Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 323/2024-T
Data da decisão: 2024-09-11  IRS  
Valor do pedido: € 104.094,05
Tema: Residentes não habituais
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SUMÁRIO:

As liquidações de IRS são, num primeiro momento, baseadas integralmente nas declarações dos sujeitos passivos.

Liquidações de valor diferente têm que resultar de decisão fundamentada, tomada em procedimento próprio, com observância das formalidades legais prescritas.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., NIF ..., e sua mulher B..., NIF..., ambos residentes na ..., n.º ..., ..., ...-... Alcabideche, vieram, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I – RELATÓRIO

 

  1. O pedido

 

Os Requerentes impugnam parcialmente as liquidações de IRS n.ºs 2021..., 2021..., 2022..., 2023..., relativas aos períodos de tributação de 2019 a 2022, respetivamente.

A impugnação circunscreve-se à não aplicação do método de isenção aos rendimentos inscritos nos quadros 9.2A, do anexo J (alienação onerosa de partes sociais e outros valores mobiliários realizadas no estrangeiro) das declarações modelo 3 de IRS por eles apresentadas.

Peticionam a devolução dos montantes de imposto indevidamente pagos acrescidos de juros indemnizatórios.

 

b) O litígio

 

Os Requerentes alegam ter declarado, para efeitos de IRS, mais-valias mobiliárias obtidas por cada um deles nos Estados Unidos nos anos em causa. Apesar de as declarações apresentadas estarem corretas, as liquidações ora impugnadas não consideraram a isenção de que tais rendimentos gozam, ao abrigo do Regime dos Residentes Não Habituais. O que – creem – se terá devido a um lapso informático.

Na pendência da ação, a Requerida veio dar razão parcial aos Requerentes, revogando parcialmente as liquidações em causa, como adiante se indicará. Resta, pois, apreciar a parte das liquidações impugnadas que não foi anulada administrativamente.

 

c) Tramitação Processual

 

O pedido foi aceite em 08/03/2024.

Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 17/05/2024.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

Em 21/06/2024, os Requerentes, na sequência da revogação administrativa de parte das liquidações impugnadas, apresentaram requerimento solicitando a manutenção da instância.

Por despacho de 22/08/2024, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.

 

  1. Saneamento

 

Não foram alegadas exceções nem detetadas questões suscetíveis de impedir o conhecimento do mérito.

 

 

  • PROVA

 

II.1 – Factos Provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. Ambos os Requerentes estão abrangidos pelo Regime dos Residentes não Habituais desde 2018.
  2. Ambos os Requerentes têm a nacionalidade norte-americana.
  3. Os Requerentes procederam, oportunamente, à entrega das declarações de rendimentos, Modelo 3 de IRS, relativas aos anos de 2019 a 2022.
  4. Nos anos em causa, os Requerentes obtiveram no estrangeiro, entre outros rendimentos, mais-valias mobiliárias de fonte norte-americana, as quais declararam no quadro 9.2 A do Anexo J das mencionadas declarações Modelo 3, identificadas com o código G01 (“Alienação onerosa de ações/partes sociais”).
  5. Em virtude do estatuto RNH de que beneficiam, os Requerentes, em tais declarações, assinalaram a opção pelo método da isenção no que respeita à eliminação da dupla tributação internacional – quadro 6C do Anexo L.
  6. Ao proceder às liquidações, a administração fiscal não considerou tais mais-valias como estando isentas, incluindo as liquidações impugnadas o valor de imposto decorrente de tais rendimentos.
  7. Os Requerentes procederam ao pagamento das liquidações de imposto em apreço.
  8. Em 26 de Outubro de 2023, os Requerentes apresentaram pedido de revisão oficiosa das liquidações de IRS em referência, mantendo-se o silêncio administrativo para além do prazo legal.
  9. Em 26.05.2024, a AT procedeu à revogação parcial das liquidações impugnadas, determinando que “(…) as quantias controvertidas, inscritas no quadro 9.2A, do anexo J, das declarações modelo 3 vigentes, imputadas ao contribuinte A..., NIF..., beneficiarão do método de isenção peticionado. Já no que concerne aos montantes imputados à contribuinte B..., NIF..., tão somente as quantias inscritas quadro 9.2A, do anexo J, da declaração modelo 3 vigente de 2019, poderão beneficiar do método de isenção.”
  10.  Tendo, posteriormente, entendido, por despacho de 04.06.2024, e no que concerne à segunda Requerente, que “(…) o novo passaporte confirma a nacionalidade americana da contribuinte, durante o ano de 2022. O que significa que não milita qualquer óbice à aplicação do método de isenção peticionado, aos rendimentos controvertidos na petição inicial apresentada, imputados à contribuinte B..., referentes à liquidação do ano de 2022.”
  11. Por último, afirmou a AT: “No que concerne aos atos de liquidação de IRS n.ºs 2021... e 2022..., referentes aos períodos de tributação de 2020 e 2021 e no que concerne em exclusivo à 2.º Requerente, como salientam as pronúncias da DSIRS juntas aos autos, que damos por integralmente reproduzidas, a aludida Requerente não logra fazer prova da detenção da nacionalidade americana nos aludidos anos, pelo que não pode beneficiar da aplicação do método de isenção peticionado, aos rendimentos controvertidos no PPA apresentada e a si imputados”.

 

 

 

II.2 - Factos não provados

 

Não existem factos dados como “não provados” relevantes para a decisão da causa.

 

 

 

 

III - O DIREITO

 

Dada a revogação administrativa de parte significativa das liquidações impugnadas, apenas cabe a este tribunal apreciar a sua manutenção relativamente às mais-valias em causa obtidas pela segunda Requerente nos anos de 2020 e 2021.

O único fundamento invocado pela AT para a manutenção de tais liquidações (invocado a posteriori – note-se -, porque apenas em sede de reapreciação administrativa da questão, já na pendência da presente ação arbitral) é o de que a Requerente não fez prova da sua nacionalidade nos anos de 2020 e 2021.

 

Apreciando:

Desde logo, parece-nos evidente a fragilidade intrínseca de tal argumentação: a nacionalidade, diferentemente da residência fiscal, não é algo que se “tenha” num ano, se “perca” no ano seguinte e se recupere dois anos depois. Especialmente uma nacionalidade   tão difícil de obter como é, notoriamente, a dos Estados Unidos da América. Fazer equivaler a falta de renovação atempada de um passaporte à suposição da perda da nacionalidade é algo que, sem mais, o senso comum não aceita.


A questão que se coloca é de resolução à luz das regras do ónus da prova: os Requerentes, nas declarações que apresentaram, invocaram a isenção de IRS relativamente às mais-valias em causa. Se a AT pretendia liquidar um montante de imposto que não correspondia ao resultante das declarações apresentadas (se pretendia desconsiderar a isenção invocada pelos Requerentes), teria que o fazer através de procedimento próprio, fundamentando a sua decisão e, antes de esta se tornar efetiva, dá-la a conhecer aos Requerentes para efeitos de audição prévia.

Tal não aconteceu porquanto – admitimos a realidade desta explicação – as liquidações em causa terão sido processadas automaticamente pelo sistema informático, não tendo sequer sido considerada por este a declaração, feita pelos Requerentes, de estarem em causa rendimentos isentos ao abrigo do Regime dos Residentes não Habituais. 

 

A verificação dos pressupostos legais de tal isenção não parece oferecer dúvidas.

Estabelece o artigo 81.º, n.º 5, do Código do IRS: “Aos residentes não habituais em território português que obtenham, no estrangeiro, rendimentos (…) das categorias E, F e G, aplica-se o método da isenção, bastando que se verifique qualquer uma das condições previstas nas alíneas seguintes: a) Possam ser tributados no outro Estado contratante, em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado; (…)”.

 

Normalmente, a referência ao outro estado seria entendida como sendo este “o estado da fonte”. Porém, relativamente aos Estados Unidos, as CDT’s subscritas por este país conferem-lhe uma dupla legitimidade para tributar: enquanto estado da fonte (se tal for permitido pela convenção relativamente a esse tipo de rendimento) e, ainda, para efetuar uma tributação de base mundial relativamente aos seus nacionais (incluindo os não residentes e os rendimentos por estes obtidos fora dos Estados Unidos).

Tal direito à tributação dos EUA está previsto no artigo n.º 1, alínea b), do Protocolo anexo à CDT Portugal-EUA, que dela faz parte integrante, que consagra a designada “saving clause”.

Estão assim verificadas as condições legais para a isenção de tributação em IRS dos rendimentos em causa, o que a AT, aliás, não questiona, pois que expressamente o reconheceu ao revogar a maior parte das liquidações ora parcialmente impugnadas.

Improcedendo, pelas razões já explicitadas, as objeções relativas à prova de factos, há que concluir pela total procedência dos pedidos. O que torna inútil a apreciação das causas de pedir invocadas pelos Requerentes a título subsidiários (violação do princípio do inquisitório e vício de fundamentação).

 

Caberá à AT, em execução de sentença, no exercício das suas normais competências, apurar o montante de imposto indevidamente pago.

Embora não se questione a correção dos cálculos efetuados pelos Requerentes, o certo é que a quantificação do valor de imposto a ser anulado implica outros elementos que não simples operações aritméticas, o que impossibilita a sua determinação pelo tribunal.

 

IV – Juros indemnizatórios

 

Sendo as liquidações de IRS da responsabilidade da AT, a sua não conformidade com o declarado pelos sujeitos passivos, fora do quadro de um normal procedimento de liquidação adicional, configura um erro imputável aos serviços, o que confere aos Requerentes o direito a juros indemnizatórios nos termos do nº 1 do art. 43º da LGT.

Porém, para os casos de revisão oficiosa, a lei contém a regra especial, prevista no artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT: o direito a juros indemnizatórios apenas nasce quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido.

 Tendo o pedido de revisão sido apresentado em 26 de outubro de 2023 só serão devidos juros indemnizatórios se os respetivos pressupostos se mantiverem após 27 de outubro do corrente ano.

 

V – Decisão Arbitral

 

Termos em que se conclui pela total procedência dos pedidos, sendo anuladas parcialmente as liquidações impugnadas na parte do imposto, relativo a cada ano, correspondente aos rendimentos de mais-valias mobiliárias obtidas por cada um dos Requerentes nos Estados Unidos da América, em montantes a serem determinados pela Requerida em execução de sentença.

Acrescerá a obrigação de Requerida de ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais aplicáveis.

 

 

Valor: €104.094,05

 

Custas, no montante de €3.060,00, a cargo da Requerida por: (i) ter procedido à revogação administrativa de parte das liquidações impugnadas apenas após o termo do prazo previsto no art. 13ª, n. 1, do RJAT, dando assim causa ao funcionamento do tribunal; (ii) ter, no mais, decaído totalmente.

 

11 de setembro de 2024

 

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

 


Clotilde Celorico Palma

 

 


Jorge Belchior de Campos Laires