Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 883/2023-T
Data da decisão: 2024-09-27   Outros 
Valor do pedido: € 11.059,54
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário - Competência material do tribunal arbitral - Repercussão legal e económica - Legitimidade processual.
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SUMÁRIO: I - A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) reveste a natureza de imposto, dispondo o tribunal arbitral de competência material para apreciar a legalidade dos respectivos actos de liquidação. II - A Requerente não é sujeito passivo da CSR ou repercutido legal da mesma. A repercussão económica da CSR não é imposta ou sequer pressuposta, quer no seu regime regulador, quer por via do Código dos IECs para o qual remetem as respectivas normas de liquidação e pagamento. III - A legitimidade processual assente na existência de um interesse legalmente tutelado, impõe a coexistência da prova da repercussão económica a montante pelo adquirente e da não repercussão económica, por este, no preço dos bens e serviços por si fornecidos.

 

DECISÃO ARBITRAL

A..., LDA, com o número de identificação fiscal ...  e sede social em ..., ...-... Alenquer (doravante designada por “Requerente”), solicitou a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e no artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”).

I.       Relatório

O pedido formulado pela Requerente consiste na (i) declaração de ilegalidade e consequente anulação da decisão tácita de indeferimento do pedido de revisão oficiosa dos actos de liquidação do Imposto Especial de Consumo (IEC), na parcela referente à Contribuição de Serviço Rodoviário, dos períodos de Abril de 2019 a Dezembro de 2019, no valor de € 11.059,54 e (ii) o pagamento de juros indemnizatórios.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida por “AT” ou “Requerida”).

O Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 6 de Fevereiro de 2024.

Na sua resposta e envio do processo administrativo em 11 de Março de 2024, a Requerida apresentou defesa por impugnação e por excepção. Em 17 de Abril a Requerente pronunciou-se sobre a matéria de excepção suscitada pela Requerida.

A reunião prevista no artigo 18.º do RJAT foi realizada em 31 de Maio. A inquirição da testemunha indicada pela Requerente ocorreu em 4 de Julho. Nessa data, e tendo em vista a tramitação processual acordada, o prazo referido no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT foi estendido por 2 meses.

Ambas as Partes apresentaram alegações finais.

Posição da Requerente

No pedido de pronúncia arbitral a Requerente alega que:

  1. Em 28 de Abril de 2023 apresentou um pedido de revisão oficiosa, solicitando a anulação dos actos de liquidação da CSR referentes ao período de Abri a Dezembro de 2019, a qual foi liquidada pelo sujeito passivo e, posteriormente, repercutida à Requerente. A AT não se pronunciou sobre o pedido no prazo legal estabelecido para o efeito, tendo-se formado indeferimento tácito;
  2. Os fornecedores de combustível da Requerente, a «B..., LDA» e a «C..., SA», repercutiram, nas correspondentes facturas, a CSR referente a cada um desses consumos. A CSR entregue ao Estado pelos sujeitos passivos que introduziram o gasóleo no circuito económico foi única e exclusivamente suportada pela Requerente em última instância;
  3. A Requerente é o contribuinte de facto da CSR. As fornecedoras do gasóleo confirmaram que foi a Requerente a suportar a CSR;
  4. Não se identifica qualquer contraprestação destinada aos sujeitos passivos da CSR, a qual permita configurar este tributo como uma contribuição financeira. E verifica-se a ausência de qualquer contraprestação destinada aos contribuintes sobre quem recai o encargo da CSR - os repercutidos - que justifique a sua oneração com este tributo. Assim se concluindo que a CSR é um verdadeiro imposto;
  5. A Requerente é a titular legalmente protegida para solicitar a anulação e reembolso dos montantes da CSR indevidamente liquidados, nos termos dos artigos 9.º e 18.º da Lei Geral Tributária (LGT). Esse direito que lhe assiste é independente da modalidade da repercussão;
  6. Aquele que demonstrar ter suportado o encargo do imposto disporá de legitimidade processual para contestar a legalidade das liquidações de imposto, quer detenha ou não a qualidade de sujeito passivo;
  7. A Requerente não é ou não foi sujeito passivo, mas o encargo inerente ao pagamento da CSR foi-lhe repercutido. A CSR constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional tal como esta é verificada pelo consumo de combustíveis (Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto);
  8. Nos termos da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, o artigo 2.º do Código dos IECs foi alterado no sentido de consagrar a repercussão desses tributos. Trata-se do reconhecimento de que a repercussão sempre foi legal nos impostos especiais de consumo, para além de constituir uma prática implementada no mercado;
  9. É entendimento da AT que os sujeitos passivos da CSR não podem obter o reembolso dos montantes suportados a esse título, precisamente porque é prática uniforme e reiterada a sua repercussão na espera jurídica dos adquirentes de combustível fóssil;
  10. Na sequência do pedido de decisão prejudicial apresentado nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) pelo tribunal arbitral constituído no âmbito do processo n.º 564/2020-T, foi proferido o despacho do TJUE de 7 de Fevereiro de 2022 (“Vapo Atlantic”, Processo C-460/21);
  11. O TJEU decidiu que a CSR não prossegue “motivos específicos” na acepção do artigo 1.º n.º 2 da Directiva 2008/118 e, como tal, configura uma violação do direito da União Europeia;
  12. Impunha-se à AT determinar, no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, a anulação dos actos tributários sub iudice e proceder ao reembolso das quantias indevidamente suportadas pela Requerente a título de CSR.
  13. Verifica-se um erro imputável à AT, investindo a Requerente no direito ao recebimento de juros indemnizatórios calculados desde a data dos pagamentos indevidos.

 

Posição da Requerida

A Requerida apresentou contestação, tendo suscitado diversas excepções:

  1. Primeiro, a AT está vinculada à jurisdição dos Tribunais arbitrais nos termos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, encontrando-se o objecto dessa vinculação definido no artigo 2.º: “(…) que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos (…)”. No caso em apreço está em causa a apreciação da legalidade da CSR e respectivas liquidações, pelo que, tratando-se de uma contribuição e não de um imposto, as matérias sobre a CSR estão excluídas da arbitragem tributária, por ausência de enquadramento legal;
  2. Ainda que a competência material dos tribunais arbitrais fosse admissível, os actos de repercussão de CSR não estão contemplados na única potencial norma atributiva de competência a este Tribunal, a da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT. A qual dispõe que: "A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta";
  3. Ao tribunal arbitral está vedado pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos da sua liquidação. A repercussão não constitui um acto tributário e, no caso concreto, não estamos perante uma repercussão legal, mas antes uma repercussão meramente económica ou de facto;
  4. Segundo, estamos perante um imposto monofásico em que, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que criou a CSR, as matérias de liquidação, cobrança e pagamento da CSR, se regem pelo disposto no Código dos IEC. Apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo de produtos em território nacional e provem o pagamento do ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago. As liquidações de imposto são emitidas tendo como sujeito apenas estas entidades, estando-lhes, nos termos do Código dos IEC, reservado o direito a identificar tais actos de liquidação e a solicitar, em caso de erro, a sua revisão, com vista ao reembolso dos montantes cobrados;
  5. Os posteriores e múltiplos adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do acto tributário e consequente pedido de reembolso do imposto. Não sendo a Requerente sujeito passivo nos termos e para o efeito do disposto no artigo 4.º do Código dos IEC, não dispõe de legitimidade para apresentar nem pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral;
  6. Não sendo a Requerente a entidade responsável pela introdução no consumo, também não existe qualquer outra via pela qual esta assumiria a qualidade de parte legítima. No caso concreto, não está em causa uma situação de repercussão legal, dado que a repercussão da CSR tem uma natureza meramente económica ou de facto, perdendo a sua natureza de tributo aquando da eventual incorporação no preço de venda ao público pelo sujeito passivo;
  7. A repercussão económica da CSR depende da decisão dos sujeitos passivos, de, no âmbito das suas relações comerciais privadas, procederem, ou não, à transferência parcial ou total da carga fiscal para outrem (os seus clientes), tendo em conta a política de definição dos preços de venda e as consequências para a sua actividade no que respeita ao impacto na procura. Com efeito, os revendedores podem ter um interesse económico em suportar, através da diminuição do preço, o custo adicional gerado pelo agravamento da CSR;
  8. Não existe no âmbito da CSR um acto tributário de repercussão legal e autónomo do(s) acto(s) de liquidação de ISP/CSR, sendo que as facturas não corporizam actos de repercussão de CSR, apenas titulando operações de compra e venda de combustíveis. Ou seja, a venda não origina, obrigatoriamente, uma repercussão, uma vez que esta, conforme referido, depende da política de definição dos preços de venda pelo fornecedor;
  9. Adicionalmente, a Requerente, enquanto sociedade comercial que desenvolve uma actividade com fins lucrativos, repassa, necessariamente, no preço dos serviços que presta, os gastos em que incorre, o que inclui as aquisições de combustível. Pelo que as entidades potencialmente lesadas com o encargo da CSR serão os consumidores finais de tais serviços;
  10. No caso, a Requerente não consegue demonstrar que o valor pago pelos combustíveis adquiridos aos seus fornecedores inclui o valor da CSR pago pelo sujeito passivo da mesma, nem sequer que suportou, a final, o encargo desse tributo, i. e. que não o repassou no preço dos serviços prestados aos seus clientes. Não dispondo, assim, de legitimidade processual;
  11. Terceiro, não de demonstrando que a Requerente pagou os valores referentes à CSR, carece igualmente a mesma de interesse em agir. Não se verifica no caso em concreto a necessidade de tutelar qualquer direito legalmente protegido;
  12. Quarto, o pedido de pronúncia arbitral é inepto, dado que as transacções económicas, que ocorrem após a introdução no consumo, não têm por base um acto de liquidação, o que impede a identificação concreta do acto tributário subjacente. A Requerente limita-se a juntar facturas de aquisição de combustível, sem ser capaz de identificar quer o acto tributário subjacente quer o sujeito passivo da obrigação tributária;
  13. Não pode a AT suprir a falha relativa à identificação dos actos tributários, porquanto se revela impraticável estabelecer qualquer correspondência entre os actos de liquidação (que não foram identificados) praticados pelos sujeitos passivos de ISP/CSR (que igualmente se desconhecem) e o alegado pela Requerente;
  14. Também não é possível estabelecer qualquer correspondência entre as quantidades de gasóleo introduzido no consumo e as quantidades desse produto adquiridas pela Requerente. Isto, porque as introduções no consumo assentam em quantidades apuradas a 15 graus centígrados, ao passo que as posteriores alienações entre os diversos operadores económicos se realizam à temperatura observada. Pelo que, dependendo da temperatura, os valores facturados poderão ser inferiores ou (como será na maioria dos casos) superiores. Daqui decorrendo que, no limite, os litros vendidos e os correspondentes montantes de CSR que a Requerente alega ter suportado, serão, por isso, superiores às importâncias da CSR efectivamente liquidadas e pagas pelos sujeitos passivos dos IECs (considerando a temperatura a 15º centígrados);
  15. Sem a identificação dos actos de liquidação, não é possível sindicar a respetiva legalidade, pelo que nunca poderia o tribunal determinar a respetiva anulação total ou parcial;
  16. Quinto, a ausência dos actos tributários impede a aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa, dado que a contagem do prazo se inicia a partir do termos do prazo de pagamento dos IECs, tendo por referência a data do acto de liquidação;
  17. A Requerente funda o seu pedido na prática de um erro imputável à AT. Sucede que esta, estando vinculada ao princípio da legalidade e tendo liquidado os IECs em estrita observância do normativo aplicável, não incorreu em qualquer erro de facto ou de Direito;
  18. Sexto, o principal objecto social da Requerente, conforme o seu pacto social, é a indústria de transporte (CAE 49410 - transporte rodoviário de mercadorias). Desta forma, nos termos da repercussão que a própria Requerente invoca a seu favor, esta também repercutiu o valor que alega ter pago de CSR no preço dos serviços que prestou. Logo, quem suportou a CSR foi o seu cliente final, razão pela qual a Requerente carece não só de legitimidade processual, como também de legitimidade substantiva;
  19. O prazo para solicitar a devolução dos IECs está fixado em 3 anos (cfr. o n.º 3 do artigo 15.º do Código dos IECs), assim se constatando a caducidade do direito de acção.

Defendeu-se ainda por impugnação:

  1. A Requerente não logra fazer prova do que alega, designadamente, que pagou e suportou integralmente a CSR por repercussão. A prova de pagamento do tributo não pode assentar em juízos meramente presuntivos;
  2. As facturas anexas não contêm qualquer referência aos valores pagos a título de CSR. Acresce que não são apresentados elementos concretos, inclusive o quantum repercutido. Não se pode exigir à AT a prova de que não houve repercussão (facto negativo). A Requerente também não provou que o preço dos serviços que presta aos seus clientes não comporta, a jusante, a repercussão da CSR;
  3. É jurisprudência do TJUE que, ainda que fosse provada a repercussão do imposto a um dado adquirente de produtos sujeitos a IEC, o Estado-membro pode opor-se à devolução do imposto a esse adquirente, com fundamento no facto de este não ter pago o imposto e possa exercer uma acção cível de repetição do indevido contra o sujeito passivo.

A Requerente pronunciou-se pela improcedência das excepções invocadas pela Requerida

Nas alegações finais, as Partes mantiveram o que invocaram nos articulados anteriores.

Quanto ao depoimento da testemunha G..., a Requerente destacou ter ficado provada a repercussão da CSR. Já a Requerida salienta ter ficado demonstrado que a Requerente não é um consumidor final, pelo que não pode ter suportado o encargo da CSR.

  1. Saneamento

O tribunal arbitral é competente e foi regularmente constituído.

O processo não enferma de nulidades e as Partes dispõem de personalidade e capacidade judiciárias.

 

  1. Matéria de facto

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente desenvolve as actividades de transporte rodoviário de mercadorias;
  2. No período de 1 de Abril de 2019 a 31 de Dezembro de 2019, a Requerente adquiriu gasóleos rodoviários à «C..., SA» (doravante «C..., SA») e à «D... (Portugal), LDA» (anteriormente denominada «B..., LDA» e doravante «D..., LDA»);
  3. As duas referidas sociedades operaram como revendedores de combustível, que adquiriram a outos distribuidores ou revendedores (que não foram identificados no presente processo) e posteriormente revenderam à Requerente;
  4. Nenhuma das duas referidas sociedades é titular de um estatuto que lhes permita actuar como sujeito passivo de IECs e, concretamente, da CSR;
  5. As facturas que titulam as vendas à Requerente, e que foram por esta integralmente pagas, não contêm qualquer referência à CSR;
  6. O valor de € 11.059,54 corresponde à aplicação da taxa legal da CSR sobre as quantidades de gasóleo rodoviário adquirido pela Requerente;

Dado que a liquidação dos IECs tem por base a temperatura de 15º Celsius (n.º 1 do artigo 91.º do Código dos IECs) e não se conhece a temperatura observada no momento da aquisição dos combustíveis pela Requerente, o referido valor de € 11.059,54 não corresponde ao exacto valor que terá sido liquidado pelo sujeito passivo da obrigação tributária;

  1. Não foi identificado o sujeito passivo que emitiu as declarações electrónicas de introdução no consumo, a partir das quais foi liquidada a CSR cuja anulação e devolução constitui o objecto do pedido de pronúncia arbitral;
  2. A Requerente não é um consumidor final dos combustíveis adquiridos aos seus fornecedores, dado que tais produtos são utilizados no âmbito da sua actividade económica de transporte rodoviário de mercadorias;
  3. Em 28 de Abril de 2023 a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa, no qual, alegando a qualidade de repercutido legal e económico da CSR, peticionou a anulação da correspondente liquidação de imposto. Na ausência de resposta dentro do prazo legal previsto para o efeito, o pedido de revisão oficiosa foi considerado como tacitamente indeferido. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo;

 

Considera-se como não provado que:

  1. As facturas de aquisição de combustível permitem demonstrar que os sujeitos passivos de IECs (cuja identidade é desconhecida) liquidaram a CSR e repercutiram o correspondente valor aos posteriores intermediários do circuito económico.
  2. A Requerente suportou efectiva e integralmente o montante da CSR liquidada e paga pelos sujeitos passivos dos IECs.

Desde logo, porque, perante o desconhecimento da identidade dos sujeitos passivos, dos actos tributários por estes praticados e dos valores do imposto liquidado a 15º Celsius no entreposto fiscal (saída do regime suspensivo e simultânea introdução no consumo), soçobra a prova liquidação e pagamento do imposto no início do circuito económico. O que não permite efectuar qualquer juízo sobre ou demonstração da repercussão económica do imposto desde esses sujeitos passivos até à Requerente.

Segundo, a declaração emitida pela «D..., LDA» é manifestamente inidónea à comprovação do respectivo teor, concretamente na parte em que “declara que a A... liquidou o respetivo imposto a título da Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), que incide sobre os combustíveis”.

Estamos perante um revendedor cujo fornecedor não é conhecido (e a própria não identifica). Nem se sabe se tal fornecedor será ou não o sujeito passivo da obrigação tributária (a quem foi liquidado o imposto). Conforme resulta da prova testemunhal infra, a «D..., LDA» emite cartões frota que permitem o abastecimento em postos da rede «E...» e «F...», os quais, não sendo produtores, também terão adquirido os combustíveis a outras entidades que, mais uma vez, poderão ou não ser os sujeitos passivos da CSR.

Não se vislumbra a que título, com que conhecimento ou à luz de que factualidade, poderia a «D... LDA» declarar que a Requerente “liquidou o repetivo imposto”. A liquidação de um imposto constitui matéria reservada entre a AT e o sujeito passivo, que a «D..., LDA» nem sequer identifica, porventura porque - sendo um participante numa longa cadeia de comercialização entre os diversos revendedores que nela participam - nem a sua identidade conhecerá.

Em suma, não sendo sujeito passivo da CSR, não conhecendo a identidade desses sujeitos passivos e não conhecendo o valor liquidado pelos sujeitos passivos, a declaração emitida pela «D..., LDA» é manifestamente inidónea à prova da repercussão da CSR. Quer a montante (pelos seus fornecedores), quer a jusante (à Requerente).

Note-se que a «D..., LDA» nada declara sobre o valor que lhe terá sido liquidado, provavelmente porque não o conhecerá. E nem sequer declara que liquidou esse valor à Requerente. Referindo apenas, abstractamente e sem qualquer contexto, que a Requerente “liquidou”.

Por fim, note-se que, a pedido da Requerente, o Tribunal Arbitral notificou a «D..., LDA» e a «C..., SA», com vista à sua inquirição como testemunhas. Nenhuma respondeu ou compareceu na sessão de inquirição marcada para o efeito.

  1. A Requerente é um consumidor final, tendo suportado o encargo da CSR que lhe terá sido repercutida pelos seus dois fornecedores.

Não foi apresentada prova apta a demonstrar que, contrariamente à lógica inerente à prossecução de uma actividade económica, o custo dos combustíveis adquiridos aos seus fornecedores (que incluiria a repercussão económica da CSR que lhes teria sido previamente repercutida por outros revendedores ou pelos sujeitos passivos da obrigação tributária), não foi tido em conta no valor dos serviços prestados aos seus clientes.

Não sendo um consumidor final e prestando serviços de transporte rodoviário de mercadorias, o custo decorrente da aquisição de combustível representará uma parcela significativa dos custos totais suportados pela Requerente em resultado dos serviços prestados aos seus clientes. E não ficou minimamente demonstrado que tais custos não foram, no todo ou em parte, repercutidos no valor dos referidos serviços prestados pela Requerente aos seus clientes.

Tal ficou patenteado no depoimento da testemunha G..., que foi ouvida em 4 de Julho de 2024:

  • É filho do sócio-gerente da Requerente, da qual é funcionário há 10 anos;
  • A «C..., SA» é o principal cliente da Requerente, representando 95% da sua actividade de transporte de mercadorias;
  • A Requerente contactou, telefonicamente, por carta e por correio electrónico, os dois fornecedores. A «D..., LDA» emitiu a declaração junto aos autos. A «C..., SA» indicou, verbalmente, que “o imposto estava englobado no preço final” do gasóleo;
  • A «D..., LDA» é um emitente de cartões frota, os quais permitem a realização de abastecimentos na rede de estação com insígnia «E... » e «F... ».

Conforme resulta do depoimento, a «C..., SA» é o principal cliente da Requerente, representando 95% da sua actividade económica de transporte de mercadorias. Deste modo, mesmo assumindo que a «C..., SA» teria considerado o valor do imposto (que não é conhecido) liquidado pelo sujeito passivo (que também não é conhecido) nas facturas de venda de combustível à Requerente, é, naturalmente, expectável e crível que esta tenha considerado tal valor nas facturas de prestação de serviços à «C..., SA». Razão pela qual a eventual repercussão da «C..., SA» à Requerente conduziria a uma repercussão nova e de sentido inverso. Pelo que o encargo da CSR teria sido suportado, em 95%, pela «C..., SA».

 

Relativamente à fundamentação da matéria de facto supra, o tribunal não carece de se pronunciar sobre a totalidade dos factos alegados pelas partes, antes lhe cabendo o dever de recortar, de entre a matéria alegada, aquela que se afigura relevante para estabelecer os factos provados e não provados (n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e do artigo 607.º do Código de Processo Civil).

A prova foi seleccionada pela correspondente relevância para a decisão arbitral e assentou no processo administrativo remetido pela Requerida, nos documentos apresentados pela Requerente e no depoimento da testemunha.

 

  1. Matéria de direito

Tendo sido suscitadas diversas excepções, impõe-se o conhecimento prioritário das mesmas previamente à apreciação do mérito do pedido.

 

da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral

A Requerida alega a ineptidão do pedido, por não estarem identificados os actos tributários controvertidos, imputando à Requerente a mera indicação de facturas de aquisição de combustíveis as quais não configuram actos tributários e de que não resulta a prova de actos de repercussão de CSR.

Improcede esta excepção, por não se verificar qualquer uma das faltas plasmadas no artigo 186.º do CPC, subsidiariamente aplicável por força da alínea e) do artigo 2.º do CPPT e da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT: (i) quando seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, (ii) se o pedido estiver em contradição com a causa de pedir ou (iii) quando se acumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

Com efeito, a Requerente, partindo da (por si alegada) condição de repercutido da CSR previamente liquidada pelos respectivos sujeitos passivos, apresenta o pedido de anulação desses actos de liquidação, para o período de Abril de 2019 a Dezembro de 2019, e fundamenta a causa de pedir na aquisição de combustíveis cuja introdução no consumo preenche a incidência objectiva daquele imposto.

Pese embora a Requerente não seja sujeito passivo da CSR, o normativo aplicável (concretamente o artigo 9.º do CPPT) admite que da repercussão de um imposto possa advir a necessidade de tutelar um interesse legalmente protegido e, por esse motivo, confere ao repercutido o direito de reacção, por via administrativa e judicial, contra essa repercussão.

Assim, nada obsta a que a Requerente apresente um pedido de revisão oficiosa e um pedido de pronúncia arbitral contra a repercussão da CSR, suportados nos únicos elementos que lhe é permitido conhecer (as facturas de aquisição de combustíveis). Impor-lhe o conhecimento dos actos tributários da CSR, a cuja liquidação e pagamento a mesma é alheia, corresponderia ao esvaziamento da tutela legal do direito que lhe assiste.

Reconhece-se a evidente dificuldade (senão mesmo impossibilidade) da Requerida em identificar os actos de liquidação, atento os elementos subjectivos (identificação dos sujeitos passivos e longa cadeia de comercialização) e objectivos (liquidação e pagamento da CSR) em falta. Todavia, daqui não decorre que essa mesma onerosidade possa ser imputada à Requerente, sob pena de, como vimos, se inutilizar a tutela legal do seu direito à sindicância da legalidade dos actos tributários.

Acresce que a falta de identificação dos actos tributários não impediu o exercício do contraditório, no qual a Requerida manifestou a compreender o teor e alcance do pedido formulado pela Requerente.

 

da incompetência material do tribunal arbitral

A CSR, instituída pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, assentou na autonomização de uma parcela do ISP, cujo valor foi consignado à «EP - Estradas de Portugal, SA» (o Decreto-Lei n.º 374/2007, de 7 de novembro, transformou a «Estradas de Portugal E.P.E.» na «EP - Estradas de Portugal, S.A.» e o Decreto-Lei nº 91/2015 de 29 de maio, operou a incorporação por fusão desta na « REFER, E.P.E.» que é transformada em sociedade anónima, passando a denominar-se «Infraestruturas de Portugal, S.A.»), tendo em vista a concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional. O artigo 3.º da referida Lei apresenta a CSR como a contrapartida pela utilização desse rede rodoviária, verificada a partir do consumo de combustíveis rodoviários (gasolinas, gasóleos e GPL de carburação). A CSR apoia-se no Código dos IECs para efeitos de estabelecimento da incidência subjectiva e objectiva, a par das regras de liquidação e pagamento.

 

Para a qualificação da CSR como imposto, seguimos de perto a decisão arbitral n.º 304/2022-T, de 5 de Janeiro de 2023, cujo sentido e decisão subscrevemos:

«Baseando-nos em todas os anteriores contributos jurisprudenciais e doutrinários, mas sobretudo no último acórdão citado do STA, concluímos que não é o simples facto de um tributo ter, desde logo, a designação de “contribuição” (ac. TC n.º 539/2015) e nem o facto de esse tributo ter a respetiva receita consignada (ac. TC n.º 232/2022), que o qualifica automaticamente como “contribuição financeira”; antes é, para tal, necessário, como judicia o STA, que esse tributo tenha com finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.” Com efeito, o sistema tributário comporta tributos que têm a designação de “contribuições” e são verdadeiros impostos, como se extrai, desde logo, do n.º 3 do art.º 4.º da LGT. Por outro lado, o sistema tributário comporta igualmente impostos que, ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos (estabelecido no art.º 7.º da Lei de Enquadramento Orçamental), têm a sua receita consignada (vg. ac. TC n.º 369/99, de 16.06.1999, proc. 750/98). Por conseguinte, nem o nomen juris “contribuição”, nem a afetação da receita a uma finalidade específica são suficientes para qualificar um tributo como “contribuição financeira”. O elemento decisivo para essa qualificação é a existência de uma estrutura de comutatividade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita e os sujeitos passivos do tributo. […] Ou seja, para que possamos afirmar estar-se perante uma “contribuição financeira”, é necessário que as prestações públicas que constituem a contrapartida coletiva do tributo beneficiem ou sejam causadas pelos respetivos sujeitos passivos. […] Entendemos, assim, que o que distingue uma “contribuição financeira” de um imposto de receita consignada é a necessária circunstância, de, na primeira, a atividade da entidade pública titular da receita tributária ter um vínculo direto e especial com os sujeitos passivos da contribuição. Tal vínculo pode consistir no benefício que os sujeitos passivos, em particular, retiram da atividade da entidade pública, ou pode consistir num nexo de causalidade entre a atividade dos sujeitos passivos e a necessidade da atividade administrativa da entidade pública. A Contribuição de Serviço Rodoviário não cabe em nenhuma destas hipóteses. Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6.º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP - Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 55/2007). Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa - que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” - é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.” Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial - a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. - não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade. A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1.º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2.º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento. No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4.º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos. (…) Nos termos do n.º 1 do art.º 20.º da LGT, “a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte”. Para que estivéssemos, no caso presente, perante uma situação de substituição tributária, era necessário que os consumidores que pagam o preço dos combustíveis aos revendedores estivessem na posição de “contribuintes”. Sobre o conceito de contribuintes, o n.º 3 do art.º 18.º diz que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.” De onde se retira que o contribuinte é uma das espécies da categoria “sujeitos passivos” e estes são as pessoas (ou entidades) que estão obrigadas ao pagamento da prestação tributária, o que não acontece com os consumidores dos combustíveis. Concluímos, assim, que não estamos perante uma situação de substituição, pelo que os sujeitos passivos da CSR são igualmente os respetivos contribuintes diretos. Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede. Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira. […]».

 

A Requerida argumenta adicionalmente que ao tribunal arbitral está vedado pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos da sua liquidação. A repercussão não constitui um acto tributário e, in casu, não estamos perante a figura da repercussão legal.

Convocando a decisão arbitral n.º 987/2023-T, que igualmente subscrevemos:

«Como é sabido, é pelo critério do pedido que se afere a competência de um tribunal. Nesta sede, puramente formal, irrelevam assim quaisquer considerações em torno da viabilidade substancial da pretensão deduzida, as quais apenas deverão aferidas na fase do julgamento da causa. Assim, não se verificará aquele apontado vício da instância se a pretensão concretamente deduzida, apreciada em abstrato e alheando-se de qualquer avaliação do seu mérito, couber no quadro das competências jurisdicionais do tribunal em que a ação pende. No caso presente não subsistem dúvidas de que a pretensão deduzida - de resto, de modo bastante claro e sem qualquer ambiguidade ou equivocidade - é a de invalidação de atos de liquidação da CSR, com fundamento em que o conteúdo exatório desses atos foi repercutido na esfera jurídica da requerente e assacando-se-lhes um vício que, de acordo com a argumentação sufragada, seria causa da respetiva ilegalidade. Para apreciar a competência do tribunal é indiferente, portanto, saber se o vício invocado procede quer no que diz respeito à existência efetiva dos seus elementos constitutivos quer mesmo no que diz respeito ao efeito invalidante que se lhe atribui - tudo isso pertence já ao conhecimento da questão de fundo - ou se a requerente tem legitimidade adjetiva para o invocar em juízo, matéria que subingressará já no quadro da apreciação da exceção de ilegitimidade. Ora, a jurisdição arbitral tributária é competente para conhecer de pretensões relativas à “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos” [art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT]. Tanto basta, assim, para concluir pela manifesta improcedência da exceção de incompetência com este fundamento, na medida em que o que se peticiona não é a declaração de ilegalidade dos atos de repercussão, mas antes a declaração de ilegalidade de atos de liquidação da CSR cujos efeitos foram alegadamente repercutidos na esfera da requerente, pretensão que claramente se compreende no âmbito material da jurisdição arbitral tributária».

Assim se concluindo pela improcedência desta excepção.

 

da ilegitimidade da requerente

Sumariamente, a Requerente alega que a CSR, liquidada pelos sujeitos passivos, lhe foi repercutida nas facturas de fornecimento de combustível. Foi a Requerente que, exclusivamente e em última instância, suportou o encargo da CSR.

Estamos perante a figura da repercussão legal, tendo em vista o disposto no artigo 2.º do Código dos IECs

Antecipando a conclusão, entendemos que não lhe assiste razão e que procede a excepção de ilegitimidade invocada pela Requerida.

Vejamos.

 

O CPPT consagra uma norma específica à legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT). Em linha com o artigo 65.º da LGT: “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.

Sendo indisputável que a Requerente não é sujeito passivo em sede de IEC, a sua legitimidade processual e substantiva terá de se fundar na repercussão legal ou económica do imposto.

Apesar de o repercutido legal não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, determina que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”. O repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição necessária à sua intervenção em juízo.

Sucede, que a Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, não estabelece qualquer mecanismo de repercussão legal deste imposto. Limita-se a identificar os sujeitos passivos da obrigação tributária e o objecto do imposto. E, por remissão para o Código dos IECs (no seu n.º 1 do artigo 5.º), o facto gerador da obrigação tributária, o momento da exigibilidade da mesma, a liquidação e o pagamento.

Em momento algum se determina a entidade que, ao longo da cadeia de comercialização dos combustíveis sujeitos a CSR, deve suportar o valor do imposto liquidado e pago. Não se institui um mecanismo de repercussão legal - como sucede com uma retenção na fonte ou o Imposto sobre o Valor Acrescentado - e nada se refere quanto à obrigatoriedade de repercussão económica.

É sabido que, em obediência à finalidade lucrativa a que preside a sua actividade, os operadores económicos procuram repassar os custos em que incorrem. Todavia, um tal comportamento - que sempre careceria de demonstração e concretização - não se funda na observância de uma norma que, à semelhança das regras de liquidação do IVA ou do mecanismo da retenção na fonte, imponha uma repercussão legal. Esta, a existir, teria de constar de uma norma habilitadora, a qual não existe.

 

Salienta-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão de 1 de Outubro de 2023, Processo n.º 956/03): “O imposto automóvel é devido pelo requerente da atribuição de matrícula nacional ao respectivo veículo automóvel (…) pelo que que tem o mesmo legitimidade para deduzir impugnação judicial contra a respectiva liquidação, dada a sua qualidade de sujeito passivo da relação jurídica tributária, aliás como contribuinte directo - artºs 9 n° 1 e 4 do CPPT e 18 n° 3 da LGT. (…) O terceiro adquirente do veículo não é, como se disse, um sujeito passivo nem contribuinte (…). Nada importando a eventual repercussão do imposto na venda do mesmo, a que, a lei, nos preditos termos, não atribui, qualquer relevância legal para retirar legitimidade ao dito sujeito passivo e contribuinte”.

 

A Requerente transcreve o artigo 2.º do Código dos IECs, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro: “Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.

E o artigo 6º da citada Lei nº 24-E/2022 estabelece que: “A redação conferida pela presente lei ao artigo 2.º do Código dos IEC tem natureza interpretativa.

Estamos perante uma norma que, apresentando-se como interpretativa, é claramente inovadora. E cuja aplicação a factos anteriores estaria ferida de inconstitucionalidade, por violação do princípio da irretroactividade material, conforme decorre do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 25 de Janeiro de 2021:

A retroatividade inerente às leis interpretativas é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição”.

Acresce que a estrutura basilar do IEC - assente na liquidação monofásica do imposto, no momento em que ocorre a saída de um regime suspensivo e com absoluta independência de uma transacção económica - não se presta, por mero comando legal, a uma repercussão total e plena. Por muito que uma qualquer solução legal o deseje, não é possível estabelecer uma linha de traçabilidade, causal e directa, entre a obrigação de liquidação do IEC e as posteriores e sucessivas etapas de comercialização dos combustíveis. Basta aliás atentar na unidade de medida de 15º, que apenas ao sujeito passivo seria possível conhecer.

Em suma, estamos perante uma norma claramente inovadora e, como tal, apenas aplicável ex nunc.

 

Ao não revestir a qualidade de sujeito passivo de CSR ou de repercutido legal, a legitimidade processual da Requerente exige a demonstração de um interesse legalmente protegido, nos termos dos n.º 1 e n.º 4 do artigo 9.º do CPPT.

Sucede que a Requerente baseia a sua intervenção processual na alegação de lhe ter sido repercutida a CSR pelas empresas fornecedoras de combustíveis, caracterizando-se como um consumidor de combustíveis que suporta (a final) o encargo daquele tributo.

O que nos conduz ao probatório.

Não constituindo uma imposição legal, a repercussão económica dependerá das políticas comerciais adoptadas pelos diversos agentes económicos intervenientes no circuito de comercialização. O qual é mais longo do que aquele que é representado pela Requerente, dado que ambos os fornecedores operam como revendedores de combustível.

Não estando o sujeito passivo (não identificado nos autos) obrigado à repercussão legal do encargo inerente à CSR por si declarada nas introduções no consumo (que originam as liquidações de imposto e consequente pagamento), a repercussão será o resultado das políticas comerciais que, em cada momento, forem sendo livremente praticadas por e entre os diversos operadores.

Não se podendo pressupor ou inferir, legal ou economicamente, que cada um dos intermediários do circuito de comercialização repercute, no todo ou em parte, o valor da CSR liquidado ao sujeito passivo que inicia o circuito de transmissão onerosa de combustíveis sujeitos a imposto, tudo se resume aos meios de prova juntos aos autos e a respectiva aptidão à demonstração, de facto, dessa repercussão.

Ora, o probatório estruturado pela Requerente consiste na junção de facturas que nada permitem concluir pela liquidação da CSR a montante. Na verdade, apenas se poderá presumir que os sujeitos passivos (não identificados) terão satisfeito essa sua obrigação tributária, sob pena de incumprimento.

Nada se sabe sobre a repercussão económica do encargo da CSR pelo sujeito passivo e/ou intermediários que precedem os revendedores. A inexistência de informação sobre o valor que eventualmente terá sido repercutido a estes revendedores, preclude qualquer conclusão quanto à repercussão - por estes - à Requerente.

Adicionalmente, e conforme resultou da prova testemunhal, a actividade económica da Requerente consiste na prestação de serviços de transporte de mercadorias que, no período a que se reporta o fornecimento de combustível em 2019, foram quase exclusivamente prestados à «C..., SA».

Ou seja, a aceitar-se que a «C..., SA» teria repercutido o valor da CSR nas facturas de venda de combustível à Requerente, de modo a repassar os custos que teria suportado na aquisição desse combustível a outros revendedores (onde poderia ou não constar o sujeito passivo), igualmente se teria de consentir que a Requerente teria voltado a repercutir esse mesmo custo no valor das facturas de prestação de serviços à «C..., SA».

Isto, porque, contrariamente ao que alega, a Requerente não é um consumidor final dos combustíveis que adquire, dado que os utiliza como recurso na prossecução da sua actividade comercial de transporte de mercadorias.

A Requerente não juntou elementos probatórios que permitam concluir que o encargo inerente à CSR, a ter-lhe sido integral ou parcialmente repercutido - que, como vimos supra, não se pode dar por estabelecido - não foi também por esta repercutido, total ou parcialmente, aos seus clientes. Sendo que estes, atento o objecto social da Requerente, também serão operadores económicos (e não consumidores finais).

Pelo exposto, a Requerente não logrou demonstrar nem a repercussão económica da CSR nos combustíveis por si adquiridos, nem a ausência de repercussão desse valor nos preços por si praticados.

Acresce que a liquidação da CSR se efectua à unidade de medida de 15º Celsius (n.º 1 do artigo 91.º do Código dos IEC). Todavia, a posterior comercialização a revendedores e por estes à Requerente baseou-se na temperatura observada, a qual não é conhecida.

Quer isto dizer que nem sequer é possível estabelecer, ao contrário do que alega a Requerente, que a CSR foi liquidada no valor de € 11.059,54. Esta importância resulta da mera aplicação da taxa da CSR às quantidades facturadas pela «D..., LDA» e «C..., SA» à Requerente, o que, por efeito de temperatura, não poderá corresponder ao imposto liquidado (que poderá ter sido superior ou inferior ao valor indicado pela Requerente).

O que constituirá um dos fundamentos pelo qual o artigo 15.º do Código dos IEC reserva a legitimidade activa aos sujeitos passivos, que, por participação directa na liquidação do imposto, dispõem da informação e documentação necessárias à aferição da factualidade e legalidade.

Note-se que à Requerida não pode ser imposto o conhecimento da relação causal entre as liquidações da CSR por si realizadas e as diversas facturas emitidas pelos operadores que intervêm no circuito económico. Desde logo, porque tal implicaria a identificação de todo o circuito económico que precede a comercialização dos combustíveis à Requerente até alcançar o sujeito passivo do imposto. Acresce que, como bem alegada a Requerida, os abastecimentos podem ter sido realizados a partir de diferentes entrepostos fiscais, com intervenção de diferentes sujeitos passivos. À Requerente era exigível um impulso probatório mínimo que, pelo menos, permitisse a identificação do(s) sujeito(s) passivo(s).

Em suma, no pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alega, correctamente, que aquele que demonstrar ter suportado o encargo do imposto terá legitimidade procedimental para contestar a legalidade das liquidações, detenha ou não a qualidade de sujeito passivo.

No entanto, a Requerente não demonstrou que a CSR lhe foi repercutida e, muito menos, que suportou a CSR contra a qual reage. E esta seria a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade para o presente pedido de pronúncia arbitral (dado não ser sujeito passivo nem repercutido legal da CSR).

Mesmo a aceitar-se que o encargo representado pela CSR poderia ter sido repercutido ao longo do circuito económico, certo é que a Requerente, ao não se apresentar como consumidor final, não pode subsumir-se ao conceito de entidade potencial ou efectivamente lesada pela repercussão económica. Em rigor, a Requerente é apenas um de entre os vários operadores no circuito económico entre o sujeito passivo e o consumidor final.

 

  1. Decisão

Face ao exposto, o tribunal arbitral decide julgar procedente a excepção de ilegimitidade activa da Requerente, o que obsta à apreciação do mérito do pedido e determina a consequente absolvição da Requerida da instância.

 

  1. Valor do Processo

Fixa-se ao processo o valor de € 11.059,54 indicado pelo Requerente como respeitante ao montante da CSR cuja anulação pretende (valor da utilidade económica do pedido) e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

  1. Custas

Custas no montante de € 918,00 (novecentos e dezoito euros), a suportar integralmente pela Requerente, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.

Lisboa, 27 de Setembro de 2024

 

 

(José Luís Ferreira)