Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 300/2024-T
Data da decisão: 2024-09-11  IVA  
Valor do pedido: € 10.487,00
Tema: IVA – regra de inversão do sujeito passivo. Serviços de construção civil. IVA à taxa reduzida – verba 2.27 da Lista I anexa ao CIVA.
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SUMÁRIO:

  1. As empreitadas de beneficiação de prédios afetos a habitação são tributadas, em sede de IVA, à taxa reduzida, por aplicação da verba 2.27 da Lista I anexa ao CIVA;
  2. Para efeito de aplicação da verba 2.27 da Lista I anexa ao CIVA releva a concreta afetação ou destino dado ao imóvel e não o facto de ser utilizado pelo seu proprietário no exercício da sua atividade profissional ou comercial;
  3. O IVA respeitante aos serviços de construção civil adquiridos por pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do CIVA que disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional e que pratiquem operações que confiram direito à dedução do imposto é devido pelo adquirente dos serviços e não pelo prestador;
  4. O princípio da neutralidade do IVA exige que o IVA liquidado e pago em violação da regra da inversão do sujeito passivo seja considerado, abstendo-se a AT de liquidar novamente o IVA já liquidado e pago e de o exigir ao sujeito passivo, desde que os requisitos substanciais tiverem sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO:

 

A..., L.DA, titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva..., doravante designada por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação adicional de IVA e juros compensatórios referentes ao exercício de 2019, com os números 2022..., 2022 ... e 2022..., no montante total de € 12.830,29, bem como a condenação da Requerida a reembolsar a Requerente do montante indevidamente pago, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.

 

Para fundamentar o seu pedido alegou, em síntese:

 

  1. No ano de 2019, a Requerente adquiriu serviços de construção civil a diversas entidades, que liquidaram IVA à taxa reduzida (6%) aquando da emissão das respetivas faturas, que foi pago pela Requerente;
  2. A Requerente foi objeto de um procedimento inspetivo, de natureza externa e com âmbito parcial (IRC e IVA), com incidência no exercício de 2019 – OI2022...;
  3. No âmbito do qual a AT concluiu que o IVA relativo a aquisições de serviços qualificados como de construção civil foi indevidamente liquidado pelos fornecedores/prestadores de serviços;
  4. E que a taxa incidente sobre os serviços de construção civil prestados é a taxa normal (23%) e não a taxa reduzida (6%), por se tratar de serviços de construção civil em imóvel afeto à atividade comercial da Requerente;
  5. Nessa sequência, a AT entendeu que se deveria proceder à liquidação adicional de IVA dos períodos de 201903T, 201906T e 201909T, nos valores, respetivamente, de € 4.163,11, € 5.911,00 e € 4.109,77;
  6. Tendo em consequência emitido as liquidações de IVA e de juros compensatórios com os números 2022..., 2022 ... e 2022..., no montante total de € 12.830,29, que a Requerente pagou;
  7. A Requerente deduziu pedido de revisão oficiosa tendo em vista a anulação das liquidações adicionais de IVA emitidas;
  8. A Requerente foi notificada do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado, por ofício datado de 12/12/2023;
  9. A Requerente pagou aos prestadores de serviços o IVA liquidado e estes entregaram o IVA recebido ao Estado, pelo que a sua exigência à Requerente constitui uma duplicação de coleta;
  10. O entendimento defendido pela AT viola o princípio da neutralidade fiscal, da justiça material e da capacidade contributiva;
  11. Os serviços em causa nos autos consubstanciam uma empreitada de renovação de um apartamento habitacional, o qual já se encontrava afeto a habitação antes das obras de beneficiação e assim continuou após a realização das obras;
  12. Pelo que são tributados à taxa reduzida de IVA (6%) e não à taxa normal (23%);
  13. Não sendo, em consequência, devido pela Requerente o pagamento de qualquer valor.

 

A Requerente juntou 8 documentos e não arrolou testemunhas.

 

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº 1 do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.

 

O tribunal arbitral foi constituído em 14 de maio de 2024.

 

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, invocando, em síntese, o seguinte:

 

  1. A taxa reduzida de IVA prevista na verba 2.27 da Lista I anexa do CIVA não se aplica a empreitadas relativas a bens imóveis utilizados para o exercício de uma atividade profissional, comercial, industrial ou administrativa;
  2. O imóvel em causa nos autos encontra-se afeto à atividade comercial da Requerente, apesar de se tratar de uma fração autónoma de um prédio para habitação;
  3. Antes do início das obras de beneficiação o imóvel não se encontrava afeto exclusivamente a habitação;
  4. Pelo que os serviços de beneficiação do imóvel são tributados, em sede de IVA, à taxa normal, não lhes podendo ser aplicável IVA à taxa reduzida;
  5. A Requerente é adquirente de serviços de construção civil, sendo por isso o sujeito passivo de IVA por reversão, sendo da sua competência a autoliquidação do imposto nas referidas aquisições;
  6. O fornecedor de serviços liquidou IVA indevidamente.

 

A Requerida juntou o processo administrativo, não tendo junto qualquer documento nem arrolado testemunhas.

 

Por despacho de 05/08/2024, foi dispensada a realização da reunião arbitral, bem como a produção de alegações.

  1. SANEAMENTO:

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

Não existem nulidades que invalidem o processado.

As partes têm personalidade e capacidade judiciária, não ocorrendo vícios de patrocínio.

Não existem exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.

 

  1. QUESTÕES DE DIREITO A DECIDIR:

Atentas as posições assumidas pelas Partes, vertidas nos argumentos expendidos, cumpre determinar se:

  1. as obras de beneficiação levadas a cabo pela Requerente são tributadas, em sede de IVA, à taxa reduzida ou à taxa normal;
  2. a Requerente se encontra obrigada a entregar à AT o IVA correspondente aos serviços de construção civil que adquiriu e cujo IVA foi indevidamente liquidado pelos respetivos fornecedores.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO:

 

a.     Factos provados:

Com relevo para a decisão consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. No ano de 2019, a Requerente levou a cabo, através de diversos prestadores de serviços, obras de beneficiação da fração autónoma de que é proprietária, designada pela letra “L” do prédio urbano sito na Rua de ..., nº ... a ..., freguesia de ..., concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº... e inscrito na matriz sob o artigo ...;
  2. Os prestadores de serviços a que se alude em a) anterior liquidaram IVA à taxa reduzida (6%) aquando da emissão das respetivas faturas;
  3. A Requerente pagou o IVA liquidado pelos prestadores de serviços de construção civil, que o entregaram ao Estado;
  4. A Requerente foi objeto de um procedimento inspetivo, de natureza externa e com âmbito parcial (IRC e IVA), com incidência no exercício de 2019 – OI2022...;
  5. No âmbito do qual a AT concluiu que o IVA relativo a aquisições de serviços qualificados como de construção civil foi indevidamente liquidado pelos fornecedores/prestadores de serviços;
  6. E que a taxa incidente sobre os serviços prestados é a taxa normal (23%) e não a taxa reduzida (6%), por se tratar de serviços de construção civil em imóvel afeto à atividade comercial da Requerente;
  7. Nessa sequência, a AT entendeu que se deveria proceder à liquidação adicional de IVA dos períodos de 201903T, 201906T e 201909T, nos valores, respetivamente, de € 4.163,11, € 5.911,00 e € 4.109,77;
  8. Tendo em consequência emitido as liquidações de IVA com os números 2022..., 2022 ... e 2022..., no montante total de € 12.830,29;
  9. A Requerente pagou as liquidações de IVA a que se alude em h) anterior;
  10. A Requerente deduziu pedido de revisão oficiosa tendo em vista a anulação das liquidações adicionais de IVA emitidas;
  11. A Requerente foi notificada do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado, por ofício datado de 12/12/2023;
  12. A fração autónoma a que se alude em a) anterior encontra-se afeta a habitação;
  13. Por contrato de arrendamento habitacional celebrado em 22/11/2010, a Requerente deu de arrendamento a fração autónoma a que se alude em a) anterior;
  14. O contrato de arrendamento a que se alude em m) anterior manteve-se em vigor até outubro de 2018;
  15. O prédio a que se alude em a) anterior foi objeto de obras de beneficiação, que decorreram entre novembro de 2018 e setembro de 2020;
  16. Por contrato de arrendamento habitacional celebrado em 22/09/2020, a Requerente deu de arrendamento o prédio a que se alude em a) anterior, pelo prazo de 3 anos, com início em 01/10/2020, automaticamente renovável por sucessivos períodos de um ano;
  17. O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral foi apresentado em 01/03/2024.

 

b.     Factos não provados:

 

Com relevo para a decisão, não se consideraram provados os seguintes factos:

  1. Que na sequência da ação inspetiva levada a cabo pela AT, tenham sido liquidados juros compensatórios;
  2. Que a Requerente tenha pago juros compensatórios liquidados pela AT na sequência da ação inspetiva levada a cabo.

 

c.     Fundamentação da matéria de facto:

A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base os elementos constantes dos autos, a prova documental junta pelas partes e cuja adesão à realidade não foi questionada, designadamente a caderneta predial do prédio em causa e os contratos de arrendamento juntos (que motivaram a inclusão na matéria de facto provada dos pontos l), m) e p)), bem como a matéria alegada e não impugnada.

 

Quanto à matéria constante do ponto c) da matéria de facto provada, a sua inclusão deveu-se à alegação da Requerente, que não foi impugnada pela AT, o que permitiu ao tribunal considerar, de acordo com as regras da experiência, que o IVA liquidado pelos prestadores de serviços foi pago pela Requerente e entregue pelos prestadores ao Estado, pois que, acaso tal não tivesse ocorrido, não teria a AT deixado de o referir.

 

No que diz respeito à matéria de facto não provada, a inclusão nesta matéria do facto constante do ponto a) foi motivada pela total ausência de prova nesse sentido.

 

Com efeito, pese embora a Requerente alegue que, na sequência da ação inspetiva levada a cabo pela AT, foram emitidas liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, a verdade é que não foi junta qualquer liquidação de juros compensatórios, apenas tendo sido juntas liquidações de IVA.

 

Ademais, da análise do valor atribuído pela Requerente à ação, correspondente à diferença entre o valor total que a AT, na sequência do procedimento inspetivo, concluiu encontrar-se em falta (€ 14.183,88) e o valor que a Requerente entende ser devido (€ 3.700,14), valor este já pago pela Requerente, verifica-se que a Requerente se limita a impugnar as liquidações adicionais de IVA, pese embora se refira também, ao longo do requerimento inicial, a liquidações de juros compensatórios.

 

O mesmo se diga da matéria incluída no ponto b) da matéria de facto não provada, já que não foi junto aos autos pela Requerente qualquer comprovativo de pagamento de juros compensatórios.

 

  1. DIREITO:

 

  1. Da taxa de IVA aplicável:

Em causa nos autos estão os serviços de construção civil adquiridos pela Requerente às seguintes entidades, que os faturaram, liquidando o IVA correspondente:

  1. B..., L.da;
  2. C..., L.da;
  3. D..., L.da;
  4. E..., L.da.

 

Parte dos serviços constantes das faturas emitidas foram faturados com IVA à taxa de 6%, por aplicação da verba 2.27 da Lista I anexa ao CIVA.

 

Defende a Requerente a aplicação aos serviços em causa da taxa reduzida de IVA, prevista na verba 2.27 da referida Lista, por se tratar de empreitada de beneficiação levada a cabo em imóvel afeto à habitação.

 

Em sentido inverso, entende a Requerida que o imóvel em causa não se encontra afeto à habitação, mas à atividade comercial desenvolvida pela Requerente, apesar de se tratar de habitação, pelo que os serviços de construção civil nele levados a cabo deverão ser tributados, em sede de IVA, à taxa normal.

 

Mais defende a Requerida que nunca poderiam os serviços em causa ser tributados à taxa reduzida de IVA prevista na verba 2.27 da Lista I anexa ao CIVA pelo facto de, antes do início das obras, o imóvel não se encontrar afeto exclusivamente a habitação.

Cumpre decidir.

 

Nos termos do disposto na verba 2.27 da Lista I anexa ao CIVA ficam sujeitas à taxa reduzida de IVA, prevista no artigo 18º nº 1 a) do CIVA, as empreitadas de beneficiação, remodelação, renovação, restauro, reparação ou conservação de imóveis ou partes autónomas destes afetos à habitação, com exceção dos trabalhos de limpeza, de manutenção dos espaços verdes e das empreitadas sobre bens imóveis que abranjam a totalidade ou uma parte dos elementos constitutivos de piscinas, saunas, campos de ténis, golfe ou minigolfe ou instalações similares.

 

Da leitura desta norma, verifica-se que a lei apenas fixa, para a aplicação da taxa reduzida de IVA prevista nesta verba, requisitos de natureza objetiva: tipo de empreitada (beneficiação, remodelação, renovação, restauro, reparação ou conservação de imóveis ou partes autónomas destes) e destino dos imóveis (habitação) – neste sentido, veja-se, entre outros. Ac. do TCA Sul de 25JUN2019, processo nº 3078/05.7BELSB.

 

Não impondo a lei qualquer outro requisito, designadamente de carácter subjetivo, relacionado com a qualidade do destinatário dos serviços.

 

Pese embora a aparente clareza do preceito, a verdade é que, à semelhança do que sucede com qualquer outra norma, maxime fiscal, a mesma suscitou diversas dúvidas e foi objeto de várias interpretações, razão pela qual a AT decidiu prestar esclarecimentos sobre a aplicação da dita verba, o que fez através do ofício-circulado nº 30135, de 26/09/2012.

 

De acordo com o referido ofício-circulado, “aquela verba engloba, unicamente, os serviços efetuados em imóvel ou fração autónoma desde que, não estando licenciado para outros fins, esteja afeto à habitação, considerando-se nestas condições o imóvel ou fração autónoma que esteja a ser utilizado como habitação no início das obras e que, após a execução das mesmas, continue a ser efetivamente utilizado para o mesmo fim.” (sublinhado nosso).

 

Da leitura do preceito e dos próprios esclarecimentos avançados pela AT no indicado ofício-circulado não resulta, pois, qualquer impossibilidade de aplicação desta verba quando o destinatário dos serviços seja pessoa, singular ou coletiva, que afete o imóvel à sua atividade profissional.

O que releva, para efeito de aplicação da dita verba, é a natureza do serviço e a afetação concreta do imóvel.

 

No caso dos autos, resultou demonstrado que:

a)       Por contrato de arrendamento habitacional celebrado em 22/11/2010, a Requerente deu de arrendamento a fração autónoma designada pela letra “L” do prédio urbano sito na Rua ..., nº ... a ..., freguesia de ..., concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo  ... - ponto m) da matéria de facto provada;

b)       O contrato de arrendamento a que se alude em a) anterior manteve-se em vigor até outubro de 2018 – ponto n) da matéria de facto provada;

c)       O prédio a que se alude em a) anterior foi objeto de obras de beneficiação, que decorreram entre novembro de 2018 e setembro de 2020 - ponto o) da matéria de facto provada;

d)       Por contrato de arrendamento habitacional celebrado em 22/09/2020, a Requerente deu de arrendamento o prédio a que se alude em a) anterior, pelo prazo de 3 anos, com início em 01/10/2020, automaticamente renovável por sucessivos períodos de um ano - ponto p) da matéria de facto provada.

 

Assim, dúvidas não restam de que os serviços executados no imóvel se subsumem a uma empreitada, tal como prevista na verba 2.27 da Lista I anexa ao CIVA.

 

Da mesma forma, o imóvel em causa, pese embora seja utilizado pela Requerente no exercício da sua atividade comercial, encontra-se afeto à habitação e foi arrendado com esse fim, o que resulta quer da caderneta predial urbana, quer dos contratos de arrendamento juntos pela Requerente.

 

Ao contrário do alegado pela AT, o imóvel em causa não se encontra a ser utilizado para o exercício de uma atividade profissional, comercial, industrial ou administrativa.

O imóvel encontra-se a ser utilizado com destino a habitação, embora tenha sido arrendado pela Requerente no exercício da sua atividade. O que é bem diferente.

 

Quer dizer: o que releva, quanto a nós, para a possibilidade de aplicação do IVA à taxa reduzida prevista na verba 2.27 da Lista I anexa ao CIVA não é o facto de o imóvel ser utilizado, pelo seu proprietário (no caso, a Requerente), no exercício da sua atividade profissional ou comercial. Ao invés, o que releva é a concreta afetação ou destino dado ao imóvel. Destino este que, in casu, é a habitação.

 

Cremos, aliás, que é este entendimento sufragado pela AT e constante do ofício-circulado a que se vem de fazer referência. De facto, resulta do indicado ofício-circulado:

 

nos casos em que, antes das obras, o imóvel ou fração autónoma se encontrava habitado e, após as mesmas, é objeto de um novo arrendamento para habitação, esta empreitada pode beneficiar da aplicação desta verba, desde que não exista um período em que o imóvel esteja devoluto, isto é, quando o novo arrendamento tiver início logo após o final das obras.” (sublinhado nosso).

 

O que, desde logo, confirma a possibilidade de aplicação de IVA à taxa reduzida às situações em que o imóvel, embora afeto à atividade profissional ou comercial do destinatário dos serviços (in casu, a Requerente), se destine a habitação do arrendatário. O que releva é que o imóvel foi arrendado com destino a habitação, sendo para o caso inócuo que esteja afeto à atividade profissional ou comercial do seu proprietário.

 

Só assim se poderá compreender a referência efetuada pela AT no dito ofício-circulado, a “um novo arrendamento para habitação”.

 

Nem se diga que in casu não há “um novo arrendamento para habitação”. É certo que a AT alega que, antes do início das obras, o imóvel não se encontrava afeto exclusivamente a habitação. Não é isso, porém, o que resulta do contrato de arrendamento junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral (documento número 5), contrato esse que não foi impugnado pela AT.

 

Ao contrário, o que resulta do dito contrato de arrendamento é justamente um arrendamento habitacional. Aliás, a própria AT limita-se a alegar que tal contrato não se poderá considerar “afeto exclusivamente a habitação”, sem, no entanto, explicar como chegou a tal conclusão, sendo certo que o facto de o arrendatário ser uma sociedade não permite chegar a tal conclusão.

 

Assim, dúvidas não restam de que o prédio em causa se encontrava arrendado, com destino a habitação, antes das obras e que, após as mesmas, foi objeto de novo arrendamento para habitação, não tendo havido nenhum período em que o imóvel tenha estado devoluto, sendo que o novo arrendamento habitacional se iniciou logo após o final das obras.

 

Pelo que, conforme resulta de forma expressa do ofício-circulado nº 30135, de 26/09/2012, a empreitada em causa pode beneficiar da aplicação do IVA à taxa reduzida, prevista na verba 2.27 da Lista I anexa ao CIVA.

 

Donde, não tendo sido suscitados pela AT quaisquer outros motivos que pudessem justificar a não aplicação às obras executadas pela Requerente do IVA à taxa reduzida, tem a mesma de ser aplicada.

 

Não havendo, assim, qualquer fundamento legal para as liquidações efetuadas, na parte respeitante à aplicação, aos serviços de construção civil em causa, de IVA à taxa normal, impondo-se, pois, a declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações efetuadas, nesta parte. 

  1. Do IVA indevidamente pago aos prestadores de serviços:

Assente que está que os serviços de construção civil executados no prédio em causa nos autos deverão ser tributados, em sede de IVA, à taxa reduzida, não havendo, assim, fundamento para a sua tributação à taxa de 23%, impõe-se agora determinar se a Requerente se encontra obrigada a entregar ao Estado o valor de IVA que já pagou ao prestador de serviços e que este entregou ao Estado.

 

De acordo com a Requerente, tendo esta pago o IVA liquidado pelos referidos prestadores e fornecedores de serviços, ainda que indevidamente, não existe nenhum fundamento para que a AT lhe exija o pagamento do IVA já pago e entregue pelos prestadores e fornecedores ao Estado.

 

Em sentido inverso, defende a Requerida que, não sendo os prestadores dos serviços os sujeitos passivos de IVA respeitante a estas atividades, o IVA liquidado por estas entidades o foi indevidamente, encontrando-se por isso a Requerente obrigada a efetuar o seu pagamento ao Estado.

 

Vejamos:

Dispõe o artigo 199º nº 1 a) da Diretiva IVA (Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28/11/2006):

Os Estados-Membros podem prever que o devedor do imposto é o sujeito passivo destinatário das seguintes operações:

  1. Prestação de serviços de construção, incluindo reparação, limpeza, manutenção, alteração e demolição respeitantes a bens imóveis, bem como a entrega de obras em imóveis considerada como entrega de bens nos termos do n.º 3 do artigo 14.º.”

 

Transpondo a referida Diretiva para o direito interno, o DL 21/2007, de 29 de janeiro estatuiu, “no domínio de algumas prestações de serviços relativas a bens imóveis, nomeadamente nos trabalhos de construção civil realizados por empreiteiros e subempreiteiros”, a regra da inversão do sujeito passivo, passando, pois, “a caber aos adquirentes ou destinatários daqueles serviços, quando se configurem como sujeitos passivos com direito à dedução total ou parcial do imposto, proceder à liquidação do IVA devido, o qual poderá ser também objeto de dedução nos termos gerais.” – cfr. preâmbulo do referido DL.

 

Assim, passou-se a prever no CIVA que são sujeitos passivos de imposto “as pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a) que disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional e que pratiquem operações que confiram o direito à dedução total ou parcial do imposto, quando sejam adquirentes de serviços de construção civil, incluindo a remodelação, reparação, manutenção, conservação e demolição de bens imóveis, em regime de empreitada ou subempreitada.” – cfr. artigo 2º nº 1 j) do CIVA.

 

Nenhum dos citados diplomas legais define o conceito de “serviços de construção civil”, pelo que teremos de nos ater à definição constante do Ofício Circulado da Autoridade Tributaria nº 30101, de 24/05/2007, que define como “serviços de construção civil todos os que tenham por objeto a realização de uma obra, englobando todo o conjunto de atos que sejam necessários à sua concretização”, sendo para este efeito “obra” considerado “todo o trabalho de construção, reconstrução, ampliação, alteração, reparação, conservação, reabilitação, limpeza, restauro e demolição de bens imóveis, bem como qualquer outro trabalho que envolva processo construtivo, seja de natureza pública ou privada”.

 

Para além dos serviços de construção civil tout court, tem-se entendido, conforme defendido pela AT no referido Ofício Circulado e aliás não contestado nos autos pela Requerente, considerar-se abrangida pela regra da inversão do sujeito passivo a entrega de bens, com montagem ou instalação na obra, excluindo-se, pois, da regra de inversão os bens que, inequivocamente, tenham a qualidade de bens móveis, isto é, bens que não estejam ligados materialmente ao bem imóvel com carácter de permanência (ponto 1.5.3 do Ofício Circulado nº 30101).

 

Razão pela qual a AT defendeu, e bem, encontrar-se excluído da regra da inversão o fornecimento dos eletrodomésticos que não se encontram materialmente ligados ao bem imóvel.

 

No caso dos autos, as partes estão de acordo quanto ao facto de os serviços correspondentes às faturas em crise respeitarem a serviços de construção civil e fornecimento de determinados bens abrangidos pela regra da inversão do sujeito passivo.

 

Pelo que, in casu, o sujeito passivo do IVA respeitante a tal prestação e fornecimento de serviços é a Requerente e não a entidade que prestou/forneceu os serviços.

 

O IVA liquidado pelos prestadores dos serviços e determinados bens foi-o, assim, indevidamente, já que estas entidades não são, em relação a estes serviços e bens, sujeitos passivos de IVA.

 

Nada há, pois, a opor ao entendimento da AT quanto ao IVA não ser devido pela prestadora de serviços e parte dos bens, mas sim pela Requerente.

 

Mas será que tal determina a obrigatoriedade de a Requerente entregar o IVA ao Estado, quando o IVA em causa já foi pago pela Requerente aos prestadores/fornecedores de serviços e bens e estes já o entregaram ao Estado?

 

Desde já adiantamos que entendemos que não.

 

É certo que, pela simples análise da letra da lei, estaria a Requerente obrigada a autoliquidar o IVA devido pela aquisição de serviços e bens abrangida pela regra da inversão, o que não fez.

 

Mas tal não pode determinar a obrigatoriedade de a Requerente liquidar e entregar novamente o IVA devido ao Estado, sob pena de enriquecimento indevido por parte do Estado.

 

Embora sobre a possibilidade de dedução de IVA indevidamente liquidado, mas inteiramente aplicável à hipótese dos autos, tem vindo a jurisprudência comunitária a defender que o princípio da neutralidade do IVA exige que a dedução do IVA pago a montante seja concedida se os requisitos substanciais tiverem sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais – neste sentido, entre outros, acórdãos do TJUE de 08/05/2008, Ecotrade, C-95/07 e C-96/07.

 

Concluindo-se naqueles arestos, entre outros, que “uma vez que a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das transacções em causa, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito a dedução, condições adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito”.

 

No caso dos autos, pese embora a Requerente não possa deduzir o IVA indevidamente liquidado, o que nem sequer é questionado, parece evidente que a liquidação indevida por parte do prestador de serviços não pode, quando nenhuma outra razão o imponha, determinar a imposição à Requerente do pagamento em duplicado do IVA, como pretendido pela Requerida.

 

Sobre esta questão pronunciou-se por diversas vezes o TJUE, concluindo que “os artigos 167.º, 168.º e 178.º da Directiva 2006/112 devem ser interpretados no sentido de que se opõem à aplicação retroactiva de uma legislação nacional que, no âmbito de um regime de autoliquidação, subordina a dedução do IVA relativo a prestações de serviços de construção à rectificação das facturas relativas às referidas operações e à apresentação de uma declaração complementar rectificativa, apesar de a autoridade fiscal em causa dispor de todos os dados necessários para demonstrar que o sujeito passivo é devedor do IVA, enquanto destinatário das operações em causa, e para verificar o montante do imposto dedutível” – cfr., entre outros, acórdão de 30/10/2010, C-392/09.

 

No caso dos autos, a Requerida tem na sua posse – ou pelo menos pode ter – todos os elementos que lhe permitem aferir que a Requerente se encontra obrigada a proceder à autoliquidação e pagamento do IVA referente às prestações de serviços de construção civil, bem como para confirmar que tal IVA foi liquidado, ainda que indevidamente, pelas prestadoras de serviços e bens e que foi entregue ao Estado.

 

Pelo que, ainda que tenha havido, como se verifica, omissão de formalidades – por o IVA ter sido liquidado por quem não é sujeito passivo -, tal omissão não é apta, in casu, a determinar a obrigatoriedade de a Requerente pagar novamente o IVA indevidamente liquidado.

 

Ademais, tendo a Requerente pago o IVA devido pelas prestações de serviços em causa, ainda que indevidamente liquidado por outrem, não se verifica qualquer prejuízo para o erário público, não existindo, assim, qualquer motivo que justifique desconsiderar a liquidação e pagamento de imposto já efetuado e exigir à Requerente um segundo pagamento.

 

Qualquer outra interpretação violaria de forma flagrante o princípio da neutralidade fiscal, bem como os artigos 167º, 168º e 178º da Diretiva IVA, representando, ademais, uma duplicação de coleta, não admitida por lei.

 

Donde resulta a ilegalidade das liquidações adicionais de IVA impugnadas, na parte em que liquidam IVA já liquidado pelos prestadores de serviços e fornecedores de bens, ainda que indevidamente, pago pela Requerente e entregue ao Estado, por violação do princípio da proporcionalidade, da capacidade contributiva e da neutralidade fiscal, bem como dos artigos 167º, 168º e 178º da Diretiva IVA, impondo-se, pois, a sua anulação.

 

Em consequência, encontra-se, como está bom de ver, a Requerida obrigada a repor a situação que existiria caso o ato anulado não tivesse sido praticado - cfr. artigo 100º da LGT.

 

No caso dos autos, caso o ato anulado não tivesse sido praticado, a Requerente não teria pago os valores liquidados adicionalmente a título de IVA, que se vieram a revelar ser indevidos, por ilegais, pelo que, em face da anulação do ato, terá a Requerida de ser condenada a reembolsar os valores indevidamente pagos pela Requerente, assim repondo a situação existente se o ato anulado não tivesse sido praticado.

 

Peticiona ainda a Requerente a condenação da Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios, à taxa legal.

 

Sobre os juros indemnizatórios, dispõe o artigo 43º nº 1 da LGT:

 

“São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

 

Dispondo, por seu turno, a alínea c) do número 3 do mesmo preceito serem também devidos juros indemnizatórios:

 

“Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”

 

Conforme tem vindo a ser entendido pela jurisprudência[1], nos casos em que, na sequência de pedido de revisão oficiosa apresentado pelo sujeito passivo, o ato de liquidação venha a ser anulado, ainda que em processo arbitral instaurado na sequência do indeferimento do pedido de revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano, contado da data da apresentação do pedido.

 

Sobre esta questão, pronunciou-se o STA, em acórdão uniformizador de jurisprudência [2], tendo sido decidido:

 

“Pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação (cfr.artº.78, nº.1, da L.G.T.) e vindo o acto a ser anulado, mesmo que em impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação daquele pedido, e não desde a data do pagamento da quantia liquidada, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, al.c), da L.G.T.”

 

Dos autos não resulta a data em que foi apresentado o pedido de revisão oficiosa, apenas sendo possível constatar, pelo número que lhe foi atribuído, que o mesmo foi apresentado no ano de 2023.

 

No entanto, não tem o tribunal elementos para apurar se nesta data já decorreu um ano desde a data da apresentação do pedido de revisão oficiosa, pelo que o pedido de condenação da Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios terá de improceder.

 

  1. DISPOSITIVO:

 

Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado e em consequência:

  1. Declarar a ilegalidade das liquidações adicionais de IVA referentes ao exercício de 2019, com os números 2022..., 2022... e 2022...;
  2. Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente do montante indevidamente pago;
  3. Absolver a Requerida do pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

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A Requerente indicou como valor da causa € 10.483,74, correspondente à diferença entre o valor total que a AT, na sequência do procedimento inspetivo, concluiu encontrar-se em falta (€ 14.183,88) e o valor que a Requerente entende ser devido (€ 3.700,14).

Pese embora a Requerida não se tenha oposto ao valor indicado, verifica-se que o valor das liquidações impugnadas e cuja declaração de ilegalidade é peticionada, ascende a € 12.830,29, valor que, nos termos do disposto no artigo 97.º-A do CPPT deve ser atendido para efeitos de fixação do valor da causa.

Assim, fixa-se o valor do processo em € 12.830,29, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

***

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I da Tabela Anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 1 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar na íntegra pela Requerida, por ser a parte vencida, atenta a imaterialidade do pedido no qual a Requerente decaiu.

 

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Registe e notifique.

 

 

Lisboa, 11 de setembro de 2024.

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O Árbitro,

 

 

Alberto Amorim Pereira

 

 



[1] Neste sentido veja-se, entre outros, acórdão do STA de 11DEZ2019, processo nº 058/19.9BALSB, in www.dgsi.pt.

[2] Acórdão de 29JUN2022, processo nº 093/21.7BALSB, in www.dgsi.pt.