Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 103/2024-T
Data da decisão: 2024-09-30   Outros 
Valor do pedido: € 54.745,79
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR). Competência do Tribunal e legitimidade ativa do contribuinte de facto. Facto tributário e prova do efetivo pagamento do imposto.
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Sumário

A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, tem a natureza de imposto e os inerentes atos tributários de liquidação são suscetíveis de apreciação em processo arbitral tributário.

A liquidações efetuadas no âmbito dessa Lei sofrem do vício de ilegalidade abstrata, atenta a respetiva desconformidade com a Diretiva 2008/118/CE do Conselho de 16 de dezembro de 2008 (Despacho do TJUE de 7 de fevereiro de 2022, Processo C-460-21).

O ónus da prova da efetiva repercussão económica e do pagamento da CSR pelos adquirentes de combustíveis é um facto positivo, não sendo prova suficiente a justificação da ocorrência da repercussão da CRT mediante juízos presuntivos ou declaração genérica, sem efetuar a demonstração objetiva dos factos através de elementos de prova, objetivos e rigorosos, que identifiquem a efetiva repercussão e o pagamento desse imposto.

 

Decisão arbitral

O árbitro Vítor Miguel Braz, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para o presente Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:

I - Relatório

“A..., S.A.”, pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., Rua..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, vem apresentar pedido de pronuncia e constituição de Tribunal arbitral, em que é requerida a “Autoridade Tributária e Aduaneira” (AT), (doravante designada por “Requerida” ou “AT”), ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, (RJAT), com as alterações subsequentes, em conjugação com os artigos 1.º e 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

Esse pedido é apresentado na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de Revisão Oficiosa, apresentado em 29.06.2023, junto da Alfândega do Freixieiro, relativo às liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) no período compreendido entre junho de 2019 a dezembro de 2021, praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) com base em alegadas Declarações de Introdução no Consumo (“DIC”) submetidas, alegadamente, pela empresa “B... S.A.” (“B...”) pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º..., ...-... Vila Nova de Gaia e, bem assim, relativa aos alegados e consequentes atos de repercussão da referida CSR consubstanciados nas faturas referentes ao combustível rodoviário, adquiridos, no referido período temporal, pela Requerente àquela empresa.

Subsequentemente, a Requerente pede:

  • a declaração de ilegalidade e anulação das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas DICs, alegadamente, submetidas pela supra identificada fornecedora de combustível “B...”; e
  • o reembolso de todas as quantias que alegam ter suportado a título de CSR repercutido naquele período, que computa no montante global de € 54.745,79, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.

No âmbito do processo foram praticados os principais atos processuais seguintes:

Em 2024-01-25, foi apresentado o referido pedido arbitral.

Em 2024-01-23, a Requerida vem solicitar a identificação dos atos de liquidação cuja legalidade a Requerente pretende ver sindicada, entendendo-se que o termo inicial do prazo para o exercício da faculdade prevista no artigo 13º do RJAT só ocorre após a notificação, à AT, da identificação, em concreto, do(s) ato(s) de liquidação cuja ilegalidade é suscitada.

Em 2024-02-15, é apresentado requerimento da Requerente sobre a posição apresentada pela Requerida. Na mesma data as partes são notificadas do despacho do Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa, com o seguinte teor: “Com referência ao Processo em epígrafe e na sequência da comunicação de V. Exa. envia-se a mesma ao Tribunal Arbitral a constituir, por ser esse o órgão competente para a sua apreciação.”.

Em 2024-04-03, por despacho do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, foi constituído o Tribunal arbitral singular, em conformidade com o preceituado no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação em vigor (RJAT). Na mesma data, a Requerida foi notificada do Despacho arbitral previsto no artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT.

Em 2024-05-02, em cumprimento do referido despacho, a Requerida apresenta resposta em que suscita diversas exceções.

Em 2024-05-06, a Requerente é notificada do despacho proferido ao abrigo do art.º 18.º do RJAT e para se pronunciar, querendo, sobre as exceções apresentadas pela Requerida.

Em 2024-09-05, a Requerente apresenta requerimento informativo.

II - Saneamento

O Tribunal Arbitral singular encontra-se regularmente constituído.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária.

O processo não padece de vícios que o invalidem e não existem incidentes que importe resolver.

O pedido, as exceções e os argumentos apresentados na resposta pela Requerida são apreciadas pelo Tribunal mais adiante.

III – Da posição das partes

  1.  Da Requerente

A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, bem como a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) com base em alegadas DICs submetidas pela referida fornecedora de combustível “B...” e, bem assim, dos consequentes atos de repercussão da CSR que entende estarem consubstanciados e suportados, essencialmente, nas faturas referentes ao combustível rodoviário adquirido.

Segundo a Requerente, a referida fornecedora de combustível repercutiu a CSR nos fornecimentos de combustível, o que pretende demonstrar, ainda, através de “declaração” emitida em termos genéricos pela “B...” – cf. documento 3.

No período compreendido entre junho de 2019 a dezembro de 2021, a Requerente alega ter adquirido combustíveis (gasolina e gasóleo) no montante de € 506.754,08 e por força de tais aquisições, ter suportado a título de CSR, a quantia global de  € 54.745,79 – apresentando um quadro com a relação das faturas e o cálculo dos valores de CSR relativos ao combustível adquirido à empresa “B... S.A.” pessoa coletiva n.º ... – Cf. Documento 4.

No essencial, a Requerente suporta as aquisições e o pagamento da CSR mediante um conjunto de faturas emitidas por “C..., S.A.” pessoa coletiva n.º ... (agora designada de “B...”) – Cf. Documento 5.

Alega que pagou os referidos montantes relativos à CSR e que oportunamente apresentou pedido de Revisão Oficiosa, suscitando a revisão dos atos tributários de CSR e, consequentemente, dos atos de repercussão daquele imposto na sua esfera, ao abrigo do artigo 78.º da LGT.

Que a CSR não observa a Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008 (doravante, “Diretiva 2008/118/CE”), e subsequentemente, os referidos atos tributários padecem de ilegalidade, pelo que tem o direito a ser ressarcida dos montantes de imposto que pagou, enquanto consumidora final, na aquisição desses combustíveis.

Que o TJUE já se pronunciou, expressa e especificamente, sobre esta matéria na sequência do pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia («TFUE»), pelo Tribunal constituído no âmbito do processo arbitral n.º 564/2020-T que correu termos no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), bem como invoca decisões arbitrais nesse sentido.

Acrescenta, ainda, que existindo a obrigação de desaplicação das referidas normas internas por desconformidade com o direito da União Europeia, verifica‐se, consequentemente, erro imputável aos serviços para efeitos do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.

Que para além do reembolso do imposto indevidamente liquidado, requer que, sendo julgado procedente o presente pedido, lhe sejam pagos, nos termos dos artigos 43.º e 100.º, ambos da LGT, os respetivos juros indemnizatórios por pagamento indevido da prestação tributária, a contar da data do pagamento indevido, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT.

Em suma, a Requerente reclama o imposto (CSR) indevidamente liquidado e por si pago no montante total de € 54.745,79, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.

 

  1. Da Requerida

2.1- Inicialmente apresenta requerimento a solicitar a identificação dos atos de liquidação de CSR e, subsequentemente, na resposta ao pedido, a Requerida vem apresentar denso e extenso articulado, suscitando, preliminarmente, as exceções seguintes:

a)- A incompetência do Tribunal arbitral

A Requerida invoca que nos termos do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, confrontado com o disposto no artigo 2.º do RJAT, apenas serão arbitráveis pretensões relativas a impostos cuja administração esteja cometida à AT.

Que se tratando a CSR de uma contribuição e não de um imposto, as matérias sobre a CSR encontram-se, assim, excluídas da arbitragem tributária, por ausência de enquadramento legal.

Que o artigo 4.º da LGT onde o legislador definiu, no seu n.º 1, quais os tributos enquadrados na noção de “imposto”, atribuindo, no n.º 3 do mesmo preceito, essa qualidade a determinadas contribuições especiais, no qual, contudo, não se inclui a CSR.

Que, em suma, a CSR encontra-se excluída da arbitragem tributária por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição, não se encontra verificada a arbitrabilidade do thema decidendum.

A Requerida acrescenta que se pretende a apreciação da legalidade do regime jurídico da CSR, pedido de declaração de ilegalidade dos atos de repercussão e liquidação de CSR, não obstante o fundamento da sua desconformidade face ao direito europeu, a Requerente vem questionar todo o regime jurídico desta contribuição e que a instância arbitral constitui um contencioso de mera anulação.

Alega, ainda, que se fosse considerada a competência do tribunal arbitral para a apreciação da ilegalidade dos atos de liquidação de ISP/CSR, nunca poderia o tribunal arbitral pronunciar-se sobre atos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, que não são atos tributários e que, para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto.

Conclui, a Requerida, que: “Estamos perante uma exceção dilatória nos termos do vertido no n.º 1 do artigo 576.º e alínea a) do artigo 577.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ao presente processo por via da al. e), n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa. “

b)- A ilegitimidade processual

A Requerida invoca que apenas os sujeitos passivos (SP) que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago (cfr. n.º 2 do artigo 15.º do CIEC).

Que aos SP são emitidas as respetivas liquidações de imposto, apenas estes podendo identificar tais atos de liquidação e solicitar, em caso de erro, a sua revisão, com vista ao reembolso dos montantes cobrados (artigos 15.º e 16.º do CIEC).

Que não sendo a Requerente sujeito passivo nos termos e para o efeito do disposto no artigo 4.º do CIEC, não têm legitimidade para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral, pois não integram a relação tributária relativa à liquidação originada pela DIC.

Alega, ainda, que a Requerente carece de legitimidade por, ao contrário do que alega, estar fora do âmbito de aplicação da al. a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, preceito que prevê que os repercutidos legais embora são sendo sujeitos passivos, têm legitimidade para reclamar, recorrer, impugnar e formular pedido arbitral.

Conclui, que a Requerida que: “(…) carece a Requerente de legitimidade processual, o que consubstancia uma exceção dilatória nos termos do vertido nos artigos 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, alínea e), e 578.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, devendo, consequentemente, a Requerida ser absolvida da instância. Ou, caso assim se não entenda, Carece a Requerente de legitimidade substantiva, o que consubstancia uma exceção perentória nos termos e para o efeito do disposto nos artigos 576.º n.º 1 e n.º 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT, devendo a Requerida ser absolvida do pedido.”

c)- A ineptidão da petição inicial

A requerida alega que o pedido arbitral não respeita os pressupostos legais de aceitação do requerimento/petição inicial, por violação da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, requisito essencial à aceitação do pedido, dispondo expressamente a alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, que do pedido de constituição de tribunal arbitral deve constar a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral.

Que a Requerente formula um pedido de anulação de liquidações que não identifica, mediante a mera impugnação de alegadas repercussões, sem sequer identificar o nexo entre estas e aquelas, assente na ideia errada de que vigora para a CSR um regime de repercussão legal e de que, a referida repercussão (que como já se viu é meramente económica) possa ser presumida.

Que se verifica a exceção de ineptidão da petição inicial, na medida em que o pedido arbitral não identifica qualquer ato tributário, violando o requisito da al. b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, o que determina a nulidade de todo o processo, e, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, dá lugar à absolvição da instância, cf. n.º 1 do artigo 186.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 576.º, al. b) do artigo 577.º e al. b) n.º 1 do artigo 278.º, todos do CPC, aplicáveis ex vi da alínea e), do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT.

Acresce, a Requerida, que o pedido é inepto em razão da “ininteligibilidade do pedido e de contradição entre este e a causa de pedir”.

Alega ainda que a “Requerente assumiu não ter comprovado a liquidação, mas alega ter a condição de mera repercutida, invocando também que, dada a existência de uma “repercussão legal” e de uma relação “causal” entre a liquidação e a repercussão, apresentando, nessa sede, apenas faturas que documentavam as transações, instando a AT a fazer prova das respetivas liquidações.”

Conclui, a Requerida, que “Termos em que, ainda que a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial seja de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 196.º do CPC (aplicável ex vi da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT), invoca-se a mesma na presente sede por uma dupla razão: a não-identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral, o que compromete irremediavelmente, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º, a finalidade da petição inicial, e a contradição entre o pedido e a causa de pedir, levando à nulidade de todo o processo nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 186.º e da alínea b) do artigo 577.º, ambos do CPC.”.

d)- A caducidade do direito de ação

A Requerida alega, em suma, que a falta de identificação dos atos de liquidação em discussão impede a aferição da tempestividade dos pedidos de revisão oficiosa das liquidações formulados pela Requerente.

Que estando a Requerida vinculada ao princípio da legalidade e tendo efetuado as liquidações em estrita observância dos normativos legais em vigor à data dos factos, não existe qualquer erro imputável aos serviços.

Acresce que “(…) tendo em conta que a Requerente pretende sindicar as aquisições efetuadas no período compreendido entre junho de 2019 e dezembro de 2021, e atento o prazo para apresentação de reclamação graciosa, de 120 (cento e vinte) dias a partir do termo do prazo do pagamento do ISP/CSR, previsto na 1ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, facilmente se depreende que, a 27.07.2023, este se encontrava largamente ultrapassado.”.

Concluir que a situação consubstancia, ainda, “(…)uma exceção dilatória por assim ser qualificada especialmente nos termos e para o efeito do disposto na al. k) do n.º 4 e n.ºs 1 e 2 do artigo 89.º do CPTA (…).”.

2.2- Por impugnação, alega, em síntese, o seguinte:

Que não aceita e impugna o vertido nos artigos 20.º, 21.º, 44.º a 47.º, 54.º, 81.º e 82.º do pedido arbitral, colocando em causa e não considera provada a alegada repercussão da CSR, devendo funcionar plenamente as regras do ónus da prova.

Que de acordo com o artigo 344.º do Código Civil (inversão do ónus da prova), as regras do ónus da prova (previstas nos artigos 342.º e 343.º) só se invertem quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine ou quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, situações que não se verificam no caso em concreto.

A Requerente impugna para todos os efeitos legais a eficácia e valor probatório dos documentos juntos com o pedido - v.g.: docs 3, 4 e 5 juntos com o pedido.

A Requerida alega que “(…) não logra a Requerente fazer prova do que alega, designadamente sobre o alegado facto de ter adquirido e pago combustível e, consequentemente, ter suportado integralmente o encargo do pagamento da CSR que a fornecedora de combustível, alegadamente, repercutiu nas respetivas faturas.”.

Refere, ainda, a Requerida: “E, em momento algum identifica a Requerente quaisquer liquidações de ISP/CSR praticadas pela administração tributária e aduaneira com base em Declarações de Introdução no Consumo (DIC), que alegadamente possam ter sido processadas/submetidas pelo declarante na qualidade de sujeito passivo, que teria efetuado introduções no consumo através daquelas declarações.”

Mais adianta a Requerida: “O que, também, não seria possível já que, com referência à fornecedora indicada pela Requerente, a B..., S.A., designada anteriormente como C..., S.A., não tinha (como não tem a B..., S.A.) autorização, no âmbito dos IEC, que lhe permitisse processar Declarações de Introdução no Consumo relativas a ISP/CSR e, consequentemente, pagar o ISP/CSR ao Estado, pelo que, não tendo estatuto fiscal, agiu como mero intermediário no circuito de comercialização.“

Objetiva, a Requerida, que: “Efetivamente, consultada a aplicação Gestão de Informação de Suporte (GIS), que permite saber quais os operadores que detêm estatuto fiscal nos termos do CIEC, constata-se que aquela empresa, fornecedora da Requerente, não é titular de qualquer estatuto fiscal em sede de ISP, não podendo, consequentemente, ter sido o sujeito passivo das alegadas liquidações efetuadas de junho de 2019 a dezembro de 2021, nem, consequentemente, ter efetuado qualquer pagamento da CSR ao Estado.”.

 

Conclui a AT: “Assim, em conformidade com o demonstrado, considera-se que nenhum dos elementos de prova apresentados, sustentam qualquer alegado facto invocado no pedido arbitral,  nomeadamente que o valor pago pelo combustível, que a Requerente adquiriu, tem incluída a totalidade (ou sequer, parte) da CSR paga pelo sujeito passivo de ISP/CSR (que se desconhece), nem constitui prova bastante quanto aos valores alegadamente pagos/suportados a título de CSR, o que deve ser devidamente valorado em termos de prova, sendo certo que impendia sobre a Requerente o ónus de tal prova.”.

A Requerida adianta, ainda, que em momento algum o TJUE considera ilegal a CSR. Não existindo qualquer decisão judicial nacional transitada em julgado que declare a CSR ilegal. Não estando o ordenamento jurídico português em contradição ou antinomia com o Direito da União Europeia. Inexistindo uma desconformidade do regime da CSR com o previsto na Diretiva Europeia acima referida, porquanto inexiste qualquer decisão judicial transitada em julgado que assim o declare.

Que agiu em conformidade com a legislação nacional e europeia em vigor, não se verificando no caso em apreço qualquer tipo de erro imputável aos serviços.

Quanto a juros indemnizatórios, no essencial, a Requerida alega que no caso concreto o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 29-06-2023, em tese, só haveria lugar, em sintonia com a jurisprudência citada, ao pagamento de juros indemnizatórios um ano após a apresentação daquele pedido, face ao estabelecido na alínea c), do n.º 3, do artigo 43.º da LGT.

V – Matéria de facto

O Tribunal Arbitral, com relevo para a decisão, atento o alegado pelas partes e a prova junta (docs 1 a 5 da Petição Inicial (PI) e Proc. Administrativo), considera provado o seguinte:

  • A Requerente no período compreendido entre junho de 2019 a dezembro de 2021, adquiriu combustíveis (gasolina e gasóleo) no montante global de € 506.754,08 à empresa “C... SA”, agora “B... S.A.”, pessoa coletiva n.º ... .
  • em 29.06.2023 a Requerida apresentou pedido de Revisão Oficiosa junto da Alfândega do Freixieiro, relativo às liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) no período compreendido entre junho de 2019 a dezembro de 2021, praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) com base em alegadas Declarações de Introdução no Consumo (“DIC”), eventualmente submetidas pela referida empresa “B... S.A.”, reclamando a anulação dessas liquidações e a restituição de imposto pago a título de CSR, no montante de € 54.745,79.
  • Verificou-se o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, a qual, em tempo, apresentou o presente pedido arbitral.

O Tribunal Arbitral, em face das alegações e dos elementos de prova juntos, não considera provado:

  • A qualidade de SP de ISP/CSR da empresa ““B... S.A.” e a presentação por essa empresa de Declarações de Introdução no Consumo; e
  • A repercussão da CSR no preço final dos combustíveis adquiridos pela Requerente, entre junho de 2019 e dezembro de 2021, bem como o pagamento do imposto no montante global de € 54.745,79.

1. Motivação da decisão da matéria de facto

O Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada e com relevância para a decisão – Cf. n.º 2, do art.º 123.º do CPPT e n.º 3 do art.º 607.º do CPC, aplicável, ex vi, al. a) e e) do n.º 1, do art.º 29.º do RJAT.

A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto dada como provada, para além do reconhecimento de factos não controvertidos pelas partes, resultou da análise crítica dos documentos juntos aos autos com o pedido de pronúncia arbitral, da resposta da Requerida e dos demais requerimentos e documentos juntos e constantes do processo, como indicado em relação a cada facto julgado provado.

Quanto aos factos dados como não provados, trata-se de matéria que foi alegada pela Requerente e contestada pela Requerida, em que aquela pretende provar a repercussão e o pagamento da CSR, através das faturas emitidas pela empresa fornecedora (doc. 5) que documentam aquisições de combustíveis entre junho de 2019 e dezembro de 2021, mediante a presunção da sua repercussão no preço e, ainda, mediante a junção de “declaração” emitida, em termos genéricos, pela fornecedora de combustíveis afirmando a repercussão na Requerente da CSR que suportou a montante (doc. 5).

Acresce que não é demonstrada pela Requerente, nem a qualidade de SP de ISP/CSR da empresa “B...”, nem a subsequente apresentação de DICs como alegado no pedido de pronúncia arbitral.

Para fazer a prova da repercussão e pagamento, a Requerente limita-se a juntar ao pedido arbitral aqueles suportes documentais, os quais não evidenciam de forma clara e objetiva a repercussão da CSR no preço de venda, nada permitindo concluir se ouve lugar a repercussão do imposto no preço dos combustíveis, nem qual foi o montante efetivamente repercutido e pago.

Acresce que o documento n.º 4 junto ao pedido arbitral constituiu um documento ad hoc, correspondendo a um quadro resumo do cálculo do valor da CRT relativamente às quantidades de combustível adquiridos, o qual, sendo passível de livre apreciação pelo tribunal, não tem suficiente valor probatório formal e material quanto à efetiva repercussão do imposto relativamente a cada uma das aquisições realizadas.

A repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis constitui uma repercussão económica ou de facto, não uma repercussão legal que, inclusive, tenha de integrar o conteúdo dos documentos de quitação, como acontece no caso de transmissões sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado (IVA), como confirma o próprio conteúdo das faturas de suporte às operações/aquisições em causa.

As faturas não corporizam atos de repercussão de CSR, apenas titulam operações de compra e venda de combustíveis, não existe um ato tributário (de repercussão) autónomo do(s) ato(s) de liquidação de ISP/CSR, este necessariamente documentado pelas respetivas DICs, maxime, tratando-se de transações comerciais realizadas por intermediários da cadeia de revenda de combustíveis e, não atos comerciais praticados pelos SP do imposto, diretamente, com os seus diretos clientes e/ou com os consumidores finais.

A repercussão, económica ou de facto, quando se verifica, consiste na transferência do imposto que legalmente incide sobre um SP para um terceiro, este alheio à relação jurídica tributária, sendo o repercutido um "contribuinte de facto", por contraposição ao SP "contribuinte de direito", aquele a quem é juridicamente exigível o pagamento da CSR.

Acresce que face ao pedido e prova apresentada, a qualidade de SP não foi realizada pela Requerente, antes é diretamente afastada na “declaração” emitida pela “B...”, bem como foi refutada pela Requerida, enquanto detentora da respetiva informação cadastral.

Termos em que se releva, oportuno, fazer a distinção entre a repercussão obrigatória ou legal, a qual encontra consagração, como referido, em sede de IVA, por contraposição à repercussão voluntária (económica/de facto) como ocorre no domínio da CSR, sendo que esta última pode, ou não, verificar-se consoante a conformação da relação comercial entre as partes, pelo que não se pode presumir a transferência, maxime integral, da carga tributária de CSR no contexto de uma relação comercial entre empresas privadas, maxime, no âmbito de operações de revenda de combustível.

Assim, as faturas emitidas pela empresa fornecedora e a “declaração” genérica juntas aos autos não contêm os elementos objetivos indispensáveis à exata comprovação da efetiva repercussão e pagamento da CSR no período em causa, por forma, quer à respetiva confirmação e conexão com os atos tributários, maxime, que a CSR foi repercutida e que a Requerente pagou efetivamente o imposto no preço de aquisição dos combustíveis e no exato valor de CSR liquidada e entregue ao Estado pelo SP do imposto (desconhecido), face às correspondentes quantidades fornecidas e adquiridas pela Requerente.

Acresce que a Requerente não faz acompanhar a “declaração” genérica emitida pelo alegado fornecedor de combustível com demais elementos de prova dirigidos a precisar e conformar o teor dessa declaração e a efetiva repercussão de CSR no âmbito das operações/aquisições de combustíveis que realizou, designadamente a demostração do tratamento contabilístico e fiscal das faturas por parte dessa empresa revendedora. A qual, igualmente, não demonstra uma eventual repercussão do imposto por parte do seu fornecedor ou se esse é o SP do imposto.

No caso concreto, não fica demonstrada, quer a repercussão e montante da CSR no revendedor e fornecedor de combustíveis “B...” (a montante), quer a subsequentemente e alegada repercussão de CSR na Requerente (a jusante), nem o pagamento do imposto.

Assim, sublinha-se, que atenta a natureza da repercussão (económica) e a livre conformação dos preços e das relações comerciais, não se pode presumir que entre os diferentes operadores económicos e na cadeia de revenda de combustíveis, à empresa fornecedora foi repercutida a CSR a montante e, que essa  empresa (B...), subsequentemente, repercutiu (parte ou a totalidade do imposto - CSR) no preço final dos combustíveis adquiridos pela Requerida.

Dos autos não constam, igualmente, quaisquer elementos que permitam aferir a qualidade de SP da “B...” e a emissão de Declarações de Introdução no Consumo (DICs), a prova contraria mesmo essa alegação. A situação em apreço tenta inferir e presumir uma repercussão do imposto pelo SP das relações jurídico-tributárias relativas aos atos comerciais (factos tributários) subjacentes invocados, designadamente os valores apurados de CSR pela Requerida e a sua correlação com as correspondentes atos tributários e respetivas liquidações DICs submetidas pelo efetivo SP no início da cadeia dos atos comerciais praticados posteriormente por diferentes intervenientes/revendedores.

A prova de um facto positivo e do pagamento de CSR (em parte ou na totalidade) mediante a repercussão económica/fiscal desse imposto e do seu efetivo pagamento impende sobre quem a invoca – a Requerente -, por forma a comprovar a qualidade de contribuinte de facto (lesado) no âmbito da relação jurídico-tributária da CSR e o montante, certo e exigível, do imposto indevidamente pago.

Porém, a Requerente, como referido, apresenta apenas um quadro com a relação de faturas e cópia destas, sem discriminação dos elementos integrantes na formação do preço final, documentos esses acompanhados de “declaração” emitida em termos genéricos, todos esses suportes contendo as manifestas insuficiências formais e materiais suprarreferidas.

Assim, à míngua de outros elementos probatórios, que não foram sequer invocados pela Requerente, resta concluir pela não demonstração clara e inequívoca da efetiva repercussão (maxime integral) e do correspondente pagamento da CSR no preço dos combustíveis adquiridos entre junho de 2019 e dezembro de 2021, especificamente determinar o quantum do imposto objeto de repercussão e o efetivo pagamento do montante global, certo e exigível, de € 54.745,79.

Neste domínio, sublinha-se a jurisprudência do TJUE e o teor do Acórdão de 7 de fevereiro de 2022, Proc. C-460/21, ponto 44: "Com efeito, ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parciais ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos – Vd, neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C‑147/01, EU:C:2003:533, n.º 96.

VI – Do mérito – fundamentação de direito

A Requerente no âmbito das operações comerciais de aquisição de combustíveis, manifestou a sua discordância com os atos tributários inerentes à liquidação de CSR alegadamente incluída no preço dos combustíveis adquiridos, inicialmente perante a Requerida e, face ao indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, apresentou pedido de pronúncia arbitral perante a CAAD, como exposto supra.

A Requerida na reposta veio apresentar defesa por exceção e impugnar o pedido, desde logo, invocar as exceções supracitadas em III,  ponto 2.1. supra, as quais serão apreciadas a seguir.

 

1.- Das exceções

a) Sobre a incompetência do Tribunal arbitral

O Tribunal de Justiça da União Europeia, em Despacho proferido a 7 de fevereiro de 2022, sobre o Processo C‑460/21, conclui que a CSR foi criada com uma finalidade puramente orçamental de obtenção de receita (imposto), não lhe estando subjacente qualquer “motivo específico” de política ambiental, energética ou social, dando-se por reproduzidos os demais argumentos sobre a ilegalidade desse tributo.

No âmbito da CSR estamos perante uma questão jurídica relacionada com a apreciação da legalidade dos atos tributários e respetiva legalidade dos inerentes atos de liquidação desse imposto, criado pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto. Tributo esse entendido como em desconformidade com o Direito da União Europeia, nomeadamente, com o n.º 2 do artigo 1.º da Diretiva n.º 2008/118/CE, de 16/12/2008, tendo por base o entendimento sufragado pelo referido Despacho proferido pelo TJUE em 07/02/2022, no Proc. C-460/21.

Sobre a CSR e as respetivas taxas, verifica-se que possuem valor fixo, estabelecido na Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, incidindo sobre os litros do produto transacionado/introduzido no consumo e não sobre o valor da transação, reforçando a sua natureza de imposto específico, uma vez que possui um valor fixo, independente do nível de preço.

Observa-se que na interpretação das peças processuais deve observar-se o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, pelo que o Tribunal deve extrair da redação dada ao pedido na petição inicial o sentido mais favorável aos interesses do peticionante.

Da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT ( norma que atribui aos tribunais arbitrais a competência para a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos), com o n.º 2 do artigo 3.º da LGT (norma que identifica como tributos os impostos e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas), resulta a conclusão de que a competência material dos tribunais arbitrais compreende a declaração de ilegalidade dos atos inerentes ou decorrentes da liquidação de tributos.

Por outro lado, a disposição do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, ao declarar que a AT se vincula à jurisdição dos tribunais arbitrais que tenham por objeto a apreciação das “pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”.

Impõe-se concluir que todos os factos e atos tributários indispensáveis e inerentes à liquidação de qualquer imposto (no caso a CSR e como sucede com os atos de liquidação objeto da presente ação) são arbitráveis, nos termos dos artigos 2.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março e do art.º 2.º do RJAT.

Observa-se anterior Decisão e respetiva fundamentação, a qual concluiu, em síntese, que: “não procede a alegada exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral em virtude da natureza do tributo, uma vez que a competência dos tribunais arbitrais abrange a apreciação das pretensões dos sujeitos passivos referentes a qualquer espécie de tributo, nos termos do art.º 2.º do RJAT; e também não se verifica a falta de vinculação prévia da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais no presente processo, por força do art.º 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que limita essa vinculação prévia às “pretensões relativas a impostos” (…) Nos termos do corpo do art.º 99.º do CPPT, “constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade”, entendendo-se que aqui se inclui a ilegalidade abstrata da liquidação (CAAD, Proc. nº 104/2017-T e Cf. Proc. 304/2022T.

Nos presentes autos pretende-se a apreciação da ilegalidade de atos tributários de liquidação de CSR (incluindo inerentes atos de repercussão), decorrentes da aplicação do regime legal – o da CSR – desconforme com o direito da União, nos termos já decretados pelo TJUE. A este propósito, entendemos que a invalidade dos atos tributários corresponde “a uma consequência da sua desconformidade perante a ordem jurídica. Embora o legislador tributário faça expressa referência ao conceito de “ilegalidade”, deverá o conceito ser interpretado em termos amplos, no sentido de desconformidade jurídica, por referência a imperativos de natureza constitucional, internacional, de direito da União, legal, regulamentar, ou mesmo por referência a atos tributários anteriores (…)” (cf. Hugo Flores da Silva, O regime das invalidades e da revogação no novo CPA e o seu impacto no procedimento tributário, in Temas de Direito Tributário, 2017, Centro de Estudos Judiciários, p. 18).

Nesse sentido, refere-se posição doutrinal: “[h]á (…) fundamentos que são invocáveis tanto como fundamento de oposição à execução fiscal como de impugnação judicial. Estão nestas condições a (…) ilegalidade abstrata da liquidação, por a ilegalidade não residir no ato que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas residir na própria lei cuja aplicação é feita. Cabem aqui os casos de normas que violam regras de hierarquia superior como as normas constitucionais ou de direito comunitário ou internacional vigente em Portugal (…) ou leis de valor reforçado (…) ou mesmo normas legislativas de direito ordinário quando é feita aplicação de normas regulamentares. A ilegalidade é abstrata porque, afetando a própria lei, não depende do ato que faz a sua aplicação em concreto. Estando prevista como fundamento de oposição à execução fiscal, esta ilegalidade abstrata constitui também um vício de violação de lei, pois a liquidação terá feito aplicação de uma norma que não é válida à face de uma regra de hierarquia superior” - cf. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, p. 709.

Acresce referir que se integram no “conceito de ilegalidade abstrata todos os casos de atos que aplicam normas que violam regras de hierarquia superior, designadamente, além das normas constitucionais, as de direito comunitário ou internacional vigente em Portugal” - cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 09-04-2014, proferido no processo n.º 076/14.

Essa apreciação cabe na competência jurisdicional dos tribunais – entre os quais, do presente Tribunal Arbitral –, sublinhando o Supremo Tribunal Administrativo, a este propósito, que, “Como dizem Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in CPTA e ETAF anotados, p. 440, “Excluída da competência dos tribunais administrativos encontra-se a declaração de inconstitucionalidade (material, orgânica ou formal) com força obrigatória geral de quaisquer normas administrativas, por se tratar de matéria constitucionalmente reservada ao Tribunal Constitucional (alínea a) do artigo 281.º da CRP). O que se permite aos tribunais administrativos é coisa diferente: é que, num processo que não tenha por objeto a declaração da ilegalidade com força obrigatória geral do regulamento, mas uma outra pretensão ou pedido, desapliquem o regulamento inconstitucional ou qualificadamente ilegal aos feitos submetidos a julgamento, é dizer, que julguem incidentalmente dessas questões e vícios regulamentares, com efeitos circunscritos ao processo em causa.” - cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21-01-2009, proferido no processo n.º 0811/08.

Acresce que, tendo-se pretendido criar, por via de lei, um regime de arbitragem em matéria tributária suficientemente amplo de modo que o recurso aos Tribunais arbitrais constituísse uma real alternativa aos tribunais tributários (quer na vinculação da AT, quer na apreciação da legalidade dos factos e dos atos tributários subjacentes e que sustentam o próprio ato de liquidação), os Tribunais arbitrais são competentes para se pronunciarem sobre respetiva legalidade – cf. al. a) n.º 1, art.º 2.º e art.º 4.º, ambos do RJAT.

b) Sobre a ilegitimidade

Quando é cobrado imposto em violação do direito da União Europeia é entendido que subiste a obrigação de restituí-lo ao sujeito passivo (SP), nos termos da lei e da jurisprudência da EU e nacional, salvaguardadas as situações de enriquecimento sem causa.

O pedido em apreciação consiste em saber se nos termos desses ordenamentos jurídicos, os restantes intervenientes nas operações comerciais e, em regra, os contribuintes consumidores finais a quem o imposto possa ter sido repercutido e que o possam ter suportado economicamente têm o direito de exigir diretamente à Requerida/Estado a apreciação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto indevidamente pago, caso seja provado ter sido acrescido ao preço de compra do bem/produto por eles adquirido.

As empresas petrolíferas, em regra, repercutem o ISP e, no caso a CSR, nos operadores a jusante. Enquanto impostos aplicados ao consumo, estes caracterizam-se pelo facto de o seu encargo financeiro poder ser repercutido -repercussão económica - nos intervenientes na atividade comercial, maxime, no consumidor final.

A legitimidade deve ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas - têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem um interesse legalmente protegido. - cf. n.º 2 do art.º 1.º e art.º 65.º da LGT.

Nos termos da alínea a) do n.º 4 do art.º 18.º da LGT assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”. Nesse sentido, o CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” – cf. art.º 9.º do CPPT.

No caso da CSR alegadamente paga pela Requerente, enquanto alegada consumidora final, existe a demonstração de um interesse legalmente protegido e que merece a tutela do direito, porquanto é no contribuinte consumidor final que, em regra, recai o pagamento dos tributos indiretos.

Por fim, atenta a jurisprudência da UE, o “Tribunal de Justiça referiu expressamente a possibilidade de o comprador final poder exigir, directamente às autoridades nacionais, a restituição do montante do imposto indevido cujo encargo suportou. “ – cf. Acórdão Comateb e O (-192/95 a C-218/95, Colect., p. I-165, n.º 20) de 14 de Janeiro de 1997.”

A plena eficácia do direito de reparação e a proteção efetiva dos contribuintes ficaria manifestamente prejudicada perante uma interpretação restrita no sentido de apenas os SP (no caso de CSR) gozarem do direto de ação e de pedirem o reembolso ao Estado – art.ºs. 4.º a 12.º e 15.º a 20.º do CIEC, limitando-se formalmente a outros sujeitos da relação tributária a efetiva reparação dos prejuízos incorridos - os contribuintes que possam ter suportado efetivamente o imposto e ser objetivamente lesados (inclusive os únicos efetivamente lesados) pelos respetivos atos de liquidação.

Nesse sentido, aquele Tribunal afirma: “Por conseguinte, no caso em que um Estado-Membro tenha cobrado um imposto especial sobre o consumo em violação do direito da União e o sujeito passivo tiver repercutido este sobre o seu cliente, um direito a indemnização deste cliente contra o Estado não pode ser recusado com o fundamento de que é de excluir de antemão um nexo de causalidade directo entre a cobrança do imposto e o dano do cliente.” – cf. Proc. C-94/10, conclusões.

Termos em que a Requerente, na qualidade de consumidora (final) dos produtos sujeitos a ISP e, subsequentemente a CSR, a quem este imposto possa ter sido repercutido, é titular de um interesse legalmente protegido e, ipso facto, de legitimidade processual, enquanto forma de acesso à justiça e de proteção dos direitos e reparação dos prejuízos que tenha suportado com o pagamento da CSR, considerada em desconformidade com o direito da União.

Por sua vez, o invocado direito de acesso à justiça, em matéria tributária, através da jurisdição civil contra o SP, o qual se limitou a cumprir a lei vigente e que, em princípio, não obteve qualquer ganho, afigura-se que tal possibilidade seria difícil ou inexistente, na medida em que não ocorre nenhuma das situações previstas no artigo 476º do Código Civil. Observa-se que a repetição do indevido dependeria, ainda, do enriquecimento sem causa do SP, o qual, em regra, não ocorre, porquanto entrega ao Estado o imposto que, por sua vez, repercute no consumidor final.

Por fim, atento o princípio da efetividade, deve ser igualmente reconhecido ao consumidor final, em regra, o repercutido de impostos indiretos, o direito de reclamar diretamente junto da administração tributária os montantes de imposto indevidamente liquidados e alegadamente pagos, com os demais poderes de impugnação junto dos Tribunais, incluindo o presente Tribunal arbitral - cf. Acórdão do TJUE de 20 de outubro de 2011, Proc. C-94/10, no mesmo sentido Proc. N.º 790/2023-T.

Sobre a ilegitimidade substantiva arguida pela Requerida, reafirma-se o douto Acórdão do Proc. n.º 1049/2023-T, no sentido de não ser “possível considerar verificada liminarmente a inviabilidade da pretensão deduzida em juízo com base em meras alegações da parte contra quem vem deduzido o pedido, quando essa é a questão de fundo que carece de ser analisada em função do direito aplicável face aos factos que venham a ser dados como provados ou não provados. Nem a alegação aduzida pela Requerida poderá caracterizar uma exceção perentória.”

Igualmente, citando o mesmo Acórdão, “As exceções perentórias consistem na invocação de factos que, em face da lei substantiva, possam integrar uma causa impeditiva, extintiva ou modificativa do direito invocado pelo autor na ação e que assim determinem a improcedência total ou parcial do pedido. São impeditivos os factos que excluem ou impedem a eficácia do direito alegado (incapacidade, falta ou vícios de vontade), modificativos os que alteram a relação jurídica modificando a natureza da prestação ou as condições da sua exigibilidade (alteração das circunstâncias em que foi celebrado um contrato), extintivos os que fazem cessar o direito tornando inviável o respetivo exercício (caducidade, prescrição, cumprimento da obrigação).

Assim, o alegado quanto à legitimidade substantiva não integra a defesa por exceção e apenas poderá relevar em sede de apreciação do mérito. Igualmente “aplicável quanto à alegada inexistência de prova de efetiva repercussão da CSR por efeito da aquisição de combustíveis. Essa é matéria de prova que terá de ser analisada no âmbito da decisão arbitral e que não integra, em si, uma qualquer exceção perentória”. – cf. Proc. n.º 1049/2023-T.

Conclui-se, assim, que a Requerente detém capacidade processual ativa, é titular do direito subjetivo que se pretende tutelar e tem interesse na decisão arbitral.

c) Sobre a ineptidão da petição inicial e caducidade

Os argumentos da Requerida encontram-se enunciados, em síntese, em III,  ponto 2.1, alíneas c) e d) supra, invocando, designadamente que a Requerente não cumpriu o ónus que sobre si impendia de identificar o objeto da presente ação, na medida em que não juntou aos autos, nem identificou, os atos de liquidação de CSR praticados pelo SP e que a falta de identificação desses atos, igualmente, inviabiliza apreciar os prazos legais de reclamação/revisão por parte da Requerente.

Compulsadas as peças processuais, verifica-se que a Requerente invoca detalhadamente os fundamentos sobre a ilegalidade da CSR, bem como identifica os factos tributários relacionados com as putativas liquidações indevidas de CSR por parte de alegado SP e seu fornecedor de gasolina e gasóleo rodoviários, através das respetivas faturas, de declaração dessa empresa fornecedora e da forma como considerou adequada, face aos elementos de prova na sua posse.

Esses são os factos sujeitos a tributação e suscetíveis de integrarem inerentes atos de liquidação e o pagamento indevido de imposto mediante atos de liquidação, em apreciação no presente processo.

Consideram-se cumpridos os requisitos previstos na lei sobre a PI, a petição da Requerente apresenta-se ainda inteligível e contém a indicação de empresa fornecedora e alegado SP do imposto, do iter temporal da prática dos factos tributários, do pedido ou da causa de pedir, bem como foi integralmente interpretada pela Requerida como revela o teor da sua extensa resposta – Cf. n.º 2 do art.º 78.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e art.º 186.º do Código de Processo Civil (CPC).

Sobre a invocada caducidade do direito de ação, a Requerente invoca erro imputável aos serviços e anterior pedido de revisão oficiosa, a qual  pode ainda ser efetuada no prazo de quatro anos após a liquidação, contanto que o correspondente fundamento consista na existência de um erro imputável aos serviços, erro em sentido lato, resultante de violação da lei. Por outro, atento o disposto no n.º 7 daquela norma, o contribuinte manifestando um interessado legalmente protegido dispõe, igualmente, da possibilidade de pedir a revisão oficiosa – Cf. n.º 1, art.º 78.º da LGT.

O n.º 7 dessa norma ao dispor que “Interrompe o prazo da revisão oficiosa do acto tributário ou da matéria tributável o pedido do contribuinte dirigido ao órgão competente da administração tributária para a sua realização.”, pressupõe e subentende a intervenção do contribuinte nesse procedimento e a iniciativa para a prática do correspondente ato poder advir do próprio contribuinte. – Cf. Proc. n.º 0886/14, Acórdão do STA, de 19 de novembro de 2014.

Os atos tributários controvertidos ocorreram entre junho de 2019 a dezembro de 2021, podendo a revisão oficiosa ser efetuada no prazo de quatro anos após a liquidação, contanto que o correspondente fundamento consista na existência de um erro imputável aos serviços.

A Requerente vem invocar uma ilegalidade abstrata e erro material imputável à Requerida, a qual compreende o erro de direito independente da culpa dos serviços, por forma à realização dos princípios constitucionais concretizados na LGT, designadamente quando essa lei preceitua que “A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade (…) no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários.” – Cf. art.º 55.º da LGT e Proc. n.º 0886/14 do STA citado e Proc. 01474/12, Acórdão de 5 de novembro de 2014.

Termos em que é entendido que uma ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços - Cf. acórdãos do STA de 22-03- 2011, proc. 01009/10; de 06/02/2002 proc. 26.690; de 05/06/2002 proc. 392/02; de 12/12/2001, proc. 26.233; de 16/01/2002 proc. 26.391; de 30/01/2002, proc. 26.231; de 20/03/2002, proc. 26.580; de 10/07/2002, proc. 26.668).

Perante a aplicação de disposições nacionais consideradas contrárias ao direito da União, uma interpretação restritiva da lei que apenas permitisse a revisão dos inerentes atos tributários controvertidos por iniciativa da administração, inviabilizaria a possibilidade de reação e reparação por parte de todos os contribuintes lesados, bem como não observaria os referidos princípios, nem permitia a realização da justiça enquanto fim último dessas normas.

Quando ao demais afirmado pela Requerida, observa-se que na interpretação das peças processuais devem observar-se o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, pelo que o Tribunal deve extrai da redação dada ao pedido na petição inicial o sentido mais favorável aos interesses do peticionante.

Acresce estarmos no domínio de aplicação de um regime que se pretende que disponha de maiores garantias por parte dos contribuintes, quer nos meios, quer nos prazos de reação perante atos tributários ilegais por desconformidade com o direito da União – Diretiva 2008/118/CE (regime geral aplicável aos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo) de aplicação direta, sendo muitas vezes esse vício declarado muito tempo após a prática desses atos lesivos, os quais, enquanto atos inválidos e gravemente danosos, exigem que todos os lesados beneficiem de prazos de reação mais alargados e que a Administração esteja obrigada a corrigir e sanar esses atos.

A prosseguir a interpretação restritiva alegada pela Requerida, em tese, permitiria que AT tomasse conhecimento da ilegalidade de um determinado ato de liquidação e, no decurso do prazo de revisão fixado na última parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, por omissão de ação, mesmo após instada a agir, pudesse manter em vigor esse mesmo ato e não reconhecer os direitos dos contribuintes lesados.

Constitui, ainda, jurisprudência consolidada que “a Administração não pode demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão [oficiosa] do ato quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados, já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes, no domínio das suas atribuições” – Cf. STA 2 Sec., ac. de 29.05.2013, proc. 0140/13, acórdão do STA, 2 Sec., proc. 536/07, 20.11.2007, ambos citados no Proc. n.º 304/2022T, no mesmo sentido Proc. N.º 790/2023-T.

2.- Sobre o mérito da causa – a ilegalidade das liquidações da CSR, o imposto alegadamente suportado, por repercussão, e pago.

A questão jurídica sub judice relaciona-se com a ilegalidade da liquidação da CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, por ser um tributo desconforme com o direito da União Europeia, nomeadamente, ao n.º 2 do artigo 1.º da Diretiva n.º 2008/118/CE, de 16/12/2008.

Por força do princípio do primado e da colaboração leal estabelecido no artigo 4º do TUE, as decisões do TJUE devem ser adequadamente observadas, sendo a decisão sobre a CSR amplamente seguida em decisões sobre a ilegalidade das respetivas liquidações - Proc. C-460/21, do TJUE.

De acordo com o referido entendimento do TJUE, diversos sujeitos passivos de ISP/CSR e outros interessados, têm vindo a suscitar junto do CAAD a ilegalidade dos atos tributários e subsequente direito de reembolso do imposto indevidamente liquidado e pago, maxime, por consumidores finais.

Na sequência do referido Proc. C-460/21, do TJUE, a Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro veio alterar significativamente a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, consignando parcialmente a receita do ISP ao serviço rodoviário, antes financiado pela CSR, agora eliminada.

Em face declaração de ilegalidade da CSR pelo TJUE e os subsequentes pedidos de revisão dos atos de liquidação e pedido de reembolso, a Requerida não emitiu orientações para o reembolso da CSR, contrariamente à prática em outros EM na sequência da declaração de ilegalidade de tributos.

O pedido em apreciação consiste, desde logo, em saber se nos termos desses ordenamentos jurídicos, para além dos SP, o contribuinte (consumidor final) a quem o imposto possa ter sido repercutido e o possa ter suportado economicamente, tem o direito de exigir diretamente da Requerida a revisão dos atos de liquidação e o reembolso de imposto indevidamente pago, no caso, da CSR alegadamente repercutida no preço dos combustíveis adquiridos.

Na sequência da apreciação das exceções invocadas pela Requerida e do reconhecimento da legitimidade da Requerente, esta tem um interesse legalmente protegido e o direito de ação e de interpelar diretamente a Requerida, por forma à revisão de eventuais atos de liquidação de CSR, por forma a ser ressarcida de eventuais prejuízos decorrentes de um alegado pagamento indevido do imposto, caso fosse confirmada a sua repercussão no preço dos produtos adquiridos.

As empresas petrolíferas, em regra, repercutem o ISP e, ao tempo, a CSR nos operadores a jusante, incluindo, nos consumidores finais. Enquanto impostos aplicados ao consumo, estes caracterizam-se pelo facto de o seu encargo financeiro ser, em regra, repercutido nos restantes operadores da atividade comercial, maxime, no consumidor final.

Na sequência da liquidação de imposto em violação do direito da União Europeia, o TJUE tem entendido que subiste a obrigação de restituí-lo ao sujeito passivo (SP), nos termos da lei e da jurisprudência da EU e nacional, salvaguardando situações de enriquecimento sem causa – Cf. Proc. C 94/10, conclusões de 24 março de 2011.

A jurisprudência da UE afirma que compete aos órgãos jurisdicionais nacionais «apreciar, à luz das circunstâncias de cada caso concreto, se o encargo do imposto foi transferido no todo ou em parte pelo operador para outras pessoas e, se for esse o caso, se o reembolso ao operador constitui enriquecimento sem causa» - cf. Acórdão Comateb e Acórdão C-566/07, Stadeco e cfr. Proc. 02185/17.8BEPRT - TCAN

Atenta a jurisprudência, o “Tribunal de Justiça referiu expressamente a possibilidade de o comprador final poder exigir, directamente às autoridades nacionais, a restituição do montante do imposto indevido cujo encargo suportou “– Cf. Acórdão Comateb e O (-192/95 a C-218/95, Colect., p. I-165, n.º 20) de 14 de janeiro de 1997. “

Sublinha-se que nesse mesmo acórdão, o Tribunal de Justiça referiu, contudo, que “a restituição ao sujeito passivo do montante do imposto, apesar de este o ter repercutido sobre o comprador, equivaleria para aquele a um pagamento em dobro susceptível de ser qualificado como enriquecimento sem causa, sem que, porém, sejam remediadas as consequências da ilegalidade do imposto para o comprador. O Tribunal de Justiça reconheceu, assim, que o imposto contrário ao direito da União pode atingir economicamente outra pessoa para além do sujeito passivo e que existe uma necessidade de devolver o montante do imposto ao património desta pessoa.” - Cf. Proc. C-94/10, conclusões, de 24 de março de 2011.

Nesse sentido, atentas as especificidades e casuísmo das respetivas operações comerciais, os elementos de prova são essenciais, inclusive, para determinar quem efetivamente suportou imposto e o quantum efetivamente pago, pelo que nas referidas conclusões afirma-se ainda: “A jurisprudência do Tribunal de Justiça, de acordo com a qual a questão da repercussão ou não de um imposto indirecto constitui uma questão de facto em cada caso concreto, na medida em que repercussão efectiva, total ou parcial, depende de vários factores próprios a cada transacção comercial” – Cf. Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard (331/85, 376/85 e 378/85, Comateb e o. (já referidos) e Weber’s Wine World e o. (C-147/01).

Assim, “a reparação dos prejuízos através do direito ao reembolso tem também, por fim, efeitos sobre a questão de saber como poderão ser eliminadas as consequências económicas para o comprador final do imposto cobrado em violação do direito da União.” – Cf. conclusões citadas.

Termos em que o direito de reembolso do consumidor final da CSR face ao Estado pode ser reconhecido por motivos de equivalência e efetividade – Cf. Acórdãos de 6 de outubro de 2005, MyTravel (C-291/03) e de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C-35/05).

Acresce que o reembolso e reparação do dano seria manifestamente mais difícil caso apenas se admitisse a possibilidade de o consumidor final pedir indemnização ao sujeito passivo, como suprarreferido, pelo que o princípio da efetividade visa assegurar que o consumidor final se possa dirigir diretamente ao Estado para realizar os seus direitos e reparar os danos sofridos por pagamento de impostos ilegais.

Na falta de regulamentação, na EU ou interna, de natureza processual ou substantiva, para o reembolso de impostos cobrados em violação do direito da União Europeia, cabe aos Tribunais a decisão de cada caso sub judice.

Termos em que o princípio da efetividade se apresenta especialmente relevante no sentido de tornar efetiva a aplicação das normas jurídicas, bem como assegurar que os direitos, garantias e deveres estabelecidos pela legislação sejam realmente aplicados e produzam os resultados pretendidos – no caso a proteção de direitos e a reparação dos prejuízos sofridos pelos contribuintes lesados.

A plena eficácia do direito de reparação e a proteção efetiva dos contribuintes poderia ficar manifestamente prejudicada perante uma interpretação restrita no sentido de reconhecer apenas aos SP (no caso de CSR) o direito de pedirem o reembolso ao Estado (art.ºs. 4.º a 12.º e 15.º a 20.º do CIEC), limitando-se formalmente os titulares desse direito e impedindo-se a efetiva reparação dos prejuízos incorridos pelos contribuintes (de facto) objetiva e efetivamente lesados. Como referido, um imposto contrário ao direito da União (como a CSR) pode atingir economicamente outra pessoa para além do sujeito passivo e existe a necessidade de reparar o prejuízo e devolver o montante do imposto ao património dessa pessoa/contribuinte de facto. - Cf. Proc. C-94/10, conclusões, de 24 de março de 2011., como referido.

Nesse sentido, sublinha-se a jurisprudência do TJUE quando afirma: “Por conseguinte, no caso em que um Estado-Membro tenha cobrado um imposto especial sobre o consumo em violação do direito da União e o sujeito passivo tiver repercutido este sobre o seu cliente, um direito a indemnização deste cliente contra o Estado não pode ser recusado com o fundamento de que é de excluir de antemão um nexo de causalidade directo entre a cobrança do imposto e o dano do cliente.” – Cf. Proc. C-94/10, conclusões referidas.

No âmbito do reconhecimento do direito ao reembolso da CSR e de entre as diferentes interpretações possíveis dos regimes legais, deve privilegiar-se aquela que melhor concretize os direitos e garantias dos interessados. Esta é uma perspetiva essencial, ainda, para adequada realização do princípio do acesso à justiça, porquanto para os direitos serem efetivos torna-se essencial que se reconheça aos cidadãos contribuintes a legitimidade para reivindicá-los perante os Tribunais, em especial, perante atos ilegais de liquidação de impostos.

O contribuinte e/ou consumidor final que demonstre objetiva e claramente que a CRS foi repercutida no preço dos produtos que adquiriu e que suportou/pagou o respetivo imposto tem o direito de ser restituído do tributo indevidamente suportado, mediante o recurso aos meios de reação previstos na legislação tributária, incluindo junto da AT, de contestar diretamente os respetivos atos tributários – Vd. nesse sentido o acórdão do TJUE de 14 de janeiro de 1997, Société Comateb, Procs. apensos C-192/95 a C-218/95, ponto 24.

A apreciação das liquidações de CSR, enquanto imposto indireto, implica conhecer todos os factos tributários que deram origem à receita desse imposto. A CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos a ISP, materializando-se nos atos de comercialização e consumo desses produtos (introdução no consumo), sendo esses factos/acontecimentos que, de acordo com a lei, geram a obrigação tributária.

A liquidação de um tributo envolve diversos elementos fundamentais para sua correta execução, de entre os principais elementos da liquidação, tudo se inicia com o facto gerador, enquanto acontecimento da vida real previsto na lei que dá origem à obrigação tributária principal, ou seja, a obrigação de pagar o imposto. O conhecimento do fato gerador é o primeiro passo para a liquidação do imposto, pois define todos os elementos da respetiva relação jurídico-tributária.

O conhecimento preciso desse facto tributário, através dos respetivos elementos de suporte e de registo, revela-se essencial para verificar os direitos e as obrigações geradas, dos intervenientes na/s relação tributária e a conformação dos respetivos direitos e deveres.

Assim, no caso sub judice, de ilegalidade das liquidações de CRS e por forma à respetiva apreciação, reposição da legalidade e subsequente ressarcimento do contribuinte lesado, revela-se essencial conhecer quem efetivamente pagou o imposto (quantum) e em cada um dos diferentes atos comerciais ocorridos, desde o SP, as DICs e os restantes operadores envolvidos, até ao consumidor final, por forma a determinar o montante de imposto efetivamente suportado, pago e por quem.

O SP que entregou ao Estado o imposto indevidamente liquidado, em regra, é o titular do direito ao reembolso, caso não obtenha um benefício indevido pela repercussão e pagamento efetivo desse imposto pelo consumidor final – enriquecimento sem causa como referido.

Para esse efeito e no caso da CSR, a prova documental e objetiva do efetivo pagamento pelo SP, por restantes operadores e/ou pelo contribuinte consumidor final é essencial para comprovar por quem o imposto, total ou parcialmente, foi efetivamente suportado e pago.

Na apreciação das liquidações indevidas de CSR e o subsequente direito ao reembolso, reveste especial relevo o conhecimento preciso dos elementos, objetivos e subjetivos, que integraram os acontecimentos/factos tributários inerentes a essas liquidações. O rigoroso conhecimento desses elementos é essencial face à natureza do imposto indireto como a CSR, domínio em é essencial conhecer quem pagou efetivamente o imposto, a quem e quem efetuou a sua entrega ao Estado, por forma à adequada compreensão e apreciação das respetivas relações jurídico-tributárias e subsequentes direitos e deveres.

Observa-se que a anulação «de um ato administrativo constitui a Administração no dever de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado…” (…) e, no plano tributário, “em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade”, - Cf. n.º 1 do artigo 172.º do CPA, n.º 1 do artigo 173.º do CPTA e artigo 100.º da LGT.

Consequentemente, no pedido de reembolso pelo SP este deve demonstrar a repercussão do CSR e a AT apreciar os inerentes atos tributários e as operações materiais - factos tributários - que suportam e fundamentam os atos de liquidação e pagamento do imposto. A apreciação das liquidações e o reconhecimento do reembolso de CSR ao SP, implica, igualmente, conhecer se o SP economicamente suportou o imposto, tido por indevido, face à natureza e à prática da repercussão económica inerente a esse imposto.

“A repercussão fiscal consiste na transferência do imposto que legalmente incide sobre um sujeito passivo, para um terceiro, alheio à relação jurídica tributária, com quem aquele tem relações económicas. Nas palavras de alguns autores, o repercutido será um mero "contribuinte de facto" (titular da capacidade contributiva), por contraposição ao "contribuinte de direito", aquele a quem é juridicamente exigível o pagamento do tributo. De acordo com a doutrina pode fazer-se a distinção entre a repercussão obrigatória ou legal, a qual encontra consagração, por exemplo, em sede de IVA, por contraposição à repercussão voluntária (…)” – Proc. 0581/17.0BEALM, acórdão STA de 28-10-2020.

Termos em que algumas posições entendem que o reconhecimento da legitimidade de ação do contribuinte consumidor final no imposto indireto – CSR - e o equilíbrio entre o direito material e direito processual exige a clara e rigorosa demonstração dos elementos essenciais para decisão, em especial, meios de prova detalhados que permitam apurar inequivocamente quem efetivamente suportou e pagou o imposto, ou seja, a presença de elementos completos sobre os factos tributários subjacentes às liquidações do imposto.

Atenta a matéria de facto e como referido supra, a Requerente, como elementos de prova, apresenta faturas emitidas por empresa revendedora de combustíveis (não SP) e documento resumo com as aquisições realizadas, números de faturas e a putativa CSR paga, desconhecendo-se as diferentes componentes que permitem aferir se a CSR integra o preço, ou seja, se foi, total ou parcialmente, repercutida na Requerente pela respetiva empresa fornecedora “B...”, a qual, igualmente, teria suportado (ou não) esse mesmo imposto na aquisição dos combustíveis que revendeu à Requerente.

A CSR é devida ao Estado pelos operadores de IEC com a natureza de SP, sendo desconhecidos os termos do contrato de fornecimento de combustível celebrado ou da relação comercial entre a Requerente e a empresa fornecedora de combustíveis, designadamente a repercussão ou não da CSR e a sua incorporação (total ou parcial) no preço do combustível adquirido.

Face à sua natureza de imposto objeto de repercussão legal pelo SP, o IVA encontra-se objetiva e claramente discriminado nas faturas. Atento o regime da CRS e a possibilidade ou não desse imposto ser repercutido, o mesmo não é discriminado nas faturas/documentos de suporte emitidos, quer pelo SP, quer pelos restantes revendedores/operadores que intervêm nas transmissões desses bens/produtos até ao contribuinte efetivo – consumidor final.

Acresce que a “declaração” emita em termos genéricos pelo fornecedor “B...”, para além das insuficiências referidas, não identifica as DICs relativas a essas operações e respetivos atos de liquidação, nem está acompanhada do tratamento contabilístico e fiscal das faturas emitidas, bem como inexistem no processo elementos que permitam esclarecer os termos das relações comerciais, por forma a permitir aferir e concluir sobre a natureza dessas operações e o tratamento fiscal para efeito de CSR, ou seja, sobre a efetiva repercussão económica (total ou parcial) no âmbito dessas operações comerciais verificadas ao longo da cadeia de operações comerciais de revenda de combustíveis.

Face aos frágeis e controvertidos elementos de prova, não se apresenta possível confirmar a factualidade invocada sobre o pagamento indevido da CSR, porquanto os documentos apresentados, quer na forma, quer no conteúdo, não se apresentam suficientes e adequados para aferir a natureza das operações e dos atos tributários realizados e para comprovar o efetivo pagamento de CSR pela Requerente e, subsequentemente, a entrega desse imposto ao Estado.

Em anteriores decisões arbitrais, tem-se entendido que a prova da repercussão no consumidor final de impostos indiretos e do seu pagamento suportados pelo operador económico não pode ser efetuada através de meras presunções. – cf. Proc. n.º: 304/2022-T, Proc. n. 452/2023-T e Proc. n.º 790/2023-T.

No sentido dessa posição, entende-se que a prova do pagamento do imposto (CSR) invocada pelo contribuinte efetivo, maxime, pelo consumidor final de combustível, deve ser objetiva e inequivocamente demonstrada por documentos que identifiquem claramente o efetivo pagamento do imposto, não podendo ser presumida, nem aceite, ainda, mediante mera “declaração” genérica e sem os requisitos declarativos, maxime, quando todos os intervenientes nos atos comerciais conhecem o conteúdo das suas relações comerciais e tributárias, encontrando-se legalmente obrigados a prestar informações rigorosas e a registar as respetivas operações/transações, quer para efeitos contabilísticos, quer para efeitos tributários- cf. Proc. n.º 790/2023-T.

E essa obrigação de informação existe e poderia ser obtida pela Requerente no âmbito das suas relações comerciais e contratuais com o seu fornecedor (a empresa “B...”) desde a prova sobre o SP do imposto (a empresa na própria declaração parece afastar essa qualidade) às DICs invocadas, porquanto essa empresa reúne as condições para prestar as informações necessárias, completas e rigorosas à Requerente, a qual tem um interesse jurídico atendível nessas informações e nos registos detalhados e integrais, os quais igualmente devem suportar os elementos integrantes do preço cobrado, enquanto elementos essenciais para apreciar as putativas liquidações de CSR controvertidas.

Acresce que essas liquidações de CSR se apresentam impossíveis de identificar e quantificar, atenta a natureza da Requerente e da empresa “B...” (revendedora), a não identificação do SP do imposto e das respetivas DICs.

Por fim, recorda-se a jurisprudência do TJUE e o teor do Acórdão de 7 de fevereiro de 2022, Proc. C-460/21, ponto 44: "Com efeito, ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parciais ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos – Vd., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C‑147/01, EU:C:2003:533, n.º 96.

A prova de um facto positivo – da repercussão fiscal da CSR e pagamento do imposto - impende sobre quem a invoca – a Requerente -, por forma a comprovar a qualidade de entidade repercutida, lesada e respetivo montante (quantum), no âmbito da relação jurídico-tributária da CSR. Acresce que não é realizada prova dos elementos (objetivos e subjetivos) essências dos atos tributários de CSR, nem do efetivo pagamento do imposto.

 

VII - Decisão

Termos em que o Tribunal Arbitral Singular decide:

- Declarar improcedentes as exceções invocadas pela Requerida.

- Declarar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica os atos de liquidação impugnados, bem como a decisão de indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa.

- Declarar prejudicado o conhecimento do pedido acessório de reembolso e de juros indemnizatórios.

- Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

VIII - Valor do Processo

Fixa-se o valor do processo em € 54 745,79, em conformidade com o disposto, na al. a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e Processo Tributário e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

XIX - Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente dada a improcedência do pedido, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 12.º e no n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT.

 

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 30 de setembro de 2024.

 

O Tribunal Arbitral Singular,

 

(Vítor M.R. Braz)