efeitos da sua concessão releva essencialmente a natureza da atividade prosseguida e não a natureza jurídica da entidade que prossegue a atividade”. Além de que as isenções em IVA têm uma lógica diferente das isenções concedidas no âmbito dos impostos sobre o rendimento. Como refere a mesma Autora, “[a]o passo que nestes impostos, a isenção libera o beneficiário do pagamento do imposto, no IVA as situações de isenção clássica traduzem-se na não liquidação do imposto nas operações ativas por parte sujeito passivo beneficiário (o beneficiário paga imposto mas não liquida). Isto é, nas suas operações passivas (aquisições de bens e prestações de serviços) os sujeitos passivos de IVA não beneficiam de isenção” (Introdução sobre o Imposto sobre o Valor Acrescentado, Coimbra, 6.ª edição, págs. 172-174).
Na situação prevista no artigo 135.º da Diretiva IVA, como explica ainda Sérgio Vasques, trata-se de “isenções simples ou incompletas que não conferem direito à dedução do imposto suportado a montante, pelo que o sujeito passivo, não liquidando IVA imposto sobre a operação isenta, não deduz o imposto em que incorra nas aquisições destinadas à sua realização”. E, nesse sentido, “o sujeito passivo passa a ocupar posição idêntica à do consumidor final, suportando na sua esfera o imposto relativo às suas aquisições”, pelo que a isenção não representa um verdadeiro benefício para o sujeito passivo, como sucede com a generalidade das isenções de imposto, na medida em que acaba por suportar o peso do imposto por via das suas aquisições, originando um imposto oculto pela incorporação do IVA incorrido a montante no preço dos bens e serviços prestados a terceiros (O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Coimbra, 2015, págs. 312-313; em idêntico sentido, Angelina Tibúrcio, Código do IVA e RITI Notas e Comentários, Coimbra, 2014, pág. 160).
Por outro lado, como refere o Autor há pouco citado, as isenções de IVA relativas a serviços financeiros são motivadas por razões de ordem técnica que respeitam à dificuldade em apurar o valor acrescentado inerente a essas operações e, em especial, no que se refere à determinação da matéria coletável e do montante do IVA dedutível (ob. cit., págs. 318-319, e ainda o acórdão do TJUE, no Processo n.º C-455/05, considerando 24.)
Num outro plano de análise, importa ainda reter que a isenção de IVA para serviços e operações financeiras tem como contraponto a sujeição das operações financeiras a imposto do selo, nos termos da verba 17 da Tabela Geral do Imposto do Selo, sendo sintomático, quanto ao nível de dependência entre os dois impostos, que o artigo 1.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo exclua do âmbito de incidência objetiva do imposto “as operações sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado e dele não isentas”. Como assinala Saldanha Sanches, “o imposto do selo assume a sua vocação de tributar aquilo que não pode ser tributado de outra forma” e ao contribuinte assiste o direito de ser tributado da forma que melhor se adequa ao normal funcionamento da economia de mercado e ao princípio da tributação segundo a capacidade contributiva do sujeito passivo (Manual de Direito Fiscal, 3ª edição, Coimbra, pág. 435).
Em todo este contexto, não é possível determinar objetivamente o critério de diferenciação que conduziu o legislador a sujeitar as instituições de crédito a um imposto especial sobre o sector bancário, nem é possível discernir qual a sua real fundamentação.
Encontrando-se a medida legislativa descrita como sendo um tributo destinado a compensar a isenção de IVA de que beneficia o setor financeiro, não se compreende que, simultaneamente, sejam excluídas outras categorias de atividades que se encontram igualmente isentas e que poderão revelar idêntica ou superior capacidade contributiva. E não é tido em devida consideração, na aplicação da medida, que as isenções previstas na Diretiva, e transpostas para o direito interno pelo artigo 9.º do Código do IVA, são de carácter obrigatório, e, no que se refere aos serviços e operações financeiras previstos no artigo 135.º da Diretiva, essas isenções são motivadas pelas dificuldades práticas de apuramento do valor acrescentado e de aplicação do imposto, e não por qualquer propósito de favorecimento fiscal. O legislador desconsidera ainda que a isenção simples, que é aplicável ao caso, não confere o direito à dedução do imposto a montante, e não representa, por isso, uma efetiva vantagem para o sujeito passivo, que acaba por suportar a incidência do imposto através das suas aquisições. Além de que não se tem em linha de conta que essa isenção, no direito nacional, já é contrabalançada pelo imposto do selo, que abrange a generalidade das operações financeiras, tal como sucede, em geral, na legislação dos Estados Membros, em que as operações relativamente às quais se afasta a aplicação da diretiva, são sujeitas a impostos especiais (cfr. Sérgio Vasques, O Imposto sobre o Valor Acrescentado, citado, pág. 317).
Em todo este condicionalismo, a criação do ASSB como um imposto especial incidente sobre o sector bancário, como forma de compensar a isenção de IVA, configura-se como uma diferenciação arbitrária na medida em que o critério utilizado não apresenta um mínimo de coerência nem se encontra materialmente justificado.
Adicionalmente, e como ressalta do disposto no artigo 4.º, n.º 1, da LGT, em linha com o artigo 104.º da Constituição, “os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património”, pelo que são esses os indicadores possíveis do critério de repartição dos impostos. Nesse mesmo sentido, Sérgio Vasques considera que, em razão do princípio da capacidade contributiva, “os impostos devem adequar-se à força económica do contribuinte e por isso o seu alcance mais elementar está na exigência de que o imposto incida sobre manifestações de riqueza e que todas as manifestações de riqueza lhe fiquem sujeitas”. E sublinha que, “para que o imposto corresponda à força económica de quem o paga, é forçoso que incida sobre realidades economicamente relevantes, realidades que se podem reconduzir sinteticamente ao rendimento, ao património e ao consumo” (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 295).
Como explicita Filipe de Vasconcelos Fernandes (ob. cit., págs. 107-109), o rendimento corresponde ao produto imputável, regularmente e durante um certo período, a uma fonte durável, designadamente ao trabalho (salários, comissões, etc.), ao património (rendas, juros, etc.) ou a uma combinação integrada de trabalho e património (lucros de uma exploração industrial ou comercial). Por outro lado, o rendimento pode corresponder, além do rendimento consumido, à diferença, num determinado período, entre o património final e inicial do contribuinte, compreendendo o rendimento não consumido ou aforrado, os bens adquiridos a título gratuito ou aleatório e as valorizações do ativo, na conceção de rendimento-acréscimo. Os impostos sobre o consumo tributam o rendimento através da sua manifestação em atos de despesa, ou seja, o rendimento propriamente gasto com a aquisição de bens ou serviços. Podem revestir a forma de impostos gerais (IVA) ou de impostos especiais (IEC), apresentando em comum a circunstância de onerarem a transmissão de bens ou serviço. Os impostos sobre o património incidem sobre o rendimento acumulado que, entretanto, foi transformado em valor patrimonial tributário, quer considerado estaticamente o património em si mesmo (IMI), quer numa perspetiva dinâmica, tributando-se o património apenas no momento da respetiva transmissão (IMT).
No caso do ASSB, como conclui o mesmo Autor, não está em causa qualquer modalidade de tributação do rendimento, mas tão só a sujeição a imposto de uma parte das componentes do passivo. Do mesmo modo que não se trata da oneração de atos de despesa, que pudesse reconduzir-se a um imposto sobre atividades financeiras ou sobre transações financeiras. E, por outro lado, ainda que pudesse dizer-se, de um ponto de vista contabilístico e financeiro, que os elementos do passivo que são objeto de tributação por via do ASSB integram o balanço dos sujeitos passivos, não poderá entender-se que estamos aí perante modalidade de tributação do património.
A ausência de uma cabal correspondência entre o ASSB e um concreto índice de valoração de capacidade contributiva coloca em causa a viabilidade constitucional do imposto, na medida em que impossibilita o estabelecimento de qualquer tipo de relação causal entre o objeto da tributação que é imposto aos sujeitos passivos e um efetivo incremento de capacidade contributiva, sobretudo quando não está em causa uma contrapartida pela prevenção de riscos sistémicos em que as instituições de crédito possam estar envolvidas (como sucedia com a CSB), mas uma exclusiva medida de angariação de receita.
Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 217/15, o princípio da capacidade contributiva assume um valor paramétrico fundamentalmente como condição da tributação, de molde a impedir que determinado imposto atinja uma riqueza ou rendimento que não existe, vedando a exação de uma capacidade de gastar que verdadeiramente não se verifica. Em idênticos termos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 142/2004 consigna que a capacidade contributiva preenche o critério unitário da tributação, entendendo-se esse critério como sendo aquele em que “a incidência e a repartição dos impostos se deverá fazer segundo a capacidade económica ou capacidade de gastar (-) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício)”.
No caso do ASSB, não se denota qualquer relação entre a incidência real do imposto e os fatores que possam revelar uma maior capacidade contributiva, quando é certo, como se deixou dito, que o critério de repartição do imposto, na hipótese, corresponde a uma lógica de solidariedade assente no falso pressuposto de que as instituições de crédito poderão suportar um agravamento da carga fiscal porque se encontram isentas de IVA relativamente aos serviços financeiros que prestam.
Em conclusão:
As normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a) do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária.
Em consequência, os atos de liquidação de ASSB relativos aos períodos de tributação de 2021 e de 2022, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida, são ilegais.
Face à solução a que se chega, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios invocados.
IV.2.D. Quanto aos Juros indemnizatórios
A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos de autoliquidação do ASSB, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
IV.2.E. Quanto à responsabilidade pelas custas arbitrais
De harmonia com o disposto no artigo 22º, nº 4, do RJAT, “da decisão arbitral proferida pelo tribunal arbitral consta a fixação do montante e a repartição pelas partes das custas directamente resultantes do processo arbitral” sendo que, nos termos do disposto no artigo 527º, nº 1 do CPC (ex vi 29º, nº 1, alínea e) do RJAT), deve ser estabelecido que será condenada em custas a Parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito e, nos termos do nº 2 do referido artigo concretiza-se a expressão “houver dado causa”, segundo o princípio do decaimento, entendendo que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em análise, tendo em consideração o acima exposto, o princípio da proporcionalidade impõe que seja atribuída a responsabilidade integral por custas à Requerida, de acordo com o disposto no artigo 12º, nº 2 e 22º, nº 4 do RJAT e artigo 4º, nº 5 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
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DECISÃO
Em face de tudo o exposto, decide este Tribunal Arbitral Coletivo:
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Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, com as legais consequências;
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Condenar a Requerida nas custas do processo.
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Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 134.191,09, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
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Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 3.060,00, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 12 de agosto de 2024
Os Árbitros,
Guilherme W. d’Oliveira Martins
(Árbitro Presidente e Relator)
Alberto Amorim Pereira
(Árbitro Adjunto)
Magda Feliciano
(Árbitro Adjunto)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.