Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 536/2023-T
Data da decisão: 2024-09-25   Outros 
Valor do pedido: € 2.284,07
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) – Competência dos Tribunais Arbitrais – Ilegitimidade ativa
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Sumário

 

  1. A Requerente não é o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal deste imposto. Assim, a sua legitimidade é aferida pela qualidade de mera repercutida de facto, circunstância em que sobre si recai o ónus de demonstrar um interesse legalmente protegido, como se extrai do cotejo dos artigos 9.º, n.º 1 do CPPT, 18.º, n.º 4, alínea a) e 65.º da LGT.
  2. Esse interesse há de corresponder à circunstância de ter suportado, do ponto de vista económico, o imposto [CSR] liquidado ao sujeito passivo fornecedor dos combustíveis. O que implica duas condições: a primeira é que o fornecedor de combustíveis tenha repercutido, de facto, à Requerente, a CSR; e a segunda é que o fenómeno da repercussão “voluntária” tenha ficado por aí, sem que a Requerente tenha, de igual modo, repercutido aos seus clientes o “peso” económico da CSR.
  3. Não tendo ficado provado que a Requerente suportou (e em que medida), a final, o encargo económico do imposto, falece-lhe legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto.
  4. A solução preconizada enquadra-se numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 268.º, n.º 4), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A árbitra designada para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 26 de setembro de 202, Marisa Almeida Araújo, decide,

 

  1. Relatório

 

A..., Lda., adiante “Requerente”, com o número de matrícula e de pessoa coletiva ... e sede na Rua ..., ..., ...-... Trofa apresentou, em 19 de julho de 2023, pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na redação vigente.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.

 

A Requerente pretende a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”), e o reembolso no montante total de € 2.284,07 (na parte relativa à CSR).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), em 20 de julho de 2023 e, em seguida, notificado à AT.

 

Após nomeação da árbitra, a mesma comunicou, em tempo, a aceitação do encargo. O Exmo. Presidente do CAAD informou as Partes, por notificação eletrónica registada no sistema de gestão processual em 6 de setembro de 2023, não tendo sido manifestada oposição.

 

O Tribunal Arbitral ficou constituído em 26 de setembro de 2023.

 

Em 24 de outubro de 2023, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por exceção e por impugnação, e juntou o processo administrativo (“PA”).

 

Requerida e Requerente apresentaram alegações, em 9 de janeiro e 22 de janeiro de 2024, respetivamente, reafirmando as posições expressas nos respetivos articulados, tendo a Requerente exercido o contraditório, ainda, quanto à matéria de exceção invocada na Resposta.

 

Posição da Requerente

 

A Requerente argumenta sumariamente que tem legitimidade processual, o pedido é tempestivo e que a repercussão da CSR resulta de imposição legal, nos termos do disposto no artigo 2.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”), aplicável à CSR por remissão do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, não subsistindo dúvidas de que ao repercutido assiste o direito de obter a restituição do imposto ilegalmente liquidado, pois é aquele que sofre na sua esfera o impacto patrimonial negativo do imposto. Que a mesma reflete uma injustiça e que o TJUE considera o CRS ilegal.

 

Sustenta a incompatibilidade da CSR com a Diretiva 2008/118/CE, de 16 de dezembro de 2008, que fixa o regime geral dos impostos especiais de consumo (“IEC”), pois a criação de IEC não harmonizados, como a CSR.

 

Em consequência, e conforme a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, os Estados-Membros são obrigados a reembolsar os montantes de imposto indevidamente cobrados em violação do direito da União Europeia.

 

Sustenta ainda serem devidos juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º, n.º 1 da LGT, dada a ilegalidade das liquidações de CSR efetuadas por erro imputável aos serviços, a serem contados desde a data do pagamento do imposto até ao seu integral  reembolso, nos termos do artigo 61.º, n.º 5 do CPPT.

 

 

Posição da Requerida

 

Por exceção, a Requerida alega sumariamente que o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria, qualificando a CSR como uma contribuição financeira, enquadrável como uma das “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas” a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição e 3.º, n.º 2 da LGT, e não como um imposto.

 

Suscita também a incompetência material deste Tribunal, por entender que a Requerente pretende a apreciação da legalidade de todo o regime da CSR, pela sua natureza e conformidade jurídico-constitucional. 

 

Argumenta ainda que, a apreciação da legalidade de atos de repercussão de CSR extravasa o âmbito material da arbitragem tributária. Assim, nunca poderia o Tribunal Arbitral pronunciar-se sobre atos de repercussão, por não serem atos tributários.

 

Sobre o pedido de restituição de valores, entende a Requerida que o Tribunal Arbitral não se pode pronunciar, pois este só pode ser determinado em sede de execução do julgado (v. artigo 2.º do RJAT). 

 

De onde conclui que se verifica a exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria, que prejudica o conhecimento do mérito, nos termos vertidos nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável por via do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Ainda no domínio das questões prévias, a Requerida invoca diversas exceções, infra enumeradas: ilegitimidade da Requerente, ineptidão da petição inicial e, por fim, a caducidade do direito de ação.

 

No tocante à ilegitimidade processual (ativa), salienta que, ao abrigo do disposto no artigo 15.º, n.º 2 do Código dos IEC, aplicável por remissão do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que criou a CSR, tal pressuposto apenas assiste aos sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do imposto.

 

A Requerente carece igualmente de legitimidade por se encontrar fora do âmbito de aplicação do artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, que prevê que os repercutidos legais, embora não sejam sujeitos passivos, têm legitimidade para reclamar, recorrer, impugnar e formular pedido arbitral. É que o diploma que institui a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, pelo que, no caso concreto, está em causa uma eventual repercussão de natureza meramente económica ou de facto, que não se pode presumir.

 

Desta forma, conclui que a Requerente carece de legitimidade processual, o que consubstancia uma exceção dilatória, nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e) e 578.º, todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, que prejudica o conhecimento do mérito da causa e implica a absolvição da Requerida da instância. Ou, se assim não se entender, deve considerar-se que a Requerente carece de legitimidade substantiva, o que consubstancia uma exceção perentória, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, devendo a Requerida ser absolvida do pedido.

 

A Requerida argui a ineptidão da petição inicial, alegando a falta de objeto, em virtude de não terem sido identificados pela Requerente os atos tributários praticados pela AT.

 

Pelas razões expostas, considera verificada a exceção de ineptidão do pedido arbitral, por falta de identificação do ato tributário, exigida pelo artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, e por contradição entre o pedido e a causa de pedir, o que determina a nulidade de todo o processo e consequente absolvição da Requerida da instância, conforme disposto nos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b) e 278.º, n.º 1, alínea b), todos do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Por fim, a Requerida invoca a impossibilidade de se aferir em pleno da tempestividade dos pedidos, concluindo que os pedidos arbitrais são intempestivos, suscitando a exceção de caducidade do direito de ação. 

 

Por outro lado, entende que a Requerente também não pode fazer-se valer do prazo de 4 anos previsto na segunda parte do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, por não se verificar o requisito de erro imputável aos serviços, uma vez que as liquidações de CSR foram efetuadas de acordo com a disciplina legal aplicável e não enfermam de qualquer vício.

 

Por impugnação, a Requerida invoca que a Requerente não provou a alegação de que pagou e suportou integralmente o encargo da CSR por repercussão, ónus que sobre si impendia (v. artigo 74.º da LGT).

 

Acrescenta que, admitir-se a condenação da AT à restituição dos montantes que a Requerente alegadamente suportou, a título de CSR, sem a exata identificação dos atos tributários em causa, poderia conduzir ao absurdo de a AT vir a ser, sucessivamente, condenada a pagar os mesmos montantes de CSR, a todos os intervenientes no circuito económico de comercialização de combustíveis rodoviários, que se veriam indevidamente enriquecidos em claro prejuízo do erário público, o que configuraria um atentado à segurança jurídica.

 

Em relação ao Despacho do Tribunal de Justiça no processo C-460/21, a Requerida sustenta que em momento algum este considera ilegal a CSR.

 

Afirma que existe um vínculo intrínseco entre o destino da CSR e o motivo específico que levou à sua criação, que se prende com a redução da sinistralidade rodoviária e a sustentabilidade ambiental, ambos distintos de uma finalidade orçamental. Deste modo, a CSR é conforme ao direito da União Europeia, não se constatando erro imputável aos serviços.

 

Por outro lado, ainda que a repercussão económica viesse a ser provada, de acordo com o Tribunal de Justiça, um Estado-Membro pode opor-se a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma ação civil de repetição do indevido.

 

Em relação ao pedido de reembolso de todos os impostos suportados pela Requerente incidentes sobre o valor da CSR, tais como o IVA e a tributação autónoma, a Requerida alega que não foi por aquela invocada qualquer causa de pedir para o mesmo, de onde decorre que esta pretensão tem por pressuposto a viabilidade do pedido principal, que é improcedente.

 

À cautela, salienta que, não havendo prova de que os encargos da Requerente com combustíveis incorporam ou não CSR, quer na sua totalidade ou apenas em parte, nem de que a Requerente, ela própria, não fez repercutir os alegados valores de CSR no preço final dos serviços/bens/mercadorias por si comercializadas, não é possível afirmar (ou sequer inferir) que a taxa de Tributação Autónoma referente a encargos efetuados ou suportados pela Requerente enquanto sujeito passivo de IRC com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos incidiu sobre aqueles valores de CSR. E o mesmo se diga quanto ao IVA. Pelo que, em ambos os casos, o pedido deve improceder.

 

Por fim, em relação ao pedido dos juros indemnizatórios, tendo sido apresentado pedido de revisão da liquidação, caso a ação fosse procedente, estes só seriam devidos depois de decorrido um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa, em conformidade com o disposto no artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, alínea c) da LGT.

 

Conclui pela extinção e absolvição da instância por incompetência do Tribunal Arbitral, e/ou ilegitimidade processual e/ou ineptidão do pedido arbitral, ou, se assim não se entender, pela absolvição do pedido, por verificação da exceção de caducidade do direito de ação, e/ou da exceção de falta de legitimidade substantiva; ou, por fim, caso assim não se entenda, pela improcedência total do pedido, por infundado e não provado.

 

 

III.     Questões a Apreciar

 

A questão de mérito a decidir respeita à compatibilidade do regime da CSR subjacente aos atos tributários impugnados com o direito da União Europeia, em concreto, com o disposto no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE.

 

No entanto, a Requerida invocou múltiplas exceções, quer dilatórias, quer perentórias, de que o Tribunal deve conhecer a título prévio, logo após a fixação da matéria de facto, a começar pelas dilatórias, pois a sua procedência, impede a apreciação do mérito da causa.

 

 

  1. Fundamentação de Facto

 

  1. Factos Provados

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:

 

  1. A..., LDA, aqui Requerente, é uma sociedade que se dedica à atividade de indústria e comércio de vestuário, acessórios e outros.
  2. No exercício da sua atividade, a Requerente efetua aquisições de combustíveis.
  3. Estas aquisições são efetuadas a fornecedores distintos – cfr. Doc. N.º 2.
  4. O combustível adquirido pela Requerente destina-se a ser consumido pela própria.
  5. As faturas que titulam a aquisição do combustível não contêm qualquer menção à CSR.
  6. Em 30 de dezembro de 2022, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa da CSR que alega ter suportado, por repercussão nas faturas de aquisição de combustíveis, no período compreendido entre 16 de janeiro de 2018 e 16 de setembro de 2022, tendo em vista o reembolso da CSR liquidada pelo fornecedor de combustíveis.
  7. Em 19 de julho, a Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral que deu origem à presente ação – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.

 

 

  1. Factos não Provados

 

            Não se provou em que medida os montantes de CSR que a Requerente reclama foram incluídos (e, portanto, repercutidos) no preço de compra do combustível adquirido, nem que a Requerente não repercutiu, no todo ou em parte, esses montantes sobre terceiros.

 

            Com relevo para a decisão não existem outros factos que devam considerar-se não provados.

 

  1. Motivação da Decisão da Matéria de Facto

 

            Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos.

Quanto aos factos não provados, regista-se que a prova da repercussão da CSR à Requerente, pressupunha como ponto de partida a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelo sujeito passivo, quando da introdução no consumo dos combustíveis, em dado(s) período(s) e montante(s). O que não foi feito.

 

Por outro lado, mesmo que se soubesse o concreto valor de CSR repercutido à Requerente, do adquirido processual não se retira, de igual modo, que tenha sido a Requerente, a final, a suportar economicamente o imposto em causa e que o encargo da CSR se cristalizou na sua esfera, como entidade que, em última instância, foi onerada com o tributo em causa.

 

  1. Do Direito

 

Questões Prévias

 

  1. Da Competência Material do Tribunal Arbitral

 

Na senda da decisão 988/2023-T que, em evolução de raciocínio se adota, entende do tribunal que,

A Requerida qualifica a CSR como contribuição financeira e não como imposto, daí retirando a consequente exclusão do âmbito da jurisdição arbitral por falta de vinculação da AT (v. artigo 4.º, n.º 1 do RJAT). Isto porque a Portaria de Vinculação[1], no corpo do seu artigo 2.º, delimita o respetivo âmbito à “apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida [à AT]”, sem prever outros tributos. (sublinhado nosso)

 

A questão releva do ponto de vista da competência “relativa” do Tribunal Arbitral e não “absoluta”, em razão da matéria, já que a norma que rege a competência, o artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, faz referência a “atos de liquidação de tributos”, categoria ampla que compreende a tripartição clássica refletida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição e no artigo 3.º, n.º 2 da LGT – impostos, taxas e contribuições financeiras –, pelo que aí tem claro enquadramento a CSR.

 

Porém, mesmo na perspetiva da competência “relativa” não assiste razão à Requerida, porquanto, apesar de o artigo 2.º da citada Portaria parecer limitar o âmbito da vinculação da AT à jurisdição arbitral aos “impostos” e de o nomen juris da CSR sugerir que estamos perante uma contribuição financeira, a sua natureza é, na realidade, a de um imposto administrado pela AT, ainda que de receita consignada, não sendo a denominação determinante.

 

A designação de contribuição não vincula o aplicador do direito e não é o facto de o tributo ter a receita consignada que o qualifica como contribuição financeira (v. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 539/2015; 369/99 e 232/2022, respetivamente), existindo vários impostos que têm a sua receita consignada (ainda que ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos).

 

O elemento decisivo para a qualificação da CSR como contribuição financeira é a existência de uma estrutura paracomutativa[2], ou dito de outra forma, de um nexo de bilateralidade/causalidade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita [Estado] e os sujeitos passivos do tributo. A prestação deve destinar-se a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos, “(...) acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2022, citado na decisão arbitral 304/2022-T).

 

No caso da CSR, constata-se que a mesma não tem por finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário e também não se identificam prestações administrativas a que o sujeito passivo tenha dado causa.

 

Conforme explicita a decisão arbitral 304/2022-T:

Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007).

Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se  inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.

A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.

No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos.

Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.

[…]

Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.

Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.

 

No mesmo sentido, salienta a decisão arbitral 629/2021-T, de 3 de agosto de 2022, que “o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas coletivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária.”.

 

A qualificação da CSR como um imposto foi também a seguida pelo Tribunal de Contas, na Conta Geral do Estado de 2008, e resulta da análise da sua génese. Interessa a este respeito notar que a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, criou a CSR por desdobramento do ISP, em relação ao qual é indiscutível a sua qualificação como imposto. Esta relação umbilical merece destaque na decisão arbitral 332/2023-T: “A CSR, durante algum tempo legalmente autonomizada do ISP, a partir do qual nasceu e ao qual voltou, constituiu sempre um pseudónimo deste – e, portanto, sempre foi um imposto”. 

 

À face do exposto, julga-se improcedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, encontrando-se a AT ao mesmo vinculada, por estar em causa um pedido de anulação de atos de liquidação de imposto (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

 

  1. Da Ilegitimidade Ativa

 

O RJAT não contém a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, por via da aplicação do seu artigo 29.º, n.º 1, que remete para as disposições legais de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC.

 

Da regra geral do direito processual, constante do artigo 30.º do CPC, resulta que é parte legítima quem tem “interesse direto” em demandar, sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade ativa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (v. artigo 9.º, n.º 1 do CPTA).

 

A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um ato tributário, cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da LGT, como “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.”.

 

Neste domínio, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas (v. artigo 1.º, n.º 2 da LGT).

 

O CPPT consagra uma norma específica à legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

 

No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”. E o artigo 78.º da LGT, no âmbito da revisão dos atos tributários, assegura a mesma posição apelando aos conceitos de sujeito passivo e de contribuinte.

 

Em relação aos sujeitos passivos não originários, o legislador teve a preocupação de justificar, de forma especificada, a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Assim, quanto aos responsáveis solidários, a legitimidade processual deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (v. artigo 9.º, n.º 2 do CPPT). E, relativamente aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (v. artigo 9.º, n.º 3 do CPPT). Em ambas as situações constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias –, o que sucede igualmente com o substituto.

 

Apesar de o repercutido legal não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, determina que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjetiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica (ou pressupõe) desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

 

Nesse contexto, assinala Sérgio Vasques que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral[3].

 

            Todavia, a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, que institui a CSR, não contém qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1 da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”. Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, pelo que o artigo 5.º, n.º 1 não remete para o artigo 2.º do CIEC (que prevê a repercussão legal nos impostos especiais sobre o consumo), mas apenas para as normas desse código que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.

           

            A CSR tem um regime próprio, vertido na Lei n.º 55/2007, não sendo um dos tributos projetados no campo de incidência objetiva do Código dos IEC. A remissão do regime da CSR para o Código dos IEC que consta do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, restringe-se à componente procedimental da “liquidação, cobrança e pagamento” da CSR, não podendo extrapolar-se uma aplicação generalizada dos princípios e regras dos IEC consagrados nesse compêndio a um tributo que no mesmo não está previsto. Acresce que no mencionado artigo 2.º do Código dos IEC não é feita qualquer referência à CSR que, aliás, foi extinta precisamente pela Lei n.º 24-E/2022 que alterou a sua redação.  

 

            Acresce que a alteração legislativa operada no Código dos IEC, cuja redação (do artigo 2.º) passou a conter a referência expressa à repercussão, é posterior à data dos factos sob apreciação, pelo que, se fosse de seguir a posição da Requerida, estar-se-ia perante um caso flagrante de aplicação retroativa de normas fiscais. Esta conclusão não resulta afastada pela atribuição de natureza interpretativa pelo legislador[4], pois a retroatividade inerente às leis interpretativas “é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.” (v. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 16 de dezembro de 2020. No mesmo sentido se pronuncia o recente acórdão do mesmo Tribunal, n.º 503/2024, de 25 de junho de 2024).

 

Em síntese, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (v. artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil). E a alteração legislativa do Código dos IEC, ocorrida em dezembro de 2022, que passou a consagrar a repercussão nos IEC, além de não ser subsidiariamente aplicável à CSR, por falta de norma remissiva, mesmo que o fosse, não poderia reger a situação em análise porque é posterior à data dos factos.

 

A Requerente não tem a qualidade de consumidor de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”).

Na verdade, o combustível adquirido é um fator de produção no circuito económico, pelo que se a CSR, se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida aquela não faz parte das entidades potencialmente lesadas, que são os consumidores e não os operadores económicos (v. neste sentido as decisões dos processos arbitrais n.ºs 408/2023-T, de 8 de janeiro de 2024, e 375/2023-T, de 15 de janeiro de 2024).

 

Ora, não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, substituto, responsável ou repercutido legal desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, i.e., que evidencie um interesse direto e legalmente protegido na sua esfera (v. artigo 9.º, n.º 1 in fine do CPPT), passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre si impende.

 

O único facto que a Requerente alega para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR, cujo encargo económico foi por si suportado. Uma das características típicas da repercussão legal, como sucede no IVA e em algumas verbas do Imposto do Selo, é a evidenciação nos documentos de débito – faturas emitidas – do imposto repercutido, que permite o seu controlo por parte do repercutido (v. artigos 36.º, n.º 5, alíneas c) e d) do Código do IVA e 23.º, n.º 6 do Código do Imposto do Selo. Este último refere que “nos documentos e títulos sujeitos a imposto são mencionados o valor do imposto e a data da liquidação, com exceção dos contratos previstos na verba 2 da tabela geral [arrendamento e subarrendamento], cuja liquidação é efetuada nos termos do n.º 8.”).  

 

Sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo, contrariamente ao que a Requerente afirma. Na realidade, a Requerente é tão-só um cliente comercial do sujeito passivo que liquidou a CSR.

 

Compreende-se que o legislador não tenha adotado um conceito irrestrito de legitimidade ativa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o ato de liquidação do imposto, a determinação da sua efetiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. A ser assim, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.

 

Conforme antes referido, a Requerente não logrou atestar que suportou a CSR contra a qual reage, ou a medida em que a suportou. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente ação arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legal da CSR. Diversamente, o que se demonstrou foi que a Requerente considera os gastos incorridos com a aquisição de combustíveis (incluindo os impostos inerentes aos mesmos) como fazendo parte da sua estrutura de custos, que reflete nos preços (tarifas) praticadas com os seus clientes, transferindo, portanto, o encargo económico da CSR para terceiros. 

 

Em síntese, não tendo ficado provado o valor da CSR repercutido pelos fornecedores de combustíveis à Requerente, nem que esta suportou o encargo económico do imposto, falece-lhe legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto, solução que se enquadra numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 268.º, n.º 4), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros.

 

A conclusão da ilegitimidade da Requerente também se retira da exegese do Código dos IEC, aplicável à CSR na parte referente à liquidação, cobrança e pagamento do imposto (por remissão do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007). Conforme declara o acórdão do CAAD, de 1 de fevereiro de 2024, proferido no âmbito do processo 296/2023-T, “qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”).” (realce nosso)

 

A referida norma [artigo 15.º, n.º 2, do Código dos IEC] estabelece que “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto.”.

 

Desde a redação inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho, a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjetiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.

 

Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados (no artigo 4.º), e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre, tal como resulta do n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”. Ora, esta solução apresenta total cabimento face à impraticabilidade que seria fazer a gestão de um sistema demasiadamente aberto a todo o género e tipo de reembolsos, com uma duvidosa forma de controlo. A esta mesma conclusão chegaram, entre outras, as decisões proferidas nos processos arbitrais n.ºs 296/2023-T, 408/2023-T, 375/2023-T e 633/2023-T.

 

À face do exposto julga-se verificada a exceção de ilegitimidade da Requerente, constituindo uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT, ficando prejudicados todos os passos seguintes no iter cognoscitivo acima delineado.

 

  1. Questões Prejudicadas

 

A procedência da questão prévia da ilegitimidade ativa da Requerente, prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas.

 

  1. Decisão

 

            Atento o exposto, este Tribunal Arbitral Coletivo decide:

 

  1. Julgar improcedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar os atos de liquidação de CSR;
  2. Julgar procedente a exceção ilegitimidade ativa da Requerente para deduzir o pedido de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de CSR e, em consequência, absolver a Requerida da instância;
  3. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo

 

Tudo com as legais consequências.

 

  1.    Valor do Processo

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 2.284,07, que corresponde à importância de CSR cuja anulação a Requerente pretende e não contestado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

  1. Taxa de Arbitragem

 

            Fixam-se as custas no montante de € 612,00 (seiscentos e doze euros), a suportar pela Requerente por decaimento, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT e com a Tabela I anexa ao RCPAT.

 

 

                        Notifique-se.

 

                        Lisboa e CAAD, 25 de setembro de 2024

 

A árbitra

 


(Marisa Almeida Araújo)

 



[1] V. Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

[2] V. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/2019.

[3] V. Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., p. 401.

[4] V. artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro.