Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 659/2014-T
Data da decisão: 2015-04-24  IRC  
Valor do pedido: € 1.424.772,67
Tema: IRC - Tributações autónomas – SGPS – Reenvio prejudicial
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DECISÃO ARBITRAL

 

I.RELATÓRIO

 

1. A, SGPS, S.A., (doravante designada por Requerente) contribuinte fiscal nº …, com sede na Avenida … em Lisboa, apresentou em 2 de Setembro de 2014, ao abrigo do disposto no artigo 2º, nº 1 alínea a) e artigo 10º, nºs 1 e 2, ambos do Decreto – Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante referido por RJAT (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária), um pedido de constituição de Tribunal Arbitral, em que é requerida a Autoridade Tributário e Aduaneira (doravante designada por AT ou Requerida), com vista à pronúncia sobre a ilegalidade parcial e consequente anulação parcial da autoliquidação de IRC, de 25 de Outubro de 2012, com o número 2012 …, referente ao exercício fiscal de 2011, no valor de 1.424.772.67 €.

 

 2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 04 de Setembro seguinte, e, de imediato, notificado à Requerida nos termos legais.

 

3. Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º do RJAT por decisão do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos previstos, foram designados como árbitros o Juiz José Poças Falcão como presidente, e como vogais, o Prof. Doutor João Ricardo Catarino e o Dr. José Coutinho Pires, que comunicaram ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo estipulado no artigo 4º do Código Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

4. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 05 de Novembro de 2014, em consonância com a prescrição da alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT.

 

5. Por despacho proferido em 06 de Fevereiro de 2015, devidamente notificado às partes foi dispensada a realização da reunião a que se reporta o artigo 18º do RJAT.

 

6. Para fundamentar o seu pedido, a Requerente alegou, em síntese e com relevo:

 

i. Que é uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS), sujeita ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RGTS);

 

ii. Que nessa qualidade, e em 31 de Maio de 2012 submeteu a sua autoliquidação agregada de IRC relativa ao exercício fiscal de 2011, com a apresentação do respectivo Modelo 22, tendo procedido à autoliquidação da totalidade das tributações autónomas que apurou.

 

iii. O valor total apurado de 1.906.358,08 € concernente à totalidade das tributações autónomas foi totalmente pago.

 

iv. Vem a Requerente questionar a legitimidade, pugnando pela sua anulação, relativamente às seguintes tributações autónomas:

 

 - 1.361.650,78 € sobre bónus e indemnizações a administradores e similares,

- 63.121,89 € respeitantes ao agravamento em dez pontos percentuais das restantes tributações autónomas;

 

iv. A Requerente apresentou em 10 de Abril de 2013, junto da Unidade de Grandes Contribuintes (UGC) reclamação graciosa, à qual veio a caber o número …, contra a autoliquidação respeitante às tributações referidas.

 

v. Sobre a qual veio a incidir decisão de indeferimento, por despacho proferido em 11 de Outubro de 2013, notificado à Requerente através do Oficio nº ….

 

vi. A Requerente na sequência do indeferimento da reclamação graciosa, apresentou em 13 de Novembro de 2013, recurso hierárquico a que foi atribuído o número …;  

 

vii. Através de despacho de 28 de Maio de 2014, foi o recurso hierárquico deferido parcialmente, no que toca que toca à não aplicação do agravamento da taxa de dez por cento sobre os bónus concedidos aos administradores da Requerente reportados ao exercício fiscal de 2010;

 

viii. Ao longo da sua petição, tece ainda a Requerente várias considerações acerca da génese e natureza jurídica das tributações autónomas, procedendo a propósito, a um excurso histórico das mesmas, com várias remissões e excertos para a doutrina que tem vindo a debruçar-se sobre este tema, referindo de igual modo jurisprudência, apontando ainda a existência de vícios de ilegalidades e inconstitucionalidades várias respeitantes aos vários normativos das tributações autónomas,

 

ix. Pugnando e em síntese, que a aplicabilidade da tributação autónoma sobre os encargos com bónus de administradores, gerentes, e bem assim sobre indemnizações pagas pelas cessação de funções, é desconforme com a Constituição da República Portuguesa,

 

x. Defendendo ainda que tal tributação autónoma deverá apenas ocorrer sobre o valor que exceder o previsto na alínea b) do nº 13 do artigo 88º do CIRC,

 

xi. E que o agravamento de dez pontos percentuais, previstos e aplicáveis aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal é inaplicável às Sociedades Gestoras de Participações Sociais, na medida em os prejuízos fiscais eventualmente apurados não são prejuízos económicos.

 

xii. Concluindo conforme se extrai do seu pedido, que seja declarada a ilegalidade parcial da autoliquidação de tributações autónomas relativas ao exercício de 2011, no montante de 1.424.772,67 €,

 

xiii. Formulando ainda o pedido de juros indemnizatórios ao abrigo do disposto no artigo 43º da Lei Geral Tributária;

 

xiv. A título subsidiário, equaciona a hipótese, se disso for caso, o Tribunal Arbitral promover o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia quanto às questões que suscita no quadro das tributações autónomas.

 

xv.  A requerente juntou o Douto Parecer dos Senhores Doutores Eduardo Paz Ferreira e Clotilde Palma onde são tecidas oportunas considerações sobre a problemática em apreço.

 

7. A AT, na sua resposta, sustentado posição contrária à apresentada pela Requerente, e em consonância com a posição por si já assumida em sede de reclamação graciosa, e recurso hierárquico, e tendo como referência os vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade assacados pela Requerente, relativamente às tributações autónomas, reconduz o seu ponto de vista, em brevíssima síntese, a que de acordo com a previsão do nº 1 do artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo, “Os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhe estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes foram conferidos”, não lhe sendo pois exigível pronunciar-se sobre as opções do legislador ou da conformidade constitucional das normas que dele dimanam, estando vinculada ao princípio da legalidade, “não podendo, por força disso, desaplicar normas em função da sua inconstitucionalidade”.

Pugnando pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente.

 

8. Vieram ainda as partes, ao abrigo do disposto no artigo 18º do RJAT, apresentar alegações escritas, onde, fundamentalmente, reiteram e defendem as posições que haviam já evidenciado nos seus articulados.

 

9. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2º nº 1 alínea a), 5º e 6º nº 1 do RJAT.

 

10.As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4º e 10º do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março.

 

Cumpre apreciar e decidir do mérito do pedido.

 

II - FUNDAMENTAÇÃO

 

A.MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos provados

1. A ora Requerente é uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS) sujeita ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RGTS), sendo a sociedade dominante do Grupo Fiscal “B”.

 

2. Nessa qualidade, e em 31 de Maio de 2012, submeteu a sua autoliquidação agregada de IRC relativa ao exercício de 2011, através da apresentação do respectivo Modelo 22, com a autoliquidação da totalidade das tributações autónomas.

 

3.No âmbito da autoliquidação de IRC do exercício de 2011, a Requerente apurou um total de tributações autónomas, e em termos finais, de 1.906.358,08 € inscrito no campo 365 do quadro 10 de declaração Modelo 22 (cfr. documento. nº 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral)

 

4. A Requerente vem questionar as tributações autónomas incidentes sobre bónus e indemnizações a administradores no valor de 1.361.650,78 € e do agravamento em dez pontos percentuais relativo a demais tributações autónomas no valor de 63.121.89 €.

 

5.As tributações autónomas, que a Requerente põe em crise, encontram-se distribuídas, no que à sua natureza respeita, nos termos seguintes, conforme documento nº 6, junto com o pedido de pronúncia arbitral:

 

- 1.361.650,78 € sobre bónus e indemnizações a administradores e similares,

- 63.121,89 € respeitantes ao agravamento em dez pontos percentuais das restantes tributações autónomas;

 

6. Tais tributações autónomas foram totalmente pagas pela Requerente (cfr. documentos nºs 1 e 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral)

 

7.Em 10 de Abril de 2013, a Requerente apresentou, junto da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), reclamação graciosa contra as supra referidas tributações autónomas. (cfr. processo administrativo anexo);

 

8. Com data de 11 de Outubro de 2013, foi proferido despacho de indeferimento da dita reclamação graciosa, pelo Exmo. Senhor Chefe de Divisão de Gestão e Assistência Tributária dos Grandes Contribuintes (cfr. documento nº 4  junto com o pedido de pronúncia arbitral e PA)

 

 9. Tal despacho de indeferimento foi notificado á Requerente através do Ofício no …, e por esta recepcionado em 15 de Outubro seguinte:

 

10. Na sequência do qual, em 13 de Novembro de 2013, a Requerente apresentou recurso hierárquico ao qual veio a ser atribuído o nº …;

 

11. O recurso hierárquico em causa veio a ser parcialmente deferido, pelo que a autoliquidação de IRC de 2011, foi corrigida no que respeita às tributações autónomas no montante de 375.324,40 € (prémios pagos à administração em 2011 no valor de 3.753.244,00 € x 10 % ). (cfr. página 6 da decisão do recurso hierárquico)

 

12. A decisão de deferimento parcial provinda do recurso hierárquico assinalado foi notificada à Requerente em através do Ofício nº …, e por esta recepcionada em 09 de Junho de 2014.

 

13. Em 2 de Setembro de 2014, a Requerente apresentou o seu requerimento de pedido de pronúncia arbitral junto do CAAD, que deu origem ao presente processo.

 

A.2. Factos não provados

Com relevo para a decisão não existem factos essenciais não provados

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto dada como provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que pronunciar-se sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada [(cfr. art. 123º nº 2 do CPPT e artigos 607º do CPC,  aplicáveis ex vi do artigo 29º, nº 1, alínea a) e e) do RJAT)].

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. artigo 596º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental junta aos autos, e o PA anexo, consideram-se provados, com relevo para a decisão os factos supra elencados, reconhecidos e aceites pelas partes.

 

B. DO DIREITO

1. Questões decidendas

Peticiona a Requerente que seja declarada a ilegalidade do indeferimento parcial do recurso hierárquico supra identificado e, consequentemente do ato de autoliquidação de IRC na parte relativa às tributações autónomas, conforme supra referido.

Suscitando à apreciação do Tribunal Arbitral (i) a legalidade daquele indeferimento parcial (do recurso hierárquico), na medida em que desatende o reconhecimento da ilegalidade e inconstitucionalidade parcial daquela parte da autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2011 do Grupo Fiscal B e, bem assim, (ii) a legalidade e inconstitucionalidade parcial daquela parte da autoliquidação de IRC relativa ao mesmo exercício (2011), mais especificamente no que respeita a um montante de € 1.424.772,67.

Invoca a Requerente, para o efeito, três linhas argumentativas principais, a saber:

1. A questão da conformidade das tributações autónomas com a Constituição da República Portuguesa: em especial a desconformidade da tributação autónoma sobre bónus de administradores, gerentes ou gestores, e bem assim sobre indemnizações pagas pela cessação de funções daqueles agentes;

2. A questão da aplicabilidade da tributação autónoma sobre os encargos com bónus de administradores, gerentes ou gestores apenas sobre o que exceder o valor previsto na alínea b) do n.º 13 do artigo 88.º do CIRC

3. A inaplicabilidade do agravamento de 10 pontos percentuais em sede de tributação autónoma às SGPS uma vez que, neste caso concreto, os prejuízos fiscais não são sintoma de prejuízos económicos (são prejuízos técnicos, que repousam em especificidades técnicas – por oposição a repousarem na realidade económica – da própria lei fiscal), sob pena de inconstitucionalidade desta norma constante do n.º 14 do artigo 88.º do CIRC.

Vejamos então cada uma das questões de per si.

2. Da natureza e da génese das tributações autónomas

As tributações autónomas foram introduzidas no ordenamento jurídico português através do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho, que previu a tributação autónoma, à taxa de 10%, das despesas confidenciais ou não documentadas (v. g. proc. arbitral n.º 20/2014-T e a referência feita no Douto Parecer junto aos autos dos Senhores Doutores Eduardo Paz Ferreira e Clotilde Palma, a fls. 6.). Posteriormente as tributações autónomas foram incluídas no Código do IRC, através da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, que veio integrar a previsão das tributações autónomas no diploma que regula o IRC.

Mais especificamente a tributação autónoma das despesas confidenciais é, até, anterior. Na verdade, o atual artigo 88.º n.º 1 do CIRC remonta ao Decreto-Lei n.º 375/74 de 20 de Agosto, pelo qual se procedeu à “Reforma do Sistema Tributário, tendente à sua racionalização e à atenuação da carga fiscal sobre as classes desfavorecidas, com vista a uma equitativa distribuição do rendimento”. Nesta se penalizando, por exemplo, as despesas confidenciais com uma multa equivalente ao valor das despesas assim contabilizadas.

Este tipo concreto de despesas – as despesas confidenciais / hoje despesas não documentadas – correspondem a uma antiga tradição contabilística, de enquadrar como tais determinados gastos efetuados pela empresas, que, na sua pureza, corresponderiam a despesas economicamente necessárias à atividade da empresa (despesas que supostamente têm de ser feitas para uma sociedade obter certas parcelas de mercado ou certos clientes) mas em que, por qualquer razão, não era possível ou conveniente identificar o beneficiário das mesmas.

Naturalmente que despesas desta natureza, que, sublinhe-se, corresponderam a uma prática social e legalmente aceite num passado não muito distante, encerram um elevado potencial anti-social, por darem evidente cobertura contabilística a práticas relacionadas quer com a corrupção (pagamento de subornos), quer com fraude e evasão fiscal.

É verdade que, no caso, não estamos perante uma situação de tributação autónoma de despesas confidenciais, mas o exemplo ilustra bem, em geral, a evidente ligação embrionária que existe entre as tributações autónomas consagradas no artigo 88.º do CIRC, o próprio IRC e alguma medida de anti-juridicidade da conduta.

Desde então o regime das tributações autónomas tem vindo a sofrer um processo de expansão progressiva, em parte ditado pela aparente intenção contínua de conter fenómenos evasivos através de despesas que mais facilmente podem representar alguma forma de abuso e, eventualmente, segurar os níveis de receita fiscal por via deste mecanismo [Cfr Relatório do OE-2010 (ponto 1.4.1.8), quando ali é feita referencia à necessidade de conseguir “uma distribuição mais justa dos encargos tributários” e citado Parecer junto a estes autos, fls 16].

Atualmente, são vários os tipos de tributações autónomas consagrados no artigo 88.º do Código do IRC, a saber:

i) Tributação autónoma sobre despesas não documentadas;

ii) Tributação autónoma sobre encargos com viaturas;

iii) Tributação autónoma sobre despesas de representação;

iv) Tributação autónoma sobre importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;

v) Tributação autónoma sobre despesas com ajudas de custo e com compensações pela deslocação de trabalhadores em viatura própria

vi) Tributação autónoma sobre os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial;

vii)  Tributação  autónoma  sobre  gastos  ou  encargos  relativos  a  indemnizações e quaisquer  compensações  devidas  não  relacionadas  com a  concretização  de  objetivos  de produtividade previamente definidos na relação contratual, quando se verifique a cessação de funções de gestor, administrador ou gerente, bem como sobre os gastos relativos à parte que exceda o valor das remunerações que seriam auferidas pelo exercício daqueles cargos até ao final do contrato, quando se trate de rescisão de um contrato antes do termo;

viii)  Tributação  autónoma  sobre  gastos  ou  encargos  relativos  a  bónus remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes.

A jurisprudência arbitral tem decidido no sentido de que as tributações autónomas ora em análise pertencem, sistematicamente, ao IRC, e não ao IVA, ao IRS, ou a um qualquer outro imposto do sistema fiscal português. É o caso dos processos Arbitrais n.ºs 166/2014-T, n.ºs 246/2013-T, 260/2013-T, 282/2013-T, 6/2014-T e 36/2014-T, entre vários outros.

Elas estão, por isso, fortemente ligadas aos sujeitos passivos do imposto sobre o rendimento respetivo, e, mais especificamente, à atividade económica e empresarial por eles levada a cabo. Do que se trata, nas tributações autónomas é, com efeito, de tributar certas despesas ou encargos (gastos), vistas estas na sua relação com a ideia geral de lucro real e efetivo e a tributação do rendimento.

Com efeito, parece-nos fora de dúvida que o mecanismo de tributação autónoma do conjunto das realidades previstas no artigo 88.º do CIRC visa, primacialmente, acautelar os equilíbrios gerais do próprio sistema fiscal, os equilíbrios específicos do IRC e a receita do próprio imposto. Isto é, visa impedir que através da relevação significativa de encargos como os previstos no artigo 88.º, se não introduzam entorses afetadores do sistema e a expetativa sobre o que deverá ser a receita “normal” do imposto não saia gorada. No caso, como é igualmente consabido, do que se trata é de desincentivar a realização / relevação dessas despesas, desde logo porque, pela sua natureza e fins, elas podem ser mais facilmente objeto de desvio para consumos que, na essência, são primacialmente privados ou corresponder a encargos que não deixam de ter, também, como finalidade específica, o evitamento do imposto. Realidades que apresentam alguma medida de censurabilidade já que, não violando diretamente a lei, geram desequilíbrios sensíveis e importantes sobre a ideia geral de justiça, sobre o dever fundamental de contribuir na proporção dos seus haveres, da igualdade, do sacrifício, da proporcionalidade da medida do imposto em face das manifestações possíveis de riqueza, da tributação do rendimento real, da igualdade e da justiça.

Funcionando embora de um modo diferente do que constitui o escopo essencial do IRC – que tributa os rendimentos – as tributações autónomas tributam certas despesas ou encargos específicos – e constituem uma realidade instrumental, acessória desse imposto, na justa medida em que é em função dele que foram instituídas e são, por isso, passíveis de lhes ser reconhecida uma instrumentalidade ou acessoriedade de fins, radicada na salvaguarda dos fins do próprio imposto onde se manifestam.

De modo que, como oportunamente se referiu na decisão Arbitral proferida no proc. 187/2013-T, “A razão de ser das tributações autónomas não se encontra no simples arrecadar de mais imposto, mas visa primacialmente desincentivar o recurso ao tipo de despesas que tributam, as quais, pela sua natureza, são propiciadoras de pagamento de rendimentos camuflados, e, em última análise até, permitir reaver algum imposto que deixou de ser pago pelo beneficiário dos rendimentos, transferindo a responsabilidade deste para a esfera de quem paga esse rendimento. O que lhes confere uma clara natureza anti-abuso, manifestamente acessória/complementar à tributação segundo a capacidade contributiva revelada pelo rendimento, ainda que só aparentemente em prejuízo da tributação do rendimento real (leia-se, com base na contabilidade). Em suma, com as tributações autónomas o que se pretende é justamente prevenir uma utilização abusiva de determinadas despesas e distribuição de dividendos e em fraude às normas que visam atingir o rendimento real dos sujeitos passivos.”

Tem-se assim como certo que as tributações autónomas não constituem IRC em sentido estrito mas encontram-se a este (IRC) imbricadas, devendo conter-se nos “outros impostos” de que nos dá conta a parte final da alínea a) do nº 1 do artigo 45º do CIRC (redação em vigor em 2011 e atual artigo 23º-A/1-a), do CIRC).

Revelações dessa ligação de funcionalidade, e no quadro da intenção do legislador no seu todo, sobressaem, por exemplo da disciplina do artigo 12º do CIRC a propósito das entidades sujeitas ao regime da transparência fiscal, ao não as tributar em IRC, “salvo quanto às tributações autónomas”, relação essa que igualmente se manifesta face ao nº 14 do artigo 88º do CIRC, no sentido em que as taxas de tributação autónoma têm em consideração o facto do sujeito passivo apresentar ou não prejuízo fiscal.

Assinale-se que o artigo 88º-14, do CIRC, não consagra a presunção, ilidível, de que as empresas que apresentem prejuízos fiscais realizam, de forma abusiva, as operações ou factos tributários mencionados nos diversos números do citado artigo 88º, do CIRC porquanto se assim fosse teria essa presunção de ser vertida na própria Lei (cfr artigos 349º e ss., do Cód Civil)

A “natureza dual[1] das tributações autónomas ou a resposta “à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de intersecção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros “, a que Saldanha Sanches[2] nos convoca, não retira a interpretação, que vimos esboçando, no sentido de que as tributações autónomas, são ainda uma componente incluída nos encargos suportados a título de IRC.

Analisada ainda sob outro prisma, haverá que considerar as tributações autónomas no contexto de normas anti - abuso específicas e a sua similitude com o regime previsto sob o nº 1 do artigo 65º do CIRC, na redação de 2011 (“ não são dedutíveis para efeitos do lucro tributável as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo puder provar que tais encargos correspondem a operações efectivamente realizada e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado”).

Há, assim, no mecanismo das tributações autónomas uma função anti-perturbadora do normal funcionamento do IRC, em resultado da adoção, por parte dos contribuintes, de comportamentos evitadores do dever geral de imposto, por serem mitigadores da coleta devida e que, por isso, produzem um efeito desequilibrador da receita que, não fossem essas condutas abusivas, seria devida.

E isto porque, como é sabido, os indivíduos aceitam ou consentem no imposto, no quadro da dogmática geral do funcionamento da ordem democrática, mas não o desejam. Com efeito, o mecanismo geral de representação popular nas assembleias gerais dos povos, se permite que o imposto seja aprovado “pelo povo”, requer igualmente que ele seja modelado em termos tais que recaia sobre todos de uma forma geral.

Por isso, muito bem se apontou na Decisão Arbitral n.º 187/2013-T onde se afirma: “A função antiabuso legitima as tributações autónomas à luz do princípio da capacidade contributiva. Atenta esta função antiabuso de que as tributações autónomas se encontram investidas, é falaciosa a afirmação de que aquelas “nada têm a ver com a função do IRC”. Pelo contrário, têm tudo a ver com a função do IRC, que é atingir a capacidade contributiva revelada pelo rendimento real. Nesta conformidade, visando as tributações autónomas reduzir a vantagem fiscal alcançada com a dedução ao lucro tributável dos custos sobre os quais incide e ainda combater a evasão fiscal que este tipo de despesas, pela sua natureza, potencia, não poderá ser ela mesma através da sua dedução ao lucro tributável a título de custo do exercício constituir fator de redução dessa diminuição de vantagem pretendida e determinada pelo legislador.

Assim, parece-nos claro o acerto da decisão arbitral proferida no processo n.º 187/2013-T ao considerar que as tributações autónomas, que incidem sobre encargos dedutíveis em IRC, integram o regime e são devidas a título deste imposto, não constituindo as despesas com o pagamento daquelas tributações encargos dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável.

Este entendimento foi legal e recentemente clarificado pelo artigo 3º da Lei nº 2/2014, de 16 de Janeiro, que aditou o artigo 23º A) ao CIRC (ao mesmo tempo que o seu artigo 13º revogou o artigo 45º) com a seguinte redação:

Artigo 23º A)- Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais

“1. Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:

a)      o IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre os lucros” .

Não subsistindo dúvidas quanto ao carácter interpretativo do preceito transcrito, de acordo com as regras de hermenêutica jurídica, na prática, tal norma, vem expressar o que o legislador sempre entendeu e continua a entender, ou seja que os encargos decorrentes como o custo associado às tributações autónomas, não relevam para efeitos de apuramento do lucro tributável.

Dos presentes autos, apesar do respeito que o esforço argumentativo evidenciado pela Requerente nos merece, não resultam elementos que justifiquem a alteração da posição subscrita nas decisões arbitrais do CAAD quanto à natureza e função das tributações autónomas. E, em especial, do sentido decisório que resulta da decisão arbitral proferida no processo n.º 187/2013-T onde se pode ler:

“Entende-se, assim, em suma, que uma coisa é o tipo de facto tributário que está na base de determinada imposição. Outra coisa é o título a que tal imposição é devida, no fundo a causa da obrigação de imposto. E no caso das tributações autónomas em sede de IRC, essa causa, o título a que o imposto é exigido, será, ainda, o IRC.

Neste sentido, dever-se-á atentar, para além de tudo o mais, que o regime legal das tributações autónomas em questão apenas faz sentido no contexto da tributação em sede de IRC. Ou seja, desligado do regime legal deste imposto, carecerão aquelas, por completo, de sentido. A sua existência, o seu propósito, a sua explicação, no fundo, a sua juridicidade, apenas é compreensível e aceitável no quadro do regime legal do IRC.

De facto as tributações autónomas ora em análise, pertencem, sistematicamente ao IRC, e não ao IVA (como se viu), ao IS, ou a um qualquer novo imposto. É que, embora se possa aceitar que o facto tributário impositivo será cada uma das singulares despesas legalmente tipificadas, o certo é que não são estas, qua tale, o objeto final da tributação, a realidade que se pretende gravar com o imposto. Se assim fosse, seriam, obviamente taxadas, todas as despesas realizadas por todos os sujeitos, e não apenas por alguns deles. Ou seja, as tributações autónomas do género que ora nos ocupam estão fortemente ligadas aos sujeitos do imposto sobre o rendimento respetivo, e, mais especificamente, à atividade económica por eles levada a cabo.”

Enquadrada a figura das tributações autónomas, importa agora averiguar se as linhas argumentativas desenvolvidas pela Requerente são procedentes. Vejamos então.

 

3. A questão da conformidade das tributações autónomas com a Constituição da República Portuguesa

Relativamente a esta questão invoca a Requerente a violação de um conjunto de princípios, alguns dos quais com consagração constitucional expressa, que considera violados nos termos e com os fundamentos que invoca.

Não nos parece que nisso possa ter razão. Com efeito, as tributações autónomas, como se disse, não têm uma finalidade essencialmente reditícia, isto é, não visam, primacialmente, a obtenção de receita fiscal, embora esta possa não ser um aspeto despiciendo, eventualmente verificável.

Elas têm, como se sublinhou, na linha aliás da argumentação expendida pelo CAAD em inúmeros arestos, uma função:

. Ordenadora geral - disciplinadora do comportamento tendencialmente abusivo dos sujeitos passivos do IRC na relevação de encargos que podem mais facilmente corresponder a consumos privados que, pela sua natureza, são facilmente releváveis como gastos dos sujeitos passivos do IRC embora, substancialmente possam nada ter a ver com as necessidades daquelas.

. Preservadora específica - dirigida a manter ou preservar certos equilíbrios dentro do imposto - preservadora da receita do imposto por limitar comportamentos substantiva ou principalmente dirigidos à sua mitigação, sujeitando genericamente certos gastos a taxas de tributação autónoma;

. Pacificadora sistémica - sustentadora de um dado equilíbrio na distribuição da carga fiscal sobre os contribuintes em geral, dentro do próprio sistema fiscal português.

No primeiro caso, assim sucede por dissuadir comportamentos, práticas ou opções das empresas radicadas em razões essencialmente de natureza de poupança fiscal, reditícia. No segundo caso, por preservar os equilíbrios próprios do regime de tributação das pessoas coletivas, evitando distorções não apenas ao nível dos resultados tributáveis, como ondas de comportamentos desviantes, afetadores da expetativa jurídica da receita, em cada ano económico.

E, no terceiro caso, por forçar através destas cláusulas gerais anti-abuso, a manutenção de uma correlação saudável entre os volumes de negócios, os lucros tributáveis e o imposto devido a final pelas entidades sujeitas a IRC, em linha com os níveis médios de carga fiscal efetiva que recai sobre os diferentes grupos de contribuintes, dentro do sistema fiscal português e, até, comparativamente com a dos estados membros da OCDE. Vale a pena referir que a receita do IRC estimada para o corrente ano de 2015 é de cerca de 4 690 milhões de euros, ao passo que a receita estimada do IRS ascende a quase três vezes mais, remontando a 13 168 milhões de euros. Salvaguardadas as respetivas distâncias vale, ainda assim, a pena refletir nas diferenças entre os volumes de negócios totais declarados pelos sujeitos passivos do IRC com os rendimentos brutos declarados pelos contribuintes do IRS para se tomar consciência da importância das tributações autónomas como mecanismo ordenador ou disciplinador de comportamentos abusivos.

As tributações autónomas, incluindo as previstas na al. b) do n.º 13 do art.º 88.º do CIRC têm uma função disciplinadora geral que não é alheia às finalidades sistémicas. E isto porque ela – a tributação autónoma – como mecanismo anti abuso, não é alheia aos fins gerais do sistema fiscal.

Afirma o artigo 103.º da CRP que o sistema fiscal visa a “satisfação das necessidades financeiras do estado”. Mas tal sistema não pode prosseguir esse fim relevante de qualquer modo. Deve fazê-lo dentro dos princípios da justiça, da equidade e da coerência que enformam o próprio sistema e lhe permitem que funcione de forma tão suave quanto seja possível.

Assim, pergunta-se: São os fins prosseguidos pelo estabelecimento das tributações autónomas em sede de IRC alheios aos fins do sistema fiscal português? A resposta tem de ser negativa. Se é verdade que não existem nem modelos de imposto de renda nem sistemas fiscais “puros”, porque complexa e variada é a realidade social, é igualmente certo que não se pode esperar das soluções concretas adotadas na lei geral, nem do imposto particular, porque objetivadas nessa realidade complexa e miscenizada de interesses antagónicos, uma pureza de soluções que só no mundo ideal se poderiam, porventura, encontrar.

Mas isso, pode dizer-se acertadamente, não significa que o legislador comum e o fiscal em particular não devam procurar as soluções que concretamente lhes pareçam as que melhor salvaguardam os interesses públicos em jogo. No caso, objetivadas na necessidade de frear comportamentos abusivos, geradores de exaustão da receita fiscal em IRC e de importantes desequilíbrios de carga fiscal entre grupos de contribuintes, esses sim, violadores dos valores estruturantes da equidade e da justiça na repartição dos encargos tributários, e da própria necessidade, de interesse geral, de preservar a matéria tributável em IRC. Valores esses consagrados no artigo 103.º n.º 1 da CRP, segundo o qual “o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.” Ideia, de resto, corroborada no direito comunitário, como se pode extrair da Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho – Plano de ação para reforçar a luta contra a fraude e a evasão fiscal, sob a epígrafe “Recomendação sobre o planeamento fiscal agressivo, onde é manifestada a preocupação de “assegurar que a carga fiscal seja partilhada equitativamente”. (COM (2012) 722 final, p. 6).

Por isso mesmo, a adoção de regimes legais que limitem os efeitos nefastos que resultem de comportamentos afetadores da equilibrada repartição da carga fiscal sobre os diferentes grupos de contribuintes não constitui apenas uma opção do legislador, mas é, antes, uma obrigação estrita, em resultado na obrigatoriedade de gizar e fazer funcionar o sistema como um todo de forma equilibrada. As tributações autónomas introduzem, é certo, mecanismos de tributação que, naturalmente, desagradarão aos seus destinatários, mas impedem ou limitam os efeitos nefastos de práticas abusivas que prejudicariam outros e são, por isso, necessárias à preservação dos equilíbrios do sistema. Ora, as empresas, tal como as pessoas singulares, também estão sujeitas ao dever geral de pagar impostos e, nesta medida, a lei fiscal não pode deixar de consagrar mecanismos que limitem procedimentos desviantes.

Importa notar que, nos nossos dias, adotou-se como regra geral, o regime da tributação segundo o rendimento real e efetivo para as pessoas coletivas. Ora, este não constitui apenas uma mera opção de funcionamento do sistema fiscal, de entre várias outras possíveis. Ela é, antes, uma manifestação concreta da modernidade e da maturidade de um sistema fiscal que exige dos seus destinatários / beneficiários uma maturidade da mesma ordem de grandeza pois representa também uma nova forma de responsabilização ética e social perante o fenómeno do imposto (a propósito das questões sobre os limites da moral face ao imposto vejam-se SUSANNE LANDREY[3], STEF VAN WEEGHEL e FRANK EMMERINK[4]). Pois que existe uma interligação profunda e indiscutível entre o direito e a moral (JOÃO BAPTISTA MACHADO,[5]).

Vale dizer que, por exemplo, no Brasil, a esmagadora maioria das pessoas coletivas é tributada em IRPJ – Imposto de renda das Pessoas Jurídicas (equivalente ao IRC) segundo um regime de tributação dos rendimentos presumidos, ficando a tributação do lucro real reservada apenas para os contribuintes com volumes de negócios acima dos 78 milhões de Reais. E também que na velha Contribuição Industrial, em vigor na reforma fiscal dos anos sessenta da passada centúria (o imposto equivalente ao IRC de nossos dias), a esmagadora maioria dos contribuintes era tributada segundo o regime geral dos rendimentos normais, como era o caso dos contribuintes dos grupos B e C, ficando a tributação dos lucros reais para os enquadrados no grupo A, com contabilidade organizada, que eram muito poucos.

Este método grosseiro foi o modo corrente de tributação dos lucros em Portugal ao longo de todo o século XX, sucessivamente posto em prática nas reformas fiscais de 1922, de 1929 e de 1959/65. Nele o chefe de repartição de finanças fixava, segundo critérios subjetivos, ignorados pelos contribuintes, a matéria tributável e a coleta devida em cada exercício, e onde as garantias de defesa eram, no mínimo, muito poucas e limitadas à consulta dos verbetes de lançamento antes da elaboração do rol nominativo entregue e da abertura do cofre para efeitos de pagamento voluntário.

E que, em consequência de tudo isso, o lugar do contribuinte só veio a conhecer uma nova dimensão na reforma fiscal de 1989 onde, finalmente, prevalecia o critério da tributação dos rendimentos reais, que representava, inequivocamente, um extraordinário avanço sobre as práticas e modelos passados, por ser muito mais justo ao assentar numa nova dimensão de cidadania plasmada no princípio da presunção da verdade declarativa, posteriormente reafirmado no artigo 75.º da LGT.

Sucede que a verdadeira requalificação que o estatuto do contribuinte conheceu naquela reforma não lhe trouxe apenas uma melhoria dos seus direitos de defesa, das suas prerrogativas face aos avanços da administração, enfim, do seu estatuto perante a lei e a sociedade, como eloquentemente o explanou VITOR FAVEIRO, no seu O estatuto do contribuinte no estado social de direito, Coimbra editora, 1999, mas também lhe acrescentou novas responsabilidades.

Desde logo as de adotar práticas comerciais e fiscais consentâneas com o elevado estatuto principiológico conferido aos seus atos com relevância fiscal, de verdade na relevação contabilística e na declaração. E de, enfim, assumir em matéria de imposto uma ideia de responsabilidade fiscal nova para que, de forma voluntária, adotem posturas, comportamentos e ações que promovam níveis de pagamento de impostos consentâneos com as suas reais capacidades de contribuir para a promoção do todo social de forma emprenhada, pro ativa e verdadeiramente participante dessa construção.

Na verdade, esse estatuto impôs como contrapartida às pessoas coletivas, o dever de adoção de práticas construtivas do todo social, abrangendo o dever efetivo de suportar imposto. Mas não um dever qualquer, formal, meramente irrisório ou ridículo, mas um dever substantivo, pleno e integral, em linha com a sua real capacidade para contribuir. De tal modo que desse contributo financeiro, materializado e calculado segundo as normas do imposto, corresponda a uma prática voluntária, consciente e madura, que em nenhum caso se pode confundir com ações compulsórias de liquidação e cobrança. Tudo, naturalmente, dentro de uma visão sustentável das sociedades humanas, envolvendo o benefício da coletividade, seja ela relativa ao público interno de cada pessoa coletiva (os seus empregados, os acionistas, etc.), sejam os atores externos (a coletividade, os parceiros, as pessoas em geral).

Deste compromisso entre as pessoas coletivas e as pessoas e os valores humanos, de par com outras preocupações igualmente genuínas e válidas, v. g. com as condições de vida ou o meio ambiente, deveria resultar a abstenção de comportamentos que, por diversas vias, visassem apenas e no essencial, ou não, diminuir forçadamente a matéria tributável e a coleta no IRC.

Mas os factos demonstram que, neste respeito, talvez seja falho ou não tenha a qualidade pressuposta, o compromisso social das pessoas coletivas com a comunidade onde desenvolvem a sua atividade e, por isso, se tornam gerais comportamentos que, sendo legalmente admissíveis – como é o caso da atribuição de bónus -, seja na ótica da liberdade de gestão, seja na da lei em sentido estrito – assumem uma dimensão ética duvidosa quando se denota, segundo máximas de experiência e por mero recurso à diligência do homem médio, que visam, no todo ou em parte, iludir o encargo do imposto.

Ora, não se pode dizer que, perante tal cenário, de resto mais ou menos generalizado, a lei fiscal nada possa ou deva fazer. Pois que se é verdade que a liberdade de gestão é geral, permitindo às pessoas coletivas agir dentro dos limites dos seus fins e gerir da melhor forma e no melhor interesse dos seus acionistas, também não será menos verdade que o interesse individual, de cada uma delas, não é o único que deve ser tido em consideração na repartição do encargo tributário.

E isto porque, de par com o interesse individual coexiste o interesse coletivo e este, porque gera despesas comuns, não pode deixar de ser financiado por todos e na medida dos seus haveres. Não vemos pois como é que os invocados princípios da capacidade contributiva, da proporcionalidade e da tributação do rendimento real e efetivo sejam violados.

Porque se é verdade que, para obter receitas o estado está vinculado a distribuir o encargo tributário pela generalidade das espécies tributárias existentes, a obter a autorização (anual) para a sua cobrança e a cobrá-las de modo a alcançar uma distribuição do encargo pelo maior número possível de agentes e indivíduos. Seria manifestamente injusto um sistema fiscal assente num só imposto recaindo sobre uma parcela ou categoria de sujeitos específica, ou que tributasse primacial ou essencialmente uma ou outra realidade fiscalmente relevante, deixando de fora outras, do mesmo modo importantes, deixando à margem do dever se pagar impostos grupos alargados de indivíduos ou factos tributáveis.

Um sistema fiscal justo é um sistema que reparte bem, não apenas no plano teórico mas igualmente no plano efetivo, o dever de contribuir, a carga e a receita fiscal por todos os que relevam capacidade para tanto. Do ponto de vista da distribuição pelo lado dos destinatários do encargo fiscal, a operação de imputação do imposto às fontes tributárias é de importância primordial, uma questão de justiça e não de mera ordem económica ou de técnica financeira. “O problema da justiça na distribuição efetiva dos encargos fiscais está intimamente adstrita toda a ciência do direito fiscal, toda a ciência económica da tributação e das suas implicações na economia pública e privada, toda a teoria da política fiscal e todo o conhecimento da construção do estado e seus fins”, como o afirmou VÍTOR FAVEIRO, Fiscalidade Nacional Contemporânea, Ministério das Finanças, Lisboa, 1964, p. 14.

Por outro lado, não nos parece que a igualdade e a proporcionalidade sejam, também, sacrificadas no altar das tributações autónomas. Como é consabido, não se trata de um princípio absoluto porquanto, na sua vertente de igualdade vertical, ele requer e exige que contribuintes em diferente situação sejam tratados de modo diferente (Cfr. o Parecer citado, fls. 31).

Ora, na medida em que as tributações autónomas recaem, genericamente, sobre todos os sujeitos passivos que evidenciam as realidades identificadas, não se vê como é que nisso se viola a igualdade para os que se encontram na mesma posição. Por outro lado, se é verdade que o Tribunal Constitucional tem assinalado a proteção do princípio da igualdade (v. g. Ac. 644/94, proc. 267/93, entre outros), é igualmente certo que as diferenças de tratamento só são admissíveis se radicarem em razões cognoscíveis, plausíveis e enquadradas na ordem de valores estabelecida, como nos parece ser o caso. Há, assim, na solução legal concretamente adotada um fundamento racional que facilmente se descobre e cujos termos não repugnam. Ora, o que já se disse não permite considerar senão que as tributações autónomas não ofendem essa igualdade.

Até porque, ao contrário do que sucede com a Verba 28.1 da TGIS – Tabela Geral do Imposto do Selo, existe aqui, na tributação autónoma prevista na al. b) do n.º 13 do artigo 88.º do CIRC, um duplo critério. Não se trata apenas de tributar os gastos ou encargos acima de certo montante, em termos absolutos, como sucede no IS. Aqui o legislador foi mais exigente ao estabelecer uma dupla consideração ou critério inicial complementado por dois outros, cumulativos: esses gastos têm que superar certo montante absoluto e, ao mesmo tempo, têm que apresentar uma dada correlação significativa com a estrutura individual da remuneração anual da pessoa a quem foram atribuídos.

E para além destes dois critérios gerais, a lei adita outros dois, igualmente imperativos, a saber, de que o seu pagamento não seja diferido e não esteja condicionado ao desempenho da pessoa coletiva, nos termos ali previstos. Ora, analisados os critérios da lei, nós podemos facilmente identificar neles o fundo valorativo que os norteia, a sua razão de ser e, até, os cuidados postos pelo legislador na formulação de um regime sobre bónus e remunerações variáveis, que não atinge todas essas realidades exatamente porque nem todas elas apresentam os mesmos sintomas de desvalor. E sendo assim, não vemos como esses fatores possam constituir diferenciações inadmissíveis, sem qualquer justificação razoável à luz dos princípios específicos do direito fiscal e dos demais princípios gerais invocados pela Requerente.

A proporcionalidade pode ser ainda invocada numa outra perspetiva, centrada, naturalmente na pessoa da Requerente, única entidade aqui impugnante. Quando em 1989 entrou em vigor a reforma do rendimento em Portugal, as taxas marginais do IRS e do IRC eram iguais. Volvidos mais de 30 anos de aplicação desses impostos e depois de uma evolução reformista bastante profunda, as taxas marginais do IRC são menos de metade das do IRS. Isto significa que as empresas pagam hoje, correlativamente, muito menos impostos do que as pessoas singulares. Ora, se o peso do IRC tem diminuído para as empresas, não parece que os acréscimos de tributação originados pela tributação autónoma das realidades sob apreço lhes imponham níveis de tributação intoleráveis.

Importa recordar, como o referiu oportunamente Saldanha Sanches, citado na Decisão arbitral 187/2013-T, pp. 28, que as tributações autónomas constituem uma forma de obstar a atuações abusivas: “... que o “normal” funcionamento do sistema de tributação era incapaz de impedir, sendo  que  outras,  incluindo  formas  mais  gravosas  para  o  contribuinte,  eram possíveis. Este caráter antiabuso das tributações autónomas, será não só coerente com a sua natureza “anti-sistémica” (como acontece com todas as normas do género), como com uma natureza presuntiva, apontada quer pelo Prof. Saldanha Sanches quer pela jurisprudência que o cita. Elas “terão então materialmente subjacente uma presunção de empresarialidade “parcial” das despesas sobre que incidem, em função da supra-apontada circunstância de tais despesas se situarem numa linha cinzenta que separa aquilo que é despesa empresarial, produtiva, daquilo que é despesa privada, de consumo, sendo que, notoriamente, em muitos casos, a despesa terá mesmo na realidade uma dupla natureza (parte empresarial, parte particular).”

E onde, de resto, como já se afirmou na Decisão supra identificada (p. 27), as tributações autónomas cujo encargo pretendem as Requerentes ver subtraídas ao seu lucro tributável, poderão ser encaradas como uma espécie de norma anti abuso consensual, em que o legislador propõe ao contribuinte uma de três alternativas, a saber:

a) Não deduzir a despesa;

b) Deduzir mas pagar a tributação autónoma, dispensando-se, quer a si quer à Autoridade Tributária de discutir a questão da empresarialidade da despesa;

c) Provar a empresarialidade integral da despesa, e deduzi-la integralmente, não suportando a tributação autónoma.

O reconhecimento desta natureza presuntiva, será, para além de tudo o mais, uma salvaguarda da sua constitucionalidade, na medida em que estará garantida a possibilidade da respetiva dedução integral pelo contribuinte, ou a sua não dedução, consoante o lado para o qual a presunção que lhes está subjacente seja, em cada caso, infirmada.

Bem pelo contrário, cabe aos órgãos do poder público o poder-dever de detetar e providenciar mecanismos de correção de comportamentos que, sendo inteiramente lógicos no plano dos interesses individuais, são nefastos dos interesses coletivos por materializarem entorses sobre interesses relevantes e, bem vistas as coisas, um intolerável desvio de cargas fiscais entre grupos de contribuintes.

Por tudo quanto em exposto é que não se surpreende fundamento para os invocados vícios de inconstitucionalidade.

2. A questão da aplicabilidade da tributação autónoma sobre os encargos com bónus de administradores, gerentes ou gestores apenas sobre o que exceder o valor previsto na alínea b) do n.º 13 do artigo 88.º do CIRC

O que se disse anteriormente permite concluir que não existe, por parte da lei, um quid pro quo ou um parti pris sobre os bónus atribuídos. Pese embora a profusa eloquência do argumentário da Requerente, e do louvável esforço para demonstrar, nos seus artigos 131 e segs. o exagero das taxas de tributação, esses argumentos esquecem um equilíbrio prévio, uma ponderação sobre comportamentos das empresas que a lei requer que seja feito.

E isto porque, como se disse, a tributação das tributações autónomas previstas na al. b) do n.º 13 do artigo 88.º do CIRC apenas se verifica nos casos em que os critérios estabelecidos não sejam observados. Assim, por exemplo, um determinado colaborador que aufira 1 milhão de euros de remuneração anual, pode auferir igualmente um bónus no valor de, até, 25% desse montante sem que fique sujeito à tributação autónoma. Ou pode até, ultrapassar qualquer daqueles dois primeiros limites – v. g. pode receber um bónus igual ou superior ao dessa remuneração anual -, desde que se verifiquem as duas condições previstas na segunda parte da norma.

De modo que o regime não possui a violência que a Requerente lhe atribui na análise isolada que faz da norma em apreço. Ele tributa, é certo, de forma não despicienda, as situações que caibam no âmbito da previsão material da norma, mas importa não esquecer o caráter anti abuso que lhe assiste, e a evidente e não negada intenção de coibir comportamentos desta natureza, pelas razões já supra sobejamente apontadas.

  Por outro lado, a tributação destas realidades “apenas sobre o que exceder” na pretensão da Requerente, configura uma hipótese que nem a letra nem o espírito da lei contemplam. De facto, e em primeiro lugar, quando na atividade interpretativa, o intérprete eventualmente pretenda encaixar essa hipótese na lei, encontra na respetiva letra um limite que nos parece inultrapassável. Com efeito, nada nessa letra nos permite sequer supor ou imaginar que nela se acolha essa hipótese da tributação autónoma sobre o excedente. E isto porque a lei manda tributar “os gastos ou encargos” e dela não se retira, nem sequer de forma ténue, a mínima vontade objetiva de o fazer. São “os gastos” como um todo, nas condições ali especificadas, que ficam sujeitos a tributação autónoma e isso é tudo o que a lei nos quer transmitir. De modo que, salvo melhor, quando no preceito se refere a tributação daqueles encargos, o limite quantitativo dos 27 500 euros reporta-se ao valor do suportado como gasto pela pessoa coletiva, como um todo considerado.

Devem, é certo, chamar-se ao processo de descoberta da verdadeira sententia legis, os demais elementos de interpretação da lei. Mas, percorrido o excurso, não encontrámos, francamente, nos demais elementos dessa interpretação, fundamentos, ainda que meramente sintomatizados ou indiciados, que nos permitam caminhar no sentido pretendido pela Requerente. De facto, nem o elemento lógico, nem o sistemático nem, finalmente, o histórico, no-lo permitem concluir.

Ademais, mesmo indo mais longe, continuamos na mesma. É verdade que a descoberta do verdadeiro sentido da lei não é uma mera faculdade do intérprete. Ela constitui um imperativo, pois que importa assegurar que a atividade do intérprete atinja um sentido interpretativo pelo qual a lei exteriorize o seu sentido mais benéfico, mais profícuo e mais salutar, no dizer de FRANCESCO FERRARA, no seu Interpretação e Aplicação das Leis, Arménio Amado, editores, 1978, p. 137 e segs. Por outro lado, o sentido lógico da interpretação não nos conduz senão no sentido da tributação in totum, desses bónus ou remunerações variáveis, já que nada nos permite defender que deva existir uma parte dela excluída. Note-se que estamos numa lógica segundo a qual a lei pretende evitar ou desincentivar tais pessoas coletivas de relevar (abusivamente) como gastos valores relativos a bónus ou remunerações variáveis, pelo que faz sentido considerar o valor total do gasto por elas incorrido. É a relevação como gasto, pois, na sua inteireza que se pretende desincentivar e, nessa medida, faz pouco ou nenhum sentido o estabelecimento de regimes de tributação autónoma “apenas pela diferença”.

Depois, fazendo apelo à ratio legis continuamos a não descortinar motivos para pensar que a lei haja pretendido a tributação pela diferença. Sendo embora verdade, como o assinalou MANUEL DE ANDRADE, no seu Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, que a ratio legis é o elemento que estabelece o contacto entre a lei e a vida real, é certo que dessa vida real, do caso concreto resulta exatamente o oposto do pretendo pela Requerente. Pois que, tendo o regime uma função desincentivadora de comportamentos abusivos, não se vê porque motivos lógicos esse desincentivo se faça apenas a partir de certo montante. Tanto mais quanto é certo que o valor dos 27 500 euros não constitui um limite absoluto, mas uma baliza quantitativa que deve ser relacionada com os demais aspetos do regime, como se disse supra.

Depois, sendo embora verdade que a occasio legis possa ter, aqui, alguma relevância, radicada nas motivações concretas que determinaram o alargamento das tributações autónomas às remunerações variáveis e aos bónus, é certo que ela não nos leva a supor coisa diferente da que seja a tributação pela totalidade desses gastos, quando caibam no âmbito da previsão da referida al. b) do n.º 13 do art.º 88.º do CIRC.

Não é pois, à falta de melhor sentido lógico e de uma ratio indiciadora de outra coisa que não seja a tributação desses gastos pela totalidade, o intérprete deve presumir, face aos princípios interpretativos consagrados no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil (que a LGT manda aplicar através do artigo 11.º que o legislador exprimiu o seu pensamento em termos adequados” e “que consagrou as soluções mais acertadas.”

Termos em que nos parecem improcedentes as considerações feitas pela Requerente nesta matéria por falta de suporte legal.

 

3. A inaplicabilidade do agravamento de 10 pontos percentuais em sede de tributação autónoma às SGPS uma vez que, neste caso concreto, os prejuízos fiscais não são sintoma de prejuízos económicos (são prejuízos técnicos, que repousam em especificidades técnicas – por oposição a repousarem na realidade económica – da própria lei fiscal), sob pena de inconstitucionalidade desta norma constante do n.º 14 do artigo 88.º do CIRC.

Como se disse supra, o regime sob apreço visa claramente desincentivar comportamentos que, visando total ou principalmente evitar o encargo do IRC, se apresentam como censuráveis por abusarem dos regimes legais da consagração dos gastos no imposto e, com isso, provocarem desequilíbrios sistémicos relevantes. Nessa lógica, a lei considera reprovável que sejam relevados bónus e remunerações variáveis nas condições nela previstas (e só nestas) porque essa relevação assume foros de um comportamento anómalo.

Tal censurabilidade, aos olhos da lei (n.º 14.º do art.º 88.º do CIRC), resulta acrescida quando os sujeitos passivos de IRC, ou os grupos económicos no quadro do RETGS, relevam este tipo de encargos como gastos, considerados abusivos ou anómalos, e apresentam prejuízos fiscais. Defende a Requerente que o grupo económico onde se insere pagou IRC sob a forma de derramas estadual e municipal, para além de outras tributações autónomas. E que, com isso, não deveria ficar sujeita à elevação em 10 pontos percentuais da taxa de tributação autónoma prevista na al. b) do n.º 13 do mesmo preceito.

Ora, em primeiro lugar, parece-nos claro que, pelas razões interpretativas apontadas no ponto anterior, a lei é clara ao referir-se a “prejuízos fiscais” e não somente a “prejuízos” ou a “prejuízos económicos”. Ao empregar a expressão “prejuízos fiscais” a lei é suficientemente clara para, na determinação do seu sentido, não deixar margem para dúvidas de que são estes e só estes que relevam para a aplicação do critério de elevação das taxas de tributação autónoma.

Por outro lado, parece-nos claro que a referência naquele n.º 14 aos “prejuízos fiscais” toma como ponto de partida o processo de determinação do lucro real e efetivo no IRC e se reporta ao resultado líquido do exercício depois de adicionadas ou deduzidas as variações patrimoniais e as correções fiscais do IRC a que aludem os artigos 15.º a 17.º do Código. Isto é, refere-se à questão de saber se a pessoa coletiva em causa apresenta um lucro tributável ou um prejuízo fiscal. E tem bem presente que a contabilidade e a fiscalidade prosseguem fins diferentes, no quadro do apontado princípio da dependência parcial, em termos tais que se torna necessário introduzir correções na base, acrescendo gastos contabilísticos que não são aceites para efeitos fiscais e os rendimentos fiscais que não são refletidos na contabilidade e deduzindo os rendimentos contabilísticos que não relevem para efeitos fiscais e os gatos fiscais que não foram relevados contabilisticamente ao período (neste sentido, ver HELENA MARTINS, O IRC, in Lições de Fiscalidade, 3.ª edição, almedina, 2014, coord. por João Ricardo Catarino / Vasco Guimarães e Manuel Pereira, Fiscalidade, Almedina, 2009.)

Sendo assim, não restam dúvidas que o preceito sob apreço não pode ser interpretado senão com o sentido de que o critério que efetivamente nele se estabelece é o do “prejuízo fiscal” e não o de outro prejuízo ou lucro económico, financeiro, contabilístico ou qualquer outro.

Certo que até à entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2011, somente as empresas que apresentassem prejuízo fiscal nos dois exercícios anteriores ficariam sujeitas à taxa agravada de tributação autónoma de 20%, a incidir sobre as despesas dedutíveis [respeitantes, por exemplo, a viaturas ligeiras de passageiros e mistas cujo valor de aquisição fosse superior a 40 mil euros] e que a partir de 2011 as taxas de tributação autónoma passaram a ser agravadas em dez pontos percentuais, sempre que o contribuinte apresente prejuízo fiscal no próprio exercício a que os encargos respeitem.

E igualmente certo que, aliando esta nova regra ao facto de a taxa de 20% de tributação autónoma ter passado a ser aplicada, por exemplo, às despesas com viaturas de valor superior a 30 mil euros (para as adquiridas no próprio ano 2011), independentemente de a empresa apresentar prejuízos fiscais ou não, veio fazer com que a taxa final de tributação autónoma pudesse ascender a cerca 30%, podendo acontecer efetivamente que as empresas que apresentem prejuízo fiscal a partir de 2011 venham, nalguns casos, a  ser mais penalizadas, do ponto de vista fiscal, do que aquelas que apresentem lucro tributável.

Todavia, este é um lado da questão que ignora ou esquece a sobredita natureza dissuasora das tributações autónomas relativamente a consumos ou gastos que, no mínimo, são de muito discutível essencialidade ou imprescindibilidade empresarial.

Ou seja: a questão pode reconduzir-se a saber, em termos simples, se é justo ou não penalizar quem, em situação de prejuízo fiscal, opta, usando o exemplo anterior, por aquisição de viaturas ligeiras de passageiros para uso dos seus administradores, de custo acima de um limite razoável.

E relativamente a esta material não há especificidades ou exceções a assinalar para o caso, como o dos autos, de empresas tributadas, por opção própria, no âmbito do RETGS (artigos 69º e ss., do CIRC).

Na verdade, pese embora ocorra neste caso uma aferição de prejuízos fiscais por declaração do Grupo fiscal, a verdade é que tal ocorre por opção própria do contribuinte que aceitou que o cálculo respetivo se processasse não de forma individual mas através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de modo a que, no final, apenas houvesse um único sujeito passive para efeitos de IRC.

Se desse regime de tributação resultar, num caso ou noutro, em tributação final mais gravosa do que aquela que poderia resultar da tributação final individual, tal consequência só ao contribuinte pode ser imputada.

Uma nota relativamente às derramas, para lembrar que estas foram desde há muito qualificadas pela Doutrina como impostos acessórios, embora autónomos. A Derrama Estadual e Municipal configuram hoje impostos acessórios e não meros impostos dependentes (pois elas são devidas ainda que o imposto principal, do qual dependem, não o seja), resultando do respetivo regime que incidem sobre o lucro tributável do imposto principal, mas não são nem se configuram como parte integrante, incindível, do próprio imposto principal – o IRC. As Derramas gozam pois, no ordenamento fiscal, de autonomia científica, seja sob a forma de impostos acessórios ou de adicionamentos, como é o caso das Derramas sob apreço, embora se trate de uma autonomia mitigada já que, de certo modo, vivem na dependência do imposto principal. Não configuram, todavia, o próprio IRC. (neste sentido ver CARDOSO MOTA, LEMOS PEREIRA, Teoria e Técnica Fiscal, 7.ª ed. P. 46; SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, Coimbra editora, 1993, p. 215; CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, Almedina, p. 61, 62;ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Princípios de direito fiscal português, col. 1, ed. Ática, 1964, p. 59).

Já as tributações autónomas, como muito o bem o refere a Requerente, são efetivamente, IRC, no sentido anteriormente definido como, de facto, inúmeras Decisões Arbitrais o têm confirmado e aqui se reafirma. Mas o artigo 88.º n.º 14 do CIRC não elege como critério para o agravamento o do pagamento de IRC, muito menos por tributações autónomas. Como se disse, esse critério é um só, a saber, o do “prejuízo fiscal”. São, pois os prejuízos relacionados com a atividade comercial que relevam e só estes.

Pode é, certo, argumentar-se que algum IRC foi pago pelo grupo onde a Requerente se insere (cfr. artigo 150.º da p. i.), mas o facto é que esse IRC, não é um IRC sobre lucros mas um IRC por tributações autónomas. Isto é, um imposto por factos fiscalmente relevantes – gastos aceites como tal – que a lei deseja desincentivar. É, assim, um IRC devido pela relevação de gastos ou outras realidades sujeitas a tributação autónoma e, nessa medida, não se pode aferir que o grupo haja pago IRC sobre lucros no exercício sob consideração na justa medida em que apresentou “prejuízos fiscais”.

Podem discutir-se, é também certo, os fundamentos dessa lógica, mas a verdade é que ela se nos apresenta de um modo claro, coerente e que não ofende de forma intolerável a ordem de valores que se pretende preservar. Assim, nada tem de estranho, ilegal ou inconstitucional o facto de haver “prejuízos fiscais” e, ao mesmo tempo, lugar ao pagamento de IRC por tributações autónomas atento o facto de uma e outra realidade se reportarem a aspetos diferenciados dessa ordem de valores que visam justamente preservar.

Concluindo nesta parte dir-se-á que não se surpreende igualmente a alegada inconstitucionalidade do disposto no artigo 88º n.º 14, invocada pela requerente.

 

4. Questão do reenvio prejudicial

Formula ainda a requerente, a título subsidiário, um pedido de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, conforme previsto no artigo 19.º, n.º 3, alínea b), e no artigo 267.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

Alega, para tanto, que “(...)não obstante a jurisprudência comunitária já produzida sobre a matéria, o alcance e implicações do artigo 4.º, n.º 1, da Directiva 90/435/CEE e da Directiva 2011/96/UE que lhe sucedeu, ou de qualquer outra norma das referidas Directivas que possa em seu juízo interferir com a boa solução deste caso concreto, deverá então este Tribunal Arbitral promover o reenvio prejudicial das questões que entenda suscitar, para o Tribunal de Justiça da União Europeia, conforme previsto no artigo 19.º, n.º 3, alínea b), e no artigo 267.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (...)”.

A questão que a requerente coloca é agora a de saber se o sobredito regime de tributações autónomas suscitado pela requerente, embora, em nosso entender, de forma nem sempre muito direta ou linear, está conexionado, se bem entendemos, com a harmonização das sobreditas tributações autónomas do regime de tributação dos grupos de sociedades (RETGS) [arts 69º a 71º, do CIRC] e de tributações autónomas ou seja, com a faculdade de opção de um grupo de sociedades por uma tributação homogénea e única em sede de IRC de tal modo que o resultado fiscal do grupo seja a soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais das sociedades que integram esse grupo, encabeçado este pela sociedade dominante (sociedade-mãe, SGPS ou não).

Está aqui subjacente uma opção dos contribuintes no sentido de que o tratamento fiscal das sociedades integrantes do Grupo passe a ser feito de modo global, tendo como base tributável o resultado fiscal daquelas somas algébricas (lucros+prejuízos) [Cfr. arts. 69º a 71º, do CIRC], apenas com exceção da derrama estadual e municipal [que, de acordo com as redações dadas àquelas normas pelo OE para 2012, passaram a incidir sobre o lucro tributável apurado na declaração periódica individual].

É adentro deste enquadramento que a requerente questiona a necessidade de ser suscitada uma interpretação do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) à luz do disposto nos artigo 19º-3/b) e 267º, do TFUE, considerando estar aqui em causa a necessidade de interpretação e aplicação uniforme “(...) do artigo 4.º, n.º 1, da Directiva 90/435/CEE e da Directiva 2011/96/UE[6] que lhe sucedeu, ou de qualquer outra norma das referidas Directivas (...)[7]”.

Dispõe o citado artigo 4º-1, da Diretiva nº 90/435/CEE:

Artigo 4º

1. Sempre que uma sociedade-mae receba, na qualidade de sócia da sociedade sua afiliada, lucros distribuídos de outra forma que não seja por ocasião da liquidação desta última, o Estado da sociedade-mãe:

- ou se abstém de tributar esses lucros,

- ou os tributa, autorizando esta sociedade a deduzir do montante do imposto a fracção do imposto da afiliada correspondente a tais lucros e, se for caso disso, o montante da retenção na fonte efectuada pelo Estado--membro da residência afiliada nos termos das disposições derrogatórias do artigo 5°, dentro do limite do montante do imposto nacional correspondente.

Considerando que era a Diretiva 90/435/CEE a que vigorava à data dos factos tributários em causa nestes autos (Cfr. nota 4), será este o ato legislativo comunitário o único subjacente ao pedido subsidiário de reenvio prejudicial.

Vejamos então.

O reenvio prejudicial é um mecanismo fundamental do direito da União Europeia, que tem por finalidade fornecer aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros o meio de assegurar uma interpretação e uma aplicação uniformes deste direito em toda a União.

Por força do artigo 19º-3/b), do Tratado da União Europeia e do artigo 267º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação do direito da União e sobre a validade dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Os Tribunais arbitrais integram o conjunto de Tribunais nacionais, como expressamente resulta do previsto no artigo 209º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Enquanto tal, e no desempenho ativo da sua função arbitral, atendendo à natureza excecional do recurso da decisão dos Tribunais Arbitrais em matéria tributária, o legislador nacional deixou expresso no preâmbulo do Decreto-Lei nº 10/2011, que “(…) nos casos em que o tribunal arbitral seja a última instância de decisão de litígios tributários, a decisão é suscetível de reenvio prejudicial em cumprimento do §3 do artigo 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”.

Não há dúvida, pois, que em caso de dúvida sobre a interpretação de normas jurídicas de direito europeu o tribunal arbitral pode recorrer ao mecanismo de reenvio prejudicial.

Os tribunais nacionais são considerados como tribunais comuns da Ordem Jurídica da União Europeia, dado o número considerável de normas e de atos comunitários, constituídos por disposições diretamente aplicáveis ou com efeito direto, cabendo aos tribunais nacionais dos Estados Membros aplica-las nos litígios que lhes sejam submetidos para apreciação.1 Cabe, pois, aos tribunais nacionais o dever de aplicar o direito comunitário, mesmo contra disposições de direito interno em sentido contrário.

Assim, para se recorrer ao processo de reenvio de uma ou mais questões a título prejudicial, para interpretação de uma ou mais normas jurídicas de direito comunitário, originário ou derivado, é necessário que subsistam dúvidas sobre a interpretação do texto em causa. Pelo contrário, se o texto é perfeitamente claro, não se trata já de interpretar, mas sim de o aplicar, o que é da competência do Tribunal/Juiz/Árbitro incumbido da competência de julgar o caso concreto aplicando a lei, a nacional e/ ou a comunitária, se for esse o caso. Este entendimento é amplamente conhecido e defendido pela doutrina e pela jurisprudência como a “teoria do ato claro”.

Tudo isto considerado, entende este tribunal arbitral na sequência e em consequência das considerações desenvolvidas supra relativamente à natureza das tributações autónomas que não subsistem dúvidas de interpretação sobre as normas em presence à luz da Diretiva 90/435/CEE ou de quaisquer instrumentos legais da UE e, nessa medida, o que se impõe a este tribunal é decidir em conformidade com a lei aplicável e de harmonia com a interpretação que dela faz nos termos gerais.

Nesta conformidade, não antevendo dúvidas de interpretação que fundamentem o pedido de reenvio nem tão pouco indicando a requerente as questões concretas que pretenderia ver colocadas ao TJUE, este Tribunal decide rejeitar o pedido de reenvio prejudicial ao TJUE.

III.  DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a) Julgar totalmente improcedentes os pedidos de anulação parcial da autoliquidação de IRC de 25 de outubro de 2012, com o número 2012 …, referente ao exercício fiscal da requerente do ano de 2011, na importância de €1.424.772,67 e

b) Considerar prejudicada a apreciação e decisão relativa às demais questões suscitadas pela requerente, designadamente a relativa ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

 Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.424.772,67

 

Custas

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 18.972,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da requerente, A, SGPS.

 

Lisboa e CAAD, 24-4-2015

 

O Tribunal

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

 

 

 

 

 

 

José Coutinho Pires

(vogal)

 

 

 

 

João Ricardo Catarino

(Vogal)

[Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com versos em branco e revisto pelo Coletivo de Árbitros].

 

 

 



[1] A “natureza dual” de que Saldanha Sanches nos dá conta e segundo o mesmo, revela-se também pelo facto de os custos associados às tributações autónomas, não deixarem de revestir, nalgum sentido “uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial e, por isso, são sujeitos a uma tributação autónoma. Em resumo, o custo é dedutível, mas a tributação autónoma reduz a sua vantagem fiscal, uma vez que, aqui, a base de incidência não é um rendimento líquido, mas, sim, um custo transformado, excepcionalmente em objecto de tributação”.

[2] Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 3ª edição, pp. 406 e 407.

[3] Effet des stratégies ficales «agressives» sur les finances publiques (Québec/Canada), in Revue Française de Finances Publiques, n.º 127, Août, 2014, LGDJ, Lextenso éditions, p. 12.

[4] International/European Union/OECD – Global Developments and Trends in International Anti-avoidance, in Bulletin For International Taxation, p. 435.

[5] Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra: Almedina, 1996, 9.ª reimpressão, p. 61.

[6] A Directiva 2011/96/UE altera a Directiva 90/435/CEE do Conselho, de 23 de Julho de 1990. De acordo com esta alteração, os Estados-Membros passam a poder não tributar os dividendos auferidos no caso de distribuição de lucros por parte de estabelecimentos estáveis a sociedades, assim como na distribuição de lucros por parte de sociedades a estabelecimentos estáveis.

[7] A Directiva estipula, ainda, que os Estados-Membros deverão proceder à transposição das disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à mesma a partir de 18 de Janeiro de 2012.