SUMÁRIO:
1) O Tribunal Arbitral é materialmente competente para conhecer do pedido de anulação de liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário. 2) O acto tributário objecto de Pedido de Pronúncia Arbitral deve ser concretamente indicado e junto com o articulado inicial, cfr. art.ºs 10.º, n.º 2, al. b) do RJAT, 108.º, n.º 1 do CPPT e 79.º, n.º 3, al. a) do CPTA (aplicáveis ex vi art.º 29.º do RJAT). 2) É sobre o Autor que recai o ónus de observar os requisitos da petição inicial, ónus processual conforme ao princípio da auto-responsabilidade das partes. 3) Notificada a Requerente para se pronunciar sobre a matéria de excepção invocada pela Requerida, e tendo a mesma, quanto à excepção de ineptidão da petição inicial, vindo afirmar não lhe ser possível nem exigível a junção ou sequer a identificação do(s) acto(s) tributário(s) objecto do Pedido, ficando o Tribunal no desconhecimento do(s) acto(s) impugnado(s), confirma-se, desde logo, a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, que determina a nulidade de todo o processo, obsta ao conhecimento do mérito e é causa de absolvição da instância, cfr. art.ºs 577.º, b) e 576.º, n.º 2 do CPC (aplicável ex vi art.º 29.º do RJAT).
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Fernando Araújo (Árbitro-presidente), Sofia Ricardo Borges (Árbitro-vogal relatora) e David Nunes Fernandes (Árbitro-vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 26 de Janeiro de 2024, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., S.A., nipc ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...-......, Oeiras, Lisboa, doravante “Requerente”, ou simplesmente “Req.te”, veio, ao abrigo dos art.ºs 2.º, n.º 1 al. a) e 10.º, n.º 1, al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante “RJAT”), submeter ao CAAD pedido de constituição do Tribunal Arbitral.
Requer a constituição do Tribunal para “apreciar pretensões atinentes à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos”.
Suportou, segundo refere, entre Maio de 2019 e Dezembro de 2022 Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) nos combustíveis que, nesses meses, adquiriu. Mais, refere, “apresentou pedido de revisão oficiosa contra as referidas liquidações de CSR” que se mantém por decidir.
Pretende, assim, submeter à apreciação do Tribunal Arbitral (i) “a legalidade deste indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, na medida em que desatende o reconhecimento da ilegalidade das citadas liquidações de CSR repercutida na requerente nos meses de Maio de 2019 a Dezembro de 2022 e, bem assim, (ii) a legalidade de tais liquidações de CSR repercutida na requerente, num total de € 594.012,88”.[1]
Apresentou o pedido de revisão oficiosa “contra as referidas liquidações de CSR”, que se mantém até hoje por decidir e, assim, sustenta, “[e]m 28 de Agosto de 2023 formou-se presunção de indeferimento para efeitos de recurso aos tribunais, nos termos do disposto no artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da Lei Geral Tributária.”
Por essa razão, afirma, interpõe o Pedido de Pronúncia Arbitral, e o mesmo é tempestivo, “assistindo, inequivocamente, legitimidade processual à ora requerente para deduzi-lo”, sustenta.
Esclarece que “[o]s actos objecto do Pedido de Pronúncia Arbitral são o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa supra identificado, e, consequentemente (e em termos finais ou últimos), os actos de liquidação de CSR repercutida na requerente”. Conforme expõe, pretende que seja declarada a ilegalidade de ambos. Mais tendo a CSR sido repercutida em si nos meses de Maio de 2019 a Dezembro de 2022, pretende que as liquidações “sejam consequentemente anuladas -, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011”, “[d]evendo ser reembolsado o imposto repercutido aqui em causa”.
Alega necessitar, para a sua actividade, de adquirir combustíveis, a saber gasóleo e gasolina. Tendo adquirido tais combustíveis, no dito período, conforme constante das facturas emitidas pela B..., S.A., que junta. As quais, alega também, pagou.
Mais assevera que nas mesmas facturas “foi repercutido integralmente na requerente a CSR devida ao Estado pela introdução no consumo desses produtos energéticos vendidos à requerente”, “conforme confirmação do vendedor”. CSR essa ilegalmente liquidada, defende.
Não se conforma, expõe, com a CSR referente a esses combustíveis “repercutida nas referidas facturas”, e que perfaz, segundo os seus cálculos, que apresenta, por referência à “CSR (...) à data”, o total de € 594.012,88.
Em sede de Direito, convoca Acórdão do TJUE, de 7 de Fevereiro de 2022, no processo C‑460/21, caso Vapo Atlantic S.A., no qual se concluiu, segundo refere, ser ilegal a CSR aprovada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, por violação da Directiva 2008/118.
Mais no indeferimento tácito deverão ter-se por apreciadas as ilegalidades das liquidações, defende. Sendo irrelevante para o efeito o teor da Resposta da AT, expõe ainda, desenvolvendo. O relevante é que a pretensão do contribuinte se dirigia, e continua a dirigir-se, a um acto de liquidação, expõe “pelo que o meio próprio de reacção ao indeferimento administrativo dessa pretensão dirigida a acto de liquidação é a impugnação judicial ou a arbitragem tributária, independentemente dos fundamentos (...) nesse indeferimento administrativo”. Sendo que, sustenta ainda, tratando-se de indeferimento tácito “tem-se por apreciado o mérito do pedido dirigido ao órgão administrativo, in casu, pedido de declaração de ilegalidade e anulação de liquidações de imposto”.
Expõe, ainda por referência ao pedido de revisão oficiosa, que “não está em causa autoliquidação” e, assim, nem é convocável o entendimento da Requerida de que em autoliquidações não tem aplicação o prazo de 4 anos do n.º 1 do art.º 78.º da LGT. Pois que, nota, “na CSR, por remissão do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007 para os artigos 10.º, 10.º-A, n.º 1, 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1, do Código dos Impostos Especiais de Consumo, o que há são Declarações de Introdução no Consumo de produtos sujeitos a ISP e CSR, efectuadas pelos contribuintes, as quais originam as liquidações de ISP e de CSR, efectuadas pela AT”.
Sustenta ainda, com referência ao mesmo n.º 1 do art.º 78.º da LGT, quanto ao “erro dos serviços”, que este “não carece de ter em concreto origem nos serviços e muito menos em qualquer funcionário dos serviços”, sendo bastante “que o erro exista, in casu com origem na violação pela lei tributária do direito da União Europeia, ainda que não imputável a ninguém em concreto e muito menos ao contribuinte.” Defendendo, assim, subsumir-se ao conceito de “erro dos serviços” uma “violação de direito da União Europeia”. Convoca Jurisprudência neste sentido.
Por fim sustenta assistir-lhe direito a juros indemnizatórios.
“[S]uportou por repercussão a CSR liquidada sobre os combustíveis a si vendidos, imposto este indevido.” E, assim, “declarada a ilegalidade das liquidações aqui em causa” além de ter direito ao reembolso tem também direito aos ditos juros “ao abrigo do artigo 43.º da LGT”. Entre o mais a respeito, refere: “[a]cresce que o erro de que padecem as liquidações contra as quais se reclama resulta de erro dos Serviços, que indeferiram tacitamente o pedido de revisão oficiosa.” “Nestas circunstâncias – erro imputável aos Serviços – deverá ser reconhecido à requerente o direito a indemnização pelos prejuízos resultantes do pagamento de imposto em excesso (cfr. artigo 43.º da LGT).”
O dito conceito tem sido interpretado de forma abrangente, expõe, e “dúvidas não restam de que anuladas as, ou declarada a ilegalidade das liquidações de CSR repercutidas na requerente aqui em causa, deverá ter-se por verificado erro imputável aos Serviços para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios pelos prejuízos resultantes do pagamento de imposto em excesso (...).” A procedência do Pedido “com a consequente anulação das liquidações de CSR repercutidas na requerente aqui em causa, deverá determinar a restituição à requerente da quantia indevidamente paga de € 594.012,88, acrescido de juros indemnizatórios.”
Segundo conclui, “quer o indeferimento tácito (...) quer as liquidações de CSR repercutidas na requerente nos meses de (...) padecem de vício material de violação de lei.”
Requer, a final, que seja declarada a ilegalidade (i) do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, e (ii) das liquidações de CSR “repercutidas na requerente”, com a sua consequente anulação. E, determinando-se as respectivas consequências legais, se condene a Requerida no (iii) “reembolso à requerente do montante de imposto de € 594.012,88”, e (iv) no pagamento de “juros indemnizatórios à taxa legal contados desde inclusive 29 de Abril de 2024 até ao seu integral reembolso”.
Lista como documentos que junta os seguintes: pedido de revisão oficiosa, Certidões permanentes de registo comercial, facturas de gasolina e gasóleo de datas contidas no período de Maio de 2019 a Dezembro de 2022, comprovativo de pagamento das facturas, declaração da B... S.A., quadro síntese das facturas, Sentença de Tribunal Administrativo e Fiscal.
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É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD a 15.11.2023 e notificado à AT.
Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral os ora signatários, que atempadamente aceitaram o encargo.
As Partes foram notificadas da designação dos árbitros por comunicação de 08.01.2024 e não manifestaram intenção de a recusar, cfr. art.º 11º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT e art.ºs 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído a 26.01.2024.
Por despacho de 29.01.2024 o Tribunal notificou a Requerente para se pronunciar em 10 dias, querendo, sobre as questões suscitadas na comunicação apresentada em 13.12.2023 pela Requerida, na qual se lia, entre o mais, “solicita-se que sejam identificados os atos de liquidação cuja legalidade a Requerente pretende ver sindicada, entendendo-se que o termo inicial do prazo para o exercício da faculdade prevista no artigo 13.º do RJAT só ocorre após notificação, à Autoridade Tributária e Aduaneira, da identificação, em concreto, dos atos de liquidação cuja ilegalidade é suscitada.”
E por requerimento de 03.02.2024 veio a Requerente pronunciar-se, expressamente dizendo, entre o mais, que “na qualidade de repercutida que é, não tem como identificar as liquidação de CSR (e ISP) que a AT dirige ao seu fornecedor de produtos petroliferos B... S.A.” Convoca duas Decisões Arbitrais em defesa do seu entendimento, que expõe, no sentido da “inexigibilidade ao repercutido que identifique as liquidações de imposto dirigidas ao repercutor.” Aí se lendo, ainda: “[m]ais se junta declaração da B..., S.A., sobre a integral inclusão de todas as vendas de combustíveis à A... nas declarações de introdução no consumo submetidas pela B..., S.A. à AT, e sobre o conhecimento da AT de todas essas declarações de introdução no consumo. / E, consequentemente, e por maioria de razão, acrescenta-se, conhecimento pela AT de todas as liquidações de CSR (e ISP) que se lhes seguiram.”
Com o requerimento juntou declaração, datada de 02.02.2024, que finda com uma assinatura após menção “Pela B..., S.A.”. E, por despacho de dia 05.02.2024, o Tribunal admitiu a junção da referida declaração e notificou a Requerida para apresentar Resposta e juntar o PA.
A Requerida veio apresentar Resposta, e juntar o PA - consistente no Pedido de revisão oficiosa, antecedido de informação da Requerida para efeitos dos presentes autos.
Na Resposta, a Requerida defende-se, desde logo, por excepção. Invoca, nesta sede, desenvolvendo: A) Incompetência do Tribunal em razão da matéria, B) Ilegitimidade processual da Requerente, C) Falta de interesse em agir da Requerente, D) Ineptidão do PPA por falta de objecto, E) Caducidade do direito de acção, F) Ilegitimidade substantiva, G) Falta de pagamento dos valores a título de CSR pela Requerente, H) Inexigibilidade de juros indemnizatórios.
Após, e sem conceder, defende-se por impugnação, pugnando pela total improcedência do PPA.
Entre o mais, expõe o seu entendimento no sentido de não existir prova que sustente os factos que vêm alegados pela Requerente - expondo os seus argumentos a respeito, impugnando o alegado e impugnando documentos juntos -, bem como, como melhor desenvolve, no sentido de não haver desconformidade entre o regime da CSR e a Directiva.
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Tendo a Requerida invocado matéria de excepção na Resposta, o Tribunal notificou a Requerente, por despacho de 05.03.2024, para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, querendo, sobre a mesma.
Por requerimento de 14.03.2024 veio a Requerente responder às excepções invocadas. Defende não se verificar qualquer delas, em suma como segue.
Quanto à incompetência material, assevera que não assiste razão à Requerida ao qualificar a CSR como contribuição financeira e daí retirar a consequência de o Tribunal Arbitral ser materialmente incompetente. A CSR não é uma contribuição financeira, é sim um imposto especial sobre o consumo de produtos petrolíferos. Não é, também, uma contribuição especial, refere. “[A] CSR é um imposto especial sobre o consumo tal e qual o ISP”. Não é por haver consignação da respectiva receita que a CSR se transforma numa contribuição financeira, nota.
“A CSR é inegavelmente um imposto, tal e qual como o ISP o é, administrado pela AT, tal e qual como o ISP o é (...)”. Convoca, neste sentido, Decisões Arbitrais e voto de vencido. Mais, expõe, também não ocorre excepção de incompetência material com o fundamento igualmente utilizado pela Requerida de que o processo não teria por objecto a declaração de ilegalidade de um acto tributário e sua anulação. Em contrário, afirma assim: “[a] PI pede a declaração de ilegalidade de liquidações de CSR que sobre si foram repercutidas, e consequentemente a sua restituição e juros indemnizatórios”, “[n]ada pede desligadamente do pedido de declaração de ilegalidade de um acto tributário, basta ler a PI”, “[d]onde a competência do Tribunal Arbitral nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.”
Refere, ainda, que questão diferente será a de “saber da legitimidade do repercutido, não sendo como não é o sujeito passivo formal dessas liquidações.” O que, expõe, não se confunde com a questão da “competência do Tribunal para apreciar actos de liquidação de imposto como os aqui em causa. Que a tem inequivocamente.”
Acrescenta, depois, assim: “(...) não está aqui em causa pronúncia do Tribunal sobre actos de repercussão da CSR. A legalidade dessa repercussão não se discute, o acto de repercussão não se discute. Apenas se discute, a montante da repercussão, a legalidade de actos de liquidação de CSR, que a serem julgados ilegais, originarão consequencialmente a restituição do imposto com base neles cobrado, o que consequencialmente ainda (e apenas) levará a que o repercutido seja restituído do imposto ilegalmente liquidado sobre si repercutido.”
Quanto à ilegitimidade, defende não ter aplicação o art.º 15.º do CIEC que a Requerida convoca. Depois expõe que ao esse mesmo artigo prever um regime de reembolso não impede a aplicação de outros regimes gerais, como o da revisão oficiosa. “A revisão oficiosa no prazo de quatro anos está sempre disponível.” Expõe, ainda, que o facto de aquele mesmo artigo “se expressar em consonância com o caso-tipo (reembolso a quem pagou, que é o sujeito passivo), não afasta a possibilidade de aplicação a casos que dele extravasem de soluções assentes nas leis gerais (e nos direitos constitucionais de tutela jurisdicional)”. “(...) se se chegar à conclusão de que para além do sujeito passivo formal, a liquidação do IEC pode também ser discutida pelo repercutido no imposto, então há que consequencialmente reconhecer também a ele um direito a reembolso, obtida que seja por ele e no interesse dele a anulação de determinada liquidação de IEC”, sustenta. Mais, “mesmo que assim não fosse (...), o direito a montante de discutir a legalidade da liquidação é separável da execução do reembolso: este poderá ser feito por conveniência burocrática e informática da AT na pessoa do sujeito passivo formal, na sequência e em execução de anulação da liquidação obtida pelo repercutido, que munido da notícia dessa execução se encarregará de pedir ao repercutor a entrega do imposto reembolsado e por si (repercutido) suportado.” Segundo defende “o artigo 15.º do CIEC (...) não lida nem deixa de lidar com a questão da legitimidade do repercutido para discutir a legalidade de IECs, e muito menos da CSR (...)”. Refere-se, depois, ao art.º 18.º, n.º 4, al. a) da LGT e defende, entre o mais, que é um abuso “pretender-se que a lei teria pretendido que só o repercutido legalmente previsto como tal no próprio imposto teria legitimidade para discuti-lo, com exclusão de repercutidos económicos sem a sorte de uma menção legal à repercussão no imposto em causa.” Segundo defende, esta última norma nenhuma pista dá de que a legitimidade para impugnar a legalidade de liquidações de imposto devesse terminar na categoria de repercutido legal. “Os impostos indirectos sobre o consumo (...) estão desenhados para que um sujeito passivo formal que não é consumidor nem o alvo final (...) se substitua ao Estado na sua cobrança sobre uma multiplicidade de contribuintes de facto, ou económicos, o verdadeiro contribuinte, o verdadeiro lesado caso esse imposto seja ilegal. E ocorre e funciona assim, quer o texto da lei do imposto fale da repercussão em causa (...), quer não a mencione de todo (IECs antes do final de 2022).” “A realidade económica desse imposto não deixa de ser o que é, um imposto sobre o consumo, destinado fatalmente a ser repercutido por força da lógica económica, desenho e finalidade jurídica do mesmo: incidente sobre o valor ou quantidades das coisas vendidas ou fornecidas, com a finalidade de onerar especificamente o custo (o preço) do consumo (...).” Bem assim, sustenta que “é inaceitável (...) arredar os repercutidos ditos de facto ou económicos do círculo de sujeitos com legitimidade para discutir a legalidade do imposto sobre si repercutido”. “A norma que se retire” dos referidos artigos (15.º do CIEC, 18.º, n.º 4, al. a) da LGT) “de que o repercutido de facto ou económico não tem legitimidade processual ou substantiva para impugnar liquidação de CSR na parte correspondente a consumo ou aquisição de gasolina ou gasóleo rodoviário por si efectuada, é inconstitucional por violação do artigo 2.º (Estado de direito), do artigo 20.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e artigo 268.º, n.º 4 (direito dos administrados à impugnação de qualquer acto administrativo, incluindo tributário, “que os lesem”), todos da Constituição.” Recorda, por fim, vir invocada a violação do Direito da UE e nota dever fazer-se reenvio prejudicial se dúvidas houver.
Quanto à falta de interesse em agir, opõe-se ao argumento da Requerida de que não teria pago, ela Requerente, os valores referentes à CSR, consequentemente carecendo de interesse em agir.
Sustenta que está demonstrado o pagamento por si da CSR. Mais que é ela a única parte com interesse em agir – por o “sujeito passivo formal” ter declarado “não ter interesse próprio em litigar a questão da legalidade das liquidações de CSR.” Mais “a norma invocada pela AT que se retire dos artigos 576.º, n.º 1 e n.º 2, e 577.º do CPC, de que o repercutido de facto ou económico, porque não pagou ele próprio o imposto ao Estado, é desprovido de interesse em agir para impugnar liquidação de CSR na parte correspondente a consumo ou aquisição de gasolina ou gasóleo rodoviário por si efectuada com repercussão da CSR, é inconstitucional por violação do artigo 2.º (...), 20.º (...) 268.º, n.º 4 (...), todos da Constituição”.
Quanto à ineptidão da petição inicial, expõe que “tendo o repercutido legitimidade para discutir a liquidação que originou o imposto por si (e não pelo sujeito passivo) suportado, não lhe é exigível que identifique as liquidações de que não foi sujeito passivo (destinatário) nem autor (o autor é a AT (...)), senão em conexão com as facturas a si dirigidas pelo sujeito passivo, onde se materializou a repercussão do imposto.” Defende que tal “seria desproporcionado, e frustraria o direito de acção reconhecido ao repercutido, pelo que é inexigível.” Convoca Jurisprudência Arbitral no sentido do entendimento por que pugna. Passa depois a especificamente contradizer a argumentação desenvolvida na Resposta a este respeito. Entre o mais, refere que não realizou directamente ao Estado pagamento de CSR “porque não é sujeito passivo, mas repercutido”. “Pagamento de CSR em consequência da efectivamente ocorrida repercussão da CSR pelo seu fornecedor (sujeito passivo de CSR) sobre si (repercutido e ora requerente), realizou certamente, isso é indisputável (cfr. facturas juntas à PI (...), seus comprovativos de pagamento (...), quadro síntese (...), declaração do seu fornecedor B..., sujeito passivo da CSR (...), e segundo declaração do mesmo junta aos autos em 03.02.2024).” Reporta-se à “prova da repercussão”, relativamente ao que refere “se dúvidas reais porventura subsistirem, nada impede também o seu esclarecimento neste processo, oficiando-se para o efeito o director de fiscalidade do grupo C..., ou procedendo-se por outra via considerada mais adequada (e que se convida desde já a AT a indicar e concretizar a da sua preferência), para que venha indicar respondendo directamente a este Tribunal se há ou não repercussão da CSR nas facturações de combustíveis pela B... em causa nestes autos.” Por fim expõe: “a norma invocada pela AT que se retire, designadamente, do artigo 10.º, n.º 2, alínea b), do RJAT, de que o repercutido de facto ou económico teria que identificar na sua petição inicial as liquidações de CSR a montante sobre si repercutidas pelo seu fornecedor nas facturas, para além da identificação feita por referência às facturas do fornecedor dirigidas a si onde se materializa a repercussão, sob pena de ineptidão da petição inicial e absolvição da requerida da instância, é inconstitucional por violação do artigo 2.º (Estado de direito), do artigo 18.º, n.ºs 2 e 3 (princípio da proporcionalidade), do artigo 20.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e artigo 268.º, n.º 4 (direito dos administrados à impugnação de qualquer acto administrativo, incluindo tributário, “que os lesem”), todos da Constituição. E viola o artigo 47.º (direito à acção) e 52.º (princípio da necessidade e da proporcionalidade em eventuais restrições aos direitos) da Carta.”
Quanto à caducidade do direito de acção, nota que a Requerida alega que o pedido de revisão oficiosa não podia ser apresentado no prazo de 4 anos do art.º 78.º/1 da LGT e convoca o prazo do art.º 15.º, n.º 3 do CIEC, que não há erro imputável aos serviços, e que a falta de identificação na p.i. dos actos de liquidação impede que se aplique prazo algum. Em sua defesa, e após convocar Jurisprudência Arbitral, expõe então que, dado o pedido de revisão oficiosa ter entrado a 28.04.2023, e uma vez que “se reporta a atos de repercussão da CSR no período compreendido entre Maio de 2019 a Dezembro de 2022”, aquando da sua apresentação “não tinha ainda decorrido o prazo de quatro anos a que se refere o artigo 78.º, n.º 1, da LGT”. Tendo o PPA por sua vez, sustenta, dado entrada no prazo de 90 dias a contar do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.
Mais, expõe, a jurisprudência subsume no erro dos serviços uma violação de direito da UE (que é o que está em causa, refere) ou, em geral, de norma de grau hierárquico superior. Retorna ao que já referira (v. supra) quanto ao previsto no art.º 15.º do CIEC que, segundo defende, não afasta o regime geral de revisão oficiosa no prazo de 4 anos. Segundo sustenta, “este prazo de quatro anos só se pode contar no que ao repercutido respeita a partir do momento da repercussão da CSR, uma vez que só a partir deste momento ele é lesado e anteriormente a ele não tem por definição conhecimento da liquidação de CSR que o lese, momento este que é o da facturação com a repercussão da CSR a si destinada e entregue.” Alega, ainda, “[a] norma que se retire do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, ou de outro lugar (...) de que o prazo para o exercício do pedido de revisão oficiosa pelo lesado repercutido com CSR seria susceptível de ser contado a partir de data anterior à emissão e recepção das facturas com repercussão da CSR, ou de que seria insusceptível de ser contando e em consequência insusceptível de ser exercitado pedido de revisão oficiosa pelo repercutido contra a liquidação de CSR a si repercutida, é inconstitucional por violação do artigo 2.º (...), do artigo 18.º, n.ºs 2 e 3 (...), do artigo 20.º (...) e artigo 268.º, n.º 4 (...), todos da Constituição. E viola igualmente o artigo 47.º (...) e 52.º (...) da Carta.”
Quanto à ilegitimidade substantiva, nota a Requerida estar a defender que ao ela Requerente não ser sujeito passivo dos actos tributários de liquidação de CSR não integra nem é parte da relação tributária. O que remete para a discussão da legitimidade processual, de que, refere, já se defendeu (v. supra). Quanto a alegadamente não ser repercutida, refere “à cautela” que, quer a nova redacção do art.º 2.º do CIEC, quer “o objectivo e modo de incidência do imposto em causa”, quer o reconhecimento pelo sujeito passivo “e repercutor da CSR” o desmentem. Mais desenvolve no sentido de não haver fundamento na dificuldade técnica invocada pela AT de que poderia alegadamente incorrer-se em duplos reembolsos. Apela, entre o mais, à declaração que juntou a 03.02.2024 (cfr supra).
Quanto a alegadamente não ter havido pagamento de CSR, refere que estará a Requerida novamente a pretender discutir “o tema da repercussão, do imposto”. Remete no essencial para o que já desenvolvera (v. supra) no sentido de que está provada a repercussão. Em relação a que não estariam comprovados os pagamentos das facturas, responde que apresentou a documentação desses pagamentos, um quadro síntese, e “o credor B... confirma a repercussão sobre a requerente da CSR”. Mais “se a B... não tivesse recebido (...) [p]ermanecia em dívida, é só.” E quanto a juros indemnizatórios, refere, à cautela, “em caso de pedido de revisão oficiosa, no mínimo haverá direito a juros a partir de um ano contado da entrada do pedido de revisão”.
Não juntou documentos com o requerimento de resposta às excepções.
Com o requerimento de 03.02.2024 havia junto (vimos) “declaração”, de 02.02.2024, “Pela B..., S.A.”, na qual se lê que esta declara “não ter solicitado nem pretender solicitar (…) a declaração de ilegalidade (e, concomitante, restituição) da CSR por si repercutida à A... (…) S.A., aquando da introdução no consumo do combustível que lhe vendeu” e “ter introduzido no consumo a totalidade do combustível que vendeu e faturou à A... (…) S.A., sendo as respectivas declarações de introdução no consumo do conhecimento das autoridades Fiscais.”
Com o PPA havia junto “declaração”, sem data, que finda igualmente com assinatura após menção “Pela B..., S.A.”, onde se lê que esta empresa declara que a CSR por si entregue nos cofres do Estado “por referência ao combustível fornecido à empresa A... (…) S.A. (NIF …), nos anos de 2019 a 2022, foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa.”[2] Mais juntou facturas e, segundo refere, comprovativo de pagamento das mesmas.
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Por despacho de 18.03.2024, o Tribunal dispensou a reunião do art. 18º do RJAT e notificou as partes para apresentarem alegações escritas, querendo, a Requerente no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho, e a Requerida no prazo de 10 dias contado da notificação das alegações da Requerente, ou da falta de apresentação das mesmas.
Ambas as Partes apresentaram, em prazo, alegações.
A 18.04.2024 a Requerente veio requerer a junção aos autos de Acórdão do TJUE (Proc. C-316/22) e por despacho de 22.04.2024 o Tribunal notificou da admissão da junção. A 29.04.2024 interpôs a Requerida requerimento pronunciando-se sobre o Acórdão junto; refere, no essencial, a existência de diferentes pressupostos de facto e de direito nesse caso e opõe-se ao “interesse para a causa” invocado pela Requerente.
Por despacho de 18.07.2024 o Tribunal determinou a prorrogação do prazo para prolação da Decisão por dois meses, ao abrigo do art.º 21.º, n.º 2, do RJAT, pelas razões que aí exarou.
2. Saneamento
As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e estão devidamente representadas, cfr. art.ºs 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03.2011.
Vem invocada na Resposta matéria de excepção, como supra.
A Requerente, de seu lado, notificada pelo Tribunal para o efeito, veio pronunciar-se sobre as mesmas e defender nenhuma delas ocorrer (tudo como supra).
Vejamos. Iniciando pela excepção de incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, como segue.
2.1. Da excepção de incompetência do Tribunal em razão da matéria
Nos termos conjugados do disposto no art.º 16.º do CPPT, art.º 13.º do CPTA, e nos art.ºs 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, 576.º, n.º 2 e 577.º, al. a) e 578.º, todos do CPC[3], a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do Tribunal, que é de conhecimento oficioso, precedendo o de qualquer outra matéria. Tratando-se de excepção dilatória obsta a que o Tribunal conheça do mérito e conduz à absolvição da instância.
Sendo que a competência em razão da matéria há-de determinar-se pelo pedido do Autor (pelo quid decidendum).[4] Se se preferir, através do confronto entre as normas que a definem e o teor da petição inicial, com destaque para o pedido e a causa de pedir.
E o Tribunal Arbitral, refira-se, tem competência para decidir sobre a sua própria competência: é o “princípio da competência da competência do Tribunal Arbitral”[5], desde há muito reconhecido como regra em matéria de arbitragem[6] (v. art.ºs 18.º da LAV[7] e 181.º/1 do CPTA).
A Requerida invoca esta excepção fundando-se, primeiramente, no seu entendimento de que o thema decidendum não é arbitrável. Do disposto no art.º 2.º da Portaria n.º 112-A/2021, de 22 de Março, decorre expressamente, expõe, que o legislador quis restringir a vinculação nesta sede ao âmbito de pretensões que respeitem especificamente a impostos, não se incluindo tributos de outra natureza, como as contribuições. E que o tributo de que se trata nos autos - CSR - é uma contribuição e não um imposto. Sempre sem conceder invoca, depois, a mesma excepção com fundamento em (i) pretender a Requerente, no rigor, além da determinação da restituição de uma quantia monetária, a apreciação pelo Tribunal Arbitral da legalidade do regime da CSR e não caber na competência do Tribunal Arbitral a fiscalização da legalidade de normas em abstracto, “sem enquadramento processual impugnatório de ato concreto de liquidação”; (ii) não poder o Tribunal Arbitral pronunciar-se sobre actos de repercussão de CSR, subsequentes e autónomos da sua liquidação.
A Requerente veio defender em contrário - cfr. supra, pp. 7-8.
Apreciando.
A Arbitragem Tributária, como arbitragem institucionalizada que é, reveste especificidades próprias. Desde logo a que decorre de, não obstante a sua natureza de arbitragem, tratar de direitos (créditos) indisponíveis. Assim, o respeito pelo Princípio da indisponibilidade, aplicável à AT, conduziu a que o legislador - cfr. art.º 4.º do RJAT - tivesse sido exigente ao ponto de determinar que a comum convenção de arbitragem sofresse aqui adaptações e, assim, que a AT se vinculasse à via da arbitragem, previamente, por Portaria.
De onde decorre que a competência do presente Tribunal se afere pelo disposto a este respeito nas disposições conjugadas do RJAT e da já referida Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (Portaria de Vinculação). Através da qual uma das partes, a AT, veio previamente vincular-se à jurisdição dos Tribunais Arbitrais a funcionar sob a égide do CAAD. À qual decidiu assim submeter-se, nos termos e condições que aí definiu por conjugação com o disposto no RJAT. Ao abrigo do disposto neste último Diploma legal, a saber, no seu art.º 4.º, n.º 1.[8]
Ora, se por um lado no RJAT a competência dos Tribunais Arbitrais é estabelecida nos termos do seu art.º 2.º, n.º 1, por outro, nos termos do art.º 2.º da referida Portaria, a AT recortou (excluindo) daquela esfera de competência (que, assim, delimitou) a apreciação das pretensões relativas a determinadas situações, a que não aceitou vincular-se.
Não vem sendo pacífica a questão de saber se na delimitação de competência pela Portaria se pretendeu excluir do conjunto das pretensões relativamente às quais a AT aceitou vincular-se, as de declaração de ilegalidade de actos em tributos que não constituam impostos stricto sensu.
Vejamos os dispositivos legais.[9] No RJAT, o art.º 2.º, no que aqui mais releva, dispõe:
“Artigo 2.º - Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
1 – A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; /(...)”
Por sua vez, na Portaria de Vinculação, rege o respectivo art.º 2.º assim:
“Artigo 2.º – Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”[10]
Da conjugação dos normativos supra - no art.º 2.º do RJAT a referência a “tributos” e, depois, no art.º 2.º da Portaria, a certo passo, a palavra “impostos” – resultaria (e em conjugação com outros argumentos que nessa interpretação se invocam) que teriam ficado excluídas da esfera de competência material dos Tribunais Arbitrais as pretensões respeitantes a outros tributos que não os pertencentes à espécie impostos. Como vem defendido na Resposta. E como, ademais, vem sendo uma das posições seguidas na Jurisprudência Arbitral.
Neste sentido podem ver-se, entre outras, as Decisões Arbitrais nos processos n.º 347/2017-T, n.º 115/2018-T, n.º 138/2019-T, n.º 31/2023-T.
Pela nossa parte, entendemos compreendida na competência material dos Tribunais Arbitrais a apreciação das pretensões ali indicadas seja quando referentes a impostos stricto sensu, seja quando referentes a outros tributos (“impostos” lato sensu, portanto). Apenas não se verificando essa competência nos casos expressamente excluídos pela Portaria de Vinculação – a saber, nas várias alíneas do respectivo art.º 2.º (supra, e v., aí, nossos destacados – a demonstrar, quanto a nós, como da própria letra da lei decorre que o vocábulo “impostos” foi utilizado no corpo do art.º 2º da Portaria no seu sentido lato, impostos lato sensu; nem de outra forma se compreenderia a utilização do vocábulo tributos dentro do artigo, na al. e), aditada em 2019). E desde que se trate de tributos cuja administração esteja cometida à AT. Como melhor desenvolvemos já em Decisão Arbitral de 18.08.2021, no processo n.º 879/2019-T (e já antes aproximáramos no processo n.º 599/2018-T), para cuja fundamentação remetemos.
Não se desconhecendo o Douto Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 545/2019, de 16.10.2019, em que a interpretação no sentido inverso é considerada compaginável com a Constituição; e v. a Douta Decisão Sumária do mesmo Venerando Tribunal, n.º 70/2024, de 08.02.2024, no processo n.º 1347/2023.
No sentido, que é o do nosso entender, de que cabe na competência dos Tribunais Arbitrais a apreciação das pretensões ali indicadas (art.º 2.º do RJAT) também quando referentes a outros tributos, que não impostos stricto sensu, se pronunciaram também os Tribunais Arbitrais, entre outros, nos processos n.º 312/2015-T, n.º 142/2018-T, n.º 156/2018, n.º 305/2020-T.
Quanto, por sua vez, à natureza jurídica da CSR, em qualquer caso sempre se faça uma breve referência. (Sem prejuízo do que já deixámos dito: como quer que seja, é nosso entendimento que o Tribunal Arbitral tem competência material para conhecer do PPA que tem por objecto actos de liquidação de tributos, sejam eles impostos stricto sensu, sejam eles contribuições financeiras ou, ainda, taxas - tem, pois, competência, nos termos conjugados do art.º 2.º do RJAT com o art.º 2.º da Portaria de Vinculação, para conhecer de pretensões em impostos lato sensu).
E também esta não é matéria pacífica, desde logo na Jurisprudência Arbitral. Considerando o tributo em apreço como sendo um imposto (stricto sensu) se pronunciaram, entre outros, os Tribunais Arbitrais nos processos n.º 629/2021-T, n.º 305/2022-T, n.º 113/2023-T, n.º 410/2023-T. Já em sentido diverso, de este tributo constituir efectivamente, em consonância com o seu nomen iuris, uma Contribuição, Contribuição Financeira, pronunciaram-se os Tribunais Arbitrais nos processos n.º 31/2023-T, n.º 508/2023-T, n.º 520/2023-T (no mesmo sentido vão também diversos votos de vencido, como naqueles processos n.º 305/2022-T, n.º 410/2023-T). Sendo que quanto a tratar-se de tributo administrado pela Requerida é assente.[11]
Ao nosso olhar, e tal como o tributo foi configurado pela lei sua criadora, a Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto[12], vigente ao tempo dos factos, estamos perante uma Contribuição Financeira.[13] Para tal apontam, quanto a nós, as características nela ínsitas de ser um tributo destinado a financiar um objectivo público - financiar a rede rodoviária nacional (art.º 1.º) no que respeita à sua concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento (art.º 3.º, n.º 2 e art.º 8.º), fim público cujo financiamento é assegurado subsidiariamente pelo Estado (art.º 2.º), constituir uma contrapartida pela utilização dessa rede conforme verificada pelo consumo de combustíveis (art.º 3.º), incidir sobre a gasolina e o gasóleo sujeitos ao ISP (incidência objectiva) e sobre os sujeitos passivos deste último imposto (incidência subjectiva) (art.ºs 4.º e 5.º), constituir receita própria da entidade pública encarregue do referido objectivo/fim público (art.º 6.º), e tendo sido pretendido o tributo não vir agravar os preços de venda dos combustíveis em causa (art.º 7.º).
Às Contribuições Financeiras, uma das (hoje comummente aceite, três) espécies de tributos admitidas pelo nosso Ordenamento Jurídico, se referiu o nosso legislador seja no art.º 3.º, n.º 2, parte final, da LGT, seja, desde logo, no art.º 165.º, n.º 1, al. i) da CRP. Sendo que são conhecidas as dificuldade/delicadeza de delimitação entre as espécies de tributos, precisamente em especial entre as Contribuições e os Impostos (stricto sensu).[14] A LGT define em geral os pressupostos tributos, maxime dos Impostos e das Taxas, cfr. art.º 4.º, n.ºs 1 e 2. E Doutrina e Jurisprudência vêm densificando ao longo do tempo os conceitos nesta delimitação tripartida dos tributos.
“Os impostos têm sempre por finalidade imediata o financiamento de despesas públicas, realizadas por entidades de direito público, não directamente individualizáveis (no sentido de que lhes é alheia uma ideia de contraprestação, pelo menos directa) e cujo financiamento é unilateral e autoritariamente imposto com base num princípio de capacidade contributiva. Ou que, nos termos do art.º 4.º, n.º 1 da LGT, assentam essencialmente na capacidade contributiva.[15] Já as taxas, não obstante terem, tal como os impostos, uma finalidade de financiamento dos encargos com funções públicas, circunscrevem-se ao âmbito de funções públicas individualizáveis, susceptíveis de proporcionar vantagens ou benefícios - que são identificáveis de forma directa, em concreto - a quem as utiliza ou delas simplesmente beneficia. Revestem-se, assim, de carácter não já unilateral mas sim sinalagmático (...).”[16]
As Contribuições, por sua vez, são de qualificação jurídica mais difícil, “(...) estaremos aqui perante tributos a meio caminho entre os impostos e as taxas, que reúnem características próprias quer de uma, quer da outra espécie. Uma figura híbrida, a que diversos Autores se vêm referindo como um “tertium genus” de receitas. Deles é própria também uma contraprestação, porém difusa, não individualizável. Sendo pois os respectivos beneficiários receptores de uma contraprestação colectiva, homogénea nesse conjunto de sujeitos, mas distinta daquela que seria a satisfação do interesse colectivo da comunidade como um todo. Revestem assim natureza grupal, e são também apelidadas de tributos paracomutativos por se entender traduzirem a contrapartida de prestações relativamente às quais apenas se presume (de uma forma mais difusa que nas taxas, mas menos que nos impostos) que os respectivos sujeitos passivos serão beneficiários. (...).”[17] Ou causadores. Contraprestação, pois, mas difusa - beneficiários presumíveis receptores de uma contraprestação colectiva, homogénea nesse grupo. Ou, bem assim - participantes do grupo causadores - presumíveis - da necessidade de tal prestação. Sinalagma difuso. No grupo.
Como escrevia Saldanha Sanches, “[a]o lado dos impostos que constituem a receita normal do Estado, e que se encontram afectos ao financiamento global das suas despesas, encontramos receitas tributárias – tributos parafiscais, parafiscalidade – que comparticipam de todas as características normais dos impostos – unilateralidade, coactividade, ausência de qualquer objectivo punitivo – mas se encontram afectas ao funcionamento de certas entidades públicas que comparticipam no preenchimento de objectivos públicos.”[18]
São tributos que têm como característica, assim também, a respectiva receita se encontrar destinada precisamente aos fins da prestação pública em causa, tendencialmente acompanhados de consignação da mesma, seja material seja orgânica, em favor de entidades públicas de base não territorial.
Retornando à CSR.
Como percorrido supra, do respectivo regime jurídico decorre a mesma se destinar a financiar objectivos públicos cuja prossecução se encontra a cargo de entidade pública de base não territorial (a então E.P. – Estradas de Portugal, E.P.E.). Quanto a estarmos perante fins públicos v. também o art.º 84.º, n.º 1, al. d) da CRP - as estradas pertencem ao domínio público. E terá o legislador entendido que os respectivos sujeitos passivos (art.º 5.º, n.º 1, da Lei 55/2007) serão presumíveis beneficiários da prossecução deste fim público - a devida concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional. Presumíveis receptores de uma contraprestação colectiva, homogénea nesse grupo, que lhes aporta benefícios. Com efeito, não deixa de, com alguma propriedade, ser possível detectar, nos sujeitos passivos em questão (v. art.º 4.º do CIEC, ex vi art.º 5.º da Lei 55/2007), que introduzem no consumo os ditos combustíveis, para fins rodoviários, uma vantagem, para a sua actividade, proveniente de tal prestação a cargo da concessionária. Desde logo, será através da rede rodoviária existente, através assim da circulação rodoviária, que o seu produto vai, de forma intensiva, escoar-se. Assim o sinalagma difuso próprio das Contribuições Financeiras.
Por fim, também não será por o TJUE se ter pronunciado no sentido de a imposição em questão ser violadora da Directiva 2008/118/CE (cfr. Despacho Vapo Atlantic, proc. C-460/21), sempre se refira, que a natureza jurídica que foi conferida ao tributo pelo legislador que a criou, o nosso legislador, no Ordenamento Jurídico Português, resultará outra. Desde logo para efeitos de aferir da competência material do Tribunal. Uma coisa será o TJUE, considerando, num primeiro momento, o tributo recair na Directiva, e aferindo, depois, das suas características, tê-lo por violador da mesma. Tomando-o por imposição indirecta - para os efeitos da Directiva. Coisa distinta será o regime jurídico-tributário próprio do tributo, tal como consagrado pelo legislador, portanto, e assim a sua natureza jurídica.
Dito isto, seja considerando a CSR, ao tempo, como uma Contribuição Financeira, como propendemos a considerar, e como, afinal, o legislador a qualificou, assim lhe concedendo o seu nomen iuris - ademais com as implicações que também daqui se podem retirar para efeitos de aferir da competência material do Tribunal[19] (e tendo também em mente, como ao início dizíamos, que a competência em razão da matéria há-de determinar-se pelo pedido do Autor, pelo quid decidendum) -, seja a considerando como um verdadeiro imposto stricto sensu, retira-se a consequência de que o Tribunal é materialmente competente para conhecer do Pedido, tudo como percorrido supra.
Improcede, assim, a excepção, com o fundamento que vinha invocado e que vimos de apreciar.
A Requerida fundamenta ainda esta excepção em dois outros pontos (v. supra, p. 15), a saber, estarem a ser peticionadas: (i) a fiscalização da legalidade de normas em abstracto (o regime jurídico da CSR), e (ii) a “pronúncia sobre actos de repercussão de CSR”.
Quanto a (i), sumariamente se diga que não procede o invocado fundamento. Resulta do PPA que a Requerente invoca como causa de pedir para a peticionada anulação dos actos de liquidação de CSR erro de direito. Erro este alegadamente consistente na desconformidade da CSR com o Direito da UE, por violação da Directiva 2008/118/CE. E a impugnação de actos de liquidação pode efectivamente ser deduzida com fundamento em qualquer ilegalidade – cfr. art.º 99.º do CPPT e art.º 10.º, n.º 2, al. c) do RJAT. Sendo que é o acto de liquidação (não concretamente identificado, é certo) aquilo que vem impugnado, ainda que com as vicissitudes que mais adiante se verá.
Quanto a (ii), e além do que acaba de se dizer, o invocado fundamento não chegaria a relevar, quanto a nós, em sede de excepção de competência material do Tribunal. É ponto que mais adiante na Decisão trataremos, e para onde desde já remetemos (infra ao tratarmos de conceitos, a final).
Improcede, em qualquer caso, a excepção de incompetência material do Tribunal.
Assim sendo.
Cabe então apreciar, agora, se se verifica a excepção de ineptidão da petição inicial, também invocada pela Requerida. Que é de conhecimento oficioso, pode ser conhecida a todo o tempo até ao trânsito em julgado da decisão final, e que, a ocorrer, é determinante da nulidade de todo o processo, e causa de absolvição da instância (v. art.º 98.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPPT, art.ºs 87.º, n.ºs 2 e 7 e 89.º, n.ºs 2 e 4, al. b), do CPTA, e art.º s 186.º, n.º 1, 196.º, 278.º, n.º 1, 576.º, n.º 2 e 577.º, al. b), e 578.º, todos do CPC).[20]
2.2. Da excepção de ineptidão da petição inicial
A Requerida invoca esta excepção com fundamento em falta de objecto. Numa súmula, por a Requerente não identificar quaisquer actos de liquidação de ISP/CSR praticados pela Administração Tributária, nem as DIC submetidas pelo sujeito passivo de imposto, e apenas identificar/apresentar facturas de aquisição de combustíveis à sua fornecedora. Sendo que estas não comprovam qualquer acto tributário e delas também não resultam provados actos de repercussão da CSR; nem ela Requerida pode proceder a tal identificação, dos actos de liquidação, por impossível, conforme melhor desenvolve. Não tendo a Requerente identificado os actos tributários também não foi possível ao dirigente máximo da AT exercer a faculdade prevista no art.º 13.º do RJAT, e a não identificação do acto compromete a finalidade do Pedido. A Requerente não identifica qualquer acto, nem é possível a si Requerida, como melhor desenvolve, identificar os actos de liquidação que a Requerente pretenderá ver sindicados. Nem a alegação da Requerente de segundo declaração do vendedor a CSR devida ao Estado ter sido repercutida na Requerente tem correspondência com a realidade.
Tendo a Requerente num primeiro momento - notificada por despacho do Tribunal de 29.01.2024 (v. supra) – vindo já pronunciar-se por requerimento de 03.02.2024 no sentido de não ter como identificar as liquidações de CSR em questão, mais de nem tal lhe poder ser exigido (v. supra Relatório), foi depois notificada para exercer o contraditório relativamente às excepções invocadas na Resposta, e pronunciou-se em defesa da não verificação da excepção de ineptidão da p.i., como supra (v. pp. 10-11).
Em face do que, e atento o teor do dali constante (v. também nossos destacados aí), ocorre caso de manifesta desnecessidade de novo contraditório com convite à junção e/ou concreta identificação dos actos tributários objecto do Pedido, nos termos do art.º 3.º, n.º 3 do CPC e ao abrigo do princípio da livre condução do processo arbitral (cfr. art.º 19.º do RJAT).
Vejamos.
Quanto ao seu conteúdo, a petição inicial deve observar determinados requisitos, sob pena de ser considerada inepta. O pedido é um elemento objectivo da instância, não podendo subsistir incertezas/dúvidas quanto ao conteúdo da solicitação do autor e quanto ao objecto da actividade jurisdicional subsequente.
Dispõe o legislador no art.º 98.º do CPPT, versando sobre as nulidades do processo judicial tributário, assim:
“Artigo 98.º - Nulidades insanáveis
1. São nulidades insanáveis no processo judicial tributário:
a) A ineptidão da petição inicial; / (...)”
Por sua vez, nos termos do disposto no art.º 186.º do CPC é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. Dispõe assim o artigo, no que aos autos mais releva:
“Artigo 186.º - Ineptidão da petição inicial
1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2. Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
(...)”
A ineptidão da petição inicial é, pois, de tal modo grave que gera a nulidade de todo o processo.
A nulidade de todo o processo é uma excepção dilatória, que cumpre ao Tribunal conhecer, e que, a verificar-se, obsta a que se pronuncie sobre o mérito da causa (v. art.ºs 98.º, n.ºs 1 e 2 do CPPT, 87.º, n.ºs 2 e 7 e 89.º, n.ºs 2 e 4, al. b) do CPTA, 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.º 2 e 577.º, b) do CPC).
O Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA) corresponde materialmente a uma petição inicial (p.i.).
A Requerente submeteu o PPA na origem dos presentes autos e requereu, em sede de petitório:
Que seja declarada “a ilegalidade indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa supra melhor identificado e, bem assim, a ilegalidade das liquidações de CSR repercutidas na requerente nos meses de Maio de 2019 a Dezembro de 2022, supra melhor identificadas, com a sua consequente anulação, com todas as consequências legais, designadamente o reembolso à requerente do montante de imposto de € 594.012,88, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal contados desde inclusive 29 de Abril de 2024 até ao seu integral reembolso”.
Não obstante, não juntou aos autos - seja ab initio, como devido, seja posteriormente quando notificada para se pronunciar sobre a comunicação da Requerida em que esta solicitava a identificação dos actos sindicados, seja depois confrontada com a excepção de ineptidão da p.i. invocada pela Requerida e, notificada pelo Tribunal para o efeito, ao exercer o contraditório (cfr. supra) - o ou os actos tributários cuja anulação vem peticionar em juízo.
Os actos tributários, pois, que em contencioso anulatório, como é o nosso caso, constituem necessariamente o objecto do Pedido.[21]
Não só não juntou, como era seu dever - e sendo que tal constitui requisito da petição inicial, documento a ser necessariamente junto (cfr. art.º 10.º, n.º 2, al. b), do RJAT, e v. também o art.º 108.º, n.º 1 do CPPT e art.ºs 78.º, n.º 2, al. e) e 79.º, n.º 3, al. a) do CPTA) -, como sequer identificou concretamente esse ou esses que serão os actos que pretende ver anulados pelo Tribunal.
Trata-se de documento que deve acompanhar, instruir, a petição, sendo certo que é sobre a Requerente que recai o ónus de dar cumprimento aos requisitos da mesma previstos naqueles preceitos legais (v. parágrafo anterior).
Em comentário ao art.º 108.º, n.º 1 do CPPT, escreve Jorge Lopes de Sousa[22] assim: “(...) sendo o fim essencial do processo de impugnação judicial a eliminação jurídica de um acto em matéria tributária, desde que o impugnante o identifique e indique os vícios que entende que o afectam, poderá entender-se que há um pedido implícito de anulação ou declaração de nulidade ou inexistência daquele acto. O essencial será que seja perceptível a intenção do impugnante.”
Não há, neste contexto, pedido perceptível sem identificação do concreto acto. Diga-se.
Tenha-se presente, ademais, o Princípio processual da auto-responsabilidade das partes, que é inerente ao princípio do dispositivo, e segundo o qual estas sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, que fazem a seu próprio risco. Ao qual o Princípio da cooperação não será alheio, é certo, sem que, porém, elimine aquela responsabilidade, como bem se compreende. Ademais, estando nós em sede de acção constitutiva de anulação. Acção em que se pretende, pois, fazer valer um direito à anulação de um certo acto tributário, o acto concretamente impugnado (ao qual se imputam certos vícios).
Sobre o que, há-de ser proferida uma sentença que, a seu tempo, adquirirá força de caso julgado. Anulando, ou não, tal acto. Donde também, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, a importância de que se reveste a identificação do acto impugnado sem equívocos e/ou dúvidas.
Em coerência, v. como determinou o legislador tributário no, já referido, art.º 108.º, n.º 1, do CPPT, sob a epígrafe “Requisitos da petição inicial”: “[a] impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juíz do tribunal competente, em que se identifiquem o acto impugnado e a entidade que o praticou (...)”. O acto que se impugna é aquele, o acto X, e não o Y ou o Z.
*
O processo de impugnação traduz o exercício de uma “jurisdição restrita”, contencioso de mera legalidade, visando a anulação dos actos tributários (ou a declaração da sua nulidade ou inexistência) - v. art.ºs 99.º e 124.º do CPPT.[23]
Entre os elementos essenciais da causa figura, precisamente, o objecto da acção.
O próprio acto em crise pode[24] perspectivar-se como sendo o objecto (stricto sensu) da acção.
(V., de novo, e entre o mais, o disposto pelo legislador no RJAT, art.º 10.º, n.º 2, al. b): “O pedido de constituição do tribunal arbitral é feito mediante requerimento enviado por via eletrónica (...) do qual deve constar: (...) b) A identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral.”; ou, assim também, ainda no RJAT, os art.ºs 13.º, n.º 4 e 24.º, n.º 2, respectivamente: “A apresentação dos pedidos de constituição de tribunal arbitral preclude o direito de (...) suscitar pronúncia arbitral sobre os actos objecto desses pedidos (...)”, “(...) a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão (...) preclude o direito de (...) suscitar pronúncia arbitral sobre os actos objecto desses pedidos (...).”)[25]
Já numa perspectiva lato sensu, o objecto da acção será o que se alcança pela conjugação entre pedido e causa de pedir. (V., entre o mais, o mesmo art.º 10.º, n.º 2, agora al. c), do RJAT.)
O Regime da Arbitragem Tributária foi concebido pelo legislador como um meio alternativo de resolução conflitos em matéria tributária, ainda que só para determinados tipos de litígios (v. art.ºs 1.º e 2.º do RJAT). A acção arbitral tributária foi, a final, delineada como um meio alternativo ao processo de impugnação judicial.[26]
A impugnação judicial dos actos da Administração Tributária concretizados na liquidação de tributos (incluindo os actos que o legislador equiparou a actos de liquidação para este efeito[27]) segue a forma do processo tributário por excelência, a saber, o, já referido, processo de impugnação, comummente também designado “processo de impugnação judicial” – v. art.s 99.º e ss do CPPT.
Para o RJAT o legislador transportou, com potencial relevo para os autos, tão só, precisamente, o processo de impugnação judicial de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta - cfr. art.º 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.[28] Assim, dos actos tributários stricto sensu.
Ora, retornando aos autos, a Requerente não juntou e nem identificou qualquer concreto acto tributário stricto sensu, qualquer acto tributário de que o Tribunal Arbitral pudesse conhecer. A saber, não juntou e nem identificou concretamente quaisquer liquidações de CSR (sequer as declarações de introdução no consumo - DICs processadas/submetidas pelos sujeitos passivos).
Ainda que tenha indicado ser precisamente o objecto do pedido, a par do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, “os actos de liquidação de CSR” (cfr., entre o mais, PPA artigos 14.º e seguintes – “Identificação do Pedido Arbitral”). “Em suma, estão aqui em causa as liquidações de CSR”, “devem ser anuladas as liquidações de CSR aqui em causa (...)” (cfr. artigos 23.º e 31.º do PPA).
Mais, invocada a excepção de ineptidão da petição inicial na Resposta com este fundamento (falta de junção/identificação do acto ou actos de liquidação impugnados), e notificada pelo Tribunal para se pronunciar, a Requerente veio afirmar que não lhe é exigível que identifique as liquidações, seria desproporcionado que tal se lhe exigisse, tal exigência frustraria o direito de acção do repercutido. Tendo, segundo defende, feito prova da repercussão, pelas facturas, mais não lhe pode ser exigido. Asseverou ainda que se restassem dúvidas sempre se poderia oficiar director de fiscalidade da empresa sua fornecedora, ou seguir outra via que se tenha por mais adequada, para responder ao Tribunal se há ou não repercussão nas facturas - cfr. supra.
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Aqui chegados, deve também dizer-se, face à referência, nos articulados da Requerente, de que são do conhecimento da Requerida todas as declarações de introdução no consumo (DICs) em questão e “por maioria de razão” todas as liquidações de CSR que se lhe seguiram (cfr., entre o mais, requerimento da Requerente de 03.02.2024), bem se compreende, face a tudo o que antecede, que não procede um argumento no sentido de que seria à Parte contra quem interpõe a acção que caberia suprir aquele seu ónus processual, de dar cumprimento aos requisitos da petição inicial. Antes de mais porque estamos perante um verdadeiro pressuposto processual[29], pressuposto relativo ao objecto da causa. Sem o cumprimento do qual a petição não é apta. Com efeito, o Tribunal conhece daquilo que se lhe pede e na medida em que se lhe pede.
E também por assim ser, nem o legislador deixou de prever meios ao alcance das partes para obterem a documentação de que devam munir-se neste contexto. Sem prejuízo do princípio da colaboração a que estão mutuamente obrigados Administração Fiscal e contribuintes (v. art.ºs 48.º do CPPT e 59.º da LGT e, ainda, 11.º, n.º 1 do CPA). Sendo sobre o Autor que recai o ónus de proceder às investigações tidas por adequadas para obtenção dos elementos em falta na identificação do acto impugnado, tem ele a possibilidade de socorrer-se seja do procedimento previsto no art.º 24.º, n.º 1 do CPPT, seja do direito de consulta e informação previsto nos art.ºs 61.º e seguintes do CPA, seja ainda, a ser necessário, do meio processual previsto no art.º 104.º e seguintes do CPTA.
Não cabia, pois, à Requerida, em qualquer caso, suprir o ónus da Requerente e em sua substituição prover ao processo a documentação de que o prosseguimento dos autos depende. Não só nem tal se revelaria praticável em situações como a do caso - como desenvolvidamente a Requerida expõe na sua Resposta - como também os deveres decorrentes para a mesma do princípio do inquisitório não vêm aqui em questão. Além do mais, tal não deve confundir-se, o dever da Requerida AT de descobrir por si a verdade factual no seio do procedimento /processo tributário (v. art.º 58.º da LGT), com o ónus da prova dos factos que caiba aos contribuintes, a este não se sobrepondo. Mais também não deve confundir-se o que no presente está em questão – a identificação do ou dos actos tributários objecto da acção, que a Requerente peticiona ao Tribunal anule – com aquilo que sejam elementos de prova dos factos indicados no Pedido. Dispensando maiores desenvolvimentos, v. como logo no RJAT as realidades não se confundem: art.º 10.º, n.º 2, al. b) versus al. d). Não ocorre, perante tudo o já exposto, preterição do princípio do inquisitório/violação dos dispositivos que o consagram, como parece a Requerente defender ao transcrever trechos de Decisões Arbitrais a respeito.
Nem daqui decorrem violados os princípio do Estado de Direito, do acesso ao Direito e/ou o direito à tutela jurisdicional efectiva, nem o princípio da proporcionalidade (a Requerente convoca, a passos, os art.ºs 2.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP) ou quaisquer outros Constitucional ou legalmente consagrados, inclusive na Carta dos Direitos Fundamentais da UE (seja do invocado princípio do direito à acção seja do princípio da necessidade e da proporcionalidade que a Requerente invoca, apelando aos art.ºs 47.º e 52.º da Carta). Tudo como mais adiante também melhor se verá. Se bem entendemos, por se fazer depender a efectivação desses direitos de documentos que a Requerente não junta nem identifica, e defende não lhe ser exigível fazê-lo. Com efeito, sendo o processo uma série de actos dirigidos a um fim, qual seja a Decisão judicial/arbitral que põe fim à lide, torna-se necessário, e compreensível, que o mesmo obedeça a formas e regras/requisitos adequados ao dito fim. Na ausência de regras o processo redundaria em insegurança, permitiria a indisciplina das partes e manobras prejudiciais a obter uma Decisão em tempo razoável e útil. Valor este precisamente afirmado pelo legislador Constituinte desde logo no art.º 20.º, n.º 4. E também assim se dando, afinal, cumprimento, entre o mais, ao art.º 268.º, n.º 4 da CRP.
Nem caberia também, por outro lado, o incumprimento do ónus processual da Requerente ser suprido pelo Tribunal, sempre se refira. Como poderá entender-se a mesma defender ao mencionar a possibilidade de se oficiar director financeiro de entidade terceira. Além do que vimos (princípio processual da auto-responsabilidade das partes incluído), e do mais que ainda se verá, nem este Tribunal está munido dos poderes de autoridade para intimar entidades externas à apresentação de documentos sob as penalidades da lei.
Impende sobre o impugnante o ónus processual de completa identificação do acto que pretende impugnar, cfr., entre o mais, os já referidos art.ºs 10.º, n.º 2, al. b) do RJAT e 108.º, n.º 1 do CPPT. Normativos que não prevêem a possibilidade de o Tribunal suprir oficiosamente a falta de identificação do acto impugnado em termos de substituição dos ónus processuais que impendem sobre o Autor, transferindo-os para o Julgador. A Requerente não juntou e nem identificou o ou os actos impugnados. “I. Se a impugnante não identificou na petição o acto impugnado, não incumbia ao Tribunal a quo substitui-se à mesma na identificação e junção do mesmo acto. II. Ocorrendo total ausência de indicação do acto de liquidação passível de ser impugnado, no âmbito da presente impugnação judicial, daí decorre a falta de objecto da mesma e a ininteligibilidade do pedido apresentado na petição inicial.” (cfr. Acórdão do STA de 07/02/2018, proc.º 01400/17).
À dificuldade neste contexto reconhecida pela Requerente não será alheia, sempre se diga, a sua posição não ser nem a de sujeito passivo, nem outra, na relação jurídico-tributária de que fala. Como melhor também se verá infra.
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Conclui-se que o processo carece, assim, de objecto – perspectivado este em sentido estrito (v. supra). Inexiste nos autos acto (ou actos) que o Tribunal possa anular ou declarar ilegal. Sequer indicação concreta/identificação do acto impugnado que constituiria o objecto da acção arbitral que a Requerente desencadeou. O acto (ou actos) que pretendesse impugnar como lesivo dos seus direitos não foi por si junto ou sequer concretamente identificado. (E lembrando que o acto tributário só pode ser provado por documento, prova legal).
Perspectivando, por sua vez, se necessário fosse, o objecto no seu sentido amplo, conjugação do pedido e da causa de pedir, vejamos.
Se no petitório se lê, como supra, seja declarada “(...) a ilegalidade das liquidações de CSR repercutidas na requerente nos meses de Maio de 2019 a Dezembro de 2022, supra melhor identificadas (sem o acto vir identificado, insista-se[30]), com a sua consequente anulação, com todas as consequências legais, designadamente o reembolso à requerente do montante de imposto de € (...)”, percorrendo o PPA são diversos os pontos em que se revela de difícil apreensão o que é pedido e com que base a Requerente o pede. Assim fala-se em visar a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de CSR, referentes ao período compreendido entre Maio de 2019 e Dezembro de 2022. Mas isto (como depois vem exposto) no que respeita, afinal, a abastecimentos realizados, nesse período, pela Requerente. Fala-se afinal em “actos de liquidação de CSR repercutida na requerente” (12.º do PPA) provada pelas facturas de abastecimento por esta de combustíveis. Fala-se em que “a Requerente não se conforma com a CSR repercutida nas facturas” (20.º do PPA). Refere-se “componente CSR” em “quadro síntese das facturas” sem que das facturas conste referência a CSR, como a Requerente também reconhece ao ter que apurar por cálculos aritméticos os montantes que vem peticionar e, neste contexto, refere-se dever ser reembolsado à Requerente o imposto repercutido (31.º do PPA). Refere-se que a Requerente não pagou o tributo ao Estado mas requer-se o reembolso do tributo pago, e juros indemnizatórios nos termos do art.º 43.º da LGT (71.º do PPA). Refere-se, neste seguimento, dever ser reconhecido à Requerente direito a indemnização pelos prejuízos resultantes do pagamento de imposto em excesso; deverem ser anuladas as liquidações de CSR e restituída à Requerente a quantia indevidamente paga a título do tributo em questão (85.º do PPA). Em contraditório, é certo, à excepção de caducidade de direito de acção, fala-se já por sua vez, afinal, em o pedido de revisão oficiosa se reportar não a actos de liquidação mas sim “a actos de repercussão da CSR”.
A acrescer, pois, à falta de objecto, por inexistência, nos autos, do acto a sindicar - só por si causa de ininteligibilidade do pedido e, assim, de ineptidão da petição inicial nesta sede (contencioso tributário de mera anulação) - a exposição apresentada pela Requerente revela-se confusa e não permite apreender, com segurança, o objecto, lato sensu, da causa.
Sempre se coloque, aqui chegados, a pergunta: a ser considerada procedente a acção qual o acto que o Tribunal anulava? Não se sabe.
E a decisão arbitral tributária assume, como a decisão dos Tribunais Tributários em processo de impugnação judicial, um carácter cassatório, de eliminação, total ou parcial, da Ordem Jurídica, do acto impugnado.
Ficando o Tribunal em tal desconhecimento, de qual seja o acto impugnado, e por tudo o que vem de percorrer-se, não pode senão concluir-se pela ineptidão da petição inicial. Por falta de objecto e/ou ininteligibilidade do pedido e causa de pedir. O que determina a nulidade de todo o processo. Excepção dilatória que constitui nulidade absoluta que afecta todo o processo, obsta ao conhecimento do mérito e tem por consequência a absolvição da instância. Tudo como vimos. E como se decidirá.
Antes, porém, refiram-se ainda três pontos.
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Um primeiro, para dizer que não seria por a Requerida se ter defendido nos autos que a conclusão a que chegámos poderia ser outra. A Requerida exercer defesa, ademais estando em causa direitos indisponíveis, é compreensível e desejável, e pode sim revelar que a mesma aproximou o sentido do pedido - em tese. É natural que se defenda, em tese, quanto às imputações que são feitas. Mesmo se se concluísse que a Requerida tinha interpretado convenientemente a petição inicial[31], não teria em qualquer caso sido compreendido qual o acto impugnado. E, em decorrência de tudo o que se viu, o contencioso em que nos movemos não é compatível com tal desconhecimento. Do acto.
No caso, a falta de clareza da petição sempre acarretou reflexos na defesa apresentada pela Requerida. E - determinante - o acto tributário objecto continua indeterminado.[32] Mais uma vez: a admitir que a acção fosse procedente, e que vinha a ser proferida uma decisão com força de caso julgado material, qual seria então o acto a anular? Nem foi junto, nem decorre do Pedido qual seja. O processo administrativo, e, mais ainda, o processo tributário, não se compadecem com generalidades, e o acto tributário só pode ser provado por documento (prova legal). A excepção de nulidade do processo decorrente da ineptidão da p.i. confirma-se em qualquer caso.
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Um segundo para deixar claro não ter o (alegado) indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa a virtualidade de constituir verdadeiramente o acto objecto dos autos. Como é bom de ver, o que se vem peticionar nessa sede, arbitral tributária, é a anulação/declaração de ilegalidade do acto de liquidação (rectius liquidação, autoliquidação, retenção na fonte ou pagamento por conta) – v. art.º 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT. E o acto de segundo grau serve precisamente o propósito de abrir a via para a apreciação da legalidade do acto de liquidação. Como, aliás, a Requerente também a certo passo expressamente reconhece. A redacção conferida pelo legislador ao art.º 2.º do RJAT é clara a respeito, ao expressamente identificar as pretensões para as quais os Tribunais Arbitrais têm competência, e aí apenas se incluindo os actos de primeiro grau (diferentemente, v. o art.º 97.º, n.º 1, al.s c) e d) do CPPT; e poder ver-se, também, como na lei de autorização do RJAT[33] se previa como objecto possível do processo arbitral tributário, além dos actos que o legislador transportou para o RJAT (cfr. al.s a) e b) do n.º 1 do art.º 2.º) também outros, e aí se incluindo os actos de “indeferimento de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, (...)”). O (alegado) indeferimento (tácito) do pedido de revisão não é, pois, o acto em crise. Aquele cuja anulação a Requerente vem, afinal, peticionar, com base na al. a), do n.º 1, do art.º 2.º do RJAT, que convoca. E que não pode deixar de ser um acto tributário stricto sensu.[34]
Mais, e sem prejuízo do que se disse, nem será dado assente, no caso, poder presumir-se o indeferimento. (Aqui voltaremos ao tratar a excepção de ilegitimidade, infra)
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E um terceiro, por fim, para sempre referir que outras excepções se verificavam nos autos.
Desde logo, a Requerente carece de legitimidade processual (activa).
Não é esse o entendimento da própria. Em seu entender, assiste-lhe legitimidade. Assim o afirma no PPA: “assistindo, inequivocamente, legitimidade processual à ora requerente para deduzi-lo”. Se bem interpretamos o PPA neste ponto, por ter, segundo alega, suportado na qualidade de contribuinte um total de € 594.012,88 a título de CSR, repercutida nas facturas. “CSR esta no valor, à data, de (...).” (“CSR esta que, tudo somado, ascende ao montante de € (...), conforme quadro infra (...)”.
Depois desenvolve a respeito no contraditório à excepção de ilegitimidade (v. supra). Convoca, vimos, em especial o art.º 18.º, n.º 4, al. a) da LGT e defende essencialmente não poder interpretar-se aí subsumir-se apenas o repercutido legal.
Será, pois, nessa qualidade, de repercutido, que vem aos autos. Defende assim ter legitimidade processual activa.
Vejamos.
2.3. Da excepção de ilegitimidade
A ilegitimidade das partes configura uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que, sendo julgada procedente, obstará a que o Tribunal conheça do mérito da causa - v. art.º 89.º, n.ºs 1, 2 e 4, al. e) do CPTA, e art.ºs 576.º, n.º 2 e 577.º, al. e) e 578.º do CPC.
Quanto ao regime da legitimidade das partes no contencioso tributário, vejamos.
Dispõe o legislador no art.º 65.º da LGT, sob a epígrafe “[l]egitimidade”, ainda que por referência ao procedimento tributário, que “[t]êm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”
Na LGT determina ainda o art.º 54.º, n.º 2, que “as garantias dos contribuintes (...) aplicam-se também à (...) repercussão legal a terceiros da dívida tributária, na parte não incompatível com a natureza destas figuras.”
No CPPT dita o art.º 9.º, também sob a epígrafe “[l]egitimidade”, no seu n.º 1, assim: “[t]êm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos (...) e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.” E o seu n.º 4, por sua vez, determina que têm legitimidade no processo judicial tributário (a par de outras) as entidades referidas nos números anteriores e, assim, naquele n.º 1.
No RJAT (v. Preâmbulo) o legislador cuidou de litígios “que opõem a administração tributária ao sujeito passivo”, e do pedido de constituição do tribunal arbitral deve constar a “identificação do sujeito passivo” (cfr. art.º 10.º, n.º 2, al. a) do RJAT).
Por sua vez, em matéria de legitimidade, conceito, v. o art.º 9.º do CPTA, que determina que o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida. Pelo que, “(...) a legitimação processual é aferida pela relação jurídica controvertida, tal como é apresentada pelo autor. Deste modo, há que atender à relação jurídica tal como o autor a apresenta e configura, isto é, à pretensa relação jurídica, e não à relação jurídica material, tal como ela se constituiu na realidade, sendo por isso indiferente, para a verificação da legitimidade, a questão de saber se o direito existe na titularidade de quem o invoca (...), matéria que diz antes respeito à questão de fundo e poderá, quando muito, determinar a improcedência da ação (...).”[35]
Princípio geral em matéria de legitimidade activa este, vindo de ver, que tem correspondência no CPC, art.º 30.º - “Conceito de legitimidade”, n.º 3: “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”. Ou seja, são partes legítimas as pessoas que o autor indique como sendo os sujeitos da relação controvertida.[36]
Ora, nos nossos autos, a própria Requerente reconhece não ser sujeito da relação jurídica controvertida. Reconhece vir aos autos não na qualidade de sujeito (passivo) da relação jurídico-tributária que configura (e do(s) acto(s) de liquidação), mas sim na qualidade, outra, de consumidor final – “repercutido”[37]. E assim pugna pela sua legitimidade (cfr. supra).
Também esclarece, a certo passo do requerimento de resposta às excepções, que os “dados legais e factuais” “apontam no sentido da repercussão deste imposto sobre o consumo, em geral e, em especial, neste caso concreto (...).”
Dito isto.
Tal como apresenta a relação controvertida, a Requerente não é sujeito (passivo) da mesma. É, diferentemente, e segundo alega, entidade que suporta o encargo do imposto por repercussão. Como consumidor final dos combustíveis em apreço.
Mas a Requerente, ainda assim, entende que tem legitimidade activa nos presentes autos. Desde logo, processual. E porquê? Porque apesar de o legislador tributário ter sido claro ao determinar que não é sujeito passivo da relação jurídico-tributária “quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal” - v. n.º 3 versus n.º 4, al. a), do art.º 18.º da LGT - ainda assim o legislador disse que este (o repercutido legal que por essa via suporte o encargo do imposto) não o é (sujeito passivo), mas sem prejuízo do direito a meios de defesa nos termos das leis tributárias. Assim (inserido no Título II – Da relação jurídica tributária):
“Artigo 18.º - Sujeitos / (...)
3. O sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva (...) que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.
4. Não é sujeito passivo quem:
a) Suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias;”
O que dizer, então?
Que é certo que quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal não deixará de ter meios de defesa, administrativos e jurisdicionais, ao seu alcance, no pressuposto de que prove interesse legalmente protegido (v., na LGT, art.ºs 9.º, n.º 1 – “[é] garantido o acesso à justiça tributária para a tutela plena e efectiva de todos os direitos ou interesses legalmente protegidos” e 65.º, segunda parte – “[t]êm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido”, e no CPPT, art.º 9.º, n.º 1, parte final - “[t]êm legitimidade (...) os contribuintes (...) e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido”, e n.º 4).
Porém, desde logo, meios ao seu alcance nos termos das leis tributárias – como logo o disse o legislador no art.º 18.º, n.º 4, al. a) da LGT (supra).
Ou seja (e como primariamente decorreria do que já vimos de ver) não bastará a prova de qualquer interesse legalmente protegido, para o interessado poder figurar como parte activa na acção. Além de que tais interesses terão que ser interesses afectados pela decisão que possa ser tomada no procedimento tributário[38], recorde-se ainda a regra da correspondência entre direito e acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo: salvo se a lei determinar o contrário, haverá apenas um determinado meio processual que em cada caso pode ser utilizado para obtenção da tutela judicial (v. também o art.º 98.º, n.º 4 do CPPT, e o art.º 2.º, n.º 2 do CPC).[39]
Pois bem.
Os meios existentes - as formas de processo, se se preferir (e pensando agora apenas no processo) – são diversos (v. art.º 95.º, n.º 1 da LGT: “O interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, segundo as formas de processo prescritas na lei.”).
E só podem ser utilizados por referência a determinados tipos de actos.
O processo de impugnação judicial é a forma de processo tributário por excelência, dissemos já. Não a única, pois. E foi no seu âmbito que o legislador criou, como alternativa, a Arbitragem Tributária (v. art.ºs 1.º, 2.º, n.º 1 e 3.º, n.º 2 do RJAT).
O processo de impugnação judicial tem por objecto actos tributários (lato sensu).
A impugnação judicial prevista na al. a) do n.º 1 do art.º 97.º do CPPT – aquela que tem correspondência na al. a) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT[40] – é a forma de processo adequada, o meio, próprio, nos termos das leis tributárias, para sindicar actos tributários stricto sensu (v. também supra, pág. 24).
A repercussão - repercussão legal - não é acto tributário stricto sensu.
Sequer acto tributário. Lembrando que o acto tributário é um acto administrativo. E v. no art.º 148.º do CPA (e no art.º 60.º do CPPT – Secção II – Da decisão), entre o mais, o elemento “decisão”, sempre presente. Decisão no exercício de poderes jurídico-administrativos.
Não o sendo a repercussão legal, já se vê, também assim a repercussão meramente económica. Como se concluirá suceder no caso.
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Aproximando:
Estamos em CSR, reportando-se os autos a período em que vigorava a Lei n.º 55/2007.
A Requerente é consumidora de combustíveis, em concreto gasóleo e gasolina (cfr. facturas).
Não sendo, como reconhece, sujeito passivo da CSR, sujeito passivo na relação jurídico-tributária em que se enquadram os falados, mas não concretamente identificados, actos de liquidação de CSR. Que teriam ocorrido na esfera jurídica de empresa a si fornecedora dos mesmos. Porém, segundo alega, tendo-lhe sido repercutido a si o tributo em questão. Quando adquiriu os ditos combustíveis (aquisições constantes de facturas que junta, de datas entre Maio de 2019 e Dezembro de 2022).
A ser assim, como alega ser, a Requerente estaria a suportar ela própria o encargo da CSR.
Ao adquirir gasóleo e gasolina, ao pagar o respectivo preço, estaria também a incorrer - segundo alega afinal - no pagamento de CSR, a CSR que antes de si o sujeito passivo do tributo pagou ao Estado. O sujeito passivo a quem o tributo foi liquidado (v. art.º 11.º do CIEC, ex vi art.º 5.º, n.º 1, da Lei n.º 55/2007) estaria, assim se terá que concluir, a fazer incluir no preço de venda à Requerente, daqueles litros do combustível em questão, o valor que em momento anterior pagou, por aqueles mesmos litros do combustível (... são os actos de liquidação ocorridos sobre os mesmos que vem pedir sejam anulados), de CSR, ao Estado (fazendo ademais a Req.te um cálculo por aplicação das respectivas taxas em vigor não necessariamente à data das liquidações - rectius da exigibilidade, cfr. art.º 8.º CIEC -, data que se desconhece..., mas sim à data das facturas...).
Estaria assim a Requerente a suportá-lo, o tributo, a CSR, e segundo sustenta, por repercussão.
O que faria com que a sua situação recaísse, segundo também sustenta, na al. a) do n.º 4 do art.º 18.º da LGT. Quando aí se refere que não é sujeito passivo quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal.
Previu o legislador, no art.º 18.º, n.º 4, al. a) da LGT, a possibilidade de acesso à justiça tributária, para tutela de direitos ou interesses legalmente protegidos, daqueles a quem, suportando o encargo do imposto por repercussão legal, possa, por essa via, advir lesão de interesses legalmente protegidos.
Ora.
Antes de mais, a repercussão, a ocorrer em CSR, sempre o será, diga-se, em moldes desde logo distintos da repercussão que se vê ocorrer em IVA, aí sim determinada por lei com carácter de obrigatoriedade – v. art.º 37.º do CIVA (com mais desenvolvimento v. Decisão Arbitral, de 14.08.2024, no processo n.º 473/2023-T[41]).
No funcionamento do tributo aqui em questão, ao tempo, CSR, desde logo em se estando perante uma Contribuição Financeira, como propendemos a entender (v. supra), não haverá uma repercussão legal – pelo menos com o alcance que a Req.te pretende ver reconhecido de um valor (alegadamente) igual ao suportado a montante pelo sujeito passivo ser por si suportado a jusante ao adquirir os combustíveis. Não terá sido querido pelo legislador tributário visar/onerar senão o grupo com o qual se estabelece o já referido sinalagma difuso (os sujeitos passivos do tributo), pelo que não se sustentaria a argumentação da Requerente. V., ademais, cfr. já supra também, como o legislador visou sim assegurar a neutralidade do tributo não o fazendo recair no preço – cfr. art.º 7.º da Lei 55/2007.
Ainda assim, considerando que é para o disposto no CIEC que a Lei 55/2007 remete em matéria de liquidação, cobrança e pagamento da CSR (ou mesmo atentando à alegada, pela Requerente, qualificação do tributo ao tempo como um imposto, e como é também um entendimento corrente na Jurisprudência Arbitral recente no tema), sempre se dê a seguinte nota.
Em matéria de impostos especiais sobre o consumo é conhecida a proximidade a características próprias da parafiscalidade (bem como do direito aduaneiro).
Diferentemente do que sucede em IVA, estamos aqui perante impostos monofásicos. O facto gerador do imposto verifica-se, em regra (excepções existem[42]), no momento da introdução no consumo (e quanto a esta, v. art.º 9.º do CIEC). Uma única vez, pois (v. art.º 7.º e ss. do CIEC).
Bem se vê já por aqui, a haver repercussão, mesmo que querida - por ser essa a lógica neste seio - pelo legislador, ela será um mecanismo particular (no sentido de levado a cabo por um particular), moldável, na disponibilidade dos operadores económicos, que operam, precisamente, no mercado, no seio das contingências próprias deste. Para dizer que não há, aqui, uma imposição legal de repercutir o tributo (menos ainda há uma imposição, sequer a possibilidade, de liquidação de novo do tributo; como, aliás, patente nas facturas, que nada contêm a título de CSR). Dir-se-á que estaremos perante o convocar - num contexto em que, apartando-se o princípio legitimador do da capacidade contributiva para se aproximar do princípio do benefício... - de uma regra geral, como na frase popularizada por Friedman, de que não há almoços grátis.
E nem será pela recentemente aditada formulação expressa “sendo repercutidos nos mesmos”, no art.º 2.º do CIEC, que o que vem de se dizer se altera. Também aí, nessa actualizada redacção, há um mero esclarecer da mesma regra geral que já vinha de antes (como, aliás, a atribuição de natureza interpretativa à norma também o revela[43]).
Em qualquer caso, a ser feita repercussão/transmissão para a frente de CSR pelo sujeito passivo - rectius do encargo económico - em casos como este, a isso suceder, e mesmo que ao longo da cadeia económica, não só a operação em questão não resulta de uma concreta imposição expressa do legislador, desde logo tal não integrando o regime jurídico do tributo (diferentemente do que sucede em IVA). Como - e determinante - sempre estaremos perante uma operação do próprio agente económico (como assim, aqui sim, também afinal em IVA[44]). Que não da Administração Tributária (sequer operação que lhe viesse a ser submetida tornando-se a seu tempo definidora de uma situação individual e concreta).
A assim ocorrer, a Requerente poderá suportar o encargo económico do imposto por via de repercussão (poderá arcar com efeitos económicos do tributo, diríamos).
Operação, facultativa, realizada pelos agentes económicos.
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Dito isto.
Admitindo o legislador, na LGT, lei geral, que se pretendia ser uma lei de valor reforçado, como se sabe, a possibilidade, neste contexto, de o repercutido legal se ver lesado nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria tributária, determinou (al. a) do n.º 4 do art.º 18.º) que o mesmo poderá (sendo o caso) fazer uso de meios, procedimentais e processuais, para a respectiva tutela “nos termos das leis tributárias”. Habilitando/dirigindo assim o legislador a concretizá-lo nas leis tributárias. Referiu meios, remetendo pois (como nem poderia deixar de ser) para o disposto nas leis tributárias.
Ainda na LGT v. os art.ºs 9.º, n.º 2 e 95.º, n.º 1 - actos impugnáveis ou recorríveis nos termos da lei / direito de impugnar ou recorrer segundo as formas de processo prescritas na lei -, e o art.º 101.º, contendo o elenco de meios processuais tributários, depois concretizado no art.º 97.º do CPPT, de onde constam, na al. a) (com correspondência na al. a), n.º 1, art.º 2.º do RJAT) a forma de processo de impugnação sobre actos tributários stricto sensu, e, nas alíneas seguintes, outras (impugnação de outros actos tributários e outras formas de processo).
Ao recorrer à forma de processo de impugnação que tem por objecto actos tributários stricto sensu (via Arbitragem Tributária) a Requerente estava a escolher o meio processual nos termos das leis tributárias adequado à apreciação da legalidade de actos de liquidação de CSR. Acto tributário stricto sensu. Que a repercussão - mesmo a repercussão legal, como em IVA - não é, vimos, e aqui ainda voltaremos.
Não sendo sujeito passivo dos actos de liquidação de CSR que pretende impugnar (ainda que sem os identificar concretamente), carece de legitimidade processual para o efeito, uma vez que não é sujeito da relação controvertida (a relação jurídico-tributária em que tais actos se inserem), desde logo tal como por si delineada (cfr. supra).
E não estava, nisto também, em qualquer caso, a escolher meio processualmente adequado em sede de repercussão legal nos termos das leis tributárias. (O processo judicial tributário na forma de processo de impugnação judicial cfr. al. a) do n.º 1 do art.º 97.º do CPPT, e v. al. a) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT, tem por objecto a apreciação da legalidade de actos tributários stricto sensu, insista-se.)
Também não se verifica, sempre se refira, ao não assistir legitimidade processual nos presentes autos à Requerente, e por tudo o visto, preterição de quaisquer normativos Constitucionais invocados pela Requerente. Desde logo os invocados art.ºs 2.º, 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP. Com efeito, dando concretização às garantias consagradas na Constituição em matéria de tutela jurisdicional efectiva, dita desde logo o art.º 95.º, n.º 1 da LGT: “[o] interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, segundo as formas de processo prescritas na lei” (v., ainda, aí, o art.º 9.º, n.º 2).
A terminar, e na sequência de tudo o que vimos, retornemos ainda, por uma última vez, ao art.º 18.º, n.º 4, al. a), da LGT, in fine: “nos termos das leis tributárias”.
Bem se conhece a manifesta complexidade da Ordem Jurídica tributária, complexidade que também nestas matérias - âmbito de aplicação de meios processuais tributários - impera. Não sendo inclusive de fácil apreensão, por vezes, a interligação entre LGT e CPPT.
Certo, porém, é que na LGT o legislador previu os princípios – os princípios fundamentais (cfr. Preâmbulo no respeitante ao Título IV - processo tributário), a depois ser desenvolvidos em sede de direito tributário adjectivo e de codificações especiais de cada tributo.
O art.º 18.º, n.º 4, al. a), não foi excepção, vimos, assim se remetendo para o disposto nas leis tributárias. Que é, pois, onde encontraremos os meios que o legislador consagrou, cumprindo o normativo.
Ora, vindo a Requerente aos autos (nos termos que vimos e sustentando-se na alegada qualidade de repercutida) pretender a anulação de actos tributários de liquidação em CSR, sempre seríamos remetidos para a Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (v. supra) e, por remissão da mesma (v. art.ºs 4.º e 5.º), para o Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC).
A Requerente, vimos, pretende, através da peticionada anulação dos actos de liquidação de CSR, o reembolso do tributo alegadamente por si suportado - o reembolso, a si, do montante de CSR que alegadamente teria suportado, como consumidor dos combustíveis, por repercussão.
No CIEC previu o legislador, como bem se compreende, meios procedimentais próprios, na esfera dos sujeitos passivos, para obtenção de reembolsos de imposto pago. Assim, dispõe o art.º 15.º, n.º 2 (CIEC), em sede de regras gerais de reembolso - no “Capítulo II, Liquidação, pagamento e reembolso do imposto” e, assim, norma aplicável ex vi art.º 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007 - que “[p]odem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto.”
Ou seja, é aos sujeitos passivos do imposto que assiste (que o legislador nas leis tributárias atribui) legitimidade activa para requerer o reembolso. Sujeitos passivos, a saber: o depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado (v. art.º 4.º para que ali se remete). E reembolso que pode ter por fundamento, entre outros, erro na liquidação (v. art.º 16.º do CIEC).[45] Mecanismo de reembolso que corresponde a uma restituição do imposto pago pelo sujeito passivo. Pedidos de reembolsos a favor do sujeito passivo estes que são facultativos (v. n.º 2 daquele art.º 15.º - “[p]odem”), ficando na sua disponibilidade.
A ser suportado o encargo do tributo por repercussão, quem assim se considere lesado nos seus direitos poderá então, desde logo, junto dos seus fornecedores procurar fazê-los valer. Lembrando que repercussão nos preços (repercussão indirecta dos impostos através dos preços), a única possível no caso, sempre será algo que fica dependente do normal funcionamento dos mercados. Realidade própria do mundo económico. Repercussão eventual, mesmo se pretendida pelo legislador, ao longo do circuito económico. (Distintamente do que sucede em IVA, em que o próprio regime do imposto se estruturou com base na obrigação legalmente imposta, ao longo da cadeia, aos sujeitos passivos - todos os intervenientes na cadeia até ao consumidor final -, de liquidar o imposto e assim o cobrar juntamente com o preço dos bens/das operações a jusante, nas facturas, assim obrigatoriamente o repercutindo[46]).
Não deixando, neste contexto, já se vê, o sistema do Estado de prever a tutela de outros possíveis interesses lesados. Desde logo[47] em sede de relações jurídico-privadas.
Nem a harmonização Comunitária nesta sede, e o Direito da UE, se vêem coartados com o que vimos de ver, desde logo tendo em consideração o mais que também o nosso sistema judicial pode garantir. Com interesse v. (e lembrando que estamos em relações no seio do funcionamento do mercado, como vimos, portanto que não limitadas ao seio administrativo-tributário) Acórdão do TJUE de 20.10.2011, proc. C-94/10, Danfos A/S, com o seguinte ponto 1 no dispositivo: “As normas do direito da União devem ser interpretadas no sentido de que um Estado‑Membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil.”
Em todo o caso, e em coerência com tudo o que vem de se percorrer, v. ainda o disposto na Lei 55/2007 (art.º 5.º, n.º 1) e sempre se recorde que os meios de reacção aos actos de liquidação previstos pelo legislador tributário são comuns ao Direito ao tributário e ao aduaneiro (v. art.º s 1.º da LGT e 1.º do CPPT).
Conclua-se.
Contrariamente ao que vem defendido pela Requerente, a norma - art.º 18.º, n.º 4, al. a) da LGT- não confere ao repercutido (sequer ao repercutido legal, que a Requerente nem é, como aliás reconhece) legitimidade para impugnar a liquidação.
Tudo como percorrido.
E nem os art.ºs 18.º, n.º 4, al. a), 54.º, n.º 2, 65.º e 95.º, n.º 1 da LGT, em conjugação com o art.º 9.º, n.º 1 e 4 do CPPT, diga-se, reconhecem legitimidade a quem for titular de um interesse legalmente protegido conferindo, por si, legitimidade procedimental e processual nos autos.
A impugnação judicial terá por objecto um acto tributário, que no caso seria o acto de liquidação de CSR (cfr. art.º 11.º do CIEC, ex vi art.º 5.º da Lei 55/2007), e terá legitimidade na impugnação correspondente o respectivo sujeito passivo (que é o sujeito da respectiva relação jurídico-tributária, desde logo tal como configurada pelo Autor - cfr. supra). De poder ter um interesse legalmente protegido em matéria tributária e poder assistir ao repercutido (legal) interesse em recorrer aos Tribunais (v. também, além do mais, o art.º 268.º, n.º 4 da CRP, a que a Req.te faz apelo) não decorre que possa ser parte em acção de impugnação judicial tributária, que possa ser parte legítima na mesma. Como se sabe. E por tudo o que se viu.
(E o mesmo quanto à invocada/implicitamente assumida legitimidade procedimental. Referimos já que à Req.te não assiste, ao não ser sujeito passivo, legitimidade para o mecanismo dos pedidos de reembolso - cfr. CIEC, v. supra. Nem, ademais, assim o vemos, lhe assistia legitimidade em sede de pedido de revisão oficiosa. Por tudo o percorrido, a Requerente nos autos não qualifica como contribuinte de CSR, nem como sujeito passivo da mesma. Sendo que “a revisão dos actos tributários prevista e regulada no art.º 78.º da LGT pode ser desencadeada tanto pela administração tributária como pelos contribuintes ou outros sujeitos passivos das relações jurídicas tributárias”[48]. Ou seja, e voltando onde mais atrás o aproximáramos, o pedido de revisão oficiosa submetido pela Req.te não é de presumir-se, tacitamente, indeferido. Ao não existir, no contexto exposto, dever de decisão – v. art.º 56.º da LGT – por não preenchido o pressuposto procedimental subjectivo da legitimidade activa).
Do mesmo passo, as mesmas consequências se retiram com referência à acção arbitral tributária, meio de que a Requerente veio fazer uso e que é alternativo àquele, seguindo os mesmos termos no essencial.
Ainda se dê, aqui chegados, duas notas finais.
Uma, em qualquer caso se refira (independentemente de a Req.te não qualificar como repercutida legal... mas já que também convoca a norma para vir interpor a presente acção arbitral), a de que é também, quanto a nós, de admitir (sem prejuízo de tudo o que se disse), na menção, no art.º 18.º, n.º 4, al. a), a “pedido de pronúncia arbitral”, ter o legislador partido do teor da lei de autorização do RJAT, onde se referia como podendo vir a incluir-se no objecto do processo arbitral tributário “direitos ou interesses legítimos em matéria tributária”. Com efeito, o trecho em questão da norma é anterior à publicação do RJAT, no qual o objecto do processo arbitral viria a resultar mais restrito (assim amputado dessa matéria).[49] Temos presente o elemento temporal na interpretação.
Outra a carecer de algum maior aprofundamento (sempre sem prejuízo de tudo o que se disse), a de que nem as facturas - os documentos que a Req.te carreou nos autos[50] (mesmo após notificada para se pronunciar sobre a falta de junção do acto/a excepção de ineptidão) - supririam a inexistência do acto tributário, nem a sua junção permitiria alterar o que quer que seja do que vem dito. Assevera a Requerente que nas facturas que lhe foram emitidas houve lugar à repercussão da CSR. Fala em ato tributário de liquidação de CSR repercutida a si nos abastecimentos. Refere nas facturas estarem repercutidas as liquidações. Refere que está demonstrado o pagamento da CSR por si Requerente “conforme comprovativos de pagamento das facturas” (v. requerimento de resposta às excepões). Pretende, pois, se bem entendemos, que as facturas documentariam actos tributários, actos tributários de repercussão de CSR. Defendendo não lhe ser exigível juntar mais que as facturas.[51] Sempre nos foquemos aqui, muito sinteticamente. Aproximado que ficou, entretanto, de que se fala quando se fala em repercussão, em CSR (v. supra).
Comecemos então pelos conceitos.
Repercussão.
Depois, Facturas.
E por fim, revertendo ao início, Acto tributário.
Repercussão.
O legislador em CSR não tratou de repercussão, desde logo aquando da criação do tributo, cfr. máxime art.º 7.º da Lei 55/2007. Se atentarmos no disposto no CIEC, por sua vez, e atento o também disposto naquela mesma Lei (art.º 5.º, e segmento do CIECs para que aí se remete) veremos que, muito embora em sede de IECs esteja presente um princípio do benefício, legitimador, o legislador não determinou uma obrigação de repercussão dos mesmos. Diferentemente do que sucede em IVA, não há qualquer obrigação seja de liquidação ao longo da cadeia, do tributo, seja de repercussão do mesmo. Como acima já aflorado, mesmo a premissa que passou mais recentemente a constar do art.º 2.º do CIEC não é mais que a exteriorização de uma regra geral própria da realidade económica, já antes necessariamente presente.
De que se trata, afinal? De os agentes da cadeia económica - máxime o sujeito passivo (que é apenas um, recorde-se, estamos em sede de impostos monofásicos, e, portanto, também o único no conhecimento exacto do que foi pago a título de CSR) - poderem fazer recair/reflectir, no valor do preço que cobram aos seus clientes, despesas em que antes incorreram. Assim sendo uma possibilidade fazerem-no ponderando também o custo em que aí incorreram a montante inclusive com referência à CSR. Tratar-se-à, assim, em todo o caso, de fazer incluir no valor do preço dos bens esse custo, antes incorrido. Que não um adicionar à factura do montante que se liquidasse, aí, de imposto (como em IVA). Sem surpresa, não figura CSR nas facturas que a Requerente junta.
A repercussão a ocorrer será, pois, em casos como o dos autos - art.º 7.º, n.º 1 do CIEC -, a transmissão, na cadeia económica, do encargo económico do tributo, incorporado-o, esse encargo, como custo da actividade económica que também é, nos preços. Em alguma medida.
Pois que não há aqui, como visto, uma imposição legal de proceder à repercussão. Os agentes económicos fá-lo-ão, a ser o caso, - essa incorporação do encargo nos preços - que não por uma concreta imposição determinada legalmente. Vimos.
Repercussão económica, afinal. Que não repercussão legal cfr. art.º 18.º, n.º 4, al. a).
Aquele, por sua vez, a quem esta possível transmissão do encargo/custo antes incorrido com o imposto afectará, o agente económico seguinte na cadeia, pagará um determinado preço que reflectirá também esse custo. Mas não porque quem o antecede esteja, nisso, a dar cumprimento a uma imposição legal de (liquidação e) repercussão.
Não há, neste contexto, repercutido legal, a Requerente não o é.
Poderá ser repercutida - no sentido de sofrer nestes termos um encargo próprio dos efeitos económicos do imposto. Mas não por via de uma imposição legal de repercussão do imposto liquidado, CSR. Não lhe é exigido o pagamento de CSR. Não é, pois, sujeito de qualquer dívida tributária em CSR.
Facturas.
As facturas titulam/documentam o negócio jurídico a elas subjacente.
E nem nelas figura qualquer verba a título de CSR.
Não se alcança, assim, como possa ver-se as facturas como documentando actos tributários de repercussão da CSR, como retratando actos tributários de liquidação.
A possível transmissão-repercussão de custos económicos, incorporando-os nos preços dos bens, não será senão levada a cabo pelos próprios agentes económicos, inexistindo imposição por parte do legislador tributário de que assim o façam.
Nem há aí qualquer liquidação, sequer pelo sujeito passivo/pelos agentes económicos (como em IVA sucede).
E a ocorrer essa transmissão-repercussão económica, inexiste qualquer intervenção (seja então, seja em posterior assentimento/aceitação/ confirmação ou não) da Administração Tributária.
Não há, pois, um acto tributário ou liquidação, seja em sentido estrito, seja em sentido amplo. Não há uma decisão administrativa sobre uma situação individual e concreta respeitante ao contribuinte em aplicação da lei tributária material.
Sequer se alcança como possa ver-se essa transmissão do custo como um acto. Menos ainda como um acto administrativo - acto tributário. A querer-se qualificá-lo como um acto, estamos perante um acto do agente económico (seja ele o sujeito passivo, seja agente económico posterior na cadeia).
Sem maiores desenvolvimentos, recorremos às palavras (a ler com as necessárias adaptações e actualizações) de Alberto Xavier[52]: “É certo que, ao menos em certos impostos - como no imposto de transacções e nos direitos aduaneiros - a liquidação não é uma simples operação mental, por se dever corporizar num documento (factura ou fórmula de despacho), cuja elaboração é rigorosamente disciplinada por lei (...). A elaboração dos referidos documentos, de harmonia com a lei fiscal, bem como a indicação neles do imposto correspondente ao valor da transacção, constitui, porém, não a forma de um acto jurídico de aplicação da norma tributária material, anterior ao pagamento, mas a simples realização de um dever tributário acessório, imposto por lei (...). Ora, foi a inegável autonomia destas operações de registo e escrita em relação ao pagamento que levou o próprio legislador a assimilá-las à actividade da Administração fiscal, usando os mesmos conceitos para as designar (...) sem se preocupar em distinguir aí onde se verifica a prática de um acto de aplicação da norma material pela Administração dali onde um simples particular, cumprindo um dever instrumental, regista em documentos adequados os factos sujeitos a imposto e o tributo que lhes corresponde.”
Pois bem, no caso da CSR, como visto, tão pouco chega a haver liquidação do tributo entre agentes económicos e/ou ao consumidor final/utilizador. Repercussão legal. Não há, aqui, o cumprir de uma obrigação acessória/de um dever instrumental.
Aqui não estamos perante repercussão legal. Por maioria de razão não há acto tributário.
Adicionado que seja, pelo agente económico, um custo no preço em reflexo do custo em que incorreu ao pagar a CSR, tal é alheio a qualquer intervenção da Administração Tributária.
Faculdade dos agentes económicos, ainda que admitida/querida pelo legislador, havíamos visto. Operação dos agentes económicos, a ocorrer.
Própria do mundo económico.
Acto tributário.
Aproximámos acima (máxime na p. 36) o conceito de acto tributário. Remetemos para o disposto no art.º 148.º do CPA, e no art.º 60.º do CPPT.
O acto tributário é, além do mais, e do já dito, organicamente administrativo.[53]
Não cabe, pois, visto o percorrido, falar num tal de acto tributário de repercussão de CSR (e que as facturas documentariam) como pretende a Requerente.
Pois bem.
Acto tributário em CSR será o constante do art.º 11.º do CIEC (v. também aí art.º 10.º-A) – a liquidação de CSR, que é efectuada com base nas DIC apresentadas/submetidas pelos agentes económicos sujeitos passivos de CSR. Liquidação lato sensu. Acto tributário stricto sensu e, assim, o acto impugnável nos termos do art.º 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.
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Em suma, verificava-se nos autos, a par da excepção de ineptidão da petição inicial, também e desde logo, excepção dilatória de ilegitimidade processual activa.
3. Decisão
Termos em que decide este Tribunal Arbitral:
Declarar nulo todo o processo por ineptidão da petição inicial e, consequentemente, absolver a Requerida da instância.
4. Valor do processo
Nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, e 306.º, n.º 2 do CPC, fixa-se o valor do processo em € 594.012,88, valor indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida.
5. Custas
Conforme disposto no art.º 22.º, n.º 4 do RJAT, no art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento já referido e na Tabela I a este anexa, fixa-se o montante das custas em € 8.874,00, a cargo da Requerente (cfr. art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, considerando-se, quanto à acção, que a perde o Autor quando o Réu é absolvido da instância).
Lisboa, 25 de Setembro de 2024
Os Árbitros,
Fernando Araújo (Presidente)
(Acompanho a fundamentação e o sentido da decisão, com a ressalva de que entendo que a CSR foi um verdadeiro imposto, nascido do ISP e a ele regressado, após a sua extinção na Lei nº 24-E/2022, de 30 de Dezembro, acompanhada de concomitante aumento da taxa de ISP pelo valor da ex-CSR – o que não afecta, como assinalado na fundamentação, a questão da (in)competência do tribunal)
David Nunes Fernandes (Vogal)
(com declaração de voto)
Declaração David Oliveira Silva Nunes Fernandes (11 páginas)
Não acompanho o sentido da decisão, na exata medida em que teria julgado procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal arbitral – ainda que a reconduzindo a incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral -, ancorando-me em fundamentação anteriormente subscrita, nomeadamente, nos autos 508/2023-T (e plasmada em voto vencido nos autos 669/2023-T, bem como nos autos 872/2023-T), a qual se reproduz infra nos segmentos relevantes, porquanto são plenamente aplicáveis nos presentes autos:
«O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixou como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária».
O Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior».
A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminado a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando dêem origem à liquidação de qualquer tributo, e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação.
No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio admitir que, no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, o âmbito da arbitragem tributária fosse limitado de harmonia com a vinculação.
Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» da seguinte forma:
Artigo 1.º
Vinculação ao CAAD
Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:
a) A Direcção-Geral dos Impostos (DGCI); e
b) A Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).
Artigo 2.º
Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
Artigo 3.º
Termos da vinculação
1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.
2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:
a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;
b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.
3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.
Desta legislação e regulamentação conclui-se que houve uma preocupação em limitar o âmbito da arbitragem tributária:
– na alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei de autorização legislativa admitia-se a possibilidade de nela ser incluída a generalidade dos litígios relativos a liquidação de tributos (inclusivamente os praticados pelos contribuintes) e de fixação de valores patrimoniais que podem ser apreciados em processo de impugnação judicial e o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária;
– no artigo 2.º do RJAT não se incluiu na arbitragem tributária o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária e estabeleceu-se no artigo 4.º, que a vinculação da Administração Tributária, que se reconduz a definição do âmbito da arbitrabilidade de litígios deveria ser efectuada por portaria;
– com a Lei n.º 64-B/2011, impôs-se que na portaria se indicassem o tipo e o valor máximo dos litígios, o que tem como corolário que nem todos os litígios abrangidos pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT;
– a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, limitou a vinculação aos serviços da Administração Tributária estadual e aos tribunais «que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida», com várias excepções.
A intenção legislativa de restringir o âmbito da arbitragem tributária em relação ao que foi permitido pela autorização legislativa resulta com evidência destes diplomas e é explicada pelas justificadas dúvidas que, no início da arbitragem tributária, se suscitavam sobre o possível inadequado funcionamento de um meio inovador de resolução de litígios em matéria tributária, bem patentes nas preocupações sentidas pelo Senhor Conselheiro Santos Serra, Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, na sessão de apresentação do novo regime de arbitragem fiscal, que ocorreu em Lisboa, no dia 14-12-2010:
Assim, e logo à partida, é preciso que o regime de arbitragem tributária ora constituído consiga afastar receios de que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais que sobre si recaem, e que façam letra morta dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes em matéria tributária, com a capacidade negocial diferenciada das partes a sobrepor-se ao princípio da tributação de acordo com a sua real capacidade contributiva.
A consciência dos riscos como fundamento das limitações do âmbito foi expressamente explicada pelo Senhor Prof. Doutor Sérgio Vasques (que desempenhava as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ao tempo em que foram emitidos o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), em texto publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD:
A arbitragem tributária, tal como contemplada no Regime da Arbitragem Tributária veio a apresentar âmbito mais estreito relativamente ao que figurava na autorização legislativa do orçamento do estado para 2010, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora que não vai sem os seus riscos. Foi também com precaução que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual se vinculou a administração tributária ao regime, impôs vários limites desde logo atendendo à especificidade e ao valor das matérias em causa, associando-se deste modo a Administração Fiscal a este mecanismo de resolução alternativa de litígios nos estritos termos e condições estabelecidos na Portaria».
Nos litígios em matéria de direito tributário está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que na vinculação se tomassem cautelas.
A arbitragem tributária poderia vir a ser um meio generalizado alternativo de resolução de litígios fiscais, mas, antes de serem dadas provas reiteradas da qualidade e isenção das suas decisões, a necessidade de protecção do interesse público e de assegurar a efectividade dos princípios essenciais da legalidade e da igualdade tributária que o enformam nesta matéria recomendava em 2011 e recomenda actualmente que se avance com cuidado, sem entusiasmos desmedidos, não deixando ao arbítrio dos cidadãos a opção livre e ilimitada por esse meio de resolução de litígios.
Essa cautela é especialmente aconselhada quando, por razões de celeridade, se optou por restringir os meios de impugnação e recurso das decisões arbitrais e, por isso, é menor do que nos tribunais tributários a viabilidade de correcção de possíveis erros de julgamento que sejam lesivos do interesse público.
Por isso se justificava em 2011 e se justifica ainda hoje que haja limitações ao acesso à arbitragem tributária, de forma de compatibilizar a utilização deste meio opcional de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público, assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.
A esta luz, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que o âmbito da vinculação seria definido por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, atribui-lhes um poder discricionário, para definirem a amplitude da vinculação da forma como entendam que melhor se prossegue o conjunto de interesses públicos cuja concretização está em causa, definição esta que não pode dispensar, naturalmente, a avaliação da verificação da existência das condições de ordem material e humana necessárias para a implementação deste novo regime.
Neste contexto em que havia uma evidente intenção de restringir o âmbito inicial da arbitragem tributária em relação à amplitude permitida pela lei de autorização legislativa, sendo consabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) e a Lei Geral Tributária (LGT) aludem a vários tipos de tributos, que designam como «impostos», «taxas» e «contribuições financeiras» [artigos 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 3.º, n.ºs 2 e 3, da LGT], a inclusão da palavra «impostos» na expressão «apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» contrastando com a referência mas abrangente a «actos de liquidação de tributos» que foi usada na alínea a) do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 3-B/2010 (autorização legislativa) para definir o âmbito da autorização, tem de ser interpretada expressão precisa da restrição que se pretendeu efectuar.
Na verdade, assente que a intenção legislativa era restringir o âmbito da jurisdição arbitral, se foi utilizada uma expressão com alcance restritivo para indicar o âmbito da restrição, tem de pressupor-se, presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), que se pretendeu restringir nos precisos termos, se não houver razões que imponham que se conclua que houve alguma deficiência na expressão do pensamento legislativo. Uma norma com alcance restritivo deve, em princípio, ser interpretada em termos estritos e não extensivamente, pois a ampliação do seu alcance estará presumivelmente ao arrepio do pensamento legislativo que a interpretação jurídica visa reconstituir (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).
Como se escreve no Acórdão n.º 539/2015, do Tribunal Constitucional:
«As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).
As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 221, e Suzana Tavares da Silva, em “As taxas e a coerência do sistema tributário”, pág. 89-91, 2.ª edição, Coimbra Editora)».
Por outro lado, quando foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que o Governo definiu o âmbito da vinculação à arbitragem tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava tributos com a designação de «contribuição» (designadamente, desde 2008, a contribuição de serviço rodoviário que aqui está em causa, e tinha já sido criada pelo artigo 141.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a contribuição sobre o sector bancário), pelo que não se pode aventar, com pertinência, que não se colocasse, no momento da emissão daquela Portaria, a necessidade esclarecer com rigor se o âmbito da vinculação abrangia ou não tributos com a designação de «contribuições».
A intenção governamental de afastar da vinculação à arbitragem tributária as pretensões relativas a contribuições é confirmada pela alteração efectuada ao artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2001 pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, em que se manteve a referência restritiva a «impostos», em momento em que a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava vários tributos com a designação de «contribuições», como, além da CSR e da contribuição sobre o sector bancário, a contribuição extraordinária sobre o setor energético (criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro) e a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (criada pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro).
Por outro lado, utilizando a Constituição e a Lei designações específicas para classificar os vários tipos de tributos, terá de se presumir também que, para efeito da definição das competências dos tribunais arbitrais, se pretendeu aludir à classificação que a legislativamente foi adoptada em relação a cada tributo e não à que o intérprete poderá considerar-se mais apropriada, como base em considerações de natureza doutrinal. A classificação de tributos especiais, designadamente para apurar se devem ser ou não tratados constitucionalmente como impostos é, frequentemente, uma tarefa complexa, objecto de abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional. Não há qualquer razão para crer, em termos de razoabilidade, que o legislador, que tem de se presumir que consagrou a solução mais acertada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), tivesse optado por impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais, em vez de optar pela identificação clara e segura dos tributos a que pretendeu aludir através da designação que legislativamente foi considerada adequada que, além do mais, se compagina melhor com a celeridade de decisões que se visou atingir com a criação da arbitragem tributária.
Para além disso, nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.
Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considerada «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.
No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.
Por outro lado, da relegação da definição do âmbito da vinculação para diploma de natureza regulamentar depreende-se que, subjacente à restrição que se pretendeu efectuar estarão também razões pragmáticas relacionadas com a criação das condições práticas para implementação do novo regime, que normalmente se reservam para diplomas de natureza executiva, como são as relativas à disponibilidade de meios humanos da Administração Tributária com formação adequada para a representarem adequadamente nos processos tributários que exijam formação mais especializada. Neste caso, pelas limitações ao âmbito da jurisdição arbitral que se fazem nas alíneas c) e d) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quanto a litígios relacionados com matéria aduaneira, entrevê-se que estarão razões desse tipo subjacentes a essas restrições à arbitrabilidade de litígios.
Tendo o poder discricionário para definir o âmbito da vinculação sido atribuído aos membros do Governo indicados no artigo 4.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 e não aos tribunais arbitrais, não podem estes substituir-se àqueles na definição do âmbito da jurisdição arbitral. Desde logo porque os tribunais não possuem o conhecimento de todos os elementos de natureza operacional que podem ter levado os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011. E, depois, porque foi a esses membros do Governo e não aos tribunais arbitrais que a lei atribuiu o poder de definir o âmbito da vinculação.
Pelo exposto, a interpretação correcta, alicerçada no teor literal deste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 e nas regras interpretativas que constam do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, mas tendo também em conta as «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), é a de que se pretendeu restringir a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios em que estejam em causa tributos legislativamente classificados como impostos ou explicitamente como tal considerados (como sucede com as «contribuições especiais» referidas no n.º 3 do artigo 4.º da LGT), com as excepções arroladas naquela norma.
Assim, é de concluir que não é abrangida pela vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, a apreciação de litígios que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas à CSR.
Pelo que se refere no acórdão arbitral proferido no processo n.º 146/2019-T, a falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de actos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.
Mas, está-se perante incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ( )], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação, prevista no artigo 4.º do RJAT.
Tendo esta incompetência sido arguida tempestivamente, na Resposta (artigo 18.º, n.º 4, da LAV), tem de concluir-se que procede, com esta fundamentação, a excepção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
Esta interpretação do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é compaginável com a Constituição, como já decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 545/2019, de 16-10-2019, proferido no processo n.º 1067/2018.»
Por outro lado, e independentemente do supra exposto (ou da eventual procedência de outras exceções), também não acompanho o sentido da decisão no que concerne à ineptidão da petição inicial, porquanto entendo não existir falta ou inteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, nem tão pouco contradição entre o pedido e a causa de pedir. Entendo, outrossim, como noutros autos, que sempre seria a Requerida, no caso concreto da CRS, a entidade que disporia da informação em causa e que a poderia carrear para os autos, bastando à Requerente apresentar os elementos de que dispõe, o que sucedeu, contanto que condizentes com o pedido e com a causa de pedir.
Lisboa 25 de setembro de 2024
David Nunes Fernandes
[1] Todos os sublinhados e/ou negritos na presente serão nossos, salvo se indicado em contrário.
[2] Declaração esta que (fotocopiada quatro vezes, uma por cada um dos falados quatro anos) foi o acto junto pela Requerente ao Pedido de Constituição do Tribunal Arbitral.
[3]Diplomas legais aplicáveis ex vi art.º 29.º, n.º 1 do RJAT (e assim sempre que para os mesmos se remeter na presente).
[4] V. Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil", Coimbra 1979, pág. 91
[5](na sua vertente positiva)
[6] Diferentemente do Centro de arbitragem institucionalizada, que não tem interferência nas decisões dos casos submetidos a cada Tribunal Arbitral. V. Mariana França Gouveia, “Curso de Resolução Alternativa de Litígios”, Almedina, 3.ª Edição, 2014, pp. 183 e 125
[7] Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14.12).
[8] “Artigo 4.º – Vinculação e funcionamento
1 – A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.”
[9](na versão actualmente em vigor)
[10] A al. e) foi aditada pela Portaria n.º 287/2019, de 03 de Setembro.
[11] V. art.º 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, e v. Portaria n.º 320-A/2011, de 30 de Dezembro.
[12] São desta Lei os artigos para que agora remetermos.
[13] O que não se confunde com apreciar da sua conformidade à Constituição, que nos presentes autos não se coloca.
[14] Sobretudo enquanto na ausência de Regime Geral (cfr. art.º 165.º, n.º 1, al. i) da CRP), v. Sofia Ricardo Borges in “Contributos contenciosos para o estudo da natureza e das implicações dos regimes jurídicos das taxas e contribuições financeiras (...)”, RFPDF, Ano XII, ¼, Almedina, 2021, pp. 290 e ss.
[15]Art.º 4.º, n.º 1 da LGT: “Os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património.”
[16] V. Sofia Ricardo Borges in “A Taxa de Segurança Alimentar Mais” - (…)”, RFPDF, Ano X, ¾, Almedina, 2018, p. 187 e ss.
[17] Sofia Ricardo Borges in “A Taxa de Segurança Alimentar Mais” - (…)”, RFPDF, Ano X, ¾, Almedina, 2018
[18] Saldanha Sanches, “Manual de Direito Fiscal”, 1998, p. 25
[19] Como se lê em declaração de voto de vencido (Jorge Lopes de Sousa) no processo n.º 410/2023-T, que neste ponto acompanhamos, “nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. (...)”
[20] Todos Diplomas Legais aplicáveis ex vi art.º 29.º do RJAT.
[21] Se dúvidas houvesse, pode ver-se Joaquim Freitas da Rocha, in “Lições de Procedimento e Processo Tributário”, Almedina, 6.ª Ed., 2018, p. 307, ii) in fine (reportando-se ao processo de impugnação judicial): “(...) o certo é que, indubitavelmente, é o ato de liquidação (ou equiparado) o seu objeto.”
[22] in “Código de Procedimento e de Processo Tributário” Anotado e Comentado, Vol. II, Áreas Editora, 6.ª Ed., p. 208.
[23] (ainda que com a abrangência, que se reconhece na competência dos Tribunais que neste contexto decidem, de condenar nas consequências dessa mesma anulação)
[24] (e deve, no nosso contexto, vimo-lo já)
[25] (de notar, com especial relevo para os autos, como também atentando nestes últimos dispositivos fica por demais evidente a indispensabilidade da concreta identificação do acto ou actos objecto do Pedido)
[26] V., entre o mais, o n.º 2 da Lei de Autorização - Lei n.º 3-B/2010, de 28.04, art.º 124.º (não tendo a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, que dali constava, sido concretizada no RJAT).
[27] Autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta, cfr. art.º 97.º, n.º 1, al. a) do CPPT
[28] (incluídos foram, também, em separado, os actos de fixação da matéria tributável em certas circunstâncias, actos de determinação da matéria colectável, e actos de fixação de valores patrimoniais - cfr. não já al. a) mas sim al. b) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT – o que não releva para os nossos autos)
[29] V. José Lebre de Freitas, in “Introdução ao processo civil...”, 3.ª Ed., Coimbra, 2013
[30] (dispensando maiores desenvolvimentos, e sem prejuízo do que já se viu, sempre se diga que nem seria uma referência genérica a determinado espaço temporal dentro do qual foram emitidas à Requerente facturas de combustíveis por sujeitos passivos de CSR, que cumpriria, como bem se compreende, com o desiderato, i.e., que permitiria identificar os actos de liquidação de CSR que a Requerente pretenderá ver anulados)
[31] (a expressão do legislador no CPC, art.º 186.º, n.º 3)
[32] (nem, além do mais e sem prejuízo de tudo o que se disse, a Req.da estaria no conhecimento, desde logo, da correspondência entre sucessivas e inúmeras facturas dos combustíveis, combustíveis que a seu tempo hão-de ter sido introduzidos no consumo, e as e-DICs a montante e/ou as liquidações mensais emitidas aos sujeitos passivos)
[33] LOE 2010, art.º 124.º (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril)
[34] No mesmo sentido de ser objecto da acção arbitral o acto de primeiro grau, e não os de segundo ou terceiro, pode ver-se Carla Castelo Trindade, in “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Anotado”, Almedina, 2016, pp. 70-71
[35] v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 5.ª edição, Almedina, 2021, p. 95.
[36] (salvo quando a lei disponha em contrário)
[37] v. também, entre o mais, ponto 141. do requerimento de resposta às excepções.
[38] V. Jorge Lopes de Sousa em anotação ao art.º 9.º do CPPT, op. cit., Vol. I, p. 120, nota 11.
[39] Também o referindo, em anotação ao art.º 98.º do CPPT, v. Jorge Lopes de Sousa, op. cit., Vol. II, p. 88
[40] (vimos já que nem a outra al. do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT releva aos autos)
[41] (a pp. 23-24 e 30-33)
[42] V. art.º 7.º, n.º 2 do CIEC
[43] V. art.º 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro.
[44] V. Decisão Arbitral de 14 de Agosto de 2024 no processo n.º 473/2023-T.
[45] Pedido de reembolso a submeter pelos sujeitos passivos - que a Requerente não é – no prazo de 3 anos a contar da liquidação, cfr art.º 15.º.
[46] Em cumprimento afinal de uma obrigação acessória em IVA (como melhor desenvolveu a ora relatora na Decisão Arbitral de 14 de Agosto de 2024 no processo n.º 473/2023-T).
[47] (sempre sem preocupações de exaustão)
[48] José Casalta Nabais, in “Estudos de Direito Administrativo Fiscal”, Almedina, 2020, p. 83
[50] (além do seu articulado de pedido de revisão oficiosa, e declarações, tudo cfr. supra).
[51] (junta declarações, cfr supra aflorado, para apenas, expõe, provar que pagou as facturas e que a sua fornecedora teria repercutido nela a CSR incorrida, sustentando que nem mais do que as facturas seria exigível; sendo que as declarações, por evidente em face do que vem exposto, não alteram o que quer que seja do que vimos concluindo).
[52] Alberto Pinheiro Xavier, “Conceito e Natureza do Acto Tributário”, Livraria Almedina, Coimbra, 1972, pp. 62-63
[53] Como também nas palavras de Alberto Xavier, op cit, p. 89