SUMÁRIO:
- Não se verificando os pressupostos previstos na lei para que a revisão oficiosa possa ter lugar (“erro imputável aos serviços” ou “injustiça grave ou notória” não imputável ao contribuinte), é conforme à lei o indeferimento expresso de tal pedido com esse fundamento.
- A não verificação de tais pressupostos é também impeditiva do conhecimento do mérito da causa pelo tribunal.
DECISÃO ARBITRAL
A..., S.A., NIF..., com sede na Rua ..., Nº ..., ..., ...- ... ...-... Lisboa veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
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O pedido
A Requerente peticiona a anulação das liquidações de IMI referentes aos anos de 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020 e de AIMI referentes aos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, relativas aos prédios adiante identificados em “factos provados”.
Consequentemente, pede a anulação da decisão que indeferiu o pedido de revisão oficiosa no tocante às liquidações que ora impugna.
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O litígio
Os prédios em causa figuram na matriz como sendo “terrenos para construção”. A existência jurídica de tais prédios e a sua classificação decorreram da obtenção de uma licença para loteamento do terreno onde se situam. Tal alvará de licenciamento foi declarado caduco em data anterior aos anos a que se referem as liquidações impugnadas.
A Requerente entende que as liquidações em causa são ilegais, sustentando que os prédios em causa, após a declaração de caducidade do alvará de loteamento, deveriam ter sido reclassificados como “outros prédios”, do que decorreria um menor valor patrimonial tributário e, consequentemente, imposto inferior ao liquidado.
Por seu lado. A Requerida sustenta, em suma, que:
- as liquidações impugnadas não sofrem de qualquer ilegalidade pois o imposto foi apurado tendo em conta os valores patrimoniais tributários, reportados a 31 dezembro do ano a que respeita o IMI, nos termos dos artigos 8.º e 113.º do CIMI, e reportados a 1 de janeiro do ano a que respeita o AIMI, nos termos dos artigos 135.º-A e 135.º G do CIMI.
- ser obrigação do contribuinte a declaração de alterações que o prédio tenha sofrido, para que as matrizes sejam atualizadas. E que a Requerente incumpriu com tal dever.
- o facto de o alvará de loteamento ter sido declarado caduco não é, só por si, razão suficiente para os imóveis em causa deixarem de ser havidos como terrenos para construção, pois tal qualificação pode resultar, nos termos da lei, do preenchimento de outros requisitos, nomeadamente da sua aptidão para construção nos termos dos instrumentos de gestão territorial aplicáveis.
- não ser aplicável à situação em causa, o meio de revisão previsto no art° 78° da LGT, por não existir “erro imputável aos serviços” e uma eventual injustiça, mesmo que grave ou notória, ter decorrido de comportamento negligente do contribuinte no tocante ao impulso necessário para a atualização das matrizes.
- considera ser mero sofisma a afirmação da Requerente de que não pretende discutir o VPT que serviu de base à liquidação mas sim a classificação dos prédios em causa, pois tal classificação é um dos elementos do qual depende a fixação do valor patrimonial tributário.
-sustenta que os invocados vícios da matriz predial não são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no constante de tais matrizes, invocando o Ac. Uniformizador do STA 23.02.2023, proc. n.º 102/22.2BALSB.
- entende que o procedimento de alteração da matriz é um procedimento administrativo autónomo, com eficácia jurídica própria, diretamente sindicável através de meios procedimentais previstos no Código do IMI para efeitos da conservação das matrizes urbanas — a atualização das matrizes (art° 13°) ou a reclamação das incorreções das matrizes (art° 130°), e as conexas garantias especiais (art°s 76° e 77°, bem como art°134° do CPPT) ou gerais (art° 66° CPPT).
c) Tramitação Processual
O pedido foi aceite em 15/01/2024.
A Requerente designou como árbitra Srª Prof. Doutora Nina Aguiar.
A requerida designou como árbitra a Srª Prof. Doutora Maria do Rosário Anjos.
O árbitro presidente foi indicado por consenso entre as árbitras.
O tribunal arbitral ficou constituído em 16/04/2024.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Por despacho de 22/08/2024, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.
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Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.
Não foram alegadas nem detetadas questões suscetíveis de impedir o conhecimento do pedido.
II.1 – Factos Provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente era proprietária, nos anos a que se referem as liquidações em causa, dos seguintes prédios urbanos, sitos na União de Freguesias de ... e ..., do concelho de Aveiro: U-... ...; U-... ...; U-... ...; U-... ...; U... ...; U-... ...; U-... ...; U-... ...; U-... ...; U-... ...; U-... ...; U-... ... .
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Tais prédios figuravam na matriz como sendo “terrenos para construção”.
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Tal classificação decorreu da obtenção pela Requerente, de um alvará (nº .../2001, emitido pela CM de Aveiro) que permitia o loteamento do terreno onde vieram a ser criados esses e outros prédios.
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As liquidações ora impugnadas tiveram por base os valores patrimoniais tributários que constavam nas matrizes prediais, com referência às datas previstas na lei.
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A Requerente foi declarada insolvente, em 15/03/2011, em processo que culminou com a aprovação de um plano de insolvência em 07/10/2021.
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Em 04/0/2013, a Câmara Municipal de Aveiro de declarar a caducidade do alvará de loteamento em causa.
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Tal decisão foi notificada ao Administrador de Insolvência, o qual a comunicou à assembleia geral de credores.
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A AT era credora da massa insolvente da Requerente, sendo representada em tal processo pelo MP, como é de lei.
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A caducidade do alvará de loteamento foi devidamente registada na Conservatória do Registo Predial.
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A Requerente não apresentou pedido de alteração da matriz (obrigação declarativa prevista no art° 13° do CIMI) após conhecer a caducidade do alvará de loteamento.
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Em 30.12.2020, a Requerente pediu a revisão oficiosa de vários atos de liquidação de IMI e da AIMI, entre os quais os que ora impugna.
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Invocando erro imputável aos serviços, por entender que as liquidações em causa sofrem de erro,” carecendo, nesse pressuposto, de serem revistas pois o prédio subsistente [aquele que foi objeto do alvará de loteamento e que esteve na génese dos lotes entretanto extintos] passou a subsumir-se à categoria «Outros», ao abrigo do disposto no artigo 46º do CIML”.
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E, subsidiariamente, invocando injustiça grave ou notória e, ainda, abuso de direito por “favorecimento de um credor específico em detrimento da globalidade dos credores”,
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A Requerente foi notificada, em 04-10-2023, do indeferimento de tal pedido de revisão, no relativo às liquidações que ora impugna.
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Tal indeferimento assentou na afirmação da legalidade das liquidações em causa e na inexistência de “injustiça grave e notória”, feita em termos que, adiante, melhor se analisarão.
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A Requerente procedeu ao pagamento parcial das dívidas de imposto objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.
Estes factos resultam da documentação junta aos autos, não tendo suscitado divergências entre as partes que, aliás, os mencionam expressamente nos respetivos articulados.
II.2- Factos não Provados
Não ficou provado que a declaração de caducidade do alvará de loteamento implicasse, automaticamente, a perda de qualidade de “terrenos para construção “dos prédios em causa. Isto porquanto tal qualidade poderia derivar (também) da verificação de outros pressupostos legais.
III – O DIREITO
Nos processos, judiciais ou arbitrais, de impugnação de liquidações, quando precedidos de recurso gracioso expressamente indeferido, existem como que dois “temas” de que cumpre ao tribunal conhecer: o ato de liquidação impugnado (normalmente designado por objeto mediato do processo) e o ato administrativo de indeferimento (normalmente designado por objeto imediato do processo).
Na maioria dos casos, a conclusão do tribunal pela ilegalidade da liquidação implica, como mera decorrência, a anulação do ato confirmativo proferido em sede de recurso gracioso (ou, o que é substancialmente o mesmo, segundo cremos, a decisão de recusa de “revisão”).
Porém, pelo menos a nosso ver, tal não é necessariamente assim quando a via de acesso ao tribunal foi – como é o caso - um pedido de revisão oficiosa de uma liquidação.
Antes de se pronunciar sobre a legalidade da liquidação impugnada, o tribunal pode ser chamado a apreciar, autonomamente, a decisão de indeferimento deste recurso gracioso (o previsto no artº 78º da LGT), nomeadamente a decidir se a AT tinha não a possibilidade legal de rever a liquidação contestada, se se verificavam ou não os pressupostos legais determinantes do poder-dever de revisão do ato tributário.
Embora o fundamento da revisão oficiosa possa ser uma qualquer ilegalidade, existe uma condicionante que não se coloca relativamente à reclamação graciosa: a ilegalidade fundamentadora da anulação da liquidação em sede de procedimento de revisão tem que ser imputável aos serviços, tem que existir erro destes.
Não está aqui em causa saber o que se deve entender por “serviços” para este efeito, uma vez que estão em causa ações ou omissões da própria AT.
Este tribunal arbitral está ciente da noção ampla de erro imputável aos serviços acolhida pela jurisprudência. Por simplicidade, diremos que tem que estar em causa uma qualquer ação, incluindo tarefas de interpretação e aplicação de normas legais, ou omissão (dos “serviços”) não conforme com a lei.
Coincidimos com a Requerida quando esta afirma que nenhum vício é imputado pela Requerente aos procedimentos de lançamento e liquidação em causa: o imposto liquidado foi apurado através do correto uso dos dados constantes das matrizes cadastrais de cada um dos prédios em causa, com referência às datas legalmente prescritas.
A ilegalidade invocada pela Requente consubstancia-se, antes, numa pretensa omissão, pela AT, do dever de atualizar as matrizes que serviram de base às liquidações em causa.
Ignorando, por tal resultar aqui desnecessário, a questão de saber se os procedimentos de elaboração, conservação e atualização das matrizes prediais, por serem procedimentos autónomos, podem ser objeto de apreciação em sede da revisão oficiosa prevista no º 1 do artº 78º da LGT uma vez que este é um procedimento dirigido à reapreciação de atos tributários, ou seja liquidações, há que atentar no disposto no artigo 13º do CIMI (inscrição nas matrizes).
Segundo tal norma, a inscrição e atualização das matrizes resultará, por regra, de iniciativa do sujeito passivo. Ora, ficou provado que a Requerente, através das pessoas a quem, no quadro do processo de insolvência então em curso, cabia a sua representação, nomeadamente o administrador de insolvência, não requereu a atualização das matrizes em causa em decorrência da declaração de caducidade do alvará de loteamento.
Há, de seguida, que saber se houve incumprimento pelos serviços do disposto no nº 3 do referido art 13º do CIMI[1] relativo à atualização oficiosa das matrizes.
Parece-nos óbvio afirmar que o cumprimento deste dever pressupõe o conhecimento de factos determinantes de alterações do constante das matrizes prediais em vigor.
Ora, não existe qualquer prova, qualquer indício sequer, que os serviços da AT a quem cabe a organização e atualização das matrizes[2] tenham tido conhecimento da caducidade do alvará de loteamento em questão.
Os únicos factos provados foram que a AT, na pessoa do seu representante legal no processo de insolvência, um magistrado do Ministério Público, teve conhecimento da revogação pela CM de Aveiro, do alvará em causa. E, ainda, que tal caducidade foi devidamente registada.
Ora, não se pode inferir (nem tal é conforme ao que nos mostram as regras de experiência) que o MP em questão tenha oficiado a AT dando conta da revogação de tal alvará, em especial que de tal tenha dado conhecimento aos “serviços” responsáveis pelas tarefas de atualização das matrizes.
Também não foi feita qualquer alegação (e prova) de que a competente Conservatória do Registo Predial tenha comunicado à AT o registo da caducidade do alvará de loteamento. Sendo que, ao que saibamos, não existe obrigação legal de uma tal troca automática de informação.
Assim, há que concluir que não se pode falar de um qualquer erro dos serviços por omissão, uma vez que não foi feita a prova do conhecimento pela Requerida dos factos que seriam determinantes para a sua atuação.
Relativamente ao fundamento da revisão oficiosa “injustiça grave ou notória”, bastará trazer à colação a parte final do nº 4 do art. 78ª da LGT: desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte
Ora, admitindo que a situação em causa possa configurar uma situação de injustiça grave (não é notório que os terrenos em causa, mesmo que com diferente inscrição matricial, não devessem continuar a ser havidos como “terrenos para construção”) nenhuma dúvida existe quanto à negligência dos representantes legais da Requerente, que se conformaram, anos e anos a fio, com liquidações de imposto incidentes sobre “terrenos para construção” quando bem sabiam que o alvará de loteamento (alegadamente, único fundamento de tal classificação), havia caducado; que nada fizeram para cumprir com a obrigação de promover a atualização das matrizes de prédios de que eram proprietários, para mais numa situação em que tal resultaria benéfico para a sociedade requerente.
Pelo que, as liquidações impugnadas não podiam ser objeto de revisão pela AT, nos termos dos nº 1 e 4 do art. 78º da LGT, por não se verificar qualquer um dos pressupostos que possibilitariam aos interessados lançar mão de tal procedimento. Tendo o indeferimento do pedido de revisão oficiosa sido a via de acesso utilizada para sujeitar a questão à apreciação deste tribunal arbitral, nos termos do art. 10º, nº 1, al. a) do RJAT, há que concluir que a decisão de indeferimento impugnada não merece censura.
Consequentemente, há que concluir pela total improcedência do pedido por não verificação dos pressupostos legais condicionantes da intervenção do tribunal (e da AT em sede de procedimento administrativo).
Termos em que se conclui pela total improcedência do pedido.
Valor: € 471.583,97 (o das liquidações impugnadas)
Custas arbitrais, no montante de 24.000 euros, a cargo da Requerente desde logo porquanto exerceu a opção de indicar um árbitro.
23 de setembro de 2024
Os Árbitros
Rui Duarte Morais (relator)
Maria do Rosário Anjos
Nina Aguiar
Voto de vencido
A revisão oficiosa prevista na segunda parte do nº 1 do art.º 78.º tem de ter obrigatoriamente por fundamento “erro imputável aos serviços”.
“Erro imputável aos serviços”, contudo, significa, de acordo com jurisprudência firmada e unânime, qualquer ilegalidade que fira o ato objeto do pedido (Ac. STA 2 Sec. de 08-03-2017, proc. 01019/14), desde que não seja um erro formal. Ou seja, qualquer violação de lei por erro nos pressupostos de facto ou de direito. O “erro imputável aos serviços” compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, e essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro (Ac. STA 2 Sec. de 14-03-2012, proc. 01007/11). Assim sendo, parece-nos irrelevante que que exista prova, ou indício, de que os serviços da AT a quem cabe a organização e atualização das matrizes tenham tido conhecimento da caducidade do alvará de loteamento em questão.
Em face da vasta jurisprudência aplicável, é de concluir de igual modo que o facto de a Requerente não ter ela, própria, levado ao conhecimento da AT o facto da caducidade do alvará de loteamento também não é suficiente para afastar a “imputabilidade aos serviços”. Com efeito, conforme é dito no acórdão do STA 2 Sec. de 19-11-2014, Proc. 0886/14 (Rel: Isabel Marques da Silva), “qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer um dos funcionários envolvidos na emissão do ato afetado pelo erro” (no mesmo sentido: Ac. TCA-N 2 Sec. de 12-01-2023, proc. 02408/16.0BEPRT; Ac. TCA-S CT de 25-11-2009, proc. 02842/09)
Ora, no caso vertente, as liquidações afiguram-se, efetivamente, ilegais por violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito, uma vez que, com a caducidade do alvará de loteamento, os prédios correspondentes aos lotes que o alvará criou, deixaram de existir.
No acórdão do STA de 27-11-2013 (STA 2 sec. 27-11-2013, proc. 076/13. Rel: Isabel Marques da Silva), o tribunal acatou a tese da sentença recorrida em que se dizia que “o efeito da caducidade [do alvará de loteamento] é o da extinção dos direitos a que se reporta, vide Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27/10/2004, Recurso n.º 581/02, não podendo esta, deixar de produzir efeitos nos lotes criados por força do licenciamento ao loteamento, que assim deixam de existir juridicamente como tais.”
O próprio STA, no aresto, diz: “É que se os lotes se constituem com a emissão da licença de loteamento, constando, de forma especificada, do respectivo alvará (artigo 77.º, n.º 1, alínea e) do RJUE então vigente), a caducidade da licença de loteamento, ao extinguir os direitos a que se reporta, produz necessariamente efeitos nos lotes criados por força do licenciamento, deixando os lotes previstos no licenciamento caduco de existir como tais (...) não podendo, pois, sobre uma realidade que deixou de existir individualmente, incidir IMI.”
A situação é em tudo idêntica à dos presentes autos. Portanto, as liquidações em apreço nos autos incidiram sobre um objeto juridicamente inexistente.
E note-se até que o caso apreciado pelo STA no aresto citado é idêntico ao dos presentes autos até na vertente adjetiva, pois também nesse caso a impugnação das liquidações teve por base o indeferimento de um pedido de promoção de revisão oficiosa.
Não vendo, nós, razão para nos afastarmos dessa jurisprudência, a nossa decisão iria no mesmo sentido.
Nina Aguiar
[1] Art. 13ºdo CIMI:
3 - O diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira procede, oficiosamente:
a) À inscrição de um prédio na matriz, bem como às necessárias atualizações, quando não se mostre cumprido o disposto no n.º 1;
[2] Em princípio, “os serviços de finanças onde os prédios se encontram situados” (art. 78º do CIMI).