SUMÁRIO:
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O bloco normativo que ao tribunal cumpre fazer respeitar é constituído não apenas por normas, mas também por princípios, hierarquicamente superiores dada a sua dignidade constitucional.
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É violadora do princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de necessidade, a emissão de liquidações adicionais de IVA processadas em nome do adquirente de serviços de construção civil (reverse charge) quando o mesmo valor de imposto foi liquidado pelos fornecedores e por eles entregue ao Estado.
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Mais, de tal situação pode resultar, em definitivo, num “duplo pagamento” de imposto pelo Requerente e num consequente “enriquecimento sem causa” do Estado, o que consubstanciaria, também, clara violação do princípio de justiça.
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As infrações às normas que determina quais os concretos deveres de colaboração a cargo dos sujeitos passivos são puníveis através da aplicação de contraordenações e não através da emissão de liquidações adicionais.
DECISÃO ARBITRAL
A..., Lda., NIPC..., com sede na Rua ... n. º..., ..., ...-... ..., veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I - RELATÓRIO
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O pedido
A Requerente pede a apreciação da legalidade dos atos tributários das liquidações adicionais em IVA e de Juros Compensatórios dos anos de 2018, 2019, no valor global de €256.275,94, e respetivas correções às Declarações do SP, e bem assim do indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida contra esses atos de liquidação.
Estão em causa as seguintes liquidações adicionais, todas datadas de 26.12.2022:
ANO 2018
Liquidação adicional de IVA 201803T- ... nos montantes de 30.635,14€ (imposto) mais 5.613,36€ (juros compensatórios).
Liquidação adicional de IVA 201806T- ... nos montantes de 53.381,24€ (imposto) mais 9.237,14€ (juros compensatórios)
Liquidação adicional de IVA 201809T- ... nos montantes de 28.053,49€ (imposto) mais 4.574,64€ (juros compensatórios)
Liquidação adicional de IVA 201812T- ... nos montantes de 34.355,03€ (imposto) mais 5.255,84€ (juros compensatórios).
ANO 2019
Liquidação adicional de IVA 201903T- ... nos montantes de 43.067,14€ (imposto) mais 6.168,63€ 201906T (juros compensatórios).
Liquidação adicional de IVA 201906T- ... nos montantes de 24.321,25€ (imposto) mais 3.235,72€ (juros compensatórios)
Liquidação adicional de IVA 201909T- ... nos montantes de 52.766,66€ (imposto) mais 6.465,00€ (juros compensatórios).
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O litígio
O Requerente confessa expressamente que violou o dever legar de proceder à liquidação do IVA em causa em razão da “inversão do sujeito passivo” prevista na alínea j) do n.º 1 do art. 2.º do CIVA[1].
Afirma que tal se deveu a negligência desculpável em virtude de estar em curso um pedido de “renúncia de isenção de IVA” do qual resultaria, em caso de deferimento, serem os seus fornecedores os sujeitos passivos de IVA, em observância das regras gerais.
Nas palavras da Requerente: a questão dissidenda é a da saber se numa situação como a dos autos a AT pode exigir um segundo pagamento do IVA devido à A..., beneficiária dos serviços de construção civil, tendo recebido o equivalente dos prestadores de serviços, em IVA, B..., indevidamente liquidado e pago pela A... sem dedução e sem que se verifique uma situação de dupla tributação, de flagrante injustiça fiscal.
(…)
Tendo em conta que : a) Existia um procedimento administrativo de pedido de isenção o qual sendo concedido afastaria a aplicabilidade da inversão do SP, b) Em que o IVA foi liquidado pelos prestadores de serviços aos mesmos serviços e à mesma taxa legal; c) Entregue nos cofres do estado, sem que tenha sido levantada sequer suspeições sobre fraude ou evasão fiscal, 21 d) Onde o IVA pago foi imputado ao imóvel com o art.82.º e tratado no exercício como compras na conta 31, e transitado no final ano para a conta 36, Obras em curso e terminada a obra passou para a conta 34 Produtos acabados, e) E sem que a A... o tenha deduzido.
Passando a Requerente, de seguida, a configurar situação como sendo de duplicação de coleta.
Por sua vez, a Requerida alega que: Face ao exposto, apura-se a falta de liquidação de imposto relativa à aquisição de serviços de construção civil, resultando uma correção em sede de IVA no montante de €146.424,89 em 2018 e de €109.851,05 em 2019.
Não corrobora o entendimento da Requerente de se estar perante uma duplicação de coleta (ou uma dupla tributação) uma vez que se trata de realidades autónomas.
Entende que:
Por um lado, o IVA indevidamente mencionado na fatura emitida pelo fornecedor deverá ser entregue à AT, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 2.º do CIVA, no período correspondente à data da emissão da fatura.
Por outro, a obrigatoriedade de liquidação de IVA por parte da Requerente na qualidade de adquirente de serviços de construção civil, resulta da regra prevista na alínea j) do n.º 1 do art.º 2.º do mesmo diploma legal, tratando-se, assim, de realidades distintas.
Num caso o IVA é exigível por ter sido indevidamente liquidado em fatura e por dar abertura à cadeia de liquidação, no outro caso, o IVA é exigível em função da aquisição de serviços de construção civil.
Refira-se, contudo que o IVA indevidamente mencionado e entregue pelo fornecedor poderá efetivamente ser corrigido através da emissão de nota de crédito. Neste seguimento na data da emissão da nota de crédito ficará o sujeito passivo adquirente com um crédito junto do fornecedor e este fará a seu favor a regularização do IVA que liquidou indevidamente.
Entende ainda que a posição sustentada pela Requerente, contrariamente ao alegado, não tem respaldo na jurisprudência comunitária ou nacional. Para tal transcreve longos excertos, doutrinais e jurisprudenciais, a maioria sem relevo direto para o caso uma vez que a problemática central neles abordada se refere ao direito à dedução de IVA.
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Tramitação processual
O pedido foi aceite em 09/01/2024.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 18/03/2024.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA. O Requerente replicou à matéria da exceção invocada pela Requerida.
Em 9/07/2024, realizou-se a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT, tendo a Requerente prescindido da prova testemunhal que havia solicitado.
As partes apresentaram alegações nas quais reiteraram os constante dos respetivos articulados.
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Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.
A exceção de caducidade do direito à ação, invocada pela Requerida, foi julgada improcedente por despacho arbitral de 28/05/2024.
Não existem outras questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
II – PROVA
II.1 – Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente foi sujeita a uma ação inspetiva externa da qual decorreram as liquidações ora impugnadas.
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A Requerente não cumpriu com obrigação de autoliquidação do IVA relativamente aos serviços de construção civil adquiridos para a realização de operações isentas nos termos do art. 9.º do CIVA e constantes das faturas, em violação do art.º 2.º nº1 alínea j) do CIVA.
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Aquando da aquisição desses serviços de construção civil, a Requerente tinha em curso um pedido de “renúncia de isenção de IVA”, apresentado em 2018.02.19, o qual veio a ser indeferido em 25.09.2019,
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Razão pela qual as faturas n.ºs FT 1/419, FT 1/434, FT 1/446, FT 1/449, FT 1/459, FT 1/463, FT 1/480, FT 1/481, FT 1/496, FT 1/509, FT 1/519, FT 1/525, e FT 1/538 de 2018 apenas foram registadas na contabilidade em 2019 na conta 361018.
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A quase totalidade das faturas em causa foi emitida pela sociedade B..., que as emitiu sem a menção “IVA – Autoliquidação”, antes liquidando indevidamente o IVA à taxa legal.
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O IVA indevidamente liquidado foi entregue pelos fornecedores nos cofres do Estado.
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Tendo sido pago a estes pela Requerente e por ela registado pela A... na Conta 361018, em obras em curso com identificação do imóvel a que se referiam.
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O IVA pago foi assim imputado ao imóvel em questão e tratado, no exercício, como compras na conta 31, tendo transitado no final ano para a conta 36 - obras em curso; terminada a obra passou para a conta 34 - Produtos acabados.
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Tal IVA nunca figurou na conta 24 (estado e outros entes públicos), nem tão pouco foi deduzido.
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A Requerente aceita que deduziu indevidamente IVA no montante de 10.304,00€ no período de 201909T por lapso, uma vez que a aquisição de serviços de “elaboração de projeto de remodelação e prestação de serviços de decoração” contidos na fatura n.º1/700 de 2019 de 2019.08.16, da B..., foi contabilizada na conta 2432213 como IVA Dedutível Investimentos, devido ao local de descarga constante da dessa fatura referir a sede da A... e não o local da obra em Sagres.
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Em 05.06.2023, a Requerente reclamou graciosamente das liquidações que ora impugna. O silêncio administrativo manteve-se para além do prazo legal de decisão.
Estes factos resultam da documentação junta aos autos e não foram controvertidos pelas partes.
II.2- Factos não provados
Não foram considerados não-provados quaisquer factos tidos por relevantes para a decisão da causa.
III – O DIREITO
Nenhuma dúvida existe relativamente ao facto de a Requerente ter incumprido com a obrigação de autoliquidação de IVA relativamente à aquisição de serviços de construção civil que efetuou, atento o regime de reverse charge a que estava sujeita. Nem sobre as circunstâncias em que tal aconteceu.
Também não oferece dúvidas que as liquidações que cumpria ao Requerente efetuar foram “substituídas” por liquidações de igual valor feitas pelos fornecedores, por aplicação das regras gerais, os quais entregaram nos cofres do estado o montante total em causa.
O que cumpre é avaliar da legalidade das liquidações adicionais impugnadas, atentas as circunstâncias em que ocorreram.
Começamos por afirmar o nosso entendimento de que é irrelevante saber se a situação em causa (as liquidações de IVA feitas pelos fornecedores “somadas” às liquidações oficiosas ora impugnadas, feitas em resultado da omissão da Requerente) configura ou não uma duplicação de coleta, tema amplamente debatido pelas partes. Isto porquanto, muito embora a duplicação de coleta configure, em direito fiscal, uma ilegalidade “típica”[2], obviamente esta figura não esgota as possíveis causas de ilegalidade das liquidações impugnadas que devam determinar a sua anulação. O mesmo é dizer que, mesmo concluindo-se não se estar perante uma duplicação de coleta, tal não significa que as liquidações impugnadas sejam legais.
Analisando a questão à luz das normas legais aplicáveis, nenhuma dúvida parece existir quanto a legalidade das liquidações impugnadas.
Só que aplicação do Direito não se limita à correta qualificação das situações à luz das normas escritas diretamente aplicáveis.
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O bloco normativo que ao aplicador do direito cumpre respeitar é constituído não apenas por normas, mas também por princípios.
Com o saudoso Mestre Batista Machado[3], diremos: temos aqui em vista aqueles princípios jurídicos que, porque são exigências feitas a todo e qualquer ordenamento jurídico, se este quer ser coerente com a sua própria pretensão de legitimidade e validade, são transcendentes às decisões positivadoras do legislador e por isso mesmo são válidas de per si num Estado de Direito porque representam postulações eliciadas da própria “ideia de Direito.
Aqui concorre, desde logo, o princípio da proporcionalidade, expressamente consagrado no art. 7º do CPA[4], em obediência a determinação constitucional[5]
Seguido o entendimento consensual da doutrina, proporcionalidade implica adequação, necessidade e equilíbrio (os conceitos usados pelos diferentes autores podem ser diferentes, mas o significado é o mesmo):
Adequação significa que as medidas tomadas devem ser ajustadas ao fim que se pretende atingir.
Necessidade implica que a medida seja aquela que lese em menor medida os direitos e interesses dos particulares.
Por fim, o equilíbrio (proporcionalidade stricto sensu), implica que os benefícios que se espera alcançar com uma medida administrativa adequada e necessária suplantem os custos implicados.
Parece-nos perfeitamente razoável afirmar que as liquidações em causa não preenchem o subcritério da necessidade: qual a necessidade (substantiva) de liquidações adicionais, as quais por definição visam o pagamento de (mais) imposto legalmente devido quando é certo não existir, na situação concreta, qualquer prejuízo para o Estado uma vez que o mesmo valor de imposto foi liquidado por outa via (incorretamente, é certo) e deu entrada nos cofres do Estado?
Temos a maior dificuldade em compreender liquidações adicionais que, em muitas e diferentes circunstâncias, a AT decide efetuar em situações em que, manifestamente, não houve prejuízo para o Estado.
Ou talvez o “compreendamos” em razão do impacto financeiro positivo que daí decorre para os cofres do Estado: sirva de exemplo, no caso em apreço, o valor os juros compensatórios que se pretende cobrar quando é certo que o Estado tem em seu poder o valor total do imposto em causa desde o momento em que o pagamento deveria ocorrer (o prazo de pagamento é o mesmo, havendo ou não lugar a reverse charge).
Mais, na situação em apreço, a improcedência do pedido provavelmente redundaria numa situação que, para além de ofensiva do princípio da proporcionalidade, seria também ofensiva do princípio da justiça.
Na realidade, a manterem-se as liquidações impugnadas, o Requerente suportaria duas vezes o encargo económico do imposto: suportou-o uma primeira vez quanto pagou aos seus fornecedores o imposto por estes liquidado; é chamado a suportá-lo uma segunda vez em razão das liquidações adicionais ora em causa.
A este propósito diz a AT em passo já acima transcrito: Refira-se, contudo que o IVA indevidamente mencionado e entregue pelo fornecedor poderá efetivamente ser corrigido através da emissão de nota de crédito. Neste seguimento na data da emissão da nota de crédito ficará o sujeito passivo adquirente com um crédito junto do fornecedor e este fará a seu favor a regularização do IVA que liquidou indevidamente.
Só que não existe qualquer certeza de que o Requerente viesse a conseguir ser reembolsado pelos fornecedores do IVA por estes indevidamente liquidado (e recebido)
Em primeiro lugar, a regularização da situação tal como preconizado pela AT implicaria a colaboração dos fornecedores -estamos perante uma regularização que a lei expressamente qualifica como facultativa - o que, obviamente, não se pode ter por garantido (no limite, alguns podem ter cessado atividade)
Segundo, a regularização de IVA indevidamente liquidado poderá estar condicionada a prazos máximos (cf. º 3 do artº 78º do CIVA) que poderão já estar ultrapassados.
O mesmo é dizer que a não anulação das liquidações impugnadas poderia, com razoável grau de probabilidade, conduzir a uma situação em que o Requerente teria que suportar, em definitivo, um encargo económica com o dobro do valor daquele que, segundo a lei, deveria ter autoliquidado.
E o Estado teria um “enriquecimento sem causa" de valor igual ao do imposto devido (e e pago) O que resultaria manifesta (e desnecessariamente, para não dizer despropositadamente) ofensivo do princípio da justiça.
Por último há que atentar no seguinte: as liquidações adicionais são um mecanismo destinado à cobrança de (mais) imposto devido e não um mecanismo destinado a punir infrações.
Entender que o princípio da proporcionalidade pode obstar a legalidade de liquidações adicionais em situações em que houve violação dos deveres de cooperação legalmente prescritos (obrigações acessórias) não significa qualquer complacência para com tais comportamentos. Isto porquanto o meio próprio para punir a violação de obrigações declarativas é a aplicação das contraordenações que para tal a lei prevê.
V - DECISÃO
Assim sendo, há que concluir pela procedência do pedido., anulando-se as liquidações em causa com exceção do relativo ao montante de IVA de 10.304,00€ que a Requerente confessa que deduziu indevidamente IVA no montante de no período de 201909T.
Valor: € 296.826,27 (o das liquidações impugnadas)
Custas, no montante de € 5.202,00, na proporção do decaimento: 96,53% a cargo da Requerida e 3,47% a cargo da Requerente.
10 de setembro de 2024
Os árbitros
Rui Duarte Morais (relator)
Adelaide Moura
Vasco António Branco Guimarães
[1]São sujeitos passivos do imposto: (…)
j) As pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a) que disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional e que pratiquem operações que confiram direito à dedução total ou parcial do imposto, quando sejam adquirentes de serviços de construção civil, incluindo a remodelação reparação manutenção, conservação e demolição de bens imóveis, em regime de empreitada ou subempreitada.
[2] “Tipicidade” que ao que cremos apenas releva como fundamento possível da oposição à execução ( art. 204ª, nº1, al. g) apesar de , em rigor, estarmos perante uma ilegalidade concreta da liquidação.
[3] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1982, reimp., pág. 163
[4] Artigo 7º do CPA (princípio da proporcionalidade):
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Na prossecução do interesse público, a Administração Pública deve adotar os comportamentos adequados aos fins prosseguidos.
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2 - As decisões da Administração que colidam com direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afetar essas posições na medida do necessário e em termos proporcionais aos objetivos a realizar.
[5] Artigo 266.º da CRP:
2. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.