SUMÁRIO:
Atento o disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, não padece de ilegalidade a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados quer na realização de operações que conferem o direito a dedução, quer em operações que não conferem esse direito quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação, designadamente quando a utilização dos bens e serviços de utilização mista seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão de contratos de locação financeira.
Cabe ao sujeito passivo o ónus de provar que a utilização de bens ou serviços mistos não é sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos de locação financeira e, ainda, alegar e provar factos que permitam concluir pela correção da percentagem de dedução (pro rata) que pretende aplicar.
DECISÃO ARBITRAL
A..., S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º..., Porto, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I - RELATÓRIO
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O pedido
O Requerente peticiona:
- a anulação da decisão de indeferimento que versou sobre a reclamação graciosa da (auto)liquidação por si apresentada; -
- a anulação parcial da (auto)liquidação de IVA relativa a janeiro de 2021, com a consequente restituição da quantia de € 481.714,81;
- a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
- a título subsidiário, que o Tribunal Arbitral promova um reenvio prejudicial das questões que entenda suscitar para o Tribunal de Justiça da União Europeia, relativamente à consideração do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira no cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista.
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O Litígio
O tema a decidir prende-se com o método de dedução (parcial) do IVA nos recursos de utilização mista das instituições de crédito que desenvolvam, a par de outras, atividades de leasing, nomeadamente leasing automóvel. A questão nuclear presente nos autos é a de saber se, face ao regime do Código do IVA e às normas europeias, deverá considerar-se, ou não, a componente de amortização de capital, para efeitos da determinação do critério de dedução – coeficiente de imputação específico – referente ao IVA suportado na aquisição de recursos de utilização mista.
Na perspetiva da Requerente, a resposta é afirmativa, invocando em seu abono um conjunto de argumentos conducentes à inaplicabilidade do regime vertido no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, essencialmente a sua dissonância com o direito europeu.
Por seu turno, a Requerida pugna pela manutenção da legalidade da autoliquidação, rejeitando que esta padeça de qualquer vício.
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Tramitação Processual
O pedido foi aceite em 20-09.2023.
O Requerente optou por designar árbitro, tendo indicado a Srª Prof. Doutora Clotilde Celorico de Palma para exercer tais funções.
A Requerida, por sua vez, designou o Sr. Dr. António Lima Guerreiro.
O árbitro presidente foi designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, a pedido dos demais árbitros.
O tribunal arbitral ficou constituído em 26-03-2024.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Em 19/09/2024 (por impedimento da testemunha na data inicialmente prevista, o que obrigou à prorrogação do prazo para ser proferida a decisão), realizou-se a sessão a que se refere o art. 18º do RJAT e a audição da testemunha.
Em tal sessão, por acordo das partes foi prescindida a produção de alegações.
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Saneamento
O processo não enferma de irregularidades ou nulidades.
Não foram suscitadas questões que pudessem ser obstáculo à apreciação do mérito da causa.
II – PROVA
II.1. Factos Provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma instituição de crédito.
b) No âmbito da sua atividade, realiza operações financeiras enquadráveis na isenção constante da alínea 27 do artigo 9.º do Código do IVA, que não conferem o direito à dedução deste imposto, designadamente operações de financiamento/concessão de crédito e operações relativas a pagamentos e transações de títulos.
c) A Requerente realiza também operações que conferem o direito à dedução deste imposto, nomeadamente operações de locação financeira mobiliária.
d) Para determinar a medida (quantum) de IVA dedutível relativamente às aquisições de bens e serviços afetos indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas (recursos de “utilização mista”), a Requerente aplicou o método supletivo da percentagem de dedução, conforme previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA.
e) A referida percentagem de dedução (7%) foi determinada por aplicação do coeficiente de imputação específico definitivo do ano 2021, em consonância com o preceituado no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA.
f) Na sequência de uma revisão de procedimentos relativos à sua atividade, a Requerente concluiu que o cálculo da referida percentagem de dedução se encontrava viciado por erro no regime jurídico aplicável ao seu direito à dedução porquanto, se no cálculo da referida percentagem de dedução tivessem incluído os montantes respeitantes às amortizações financeiras do leasing (não aplicando as restrições preconizadas pela AT no Ofício Circulado n.º 30108), a percentagem de dedução definitiva por si apurada para o ano em causa seria, segundo ela, de 23%
g) No âmbito da atividade de locação financeira, a Requerente incorre em custos com a contratação e gestão destes contratos e com a disponibilização das viaturas.
h) No que concerne ao leasing automóvel, a Requerente realiza um conjunto heterogéneo de ações entre as quais constam as seguintes: autorização da entrega do bem locado após emissão do contrato; pagamento a fornecedores e processamento do empréstimo; participação no processo de legalização; controlo do pagamento de impostos das viaturas financiadas em leasing; identificação de condutores das viaturas locadas em caso de infração; manutenção de seguros dos bens locados; envio de comprovativos de apresentação e documento único automóvel; emissão de declarações; gestão de recibos de indemnização; contabilização e reporte financeiro dos bens recuperados e posteriormente alienados, em virtude de incumprimento contratual, do não exercício de opção de compra ou de cedência de posição contratual.
j) A Requerente reclamou graciosamente da parte das autoliquidações de IVA que agora impugna, reclamação que foi indeferida com data de 19 de junho de 2023.
II.2 - Factos não provados
Não se provou:
- que a utilização dos inputs mistos nas operações de leasing foi primordialmente determinada pela disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão dos contratos.
- que, caso tivessem sido consideradas as amortizações de capital (financeiras) relativamente aos contratos de leasing, a percentagem do direito à dedução do IVA suportado nos inputs mistos seria, no mês em causa, de 23%.
II.3. Fundamentação da matéria de facto
Os factos dados como provados estão documentalmente comprovados, não tendo suscitado divergências entre as partes.
Relativamente aos factos considerados não provados não foi produzida qualquer prova documental. Quanto à prova testemunhal, aceita-se que a testemunha depôs com isenção, revelando conhecimento direto dos factos que relatou. Porém, o seu depoimento não permite determinar minimamente qualquer quantificação relativa aos recursos de utilização mista que são utilizados em cada uma das atividades desenvolvidas no âmbito dos contratos de locação financeira. Admitindo-se que durante a vigência do contrato são realizadas mais tarefas do que as desenvolvidas na fase de contratualização, não se logrou comprovar que o consumo de recursos gerais da Requerente é primordialmente determinado pela disponibilização da viatura face aos gastos relacionados com o financiamento e a gestão do contrato de locação financeira, sendo que também na fase de vigência do contrato são suportados custos mistos que apenas são relativos à gestão do mesmo (v.g., processamento de rendas, tratamento de cessões da posição contratual, extinção do contrato).
III- DO MÉRITO
Reproduziremos, em larga medida, o constante da decisão arbitral nº 754/2023, da qual ora árbitro presidente foi, também, relator.
A questão de direito que se coloca neste processo já foi objeto de uma extensa e profunda reflexão neste CAAD e no STA, existindo também jurisprudência europeia sobre a matéria e que vem sendo argumentativamente mobilizada nas decisões pátrias na análise da questão.
No CAAD, prevaleceu inicialmente a tese da Requerente, tendo-se entendido em diversas decisões arbitrais que o método explanado no ponto 9 do citado Ofício[1]Circulado 30108 seria inadmissível face ao disposto no artigo 23.º do Código do IVA, o que se traduziria numa violação do princípio da legalidade fiscal previsto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.º 2, da Constituição.
Esta posição não foi, porém, sufragada pelo STA que, no seu acórdão para uniformização de jurisprudência, de 20 de janeiro de 2021, tirado no processo n.º 0101/19, concluiu que “[n]os termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA (conjugado com a alínea b) do seu n.º 3), a Administração Tributária pode obrigar o sujeito passivo que efetua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a efetuar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação” e que “na aplicação do método de afetação real nos termos do n.º anterior, a Administração Tributária pode obrigar o sujeito passivo que seja um banco que exerce atividades de ‘Leasing’ e de ‘ALD’ a incluir no numerador e no denominador que serve para o cálculo da percentagem da dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos a essa atividade, quando a utilização daqueles bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos respetivos”.
Este entendimento foi reiterado no Acórdão de 24 de março de 2021, tirado no processo n.º 87/20, onde se procedeu à uniformização da jurisprudência no seguinte sentido: “nos termos do disposto no art. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação, acrescentando-se ser improcedente a invocação da violação do princípio da legalidade tributária (art.103,n.º2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (art. 165.º n.º1, alínea i) da CRP, porquanto o denominado “método de imputação específica” não se traduz num método inovador que não esteja previsto no artigo 23.º, “mas é ainda um método de afetação real com alguns ajustamentos (‘condições especiais’), motivo por que deve considerar-se subsumível à previsão daquela norma”.
A jurisprudência do STA encontra-se alinhada com a decisão proferida no processo C-183/13, de 10 de julho de 2014 (“Banco Mais”), no qual o TJUE considerou que “os Estados-Membros podem obrigar um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.
Em consonância com o sentido emergente dos mencionados arestos, começa-se por afastar a incompatibilidade do regime de direito interno com o disposto nos artigos 173.º e 174.º da Diretiva do IVA. Com efeito, é o próprio TJUE que refere que a disposição do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, “conjugada com o artigo 23.°, n.° 3, do CIVA, no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, um sujeito passivo pode ser obrigado a efetuar a dedução do IVA em função da afetação real da totalidade ou de parte dos bens e serviços utilizados (...) reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que é uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.°, n.° 5, primeiro parágrafo, e 19.°, n.° 1, dessa diretiva” e considerou, como se disse supra, ser compatível com o direito europeu o regime que se encontra espelhado no Ofício-Circulado n.º 30108 (parágrafos 17, 18 e 35 do Acórdão “Banco Mais”). Clarificou-se aí que, “embora a realização, por um banco, de operações de locação financeira para o setor automóvel, como as que estão em causa no processo principal, possa implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de eletricidade ou certos serviços transversais, na maioria dos casos esta utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos” e “nestas condições, o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas atividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o setor automóvel” (parágrafos 33 e 34 do Acórdão “Banco Mais”).
A Requerente chama ainda à colação a decisão do TJUE no processo Volkswagen Financial Services, C-153/17, de 18 de Outubro de 2018. No entanto, tal como se assumiu no processo n.º 128/2021-T, não nos encontramos perante uma situação transponível para o caso concreto, já que, no nosso ordenamento jurídico, o IVA incide sobre a totalidade da renda (artigo 16.º, n.º 2, alínea h), do CIVA), abarcando a componente do juro, ao passo que no caso referido, o regime fiscal do Reino Unido obrigava à desagregação das rendas em duas operações, estando a componente juro isenta de IVA e sendo tributada a parte relativa à amortização, excluindo as autoridades fiscais deste país a componente de amortização do pro rata, não sendo tidas em conta as despesas com bens e serviços repercutidos na parte dos juros. Também o STA não retirou quaisquer consequências desta jurisprudência que determinassem a reversão das suas posições, mencionando-se no Acórdão de 20 de janeiro de 2021, “que o Tribunal de Justiça da União Europeia não pretendeu ali reformular o entendimento firmado no acórdão “Banco-Mais”, mas sublinhar que aquela jurisprudência não podia ser aplicada de maneira geral, abrangendo todos os tipos de operações de locação financeira para o setor automóvel. [§ Incluindo aquelas em que a aplicação de um método de repartição que não tenha em conta o valor do veículo aquando na sua entrega não seja adequada a garantir uma repartição mais precisa do que a baseada no volume de negócios. O que sucedia naquele caso específico porque havia uma afetação real e significativa dos custos gerais a operações que conferiam o direito à dedução (§ 57). Porque esses custos eram efetuados tendo em vista a disponibilização de veículos (§ 44) e eram, apesar disso, imputados aos próprios custos de financiamento, em vez de serem imputados ao valor inicial do veículo aquando da sua entrega (§ 13).
Em lado algum se conclui que, no caso dos autos, também havia uma afetação significativa dos custos gerais à disponibilização dos veículos.
Face ao exposto, tal como decorre da jurisprudência da União e vem sendo reiterado nas decisões do STA, haverá que apurar se nas operações de locação financeira automóvel, que podem implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação ou pela disponibilização dos veículos, o que não deixa de ser reconhecido pela Requerente quando alega que no caso dos autos se está perante uma situação em que uma parte significativa dos gastos tem relação direta e imediata com a disponibilização das viaturas ou equipamentos de leasing”.
Acresce: a parcela “amortização do capital” (e o IVA que lhe está associado), no âmbito da renda mensal por contrapartida da locação financeira, está intimamente ligada ao IVA suportado no preço de compra inicial do veículo, objeto do contrato de locação, e que é inicialmente deduzido pela Requerente através de uma imputação direta. O mesmo é dizer que a consideração da parcela da amortização financeira na fração do numerador do pro rata, ao longo da vida útil do contrato, poderá conduzir a uma dupla dedução de IVA. Portanto, há que ter presente que, neste tipo de situações, não estará em causa necessariamente, uma subdedução do IVA suportado, como parece pretender a Requerente. Pelo contrário, o recurso a um pro rata determinado nos termos por ela pretendidos, poderá conduzir a um excesso de dedução.
No caso concreto, a Requerente determinou o valor do IVA a deduzir tendo em consideração as orientações genéricas emanadas pela AT, procedendo à aplicação do coeficiente de imputação específico definitivo do ano 2021, em estrita consonância com o preceituado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, não estando aqui em causa a questão de saber se a tal estava obrigada pelo referido instrumento administrativo.
Pretendendo ver alterada a percentagem de dedução, recaía sobre ela o ónus da prova dos factos constitutivos do direito à dedução do imposto (artigo 74.º, n.º 1, da LGT), competindo-lhe demonstrar, face à realidade que vertera na sua declaração de autoliquidação de IVA, a verificação dos factos que determinam o aumento da percentagem do imposto dedutível de 7% para 23%.
O que se compreende, visto que no caso concreto é o próprio sujeito passivo que pretende alterar o valor da dedução do IVA face ao valor também por si declarado. Destarte, considerando que a determinação inicial do imposto que apurou se encontrava viciada, caber-lhe-ia, tout court, fazer a prova dos factos constitutivos do direito que invoca. Ora, a prova produzida não permitiu determinar minimamente qualquer quantificação relativa aos recursos de utilização mista que são utilizados em cada uma das atividades desenvolvidas no âmbito dos contratos de locação financeira, nem se logrou comprovar que o consumo de recursos gerais da Requerente é aí primordialmente determinado pela disponibilização da viatura face aos gastos relacionados com o financiamento e a gestão do contrato de locação financeira.
Consequentemente, não procede a pretensão da Requerente.
III.1 - Pedido de Reenvio prejudicial
Como se deixou explicitado, a questão fundamental discutida nos autos e que constitui ratio decidendi do juízo supra firmado foi já clarificada pelo próprio TJUE no caso “Banco Mais”, atrás referido, e encontra-se também consolidada na jurisprudência do STA, que por diversas vezes se vem pronunciando sobre a matéria, a questão de interpretação das pertinentes normas do direito europeu. Também se deixou explicitado que o STA já tomou posição expressa sobre a questão de saber se o acórdão Volkswagen havia alterado a doutrina afirmada pelo acórdão “Banco Mais”, tendo concluído pela negativa. Não parece, pois, existir uma dúvida razoável na interpretação de normas do Direito da União (de normas do CIVA que transpõe a Diretiva IVA) capaz de justificar o apelo ao TJUE. Mais importante: mesmo a existirem tais dúvidas, a consulta ao TJUE resultaria irrelevante para a boa decisão da causa pois a Requerente não fez prova de factos que seriam o pressuposto necessário à aplicação do entendimento normativo por si sustentado. Assim, considera-se desnecessário o reenvio prejudicial, indeferindo-se o requerido.
IV - DECISÃO ARBITRAL
Termos em que se conclui pela improcedência do pedido principal e, consequentemente, dos demais, porque dele dependentes.
Valor: € 481.714,81, o montante da liquidação (parcialmente) impugnada.
Custas a cargo da Requerente por ter exercido a poção de nomear árbitro.
8 de outubro de 2024
Os árbitros
Rui Duarte Morais (relator)
Clotilde Celorico Palma
(Com voto de vencida)
António de Barros Lima Guerreiro
Voto de Vencida
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Nota Prévia
Com todo o respeito pelo Relator do presente Acórdão, que é muito, não nos podemos rever no sentido da decisão que, a nosso ver, parte de uma errónea interpretação dos preceitos em causa e da apreciação do Direito da União Europeia tal como tem vindo a ser interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
Desde logo, entendemos que o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva IVA, não foi adequadamente transposto pelo artigo 23.º, n.ºs 2 e 3 do Código do IVA, não permitindo à AT a imposição do método de afectação real previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009 (coeficiente de imputação específico), no caso de instituições de crédito que desenvolvam simultaneamente actividades de Leasing ou de ALD.
Desde logo, importa denotar que as consequências que no caso presente se pretendem retirar dos denominados Casos Banco Mais e Volkswagen e da aludida jurisprudência de uniformização, nomeadamente ao Acórdão para uniformização de jurisprudência de 4 de Março de 2020 (Processo n.º 7/19) não se afiguram correctas, como magistralmente demonstram os Professores José Guilherme Xavier de Basto e António Martins em artigo que seguidamente se cita, bem como no Parecer junto aos autos.
Acresce que na jurisprudência do CAAD encontramos, para além de jurisprudência mais antiga, posições recentes no mesmo sentido, como, nomeadamente, nas decisões arbitrais exaradas nos Proc.s .º n.º532/23 T, de 15 de Fevereiro de 2024 e n.º 494/23 T, de 13 de Dezembro de 2023, entendimentos estes veiculados posteriormente à referida jurisprudência uniformizadora do STA, bem como ao Caso Volkswagen, cujas reais consequências não são devidamente ponderadas e extraídas no presente Acórdão.
Vejamos.
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Inconstitucionalidade do quadro legal
Vejamos neste contexto as ilações extraídas da decisão no Proc. n.º 494/23 T, de 13 de Dezembro de 2023, emanada de colectivo onde não participámos, as quais partilhamos inteiramente:
“3.3.3. Inconstitucionalidade da previsão de um método de dedução não previsto em diploma de natureza legislativa
Embora o artigo 173.º, n.º 2, da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português, além do mais, «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA.
Na verdade, entre os métodos para efectuar a dedução prevista no CIVA, não se inclui o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, mas sim, quanto a métodos que utilizam uma percentagem de dedução, apenas o indicado no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA e que o que foi permitido ao Estado Português pela Directiva, por via legislativa, não era permitido à Direcção-Geral dos Impostos, através de Ofício-Circular.
Esta questão de saber se, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP (atinentes ao princípio da legalidade tributária), é permitida a criação normas inovatórias sobre métodos de efectuar a dedução (que se reconduzem a normas de determinação da matéria tributável), por via de Ofício-Circulado emitido pela Direcção-Geral de Impostos, como se prevê no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, é uma questão distinta da de saber se o Estado Português, por via legislativa, podia criar tais métodos, à face do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva n.º 2006/112/CE.
Esta questão da compatibilidade com a CRP do referido artigo 23.º, n.º 2, do CIVA e do Ofício-Circular referido, não é uma questão de interpretação do Direito da União, mas sim uma questão de Direito Nacional, uma questão de inconstitucionalidade de normas e não da correcção ou incorrecção da sua aplicação.
Esta questão de inconstitucionalidade não é, assim, a de saber se, à face do Direito da União Europeia, do CIVA e do Ofício-Circulado n.º 30108, a Administração Tributária podia impor ao Sujeito Passivo o método previsto no ponto 9 deste Ofício-Circular, mas sim a de saber se aquele artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional se interpretado como permitindo à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.
As regras sobre o direito à dedução de IVA, de que resulta o montante do imposto suportado pelo sujeito passivo, são regras de incidência objectiva.
Na verdade, são normas de incidência, em sentido lato, as que «definem o plano de incidência, ou seja, o complexo de pressupostos de cuja conjugação resulta o nascimento da obrigação de imposto, assim como os elementos da mesma obrigação» ([9] ).
Neste sentido, tanto são normas de incidência as que determinam o sujeito activo e passivos da obrigação tributária, como as que indicam qual a matéria colectável, a taxa e os benefícios fiscais. ([10] )
Assim, por violação dos artigos 112.º, n.º 5, e 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), e 266.º, n.º 1, da CRP, recusa-se a aplicação do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, na interpretação subjacente ao Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, segundo a qual, a Administração Tributária poderia impor aos sujeitos passivos de IVA, através de diploma normativo de natureza não legislativa, condições especiais limitadoras do direito à dedução, de que resulta os sujeitos passivos terem de suportar imposto que não suportariam se elas não existissem.
Consequentemente, o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.
3.3.4. Ilegalidade da imposição através de norma administrativa de um método de execução do direito à dedução não previsto legislativamente
Não tendo o método de exercício do direito à dedução sido previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 sido previsto em diploma de natureza legislativa, não pode a Administração Tributária determinar a sua aplicação, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.
Este último diploma, definindo tal princípio, estabelece que «os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins».
À face desta norma, o princípio da legalidade deixou de ter «uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a actuação administrativa». ([11] )
Por isso, não tendo suporte legislativo a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.
Mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma de natureza legislativa nacional, em matéria em que não é directamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade, em que se insere o da hierarquia das fontes de direito, à face do qual não é constitucionalmente admissível que seja reconhecido a actos de natureza não legislativa «o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos» (artigo 112.º, n.º 5, da CRP), para mais em matéria sujeita ao princípio da legalidade fiscal, em que se está perante matéria inserida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP].
Na verdade, a força vinculativa das circulares e outras resoluções da Autoridade Tributária e Aduaneira de natureza geral e abstracta, publicitadas, circunscreve-se à ordem administrativa, pois resulta somente da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem. Por isso, as orientações genéricas da Autoridade Tributária e Aduaneira, nomeadamente quanto à interpretação da lei fiscal, apenas vinculam os funcionários sobre quem o emissor tem posição superior na hierarquia, mas essas orientações não vinculam os particulares, cidadãos ou contribuintes, nem os Tribunais, que devem interpretar e aplicar as leis fiscais sem qualquer dependência dos critérios adoptados pela Administração fiscal através dos referidos «despachos genéricos, das circulares e das instruções» (artigo 203.º da CRP). ([12] )
É com este alcance que o n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT estabelece que «a administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias».
Consequentemente, a autoliquidação efectuada pela Requerente aplicando as regras dos n.ºs 8 e 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, impostas pela Administração Tributária, enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade, decorrente da ilegalidade da imposição dessas regras, vício esse que justifica a anulação da autoliquidação, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a confirmou.”
Com efeito, entendemos que o normativo constante do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (conjugado com o respectivo n.º 3) não representa uma transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução acolhida no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, que se configura como uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, desta Directiva.
Termos em que, entendemos que a interpretação do artigo 23.º, n.º2, do CIVA, levada a cabo pela AT, entendida por esta como norma como habilitante a aplicar ou a impor à Requerente um coeficiente de dedução diverso do método pro rata, através da imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108, é material e formalmente inconstitucional, por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (103.º, n.º 2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (165.º, n.º 1, alínea I) da CRP, não tendo o legislador feito uso da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fracção.
Mas, como se nota igualmente no aludido Proc. n.º 494/23 T, de 13 de Dezembro de 2023, “3.3.5. Falta de prova de «distorções significativas da tributação»
De qualquer forma, a aceitar-se a possibilidade de a Administração Tributária impor o método previsto no ponto 9. do Ofício-Circulado 30108, ele só é aplicável, como se refere na alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, «quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação».
(…)
Na verdade, não se referem no Ofício-Circulado n.º 30108 em que consistem as «distorções significativas na tributação» que resultarão da aplicação do método do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, que tanto poderão provocar vantagens como prejuízos, formulando-se nesse sentido um juízo conclusivo, cujos fundamentos não se demonstram. A afirmação feita no ponto 8. do Ofício-Circulado de que «aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas» é também conclusiva e obscura, pois não se esclarece quais as aludidas vantagens ou prejuízos, nem para quem, nem em que consiste a falta de coerência que se invoca.
De qualquer forma, o procedimento que a Administração Tributária impôs no referido Ofício-Circulado tem a potencialidade de provocar distorções significativas na tributação, como bem demonstram JOSÉ XAVIER DE BASTO e ANTÓNIO MARTINS ([13] ), relativamente à locação financeira com rendas mensais constantes:
«Ora não se consegue demonstrar que o expurgo da amortização financeira contribui para uma sintonia mais fina na determinação da parcela de imposto dedutível. Bem ao invés, demonstra-se que o procedimento que a AT quer obrigar o sujeito passivo a adoptar provoca distorções significativas de tributação e não consegue de modo algum o objectivo que a lei, no artigo 23.º, n.º 3, atribui ao método da afectação real – o objectivo de efectuar a dedução de “com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços [de uso “promíscuo”] em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito.
Em financiamentos cujo reembolso é efectuado em prestações periódicas, sabe-se que os juros se apuram e pagam antes da amortização de capital, esta dada pela diferença entre renda total e juro pago. Nas sucessivas prestações, quer em termos de rendas constantes quer de rendas variáveis, como a seguir melhor se verá numericamente, a parte imputável a juros vai flutuando ao longo do tempo de duração do contrato».
Sendo assim, que consequência tem o apuramento do IVA dedutível segundo o método imposto pela AT de expurgar a amortização do cálculo da parcela dedutível? Tem a consequência de fazer flutuar a percentagem de IVA dedutível ao longo do tempo de duração do contrato.
Esta flutuação, porém, só teria razão de ser se houvesse fundamentos para crer que ao longo desse tempo a intensidade do uso dos inputs promíscuos flutuava também na mesma onda. Ora, é bem claro que não há qualquer razão para crer que seja assim. A intensidade do uso desses bens e serviços será eventualmente a mesma, ou se não for, não é através de uma percentagem de dedução calculada com quer a AT que poderá ser apurada essa eventual diferença de intensidade.
A solução imposta pela AT provoca, ela sim, distorções na tributação. Pode entender-se que o método do pro rata a que chamaríamos normal não apura com suficiente rigor a parcela de imposto dedutível, mas ele é, sem dúvida, melhor do que trabalhar com uma percentagem de dedução que faz flutuar a parcela de imposto dedutível ao longo do tempo sem qualquer relação com diferenças na intensidade do uso dos inputs promíscuos pelo sector de actividade cujas operações conferem direito à dedução.
A pretensão da AT em aperfeiçoar o apuramento do imposto dedutível só poderia eventualmente ser conseguida impondo um verdadeiro método de afectação real, não um pro rata manipulado, sem significado e adequação ao objectivo pretendido de evitar distorções significativas na tributação».
(…)
3.3.6. Princípio da igualdade
A distorção da tributação provocada pelo método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 detecta-se também quando se compara a limitação do direito à dedução quanto a recursos afectos à locação financeira quando é efectuada por um banco com a de um sujeito passivo que apenas se dedique às actividades de locação financeira e ALD.
Na verdade, o sujeito passivo que apenas se dedique à locação financeira e ALD poderá, sem qualquer limitação, deduzir a totalidade do IVA suportado nos bens e serviços que adquira para exercer essa actividade, pois ela é totalmente tributada, nos termos do artigo 16.º, n.º 1, alínea h) do CIVA, e o artigo 20.º, n.º 1, deste Código assegura o direito à dedução do imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos para realização das operações de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas.
Em última análise, à luz do referido Ofício Circulado, bastará apenas a realização de uma única operação de concessão de crédito, a par de milhares de operações de locação financeira, para o direito de dedução do IVA suportado com os custos gerais passar de total a insignificante.
Assim, o princípio da igualdade (proporcionalidade) exigirá que ao locador financeiro ou alugador de longa duração que, além dessa actividade tributada, desenvolve também actividade isenta, possa deduzir o IVA na parte proporcional ao volume de negócios daquela actividade.
Por isso, são materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), as normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, se interpretadas como a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108.”
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A interpretação dos Casos Banco Mais e Volkswagen
Acresce que, tal como mencionámos, salvo o devido respeito, no presente Acórdão não se retiram as devidas consequências dos denominados Casos Banco Mais e Volkswagen.
Neste contexto e para os efeitos tidos por convenientes, reproduzimos, no essencial, a parte de direito do Acórdão 259/2022-T, de 6 de Janeiro de 2023, do qual fomos relatora, fazendo-se desde já notar que, por opção de clarificação, mantemos as respectivas notas de rodapé:
“ A AT invoca que a questão ora em análise foi já apreciada pelo TJUE, no Acórdão proferido no Caso Banco Mais, Proc. C-183/13, de 10 de Julho de 2014, alegando que este veio a confirmar a posição da AT nesta matéria, invocando ainda o Acórdão do STA, de 4 de Março de 2020, proferido no âmbito do recurso n.º 052/19.
Ora, entendemos desde logo que a interpretação levada a cabo pela AT não tem apoio directo nos textos legais, uma vez que o legislador não fez uso da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fração.
(…)
Assim, como bem notam os Professores Doutores Guilherme Xavier de Basto e António Martins analisando o designado Caso Banco Mais julgado pelo TJUE[1], “O Acórdão parece fundamentar a sua decisão final – no sentido de que o direito comunitário não se opõe a que um Estado membro obrigue um banco que exerce, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, que corresponde aos juros (com exclusão, portanto, daquela outra parte que corresponde a “amortização financeira”) – no que é hoje o artigo 173º, nº 2 alínea c) da directiva (citando o artigo 17º, nº 5, terceiro parágrafo, alínea c) da 6ª directiva, aplicável aos factos tributários controvertidos no processo).
Ora, nessa disposição, atrás transcrita, do que se trata é de autorizar os Estados a, afastando-se da regra mais geral da percentagem de dedução, efectuar a dedução “com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”. O método dito da afectação real é uma alternativa ao método da percentagem de dedução ou do pro rata, mas não consiste em alteração do algoritmo de cálculo dessa percentagem, o qual está estabelecido no artigo 174º da directiva e envolve a construção de uma fracção em que no numerador se inclui “o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução” (alínea a) do nº 1) e no denominador “o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução” (alínea b) do mesmo nº).
Deve porém analisar-se se essa faculdade, que o TJUE admite que os Estados membros exerçam, foi efectivamente tomada pelo legislador português. A resposta, a nosso ver, é negativa e a imposição da AT de operar com um pro rata diferente do definido no nº 4 do artigo 23º do CIVA afigura-se sem fundamento legal no direito nacional. Não é obviamente um ofício-circulado, que não é mais que um regulamento interno que apenas obriga os serviços, mas não tem eficácia externa, que pode substituir-se à lei, impondo aos sujeitos passivos aquilo que a lei não prevê.”[2]
Neste contexto, salientam que, “As distorções de tributação que o legislador nacional previu que poderiam existir na modulação do direito à dedução são, na nossa lei, resolvidas através da imposição ao sujeito passivo do método da afectação real (nº 3, alínea b) do artigo 23º, ou, quando elas resultam de o sujeito passivo ter optado por esse método, da imposição de o abandonar (parte final do nº 2 do mesmo artigo). Também é certo que a lei consente que, no caso de opção pelo método da afectação real, a administração possa impor ao sujeito passivo “condições especiais”, que a lei não define, mas que não consistem em alteração do pro rata de dedução.”
Igualmente neste sentido, José Maria Montenegro[3] conclui, adequadamente em nosso entendimento, que o legislador nacional não usou da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da fracção do pro rata de dedução, pelo que o que é permitido pelo artigo 23.º, n.º 3, do CIVA, não estando em causa uma alteração ao modo como o sujeito passivo apurou o seu pro rata, tratando-se sim, nos termos legais, de uma alteração do método de dedução. Assim, como nota o autor, no Caso Banco Mais o direito nacional não terá sido analisado com o rigor e a profundidade desejável, sendo que a pertinência da resposta do Tribunal dependia de ser verdadeiro o pressuposto de que a lei portuguesa concede poderes à AT, através de uma decisão administrativa, de alterar a composição do pro rata de dedução. Ora, não dando a nossa lei esses poderes, as respostas do Tribunal não contribuem para legitimar a interpretação que a AT tem vindo a querer impor.
Note-se que, tal como alega a Requerente, no Caso VW Financial Services[4], veio o TJUE acrescentar, que “não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C‑183/13, EU:C:2014:2056), que o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados‑Membros, de maneira geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o setor automóvel, como as operações de locação financeira em causa no processo principal, um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega” (cfr. n. 56).
Aditando que ainda que, “sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não se pode considerar que tais modalidades reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações. Por conseguinte, tais modalidades não são suscetíveis de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.” (cfr. n. 57).
Neste contexto conclui o TJUE que, “(…) os artigos 168.º e 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.” (cfr. n. 59).
No mesmo sentido, como já antes referimos, vão a maioria das decisões do Tribunal Arbitral.
Assim, na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 309/2017, de 20 de Novembro de 2017, conclui-se que, “(…) embora a Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo. (…).
Por isso, não tendo suporte legal a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.
(,,,)
Pelo exposto, conclui-se que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade (…).”
Também na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 339/2018, de 25 de Março de 2019, se conclui que, “A Requerente sustenta, todavia, que o artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA não transpõe para o direito interno a disposição do artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Diretiva baseando-se essencialmente no seguinte argumento: enquanto a Directiva permitia que os Estados-membros autorizassem ou obrigassem o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens ou serviços, o legislador nacional não conferiu à Administração essa prerrogativa, limitando-se a permitir o controlo dos critérios objectivos que o sujeito passivo tenha utilizado quando opte pelo mecanismo da afectação real.”
Veja-se igualmente a Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 498/2018, de 28 de Maio de 2019, nos termos da qual se decide que, “Assim, ter-se-á de concluir que a faculdade concedida à Autoridade Tributária pelo n.º 3 do artigo 23.º não inclui a faculdade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem de dedução que, assim, só pode ser utilizada nas situações em que está prevista directamente na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, e este método é o que consta do n.º 4 do mesmo artigo. Embora à luz da referida Jurisprudência, se possa admitir que a Directiva IVA permitia ao legislador interno «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», a verdade é que este não usou tal prerrogativa, pelo que não pode a mesma ser aplicada internamente por ausência de base legal”.
Na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 581/2018, de 17 de Junho de 2019, conclui-se no mesmo sentido que, “Pelo que a imposição da AT de operar com um pro rata diferente do definido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA afigura-se sem fundamento legal no direito nacional. Não é um Ofício-Circulado, que não é mais que uma instrução interna que apenas obriga aos serviços, mas que não tem eficácia externa, que pode substituir-se à lei, impondo aos sujeitos passivos aquilo que a lei não prevê.”
Acresce que importa atender que, como se faz notar na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 769/2019, de 2 de Abril de 2020, “Mas, mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma de natureza legislativo nacional, em matéria em que não é directamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade, em que se insere o da hierarquia das fontes de direito, à face do qual não é constitucionalmente admissível que seja reconhecido a actos de natureza não legislativa «o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos» (artigo 112.º, n.º 5, da CRP), para mais em matéria sujeita ao princípio da legalidade fiscal…”
Atente-se no voto de vencida no âmbito do Processo n.º 887/2019, de 12 de Outubro de 2020, que, no tocante ao Caso Banco Mais, conclui que, “neste caso o TJUE considerou que a Sexta Diretiva do IVA não se opõe a que os Estados membros apliquem, numa determinada operação, um método ou critério diferente do método baseado no volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução mais precisa do que a resultante daquele outro método. Ora, analisado o Acórdão (…), conclui-se que parte de uma premissa que não está correta, dado assumir uma interpretação, sem na realidade verificar se a lei portuguesa (o disposto no artigo 23.º do Código do IVA) prevê ou não mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista.”
Por seu turno, como se conclui na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 335/2018, de 14 de Dezembro de 2020, “(…) tem de se concluir que o poder concedido à Administração Fiscal pelo n.º 3 do artigo 23.º, não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem dedução. (…) Por isso, embora a Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo. Este último diploma, definindo tal princípio, estabelece que «Os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins».” “Por isso, não tendo suporte legal a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.” “Pelo exposto, conclui-se que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade, pelo que procede o pedido de pronúncia arbitral.”
Veja-se ainda a Decisão proferida no Processo n.º 58/2020-T, de 21 de Janeiro de 2021, em conformidade com a qual se deve recusar a aplicação do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA “na interpretação subjacente ao Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, segundo a qual, a Administração Tributária poderia impor aos sujeitos passivos de IVA, através de diploma normativo de natureza não legislativa, condições especiais limitadoras do direito à dedução, de que resulta os sujeitos passivos terem de suportar imposto que não suportariam se elas não existissem.”
Igualmente no Processo n.º 58/2020-T, se salienta que, “em face da jurisprudência do TJUE e do Supremo Tribunal Administrativo, a possibilidade de impor o método de cálculo do pro rata de dedução quanto a recursos de utilização mista previsto no n.º 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, no que concerne aos contratos de locação financeira efetuados por bancos, não é admitida generalizadamente, antes «tal situação será excecional», dependendo de se verificar, casuisticamente, que a utilização dos «bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos» (processo C-183/13, Banco Mais, e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 15-11-2017, processo n.º 0485/17, e de 04-03-2015, processos n.ºs 081/13 e 01017/12, e de 04-03-2020, processos n.ºs 7/19.4BALSB e 052/19.0BALSB, entre muitos outros).”
Note-se que, no contexto deste Processo, o Tribunal Arbitral, a propósito do Acórdão do TJUE no âmbito do Caso VW Financial Services, vem concluir que, “na linha desta jurisprudência, tendo em conta que a obrigatoriedade da jurisprudência do TJUE implicará o acatamento da mais recente quando ela se modifica, tem de entender-se que o método previsto no ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108, que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, tem de considerar-se não suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios, pelo que, também sob esta perspetiva, é incompatível com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE” (cfr. página 75 da referida decisão do Tribunal Arbitral).
De entre esta extensa panóplia de Decisões cumpre ainda salientar a proferida no Processo n.º 576/2021-T, de 14 de Fevereiro de 2022.
Nesta Decisão, inicia o Tribunal Arbitral por analisar a decisão proferida no referido Caso VW Financial Services, nos seguintes termos: “Assim, neste acórdão do processo C-153/17, apesar de ficar demonstrado que os custos gerais eram imputados à parte das rendas referentes aos juros e a parte das rendas correspondente ao capital não era tributada (por ser isenta à face da lei inglesa), entendeu-se que esta última não podia ser completamente excluída do cálculo do pro rata, pelo que esta jurisprudência não pode deixar de ser aplicável à face da lei portuguesa, em que toda a atividade de leasing é tributada e, por isso, trata-se na totalidade de operações que dão direito à dedução, à face do artigo 20.º, n.º 1, e para efeitos do artigo 23.º, n.º 4, do CIVA.
Na verdade, se o TJUE entendeu que, mesmo nos casos de a parte das rendas correspondente às amortizações não ser tributada (como sucede na lei inglesa) esse montante não podia ser excluído completamente do numerador da fração, por maioria de razão valerá este entendimento quanto este montante também é tributado em IVA (como sucede na lei portuguesa) e, por isso, se está perante operação que confere operações que conferem direito a dedução, relativamente à qual resulta explicitamente da lei a sua inclusão no numerador da fração (artigo 23.º, n.º 4, do CIVA).
De qualquer forma, no citado acórdão 10-07-2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), não se admitiu generalizadamente que um Estado-Membro possa obrigar um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, mas apenas admitiu tal possibilidade «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar»”.
Termos em que se conclui que, “Como resulta desta parte final, na perspectiva do TJUE, não é compaginável com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE a imposição aos contribuintes de uma percentagem de dedução especial de forma genérica, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, pelo que a imposição dessa percentagem especial pelo Ofício-Circulado n.º 30108 e na decisão da reclamação graciosa, sem qualquer indagação da utilização real dos recursos de utilização mista, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito.”
De salientar em particular que veio ainda nessa Decisão reiterar-se o entendimento de que é necessário fazer um “apuramento casuístico” da utilização real dos bens e serviços de uso misto, em concreto, se é ou não sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos.
Termos de acordo com os quais o Tribunal Arbitral considerou expressamente que a autoliquidação então sindicada enfermava de erro sobre os pressupostos de direito, ao ter subjacente o entendimento de que a imposição do método que consta do ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108, pode ser efectuada pela AT, de forma genérica, “sem apreciação casuística da questão de saber se a concreta utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente relacionados com os contratos de locação financeira foi ou não sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes.”
O Tribunal chega mesmo a considerar que o método previsto no referido n.º 9 do Ofício-Circulado, por não ter “em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, em situação que se comprova uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais à disponibilização dos veículos”, não tem potencialidade para “garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios, pelo que, também sob esta perspectiva, é incompatível com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE, como entendeu o TJUE no processo C-153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd.”
Mas importa salientar que o Tribunal entende que, entre nós, a imposição daquele método apenas poderia ser feita por via de diploma legislativo e não de circular administrativa, pelo que a sua imposição “viola os princípios constitucionais da legalidade e da hierarquia das normas e o princípio administrativo da legalidade [artigos 103.º, n.º2, e 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP e 55.º da LGT]”. Acrescendo que o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à AT “impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.”
Assim como, conclui, por violação do princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º da CRP, “se interpretadas como a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108”.
No tocante à invocada decisão do STA, importa salientar que, distintamente do invocado pela AT, admite claramente antever a possibilidade de realização da prova sobre a utilização dos recursos mistos, designadamente por parte do sujeito passivo, de forma a apurar a adequação do critério e da taxa do pro rata por si utilizada – ou, neste caso, da taxa de dedução que pretende ver aplicada, por oposição ao previsto no Ofício-Circulado n.º 30108.
Face ao exposto, concluímos que a Requerente tem razão ao invocar que, atenta a jurisprudência comunitária e nacional neste âmbito, há que retirar as seguintes conclusões:
“ - A utilização de um critério de dedução de IVA dos recursos comuns como o defendido pela AT através do Ofício-Circulado não tem fundamento legal no Código do IVA, pelo que qualquer tentativa de aplicação do mesmo é ilegal;
- Ainda que tal critério possa ser admissível para o TJUE, à luz da interpretação das normas relevantes da Diretiva do IVA, o mesmo apenas é de aplicar caso se verifique que os recursos comuns são maioritariamente determinados pelo financiamento e gestão dos contratos; e,
- Para determinação do IVA dedutível, não se pode aplicar um método de repartição que não tenha em conta a situação concreta de cada contribuinte e as especificidades da sua atividade;
- Além disso, aquele método terá que ter igualmente em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.”
Idêntico entendimento foi, nomeadamente, veiculado no contexto do Proc. n.º 76/2022- T, de 22 de Fevereiro de 2023.
No tocante ao Caso Volkswagen, pretende-se no presente Acórdão circunscrever as conclusões deste Caso à situação peculiar do Reino Unido, seguindo-se uma interpretação que não podemos partilhar, como magistralmente demonstram os Professores Doutores Xavier de Basto e António Martins no Parecer junto aos autos.
Desde logo, importa salientar que no Caso Volkswagen se faz referência expressa ao Caso Banco Mais.
Nos n.ºs 54 e 55 do Caso Volkswagen sintetiza-se o entendimento acolhido pelo TJUE no Caso Banco Mais, elucidando-se que foram as circunstâncias concretas do caso que conduziram o Tribunal a considerar “que o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas atividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o setor automóvel.”
Contudo, distintamente das conclusões a que se chega no presente Acórdão, e que não podemos acompanhar, no Caso Volkswagen o TJUE fornece um guia de leitura do Caso Banco Mais que importa aplicar casuisticamente.
No Caso Volkswagen está em causa apurar a parcela de IVA dedutível contida em custos gerais relativos à administração corrente, dando-se como exemplo os custos ligados à formação e recrutamento do pessoal, às refeições e bebidas deste, à manutenção e melhoria da estrutura informática, etc.. Ora, como o TJUE conclui no n.º 44 “na medida em que estes custos gerais foram realmente efetuados, pelo menos em certa medida, tendo em vista a disponibilização de veículos, que são operações tributáveis, os referidos custos são parte, enquanto tais, dos elementos constitutivos do preço dessas operações”, e, portanto, deve admitir-se, quanto a eles, o respectivo direito à dedução. Ou seja, importa salientar que, em termos gerais, para o TJUE basta que tais custos sejam “pelo menos em certa medida” realmente efectuados tendo em vista a disponibilização dos veículos (que corresponde ao valor do capital financiado), não se exigindo prova cabal que assim tenha sido, basta que o tenha sido “em certa medida” porque, como custos gerais que são, dificilmente se consegue a sua imputação. Termos em que, a argumentação constante do presente Acórdão não procede ao concluir, ao fim ao cabo, que estamos perante uma questão de ónus da prova que incumbia à Requerente, quando é certo que dá como provados os factos de: “g) No âmbito da atividade de locação financeira, a Requerente incorre em custos com a contratação e gestão destes contratos e com a disponibilização das viaturas.
h) No que concerne ao leasing automóvel, a Requerente realiza um conjunto heterogéneo de ações entre as quais constam as seguintes: autorização da entrega do bem locado após emissão do contrato; pagamento a fornecedores e processamento do empréstimo; participação no processo de legalização; controlo do pagamento de impostos das viaturas financiadas em leasing; identificação de condutores das viaturas locadas em caso de infração; manutenção de seguros dos bens locados; envio de comprovativos de apresentação e documento único automóvel; emissão de declarações; gestão de recibos de indemnização; contabilização e reporte financeiro dos bens recuperados e posteriormente alienados, em virtude de incumprimento contratual, do não exercício de opção de compra ou de cedência de posição contratual.”
Ou seja, no Caso Volkswagen estamos claramente perante um entendimento que, distintamente das conclusões a que se chega no presente Acórdão, contraria as exigências probatórias que alguma jurisprudência portuguesa tem vindo a impor aos sujeitos passivos para preencher o requisito do aludido Caso de que os juros correspondem ou não a contrapartida de “custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro” e que no presente Acórdão se insiste em prosseguir.
Denote-se ainda que no n.º 56 do Caso Volkswagen no tocante à interpretação do Caso Banco Mais, o TJUE salienta que “não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C‑183/13, EU:C:2014:2056), que o artigo 173.o, n.o2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados‑Membros, de maneira em geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o setor automóvel, como as operações de locação financeira em causa no processo principal, um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega.”
Importa, em síntese, garantir-se, “atendendo à natureza fundamental do direito à dedução”, que o método alternativo de determinação do IVA residual dedutível é mais preciso do que o método baseado no volume de negócios (que é afinal o método do pro rata descrito no artigo 174.º), como se conclui no n.º 57:
“Em particular, atendendo à natureza fundamental do direito à dedução, recordada no n.o 39 do presente acórdão, sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não se pode considerar que tais modalidades reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações. Por conseguinte, tais modalidades não são suscetíveis de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.”
Termos de acordo com os quais o TJUE conclui que incumbe à jurisdição nacional verificar se o método alternativo “tem em conta a afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais para efeitos das operações que conferem direito à dedução” (n.º 58).
Nestes termos, a aplicação do método do volume de negócios apenas se poderá afastar se daí resultar um resultado mais preciso e mais rigoroso, sempre atendendo à natureza fundamental do direito à dedução. Ora, como demonstram magistralmente os Professores José Guilherme Xavier de Basto e António Martins no referido artigo e no Parecer junto aos autos, não é o que se verifica com o recurso ao método do “coeficiente específico” que a AT pretende impor para determinar a parcela de IVA residual dedutível nas operações de locação financeira. Pelo contrário, o recurso ao referido coeficiente distorce, em sentido desfavorável ao sujeito passivo, o seu direito à dedução, não lhe permitindo desonerar-se inteiramente do imposto suportado no quadro de todas as suas actividades económicas sujeitas a tributação, assim se violando o princípio da neutralidade ao se colocar em crise o normal exercício do direito à dedução.
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Da prova da utilização dos recursos
Uma nota para salientarmos que, ainda que se concluísse, erroneamente, que o entendimento da AT estava correcto, o certo é que, efectivamente, não sendo utilizados critérios objectivos de repartição dos recursos comuns, apenas é admissível a utilização do critério defendido pela AT no caso de os referidos recursos serem sobretudo determinados pelo financiamento e gestão dos contratos de locação.
Ora, em nosso entendimento não resulta provado de forma cristalina e inequívoca da documentação junta aos autos e da prova testemunhal que tal é o caso da Requerente.
Não se nos afigura que tenha ficado demonstrado que o método do pro rata previsto no artigo 23.º, n.º 4, do CIVA, provocou “distorções significativas da tributação”, não se tendo verificado no caso controvertido o pressuposto no qual o Ofício-Circulado n.º 30108 assenta a imposição da aplicação do coeficiente de imputação específico previsto no seu n.º 9.
De qualquer forma, em último caso, sempre teríamos de concluir estarmos, pelo menos, perante uma situação de “fundada dúvida”, que, como é sabido, deve ser processualmente valorada a favor da Requerente e não contra ela, por força do disposto no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, que se consubstancia como uma regra especial para situações em que esse tipo de dúvida subsiste, em processos jurisdicionais.
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Do reenvio prejudicial
Resulta do exposto que, não obstante em nosso entendimento as questões discutidas nos autos se encontrarem clarificadas pelo Tribunal de Justiça conforme a jurisprudência mencionada, o certo é que o percurso relatado demonstra que as divergências existentes, quer ao nível da doutrina quer da jurisprudência nacional, demonstram que, a final, existem dúvidas fundadas sobre o sentido e alcance das regras em apreço.
Termos em que, entendemos que, aqui chegados, seria recomendável proceder a reenvio prejudicial.
Lisboa, 2 de Outubro de 2024
A Árbitra
(Clotilde Celorico Palma)
[1] “A determinação da parcela de IVA dedutível contida nos inputs “promíscuos” dos operadores de locação financeira – as consequências do Acórdão do TJUE no caso Banco Mais, de 10 de Julho de 2014 (Proc. C-183/13)”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Coimbra, a.10n.1(Primavera2017), pp. 27-56.
[3] Veja-se José Maria Montenegro, “Comentário ao acórdão «Fazenda Pública contra Banco Mais, SA» de 10 de Julho de 2014, Proc. C- 183/13”, em Anuário de Direito Internacional, 2014/2015, pp. 313-323.
[4] Decisão proferida no âmbito do Proc. C-153/17, de 18 de Outubro de 2018.