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Sumário
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A dupla tributação jurídica internacional é um conceito com que, no Direito Tributário, se designam os casos de concurso de normas, por força dos quais o mesmo sujeito passivo, é tributado em mais do que um Estado, pelo mesmo rendimento, em sede de impostos equiparáveis e quanto ao mesmo período de tributação.
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Por forma a eliminar ou mitigar a dupla tributação jurídica internacional o Estado português estabeleceu, por um lado, medidas unilaterais – disposições internas (v.g. artigo 81.º do Código do IRS) e, por outro lado, medidas bilaterais – tratados ou convenções de dupla tributação jurídica internacional.
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As convenções para eliminar ou mitigar a dupla tributação jurídica internacional consagram normas hierarquicamente superiores às medidas unilaterais previstas no artigo 81.º do Código do IRS, em conformidade com o disposto nos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena e do artigo 8.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
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Nos casos em que da aplicação das convenções resulta a atribuição de competência tributária exclusiva a um Estado, o concurso de normas é meramente aparente e a dupla tributação jurídica internacional é meramente virtual porque totalmente eliminada.
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Nas situações previstas no número anterior, em que o Estado da Residência seja Portugal, não é devido nenhum crédito de imposto nos termos do artigo 81.º, n.ºs 1 e 2 do Código do IRS, face ao imposto indevidamente pago no Estado da fonte ou num Estado terceiro, que nos termos da convenção aplicável não tinha competência tributária para o efeito.
Os árbitros Prof.ª Doutora Carla Castelo Trindade (presidente), Dr. Augusto Vieira e Dra. Sofia Quental (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o presente Tribunal Arbitral Colectivo, acordam o seguinte:
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Relatório
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A..., portador do passaporte n.º..., emitido em 9 de Outubro de 2018, pelo Passport Office em Dublin, com domicílio na Rua ..., N.º ... –..., ..., Oeiras, contribuinte número ..., com domicílio profissional na ..., ..., ..., ...-... Lisboa (doravante designado por “Requerente”), veio ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, visando a apreciação da legalidade do acto de indeferimento (tácito) da reclamação graciosa e, em termos finais ou últimos, do acto liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2023..., relativa ao exercício de 2021, que foi objecto da referida reclamação e que originou o montante total a pagar de 60.207,21€.
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No pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) pede que seja “... DECLARADA A ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE IRS N.º 2023...., RELATIVA AO ANO DE 2021, POR VIOLAÇÃO DO ARTIGO 81.º, N.º 1, DO CIRS, DO ARTIGO 5.º DA LGT, DO ARTIGO 104.º, N.º 2 DA CRP E, BEM ASSIM, DO ARTIGO 63.º TFUE, NA PARTE RELATIVA À DESCONSIDERAÇÃO DO CRÉDITO DE IMPOSTO SOBRE OS RENDIMENTOS DE CAPITAIS CORRESPONDENTES A DISTRIBUIÇÕES POR FUNDOS DE INVESTIMENTO (“OUTROS RENDIMENTOS DE CAPITAIS”) E, BEM ASSIM, SOBRE O SALDO POSITIVO DAS MAIS-VALIAS APURADAS COM O RESGATE DE UNIDADES DE PARTICIPAÇÃO EM FUNDOS DE INVESTIMENTO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, INCLUINDO O REEMBOLSO AO REQUERENTE DO IMPOSTO POR SI PAGO EM EXCESSO, ACRESCIDO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS À TAXA LEGAL, CONTADOS, ATÉ INTEGRAL REEMBOLSO, DESDE 16.10.2023”
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É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT”, “Requerida” ou simplesmente “Administração Tributária”).
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O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 2024.01.03 e automaticamente notificado à AT nesta mesma data.
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Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66‑B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. Em 21-02-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
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Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 12-03-2024.
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O Requerente não se conforma com a liquidação de IRS impugnada, porquanto:
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Em virtude da transferência de residência para Portugal, ocorrida em 2019, passou a ser “não residente” fiscal na Irlanda, incluindo no ano aqui em causa de 2021.
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Passou igualmente a estar abrangido pelo regime interno irlandês aplicável aos ordinarily residents, em virtude de ter sido residente fiscal na Irlanda por três anos consecutivos, concretamente, em 2016, 2017 e 2018.
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Situação que se manteve não apenas no ano da transferência de residência para Portugal (2019), como também no ano seguinte de 2020 e, bem assim, no ano aqui em causa de 2021, último ano de aplicação do referido regime dos ordinarily residents.
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No referido ano de 2021, o Requerente obteve rendimentos decorrentes da atividade profissional por si exercida em Portugal, tendo igualmente auferido no estrangeiro rendimentos prediais, rendimentos de capitais e, bem assim, incrementos patrimoniais decorrentes do resgate de unidades de participação em fundos de investimento. Apresentou o Anexo L (residente não habitual) e reportou no Anexo J da Declaração de IRS rendimentos de fonte estrangeira, optando pelo método da isenção, tendo os rendimentos e dividendos de fonte estrangeira beneficiado de isenção, mas “outros rendimentos de capitais” e “mais‑valias” foram tributados à taxa ad valorem de 28%.
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Em virtude da sua qualificação como ordinarily resident na Irlanda, o Requerente foi também obrigado a proceder à entrega de uma declaração de rendimentos naquele país quanto ao ano aqui em causa de 2021, tendo pago o imposto aí liquidado.
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Conclui o Requerente que “os rendimentos obtidos ... (com exceção dos rendimentos do trabalho dependente auferidos em Portugal e, bem assim, dos rendimentos prediais e dividendos que beneficiaram de isenção ao abrigo do estatuto de “residente não habitual”), no ano ... de 2021, foram indevidamente sujeitos a dupla tributação jurídica internacional (em Portugal e na Irlanda), com o consequente apuramento de uma taxa final efetiva de imposto ... sobre os referidos rendimentos de 69%, conforme se demonstra inequivocamente na tabela seguinte (todos os valores estão em euros):
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Pelo que ocorreu dupla tributação jurídica internacional, situação que “não pode subsistir ... ainda que se entenda que a respetiva eliminação não deverá ocorrer à luz da Convenção para eliminação da Dupla Tributação (“CDT”) celebrada entre Portugal e a Irlanda”, uma vez que “a dupla tributação jurídica internacional sobre os rendimentos em causa auferidos pelo requerente em 2021 não decorre, nem expressa, nem implicitamente, das regras de repartição do poder tributário de cada um dos Estados consagradas na CDT celebrada entre Portugal e a Irlanda”.
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“Decorre antes, exclusivamente, das regras internas irlandesas aplicáveis aos “não residentes” naquele país (como é o caso do requerente), anteriormente descritas, das quais resultam que, sempre que estes qualifiquem como “ordinarily residents” são tributados sobre os rendimentos mundialmente auferidos durante o período correspondente aos três anos subsequentes ao ano de saída da Irlanda (período este que, no caso do requerente, abrange precisamente o ano de 2021 aqui em causa)”, pela razão de que “... apesar deste regime vigorar na legislação nacional irlandesa, os efeitos da sua aplicação não estão previstos nem salvaguardados na CDT celebrada entre Portugal e a Irlanda, nem tão pouco no Protocolo que revê a CDT assinado a 11 de Novembro de 2005”, daqui se extraindo que “... a Irlanda tributou estes rendimentos apenas sob a égide da lei interna, extrapolando, assim, as disposições constantes da CDT celebrada com Portugal”.
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Relativamente às desconformidades com a lei refere o seguinte:
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Ocorre desconformidade com o referido no artigo 81.º, n.º 1, do CIRS, a que acresce a violação dos princípios da igualdade, da legalidade e da justiça material consagrados no artigo 5.º, da LGT. Pois que,
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Não é razoável que recaia sobre o Requerente o encargo de suportar 69% de imposto agregado (Portugal e Irlanda) sobre determinados rendimentos, colocando-o numa situação francamente desproporcional e desigual face aos demais contribuintes a quem o acesso ao método de crédito de imposto não é negado pela AT. Uma vez que,
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Tal resultaria na violação dos princípios da capacidade contributiva -
artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República portuguesa (“CRP”) -, bem como da proporcionalidade, da igualdade, da segurança jurídica e da proteção da confiança, que defluem do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da CRP.
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Ocorre desrespeito ainda pelos princípios fundamentais de Direito Europeu ao comprometer a livre circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), na medida em que “a eliminação da dupla tributação internacional ao nível do Estado da residência assenta, entre outros, num princípio de neutralidade na exportação de capitais, segundo o qual os rendimentos obtidos noutros Estados, por um sujeito passivo residente, devem ficar abrangidos por um tratamento fiscal similar ao aplicável aos rendimentos por este obtidos no Estado de residência.” .
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Uma vez que “... uma eventual interpretação da lei interna (artigo 81.º, n.º 1, do CIRS) no sentido do não reconhecimento, no Estado da residência (Portugal), aos contribuintes inevitavelmente afetados pelo regime específico Irlandês (à margem da Convenção aplicável), do seu direito à eliminação da dupla tributação internacional sobre os rendimentos objeto de tributação quer em Portugal, quer na Irlanda (ao abrigo do referido regime dos ordinarily residents), impondo-lhes assim uma carga tributária final substancialmente superior à que suportam os demais contribuintes que aufiram rendimentos no estrangeiro (incluindo os obtidos em países com os quais Portugal não celebrou Convenção para eliminação da dupla tributação, e que beneficiam da aplicação do método unilateral de eliminação da dupla tributação previsto na nossa lei interna) é, sem dúvida, inconstitucional (por desproporcional e desigual) e violadora da liberdade de livre circulação consagrada no TFUE.”.
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Invoca o Requerente três decisões adoptadas pelos tribunais do CAAD: P 283/2017-T; P 47/2020-T e P. 556/2020-T.
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A AT, referindo que ocorreu o acto presumido de indeferimento tácito da reclamação graciosa, veio, na sua resposta, impugnar o alegado no PPA, pugnando por leitura diversa dos factos, mas não a prova documental junta:
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Juntou o PA com informação da DS de Relações Internacionais que refere “a questão sobre a aplicação de uma convenção ou do n.º 1 do art. 81º CIRS, existindo uma determinada convenção sobre a matéria em causa (no caso concreto CDT Portugal/Irlanda) aplica-se sempre a convenção por se tratar de direito internacional, o qual prevalece sobre o direito interno”.
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Impugna o PPA partindo do pressuposto que “o contribuinte declarou rendimentos de capitais de fonte britânica e irlandesa, e rendimentos de mais valias de fonte luxemburguesa e irlandesa” pelo que propugna a apreciação do PPA à luz das Convenções para Evitar a Dupla Tributação (“CDT”) com a Irlanda, o Reino Unido e o Luxemburgo. Assim:
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Quanto rendimentos de dividendos (capitais) de fonte britânica, considera ser aplicável a CDT Portugal-Reino Unido, pelo que não foi considerado crédito de imposto uma vez que, o montante de imposto pago no Reino Unido, inscrito na declaração de rendimentos, excede a taxa de tributação de 15% prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 10.º da CDT Portugal-Reino Unido, e, não foi exibido documento comprovativo do montante do imposto pago naquele país.
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Pelo que “... não pode ser considerado o imposto eventualmente pago na Irlanda, dado que a CDT aplicável é a de Portugal (Estado da residência) com o Reino Unido (Estado da fonte)”.
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Quanto aos rendimentos de capitais de fonte Irlandesa refere que “... este elemento do rendimento tem enquadramento no n.º 1 do artigo 22.º (“Outros Rendimentos”) da CDT Portugal-Irlanda” , considera que face ao n.º 1 do artigo 22.º (“Outros Rendimentos”) da CDT Portugal-Irlanda, a competência de tributação dos rendimentos provenientes de distribuições de fundos de investimento pertence exclusivamente a Portugal (Estado da residência), por não serem considerados dividendos ou juros, nos termos das definições dadas, respetivamente, pelos n.ºs 3 do artigo 10.º e 4 do artigo 11.º ambos da CDT Portugal-Irlanda.
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Por outro lado, no que se refere à eliminação da dupla tributação, uma vez que nos termos do n.º 1 do artigo 22.º da CDT Portugal-Irlanda, a Irlanda não pode tributar os rendimentos provenientes de distribuições de fundos de investimento, pois a competência de tributação é atribuída exclusivamente a Portugal, não há lugar à atribuição de crédito de imposto para eliminação da dupla tributação internacional, a contrario do disposto no n.º 2 do artigo 23.º da CDT Portugal-Irlanda.
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Quanto à tributação de mais-valias de fonte luxemburguesa, refere que face ao n.º 4 da CDT Portugal-Luxemburgo não existe lugar a atribuição de crédito de imposto para eliminar a dupla tributação internacional, a contrario do disposto na al. a) do n.º 2 do artigo 24.º da CDT Portugal-Luxemburgo, acrescendo que não pode ser considerado o imposto pago na Irlanda, dado que a CDT aplicável é a de Portugal (Estado da residência) com o Luxemburgo (Estado da fonte).
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Relativamente aos rendimentos de mais-valias originados pelo resgate de participações de fundos de investimento de fonte irlandesa considera face ao n.º 5 do artigo 13.º da CDT Portugal-Irlanda que a “Irlanda não pode tributar os rendimentos provenientes do resgate de participações de fundos de investimento, pois a competência de tributação é atribuída exclusivamente a Portugal, não há lugar atribuição de crédito de imposto para eliminação da dupla tributação internacional, a contrario do disposto no n.º 2 do artigo 23.º da CDT Portugal-Irlanda”.
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Por último refere a AT que “Portugal ... cumpriu o disposto nas CDT’s” resultando que o Requerente “... vem indevidamente colocar o ónus da eliminação da dupla tributação internacional” a Portugal, sendo que “a liquidação automática de IRS é efetuada em conformidade com as normas constantes das CDT’s celebradas com as respetivas jurisdições, pelo que, não existindo lugar a crédito de imposto previsto na CDT aplicável, não existe lugar à sua concessão”.
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Saneamento
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O Tribunal foi regularmente constituído à face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT, e é competente. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março). O processo não enferma de nulidades.
III – 1 - Matéria de facto
§ 1º - Factos provados
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Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
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O Requerente tem nacionalidade irlandesa (passaporte n.º ... de 09.10.2018, emitido em Dublin) e encontra-se registado desde 2019 como residente fiscal em Portugal, beneficiando do estatuto de “residente não habitual” e anteriormente foi residente fiscal na Irlanda, incluindo nos 3 anos imediatamente anteriores à sua transferência de residência para Portugal, ou seja, nos anos de 2016, 2017 e 2018 – conforme artigos 18.º e 19.º do PPA e Documento n.º 3 em anexo ao PPA;
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Em virtude da referida transferência de residência para Portugal, o Requerente passou a qualificar-se como “não residente” fiscal na Irlanda, incluindo no ano de 2021 e passou a estar abrangido pelo regime interno irlandês aplicável aos ordinarily residents, em virtude de ter sido residente fiscal na Irlanda por três anos consecutivos em 2016, 2017 e 2018, o que se manteve não apenas no ano da transferência de residência para Portugal em 2019, como também no anos seguintes de 2020 e 2021 – conforme artigos 20.º a 22.º do PPA e Documentos n.ºs 4 e 5 juntos com o PPA;
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A síntese do regime fiscal irlandês aplicável aos ordinarily residents encontra-se disponível em https://www.revenue.ie/en/jobs-and-pensions/tax-residence/index.aspx e https://www.revenue.ie/en/jobs-and-pensions/tax-residence/ordinarily-resident-tax-purposes.aspx - conforme artigo 21.º do PPA e nota de rodapé do PPA n.º 1 página 6/29;
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O Requerente em 21 de junho de 2022, apresentou uma primeira declaração Modelo 3 de IRS respeitante ao ano de 2021 (identificada como 2021‑...), na qual reportou unicamente os rendimentos de trabalho dependente de fonte portuguesa e em 27 de Dezembro de 2022, procedeu à entrega da declaração de IRS – Modelo 3, de substituição (identificada como 2021...) , na qual reportou todos os referidos rendimentos por si mundialmente auferidos em 2021, tendo a mesma originado a liquidação n.º 2023... que constitui objecto do presente pedido de pronúncia arbitral – conforme artigo 24.º e 30.º do PPA, nota de rodapé n.º 2 na página 6/29 e Documentos 1 e 6 juntos com o PPA;
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O Requerente no âmbito da referida declaração de substituição do ano de 2021 reportou, no Anexo J (“rendimentos obtidos no estrangeiro”), os seguintes rendimentos de fonte estrangeira:
- conforme artigo 25.º do PPA e Documento n.º 6 em anexo ao PPA;
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O Requerente no âmbito da referida declaração de substituição do ano de 2021: (1) não optou pelo englobamento dos rendimentos e ganhos sujeitos a taxas especiais;
(2) assinalou no Anexo L (“residentes não habituais”), a opção pela aplicação do método da isenção, ao abrigo do seu estatuto de “residente não habitual”, para efeitos da eliminação da dupla tributação sobre os seus rendimentos de fonte estrangeira;
(3) não indicou o montante de imposto pago no estrangeiro sobre os rendimentos aqui em causa por entender que, nos casos em que não fosse aplicável o método da isenção (ao abrigo do seu estatuto de “residente não habitual”), o sistema informático da AT não consideraria automaticamente a atribuição de qualquer crédito de imposto – conforme artigos 26.º a 28.º do PPA e Documento 6 em anexo ao PPA;
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Face à declaração de substituição resultou imposto a pagar no montante de 49.802,19€, a que acresceram os correspondentes juros compensatórios de 1.105,70€, num montante total a pagar de 50.907,89€ e que foi efectivamente pago pelo Requerente, acrescido de 9.299,32€ correspondentes à anulação do reembolso (estorno) nesse montante que havia sido apurado na substituída e anterior liquidação de IRS, num total pago de 60.207,21€ – conforme artigo 30.º-IV do PPA e Documento n.º 7 em anexo ao PPA;
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Em virtude da sua qualificação como ordinarily resident na Irlanda, o Requerente entregou naquele país uma declaração de rendimentos quanto ao ano de 2021, reportando os rendimentos mundialmente auferidos no ano, com exceção dos rendimentos do trabalho de fonte portuguesa, a saber:
- conforme artigo 32.º do PPA e Documentos n.ºs 4 e 5 em anexo ao PPA;
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O Requerente procedeu ao pagamento do imposto devido na Irlanda em 16 de novembro de 2022 – conforme artigo 33.º do PPA e Documentos n.ºs 8 e 9 em anexo ao PPA;
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Os rendimentos obtidos pelo Requerente (com exceção dos rendimentos do trabalho dependente auferidos em Portugal e, bem assim, dos rendimentos prediais e dividendos que beneficiaram em Portugal de isenção ao abrigo do estatuto de “residente não habitual”), no ano de 2021, foram sujeitos a tributação em Portugal e na Irlanda, com o consequente apuramento de uma taxa final efetiva de imposto suportada de acordo com tabela seguinte:
- conforme artigo 34.º do PPA;
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Em 14 de junho de 2023, o Requerente enviou à AT via mail (e em 16.06.2023 foi considerada recebida pela AT), uma reclamação graciosa visando a apreciação da legalidade da liquidação de IRS que constitui objeto do presente pedido de pronúncia arbitral e até à data da entrega do PPA no CAAD não obteve resposta por parte da AT – conforme artigos 4.º e 5.º do PPA, ponto 4 da Resposta da AT, Documento n.º 2 em anexo ao PPA e Documentos que integram o PA;
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Consta do PA a informação da DS de Relações Internacionais da AT o seguinte: “Vimos por este meio remeter o pedido da Direção de Finanças de Lisboa uma vez que estamos perante um contribuinte com o estatuto de residente não habitual, no que diz respeito à tributação e enquadramento dos rendimentos em sede de CIRS assim como o preenchimento da declaração de IRS consiste em matéria da competência da Direção de Serviços do IRS, pelo que deverá ser a v/ Direção de Serviços pronunciar-se sobre o assunto.
Mais se informa que, no âmbito das competências desta Direção de Serviços, a questão sobre a aplicação de uma convenção ou do nº 1 do art. 81º CIRS, existindo uma determinada convenção sobre a matéria em causa (no caso concreto CDT Portugal/Irlanda) aplica-se sempre a convenção por se tratar de direito internacional, o qual prevalece sobre o direito interno”.
- conforme PA junto pela AT;
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Em 29.12.2023 foi apresentado no CAAD o presente PPA – conforme registo no SGP do CAAD.
§ 2º - Factos não provados
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Com relevo para a decisão da causa não se provou o pagamento pelo Requerente de imposto no Reino Unido e no Luxemburgo, sobre os rendimentos referidos na alínea E) dos factos provados, cuja fonte eram aqueles Estados.
§ 3º - fundamentação da decisão da matéria de facto
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Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
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Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da (s) questão (ões) de direito (conforme artigo 596.º, do CPC aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
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Os factos foram dados como provados com base na posição das partes expressas nos documentos juntos e nos articulados, que foram valorados de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
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Relativamente aos rendimentos com fonte na Irlanda cujo pagamento de imposto pelo Requerente naquele Estado se deu como assente nas alíneas E), H) e I) dos factos provados, sublinha-se que seguiu este Tribunal Arbitral a posição segundo a qual a comprovação do imposto pago no estrangeiro, designadamente para efeitos do apuramento do crédito por dupla tributação jurídica internacional, pode ser feita por qualquer meio de prova admitido em direito, tal qual sustentado no acórdão arbitral proferido em 14 de Dezembro de 2022, no processo n.º 225/2022-T.
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Quanto aos factos não provados, regista-se desde logo que a falta de indicação, no anexo J da declaração Modelo 3 de IRS, do montante de imposto suportado no Reino Unido e no Luxemburgo, obsta à aplicação da presunção de veracidade e boa-fé estabelecida no artigo 75.º, n.º 1, da LGT.
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Deste modo, impunha-se ao Requerente a prova do pagamento de imposto naqueles Estados. Prova esta que o Requerente não logrou fazer tal qual invocado pela Requerida, já que não foram junto aos autos quaisquer documentos comprovativos daqueles factos, razão pela qual foram os mesmos julgados não provados.
III – 2 - Matéria de direito
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A questão de fundo no presente processo reside em apurar se o Requerente tinha ou não direito a um crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, ao abrigo do artigo 81.º, n.º 1 do Código do IRS, relativamente ao imposto suportado na Irlanda sobre rendimentos de capitais correspondentes a distribuições por fundos de investimento de fonte irlandesa no valor de 5.798,00€ (“outros rendimentos de capitais”) e, bem assim, sobre o saldo positivo das mais-valias apuradas com o resgate de unidades de participação em fundos de investimento de fonte irlandesa e luxemburguesa no valor de 205.279,00€ (“mais-valias”).
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Resulta dos factos provados que no ano de 2019 o Requerente passou a ser residente fiscal em Portugal e a beneficiar do estatuto de “residente não habitual”. Ao manter estas condições em 2021, foi nesse ano tributado sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território, em conformidade com o princípio da tributação universal (worldwide income principle) previsto no artigo 15.º do Código do IRS.
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Simultaneamente, o Requerente passou em 2019 a ser considerado “não residente” para efeitos fiscais na Irlanda, contudo, por ter sido residente fiscal naquele Estado por três anos consecutivos, ficou abrangido pelo regime dos ordinarily residents nos três anos imediatamente seguintes, tendo sido igualmente tributado em 2021 naquele Estado sobre a totalidade dos seus rendimentos, conforme invocado pelo Requerente nos artigos 32.º e 45.º do PPA.
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Portanto, em resultado da aplicação concomitante das normas internas vigentes em Portugal e na Irlanda, o Requerente foi duplamente tributado enquanto residente no ano de 2021, já que não foram apenas sujeitas a tributação as fontes de rendimento localizadas naqueles Estados mas antes todos os rendimentos auferidos (worldwide income principle).
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Este conflito positivo de tributação configura uma situação de dupla tributação jurídica internacional, porquanto se verifica “a incidência, em mais do que um Estado, (i) de impostos equiparáveis, relativamente (ii) ao mesmo sujeito passivo, (iii) ao mesmo facto gerador de imposto, e (iv) ao mesmo período de tributação do rendimento. Entende-se que são impostos equiparáveis os impostos vigentes em vários Estados que, embora podendo ter denominações distintas, tenham uma natureza semelhante”, conforme refere Paula Rosado Pereira, Princípios do Direito Fiscal Internacional – Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu, Almedina, 2010 (reimpresso em 2016), p. 24.
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A dupla tributação jurídica internacional é eliminada ou mitigada pelos Estados através da adopção de medidas unilaterais e/ou bilaterais. Conforme se explicou a este respeito no acórdão arbitral proferido em 26 de Março de 2021, no processo n.º 47/2020-T:
“(…) por forma a eliminar a dupla tributação internacional e obviar às consequências negativas que a mesma representa para o desenvolvimento da atividade económica internacional, foram colocados à disposição dos Estados, dois tipos de instrumentos, a saber:
i) as medidas unilaterais – disposições internas dos Estados – e;
ii) as medidas bilaterais – tratados ou convenções de dupla tributação internacional.
28. No tocante às medidas unilaterais, ensina AMÉRICO BRÁS CARLOS que “Os mecanismos unilaterais são, como o próprio nome indica, mecanismos internos de eliminação de dupla tributação internacional adoptados por cada Estado, sem a necessária correspondência em outros ordenamentos. Estes mecanismos podem agir relativamente à matéria colectável auferido no estrangeiro, isentando-a (Isenção integral ou progressiva), ou em relação ao imposto ali pago, permitindo a sua dedução ao imposto a pagar no país da sua residência (crédito de imposto, como seja o artigo 81.º do CIRS e o artigo 91.º do CIRC).”
29. Quanto às medidas bilaterais, temos as denominadas Convenções para Eliminar a Dupla Tributação Internacional, que se consubstanciam nos “tratados internacionais celebrados entre dois Estados – Estado da fonte e o Estado da residência – através dos quais estes regulam entre si o modo de tributar factos que, por força dos elementos de conexão utilizados se compreendem no âmbito de aplicação tributária de ambos os Estados, de modo a eliminar a dupla tributação.”, as quais não eliminando completamente a dupla tributação, sempre a poderão atenuar.”.
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Conforme também se explicou no acórdão arbitral n.º 47/2020-T, entre as medidas bilaterais e unilaterais têm prevalência as primeiras por força do artigo 8.º, n.º 2 da CRP e nos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena. Nas palavras daquele Tribunal:
“48. Sobre este assunto elucida-nos, ALBERTO XAVIER, in obra citada, pág. 117 que: “No direito português não existe, (…), acto de transformação do direito convencional em direito interno. Com efeito o n.º 2 do artigo 8.º da Constituição (que manteve intacta a sua redacção, mesmo após as revisões constitucionais subsequentes) dispõe que as normas constantes de convenções internacionais validamente celebradas (e, portanto regulamente ratificadas e aprovadas) vigoram na ordem interna logo que publicadas. Daqui decorre que os tratados são fonte imediata de direito e obrigações para os seus destinatários, podendo ser invocados, como tal, perante os tribunais (princípio da eficácia directa e imediata); e que à interpretação dos seus preceitos são aplicáveis as regras da hermenêutica que vigoram quanto aos tratados e, não as que respeitam à legislação interna de cada Estado contratante. Por outras palavras, o direito português consagra uma cláusula geral de recepção automática plena do direito internacional convencional, de harmonia com a visão monista, ou seja, a cláusula pela qual o Direito Internacional Público adquire relevância na ordem interna, independentemente de outra formalidade que não seja a mera publicação. O direito internacional vigora, assim, na ordem interna portuguesa, por efeito da vinculação internacional do Estado português e vigora na sua qualidade de direito interncional, não sendo necessária uma “transformação” ou “ordem de execução”, caso a caso, ou seja, entrando em vigor independentemente de conversão legal (princípio da aplicabilidade directa ou imediata).”
49. Não obstante, a superioridade hierárquica dos tratados se encontrar proclamada quer no disposto nos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena, bem como no n.º 2 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, “[d]aqui decorrem duas conclusões: (a) a de que o Direito Internacional convencional é colocado na ordem jurídica interna num grau hierárquico superior ao da lei; (b) a de que, em caso de conflito, o tratado se sobrepõe à lei interna. Esta é a posição consagrada do Tribunal Constitucional. A supremacia do tratado sobre a lei interna não se traduz, porém na revogação desta última. Com efeito, não se está aqui perante um fenómeno ab-rogativo, já que a lei interna mantém a sua eficácia plena fora dos casos subtraídos à sua aplicação pelo tratado. Trata-se, isso sim, de limitação da eficácia da lei que se torna relativamente inaplicável a certo círculo de pessoas e situações, limitação esta que caracteriza precisamente o instituto da derrogação.”10, a verdade é que, esta questão - quanto ao primado das leis internacionais aprovadas e ratificadas pelo Estado português – deverão ser aferidas no presente caso.”.
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Assim sendo, haverá que indagar em primeiro lugar sobre a aplicabilidade ao caso concreto das medidas bilaterais previstas na Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento assinada em Dublin em 1 de Junho de 1993 e aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 29/94, de 9 de Fevereiro (“CDT Portugal – Irlanda”) e sobre as consequências dela resultantes para efeitos de eliminação da dupla tributação jurídica internacional, dada a prevalência da regulação ali prevista sobre o regime tributário interno português.
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No pedido de pronúncia arbitral invocou o Requerente que a CDT Portugal – Irlanda não era aplicável ao presente caso porque os efeitos do regime dos ordinarily residents não estariam abrangidos pela convenção, assim defendendo o recurso directo ao mecanismo unilateral previsto no artigo 81.º do Código do IRS.
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Acontece que tal pressuposto está errado. É que se assim fosse, não poderia o Requerente ter exercido a opção de beneficiar, quanto aos rendimentos prediais de fonte irlandesa, do método da isenção previsto no artigo 81.º, n.º 5, alínea a) do Código do IRS, que depende precisamente da possibilidade de os rendimentos “ser[em] tributados no outro Estado contratante, em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado”. (destaque nosso)
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Ainda que na declaração de rendimentos modelo 3 de IRS o Requerente tenha exercido a opção pelo método da isenção quanto aos rendimentos prediais de fonte irlandesa auferidos em 2021 e ainda que essa opção, que não foi contestada pela Requerida, pressuponha a aplicação da CDT Portugal – Irlanda, é em todo o caso necessário aferir a sua concreta e efectiva aplicabilidade aos rendimentos e à factualidade objecto dos presentes autos.
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Conforme se avançou, a situação de dupla tributação jurídica internacional, tal qual invocada pelo Requerente resultou, respectivamente, da tributação simultânea em Portugal e na Irlanda como residente não habitual e como ordinarily resident.
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Por força da aplicação daqueles regimes, o Requerente foi sujeito a imposto nos dois Estados nos termos aplicáveis aos residentes, isto é, sobre os rendimentos auferidos de base mundial (worldwide income principle).
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Ao nível da CDT Portugal – Irlanda, determina-se no artigo 4.º, n.º 1 que “Para efeitos desta Convenção, a expressão «residente de um Estado Contratante» significa qualquer pessoa que, por virtude da legislação desse Estado, está aí sujeita a imposto devido ao seu domicílio, à sua residência, ao local de direcção ou a qualquer outro critério de natureza similar. Todavia, esta expressão não inclui qualquer pessoa que está sujeita a imposto nesse Estado, apenas relativamente ao rendimento de fontes localizadas nesse Estado.”.
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Na Irlanda, o estatuto de ordinarily resident foi atribuído com base na residência, ainda que anterior, do sujeito passivo. O conceito de “residência” não é aqui aplicável tout court, num sentido de “residência actual”, porém, a verdade é que os ordinarily residents são sujeitos a imposto na Irlanda, em conformidade com o declarado pelo Requerente, em virtude de uma extensão temporal dos efeitos da residência, o que consiste num “critério de natureza similar” a um critério material de residência, nos termos e para os efeitos do artigo 4.º, n.º 1, primeira parte da CDT Portugal – Irlanda.
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Em Portugal, o estatuto de residente não habitual foi atribuído ao Requerente porque este se tornou residente fiscal sem que tenha sido residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, nos termos previstos no artigo 16.º, n.ºs 1, 2 e 8 do Código do IRS, na redacção aplicável à data dos factos. O que significa que também foi aplicado um critério material de residência, respeitando‑se assim o âmbito convencional de atribuição de residência previsto no artigo 4.º, n.º 1, primeira parte da CDT Portugal – Irlanda.
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Na segunda parte, do n.º 1, do artigo 4.º da CDT Portugal – Irlanda, estabelece‑se uma delimitação negativa do conceito de “residente”, nos termos da qual não poderá ser assim considerado para efeitos convencionais quem apenas seja tributado num dos Estados quanto aos rendimentos de fontes nele localizadas.
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Apelando aos comentários 8. a 8.3 ao artigo 4.º, n.º 1 da Convenção Modelo OCDE, na redacção de 21 de Novembro de 2017, é possível concluir que a limitação de atribuição convencional de residência acima referida tem como finalidade impedir a verificação da incidência subjectiva relativamente a sujeitos passivos que são considerados residentes ao abrigo da legislação interna de um Estado mas que apenas são aí sujeitos a tributação sobre fontes específicas de rendimento com isenção total ou quase total de tributação sobre rendimentos de fonte estrangeira, conforme sucede com os casos paradigmáticos de tributação de shell companies ou conduit companies em “paraísos fiscais”.
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Ora, não se verifica na presente situação que na Irlanda o Requerente tenha suportado imposto apenas relativamente a rendimentos de fontes aí localizadas.
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É que por força do regime dos ordinarily residents previsto na secção 821 do Taxes Consolidation Act 1997 irlandês, o Requerente foi tributado sobre os rendimentos de base universal com excepção dos rendimentos provenientes de (i) uma actividade comercial ou profissional que não seja exercida parcialmente na Irlanda, de (ii) um cargo ou emprego, cujas funções sejam exercidas na sua totalidade fora da Irlanda e (iii) dos rendimentos que no ano em causa não excedam £3.000,00.
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É certo que o referido regime excepciona a tributação de alguns rendimentos de fonte estrangeira, contudo, não se determina ali um regime especial de tributação que apenas onera rendimentos de fonte irlandesa, com incidência sobre fontes específicas de rendimento e isenção ou não sujeição da generalidade dos demais rendimentos, mormente de fonte estrangeira (limited tax liability).
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O que de resto se torna evidente se se considerar que o Requerente invoca a ilegalidade do acto de liquidação de IRS visado no presente processo por não ter sido concedido um crédito face ao imposto pago na Irlanda quanto a rendimentos com fonte no Reino Unido e no Luxemburgo.
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Idêntica conclusão vale relativamente a Portugal, onde a aplicação quanto a certas categorias de rendimentos, de uma taxa especial de tributação de 20% e 28%, bem como a aplicação do método de isenção para eliminar a dupla tributação internacional, previstos respectivamente nos artigos 72.º e 81.º do Código do IRS nas redacções vigentes à data, não anula o âmbito de sujeição universal a tributação consagrado no artigo 15.º do Código do IRS.
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Portanto, nos termos do artigo 4.º, n.º 1 da CDT Portugal – Irlanda, e para os efeitos previstos na convenção, o Requerente enquanto ordinarily resident e enquanto residente não habitual, é prima facie considerado residente dos dois Estados Contratantes (Irlanda e Portugal).
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Em todo o caso, resulta da mecânica de aplicação das convenções para evitar a dupla tributação que a residência convencional apenas pode ser atribuída a um Estado, actuando o outro enquanto Estado da fonte de produção ou pagamento dos rendimentos (sem prejuízo da convocação de outros elementos de conexão).
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Este (aparente) conflito de residências é resolvido nos termos do artigo 4.º, n.º 2, da CDT Portugal – Irlanda, através da aplicação dos seguintes critérios de desempate:
“Quando, por virtude do disposto no n.º 1, uma pessoa singular for residente de ambos os Estados Contratantes, a situação será resolvida como segue:
a) Será considerada residente do Estado Contratante em que tenha uma habitação permanente à sua disposição. Se tiver uma habitação permanente à sua disposição em ambos os Estados Contratantes, será considerada residente do Estado Contratante com o qual sejam mais estreitas as suas relações pessoais e económicas (centro de interesses vitais);
b) Se o Estado Contratante em que tem o centro de interesses vitais não puder ser determinado ou se não tiver uma habitação permanente à sua disposição em nenhum dos Estados Contratantes, será considerada residente do Estado Contratante em que permaneça habitualmente;
c) Se permanecer habitualmente em ambos os Estados Contratantes ou se não permanecer habitualmente em nenhum deles, será considerada residente do Estado de que for nacional;
d) Se for nacional de ambos os Estados Contratantes ou não for nacional de nenhum deles, as autoridades competentes dos Estados Contratantes resolverão o caso de comum acordo”.
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Apesar de as partes não terem abordado em concreto o preenchimento desta norma e dos conceitos por ela convocados, é possível inferir com base nos elementos carreados aos autos e nas regras da experiência comum, que é em Portugal que está o seu centro de interesses vitais e é aqui que o Requerente permanece habitualmente, já que em 2019 transferiu a sua residência fiscal para Portugal, onde passou a exercer a sua profissão.
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Neste sentido, para efeitos da CDT Portugal – Irlanda o Requerente apenas será considerado residente fiscal em Portugal, sendo assim a Irlanda o Estado da fonte.
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Regista-se apenas que idêntica conclusão resultaria da anterior exclusão da atribuição de residência convencional ao Requerente enquanto ordinarily resident na Irlanda, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, da CDT Portugal – Irlanda.
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Por outras palavras, caso se tivesse considerado que os ordinarily residents na Irlanda não são sujeitos a tributação em moldes similares aos residentes (full tax liability), a consequência seria o não preenchimento do conceito de residência convencional pelo Requerente, o que significa que Portugal também seria para efeitos da CDT Portugal – Irlanda o Estado da residência enquanto a Irlanda também seria considerada como Estado da fonte.
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Assim sendo, em qualquer dos casos seria idêntica a lógica de aplicação da CDT Portugal – Irlanda no que respeita à aplicação das normas de distribuição de competência tributária e dos métodos de eliminação da dupla tributação.
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Regista-se ainda que quer o imposto de rendimentos e de mais-valias vigente na Irlanda quer o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares são impostos visados no artigo 2.º da CDT Portugal – Irlanda.
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Prosseguindo e recordando, o Requerente invocou que a dupla tributação ocorreu, por um lado, quanto aos rendimentos de capitais correspondentes a distribuições por fundos de investimento de fonte irlandesa (“outros rendimentos de capitais”) e, por outro lado, sobre o saldo positivo das mais-valias apuradas com o resgate de unidades de participação em fundos de investimento de fonte irlandesa e luxemburguesa (“mais-valias”).
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Relativamente aos “outros rendimentos de capitais”, estão em causa rendimentos que não encontram regulação específica e autónoma na convenção, isto é, que não se subsumem a nenhuma das categorias expressamente mencionadas nos artigos 6.º a 21.º da CDT Portugal – Irlanda.
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Estes são assim rendimentos aos quais é aplicável o disposto no artigo 22.º da CDT Portugal – Irlanda, que na redacção à data dos factos dispunha, ao que importa, que “Os elementos do rendimento de um residente de um Estado Contratante e donde quer que provenham não tratados nos artigos anteriores desta Convenção só podem ser tributados nesse Estado.”.
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Quer isto dizer que a convenção atribui a Portugal, enquanto Estado da residência, a competência exclusiva para tributar os rendimentos em causa.
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Quer isto dizer também que o Requerente foi indevidamente sujeito a tributação na Irlanda, que não tinha no presente caso competência tributária por força da aplicação da CDT Portugal – Irlanda.
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Consequentemente, incumbe à Irlanda e não a Portugal a responsabilidade de eliminação da dupla tributação jurídica internacional.
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É que nos termos do artigo 23.º, n.º 2 da CDT Portugal – Irlanda, na redacção vigente à data dos factos, previa-se para efeitos de eliminação da dupla tributação que:
“Quando um residente de Portugal obtiver rendimentos que, de acordo com o disposto nesta Convenção, possam ser tributados na Irlanda, Portugal deduzirá do imposto sobre os rendimentos desse residente uma importância igual ao imposto sobre o rendimento pago na Irlanda.
A importância deduzida não poderá, contudo, exceder a fracção do imposto sobre o rendimento, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados na Irlanda.”. (negrito nosso)
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Ora, se no presente caso os “outros rendimentos de capitais” não podiam de acordo com o disposto na convenção ser tributados na Irlanda, não compete a Portugal, enquanto Estado da residência, atribuir ao Requerente um crédito pelo imposto indevidamente suportado no Estado da fonte.
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Dito de outro modo, era ao Estado da fonte que competia eliminar a dupla tributação através da devolução do imposto ilegalmente cobrado ao Requerente.
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Já no que respeita aos rendimentos de “mais-valias”, é necessário distinguir os rendimentos provenientes de fonte irlandesa e de fonte luxemburguesa.
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Isto na medida em que a CDT Portugal – Irlanda não é passível de ser invocada para regular a tributação suportada na Irlanda quanto a rendimentos gerados no Luxemburgo.
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Com efeito, do princípio da relatividade dos tratados decorre que as convenções para evitar a dupla tributação apenas são invocáveis por residentes de um Estado Contratante face a rendimentos associados a um outro Estado Contratante através de um determinado elemento de conexão, excluindo-se assim a aplicação dos efeitos associados às convenções a Estados terceiros, alheios a tal relação bilateral.
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No presente caso são convocados na aplicação das convenções os elementos de conexão “residência” em Portugal e “fonte de produção ou pagamento” na Irlanda ou no Luxemburgo.
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Nesta medida, nos casos em que a relação Estado da residência – Estado da fonte seja Portugal-Luxemburgo, não é invocável pelo Requerente a CDT Portugal‑Irlanda, porque a Irlanda é um Estado terceiro não abrangido pelos efeitos da convenção Portugal-Luxemburgo.
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Dito noutros termos, inexiste um elemento de conexão entre os ordenamentos jurídico-tributários português e irlandês que permita convocar a aplicação da CDT Portugal – Irlanda, no que respeita aos rendimentos com fonte no Luxemburgo auferidos por residente em Portugal.
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Para que melhor se compreenda este ponto, vejam-se os comentários 1. a 3. ao artigo 21.º da Convenção Modelo OCDE, na redacção de 21 de Novembro de 2017, cuja tradução livre estabelecem, ao que importa, o seguinte:
“1. O presente artigo enuncia uma norma geral relativamente aos rendimentos não tratados nos artigos precedentes da Convenção [que atribui competência tributária exclusiva ao Estado da Residência].
Os rendimentos considerados não são apenas os que se integram numa categoria não tratada expressamente, mas também os que provêm de fontes não expressamente mencionadas. A aplicação do presente artigo não se restringe aos rendimentos cuja fonte se situa num Estado Contratante; é extensiva igualmente aos rendimentos provenientes de Estados terceiros. Quando, por exemplo, uma pessoa que, segundo o disposto no número 1 do artigo 4.º, seria residente de dois Estados Contratantes é considerada residente apenas de um desses Estados de acordo com as disposições dos números 2 ou 3 desse artigo, o presente artigo impede o outro Estado de tributar essa pessoa pelo rendimento obtido de Estados terceiros, mesmo que a pessoa seja residente desse outro Estado para efeitos da legislação interna (…).
Número 1
2. Por força do presente número, o direito de tributação cabe exclusivamente ao Estado da residência. No caso de conflito entre duas residências, o artigo 4.º definirá igualmente o direito de tributar no que respeita aos rendimentos provenientes de um Estado terceiro.
3. (…) De igual modo, quando o rendimento provém de um Estado terceiro e o respectivo beneficiário é considerado residente pelos dois Estados Contratantes de harmonia com o seu direito interno, resulta da aplicação do disposto no artigo 4.º que esse beneficiário será tratado como residente de apenas de um dos Estados Contratantes e só ficará totalmente sujeito a imposto ("sujeição plena a imposto") neste Estado. Neste caso, o outro Estado Contratante não poderá tributar o rendimento proveniente do Estado terceiro, mesmo que o beneficiário respectivo não seja tributado no Estado de que é considerado residente nos termos do artigo 4.°”. (negrito nosso)
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Feito este excurso, conclui-se sem necessidade de maiores desenvolvimentos que nos termos da CDT Portugal – Irlanda, o Estado português não tem de atribuir um crédito de imposto quanto aos rendimentos de “mais-valias” de fonte luxemburguesa, já que na relação bilateral entre Portugal e Irlanda, é Portugal quem tem competência exclusiva para tributar rendimentos de fonte luxemburguesa.
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Acresce que esta distribuição de competência tributária é também a que resulta da aplicação da Convenção entre a República Portuguesa e o Grão-Ducado do Luxemburgo para Evitar as Duplas Tributações e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos Sobre o Rendimento e o Património, assinada em Bruxelas em 25 de Maio de 1999 e aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2000, de 27 de Abril (“CDT Portugal – Luxemburgo”).
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Com efeito, determina-se no artigo 13.º, n.º 4 da CDT Portugal – Luxemburgo que “Os ganhos provenientes da alienação de quaisquer outros bens diferentes dos mencionados nos n.ºs 1, 2 e 3 só podem ser tributados no Estado Contratante de que o alienante é residente.”.
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Uma vez que os rendimentos de mais-valias apuradas com o resgate de unidades de participação em fundos de investimento não se subsumem a nenhum dos casos visados nos n.ºs 1 a 3 daquela norma, resulta do citado n.º 4 a atribuição de competência tributária exclusiva a Portugal, que é o Estado da residência do Requerente.
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À semelhança do anteriormente referido quanto ao artigo 23.º, n.º 2 da CDT Portugal – Irlanda, também não se determina no artigo 24.º da CDT Portugal – Luxemburgo, na redacção conferida pela Convenção Multilateral para a Aplicação das Medidas Relativas às Convenções Fiscais Destinadas a Prevenir a Erosão da Base Tributária e a Transferência de Lucros adoptada em Paris, em 24 de Novembro de 2016 e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 225/2019 de 14 de Novembro (“MLI”), a imposição a Portugal, enquanto Estado da residência, da aplicação de quaisquer métodos para eliminar a dupla tributação, porque de acordo com o disposto na Convenção estão em causa rendimentos que não podem ser tributados no Luxemburgo.
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Tudo sem contar que o Requerente não logrou provar o pagamento de imposto no Luxemburgo, conforme resulta do probatório acima fixado.
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Por fim, quanto aos rendimentos de “mais-valias” de fonte irlandesa, verifica-se que a atribuição de competência é idêntica à que decorre da CDT Portugal – Luxemburgo.
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Também aqui se determina no artigo 13.º, n.º 5 da CDT Portugal – Irlanda, na redacção conferida pelo Protocolo entre a República Portuguesa e a Irlanda, assinado em Lisboa em 11 de Novembro de 2005, que revê a Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e Respectivo Protocolo, assinada em Dublin em 1 de Junho de 1993, e pelo MLI (“Protocolo de Revisão”), que “Os ganhos provenientes da alienação de quaisquer outros bens diferentes dos mencionados nos números anteriores deste artigo só podem ser tributados no Estado Contratante de que o alienante é residente.”.
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Ao não se subsumirem os rendimentos de mais-valias apuradas com o resgate de unidades de participação em fundos de investimento a nenhum dos casos visados nos n.ºs 1 a 4 daquela norma, resulta do citado n.º 5 a atribuição de competência tributária exclusiva a Portugal, que é o Estado da residência do Requerente.
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De notar que esta atribuição de competência a Portugal não é posta em causa pela cláusula de salvaguarda prevista no n.º 6 do artigo 13.º da CDT Portugal – Irlanda, adita pelo Protocolo de Revisão, que determina o seguinte:
“6 – O disposto no n.º 5 do presente artigo não afecta o direito de um Estado Contratante de, nos termos da legislação interna, cobrar um imposto sobre os ganhos provenientes da alienação de acções, valores mobiliários ou outras partes sociais de uma sociedade residente desse Estado Contratante, bem como de créditos sobre uma sociedade residente desse Estado Contratante, se os referidos ganhos não estiverem sujeitos a imposto no outro Estado Contratante, e
a) Os referidos ganhos forem auferidos por uma pessoa singular que é residente do outro Estado Contratante e que foi residente do primeiro Estado mencionado, em qualquer momento, durante os três anos que antecederam imediatamente a referida alienação;
e
b):
i) A pessoa singular que auferiu os ganhos deteve, directa ou indirectamente, em qualquer momento, só ou juntamente com o respectivo cônjuge ou com um dos seus familiares pelo sangue ou pelo casamento, pelo menos 5% do capital emitido correspondente a uma determinada categoria de acções dessa sociedade; ou
ii) O valor da participação exceder € 500 000.”. (negrito nosso)
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Tal como sublinhou o Requerente no pedido de pronúncia arbitral, os rendimentos aqui em causa estão e foram sujeitos a tributação em Portugal, pelo que a competência tributária continua a ser exclusiva do Estado português.
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Isto sendo certo que no artigo 23.º da CDT Portugal – Irlanda, mormente no seu n.º 2, não se estabelecem quaisquer métodos para eliminar a dupla tributação a ser aplicados por Portugal, já que não está em causa imposto que deva ser tributado na Irlanda.
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Aqui chegados, constata-se que a dupla tributação jurídica internacional invocada pelo Requerente é totalmente eliminada por força da aplicação da aplicação da CDT Portugal – Irlanda e da CDT Portugal – Luxemburgo, que afastam a competência tributária cumulativa do Estado da Residência e do Estado da Fonte em face da atribuição de competência tributária exclusiva ao Estado da Residência. O que vale quer para os rendimentos de capitais correspondentes a distribuições por fundos de investimento de fonte irlandesa quer para os rendimentos provenientes de resgate de unidades de participação em fundos de investimento de fonte irlandesa e luxemburguesa.
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Conforme ensina Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, 2.ª ed., Almedina, 2014, pp. 40‑42, estamos perante um caso típico de concurso aparente de normas e de dupla tributação virtual, em que não existe efectivamente dupla tributação porque ela é completamente eliminada com a atribuição de competência tributária a um único Estado. Nas palavras do autor:
“Para que se verifique dupla tributação, é necessário que ambas as normas em presença se apliquem no caso concreto, dando origem ao nascimento de duas pretensões tributárias. Mas se o mesmo facto recai na esfera de incidência de duas normas, não havendo, porém, aplicação concreta de ambas, ou havendo apenas aplicação de uma, fala-se então em dupla tributação virtual ou in thesi, para a distinguir da dupla tributação efectiva ou in praxi. Na dupla tributação efectiva ocorre um concurso real de normas; na dupla tributação virtual, o concurso é meramente aparente.
O conceito de dupla tributação virtual reconduz-se juridicamente a um caso de "concurso aparente de normas". Tal como no concurso real, um mesmo facto recai na previsão de duas normas tributárias pertencentes a ordenamentos distintos. Só que, por força de determinadas regras existentes à época da ocorrência dos factos, a aplicabilidade de uma delas é excluída por força da exclusiva aplicabilidade da outra. E daí que, ao contrário do que sucede na dupla tributação efectiva, em que ocorre um concurso real de normas, dada a inexistência de mecanismos que paralisem a eficácia de uma delas, na dupla tributação virtual o concurso é meramente aparente, porque não chegou sequer originariamente a formar-se.
No concurso aparente em que a dupla tributação virtual consiste, a aplicabilidade exclusiva de uma das normas em concurso resulta de regras especiais inseridas em ordenamentos plurilegislativos ou em tratados contra a dupla tributação.
Nos primeiros, o sistema central de normas de conflitos pode proibir – e via de regra proíbe – a própria dupla tributação virtual, só por si geradora de insegurança jurídica.
Mas também nas relações entre Estados soberanos ligados entre si por convenções contra a dupla tributação, a dupla tributação virtual que existiria, caso, ambos os ordenamentos fossem aplicados isoladamente, não se converte em efectiva nos casos em que as normas convencionais reconheçam apenas a um deles competência exclusiva, criando assim um obstáculo ao concurso real de normas. Este, porém, formar-se-á se as convenções consagrarem a competência cumulativa de ambos os Estados.”.
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Em face do exposto, conclui-se que inexiste, no presente caso, uma qualquer obrigação do Estado da Residência (Portugal) eliminar ou mitigar os efeitos da dupla tributação jurídica internacional, já que tal conflito é resolvido a seu favor.
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Nesta medida, não há que aplicar as medidas unilaterais previstas no artigo 81.º, n.º 1, do Código do IRS, que complementam as medidas convencionais, porquanto não subsiste dupla tributação que cumpra eliminar ou mitigar.
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Convém ter presente que a norma prevista no artigo 81.º do Código do IRS “é especialmente importante nas situações em que não exista uma CDT entre Portugal e o Estado da fonte do rendimento. Com efeito, nessas situações, apenas a aludida norma interna, graças ao sistema unilateral de eliminação da dupla tributação internacional aí previsto, possibilita a atenuação ou eliminação da dupla tributação”, conforme regista Paula Rosado Pereira, Manual de IRS, Almedina, 2018, p. 276. (negrito nosso)
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Ora, não é este o caso aqui em análise, pois como se viu existem convenções para evitar a dupla tributação celebradas entre Portugal e a Irlanda/Luxemburgo.
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E ao caso aqui em análise também não é aplicável a jurisprudência do acórdão proferido no processo n.º 283/2017-T, conforme invocado pelo Requerente. É que naquele acórdão o Tribunal Arbitral aplicou as medidas unilaterais previstas no artigo 81.º do Código do IRS porque a convenção para evitar a dupla tributação, apesar de existir, não abrangia os impostos suportados no estrangeiro pelo sujeito passivo. Assim, foi porque a regulação convencional não permitia eliminar ou mitigar a dupla tributação jurídica internacional, que foram convocadas as medidas unilaterais.
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Mas ainda que se entendesse serem de convocar as medidas unilaterais previstas no artigo 81.º, n.º 1, do Código do IRS, certo é que teria inevitavelmente de se aplicar também a limitação prevista no n.º 2 daquela norma e que estabelece que “Quando existir convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, a dedução a efetuar nos termos do número anterior não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos pela convenção.”. (negrito nosso)
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Como nos termos das convenções não podia ser pago pelo Requerente imposto no estrangeiro, o crédito a conceder é nulo, pelo que nunca poderia ser atribuído um crédito de imposto face a toda a tributação declarada e suportada na Irlanda, por aplicação do artigo 81.º do Código do IRS, tal qual peticionado pelo Requerente.
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No fundo, consagra-se naquela norma uma prevalência de aplicação das medidas convencionais previstas nas convenções para eliminar a dupla tributação, em concretização do princípio superioridade hierárquica dos tratados que resulta do disposto nos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena e do artigo 8.º, n.º 2 da CRP.
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De registar, por fim, que esta conclusão não comporta qualquer violação dos princípios da capacidade contributiva, proporcionalidade, igualdade, segurança jurídica e protecção da confiança, conforme invocado pelo Requerente, embora sem concretização, nos artigos 61.º a 63.º do pedido de pronúncia arbitral.
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Tal como sublinhou o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão proferido em 28 de Novembro de 2012, no âmbito do processo n.º 0694/12:
“(…) a celebração de uma CDT resulta de um processo de negociação entre Estados contratantes soberanos, com base no princípio da reciprocidade e da relatividade das convenções. Assim sendo, como refere PAULA ROSADO PEREIRA, “cada CDT é um compromisso resultante de uma combinação única entre benefícios e transigências mútuas dos Estados contratantes”, razão pela qual a situação dos residentes de cada Estado contratante só é comparável com a dos demais signatários da CDT.”.
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Por conseguinte, não se verifica que a negação do acesso ao método do crédito de imposto coloque o Requerente numa situação violadora da sua capacidade contributiva, nem tão pouco numa situação desproporcional e desigual face aos demais contribuintes em idênticas situações a quem são aplicáveis as convenções aqui analisadas, já que o acesso às medidas unilaterais previstas no artigo 81.º do Código do IRS também lhes seria negado, porque não devido.
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E também não se verifica que a não concessão de um crédito de imposto com base nas referidas medidas unilaterais acarrete uma violação da livre circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE.
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É que na presente situação não é feita qualquer distinção no regime fiscal aplicável que comporte um tratamento diferenciado e menos favorável entre residentes e não residentes ou entre rendimentos obtidos no Estado da residência e noutros Estados-Membros.
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Inexistem, portanto, quer discriminações quer restrições aos movimentos de capitais susceptíveis de dissuadir os não residentes de investirem num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes desse Estado-Membro de investirem noutros Estados (acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 10 de Fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, C436/08 e C-437/08).
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Tudo sem contar que uma eventual violação da livre circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE sempre teria os seus efeitos neutralizados pela aplicação das convenções, das quais resulta a total eliminação da dupla tributação jurídica internacional.
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Em face de tudo o exposto, julga-se totalmente improcedente o pedido arbitral formulado pelo Requerente de declaração da ilegalidade e reembolso parcial da liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao ano de 2021, por alegada violação do artigo 81.º, n.º 1, do Código do IRS, do artigo 5.º da LGT, do artigo 104.º, n.º 2 da CRP e, bem assim, do artigo 63.º TFUE, na parte relativa à desconsideração do crédito de imposto sobre os rendimentos de capitais correspondentes a distribuições por fundos de investimento (“outros rendimentos de capitais”) e, bem assim, sobre o saldo positivo das mais-valias apuradas com o resgate de unidades de participação em fundos de investimento.
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Em resultado desta improcedência, julga-se também improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, visto que não existiu erro imputável aos serviços de que tenha resultado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, nos termos previstos no artigo 43.º, n.º 1 da LGT.
IV - Decisão
De harmonia com o exposto este Tribunal Arbitral decide:
-
Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente e, em consequência, absolver a Requerida do pedido;
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Condenar o Requerente no pagamento das custas processuais.
V - Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 60.207,21€, indicado pelo Requerente, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
VI - Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 2.448,00€, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo do Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 12 de Setembro de 2024
Os Árbitros,
Prof.ª Doutora Carla Castelo Trindade
Presidente
Dr. Augusto Vieira
Vogal
Dra. Sofia Quental
Vogal
com voto de vencido. Segue declaração de voto.
Declaração de voto da Arbitra Adjunta, Sofia Quental
Voto vencido a presente decisão arbitral pelas razões que passo a enunciar.
Conforme resulta dos autos, em síntese, a pretensão do Requerente subsume-se à declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao ano de 2021, por violação do artigo 81.º, n.º 1 do Código do IRS, do artigo 5.º da Lei Geral Tributária (doravante, “LGT”), do artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (doravante, “CRP”), e do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante, “TFUE”), “na parte relativa à desconsideração do crédito de imposto sobre os rendimentos de capitais correspondentes a distribuições por fundos de investimento (“outros rendimentos de capitais”) e, bem assim, sobre o saldo positivo das mais-valias apuradas com o resgate de unidades de participação em fundos de investimento”.
O Requerente alega que, não obstante ser residente fiscal em Portugal em 2021 e beneficiando do Regime do Residente Não Habitual, de acordo com a legislação interna da Irlanda era considerado, igualmente em 2021, um “ordinarily resident”, ficando sujeito a imposto na Irlanda sobre determinadas categorias de rendimento de fonte estrangeira, o que conduziu a uma situação de dupla tributação jurídica internacional - em Portugal, enquanto residente fiscal, e na Irlanda, enquanto “ordinarily resident”.
Por sua vez, a Autoridade Requerida entende, sumariamente, que a apreciação da questão deve ser feita à luz das Convenções para evitar a Dupla Tributação celebradas entre Portugal e a República da Irlanda (doravante, “CDT Portugal – Irlanda”), entre Portugal e o Reino Unido (doravante, “CDT Portugal – Reino Unido”) e entre Portugal e o Grão-Ducado do Luxemburgo (doravante, “CDT Portugal – Luxemburgo”), e não apenas a CDT Portugal – Irlanda, na medida em que o Requerente, quer na Irlanda, quer em Portugal, declarou rendimentos de fonte no Reino Unido e no Luxemburgo. Assim, no entendimento da AT, aos rendimentos (dividendos) de fonte britânica não pode ser considerado o imposto pago na Irlanda uma vez que “(...) a CDT aplicável é a de Portugal (Estado da residência) com o Reino Unido (Estado da fonte)”; aos rendimentos de fonte irlandesa (capitais - “outros rendimentos” e mais-valias decorrentes do resgate de participações de fundos de investimento) não pode ser considerado qualquer crédito de imposto uma vez que de acordo com as disposições aplicáveis da CDT Portugal – Irlanda, “(…) a competência de tributação é atribuída exclusivamente a Portugal”; e, quanto aos rendimentos de fonte luxemburguesa (mais-valias), não pode ser considerado o imposto pago na Irlanda, “(…) dado que a CDT aplicável é a de Portugal (Estado da residência) com o Luxemburgo (Estado da fonte).” Adicionalmente, entende a AT que o Requerente vem colocar o ónus da eliminação da dupla tributação internacional, indevidamente, a Portugal, uma vez que Portugal cumpriu com o disposto nas CDT aplicáveis.
Entendo que a solução a ser adoptada no presente caso tem de se basear na CDT Portugal – Irlanda, uma vez que o que está em causa é o exercício da soberania tributária sobre um indivíduo abrangido pelo artigo 1.º da CDT Portugal – Irlanda, relativamente aos impostos mencionados no artigo 2.º da mesma CDT, bem como a resolução de um conflito de residências (cuja solução se encontra prevista no artigo 4.º da CDT Portugal – Irlanda), que conduz a uma situação de dupla tributação entre Portugal e a Irlanda e não entre Portugal e o Reino Unido ou entre Portugal e o Luxemburgo. Efectivamente, a situação de dupla tributação jurídica internacional decorre de uma situação de dupla incidência tributável ao abrigo das normas internas dos dois estados – em Portugal, enquanto residente fiscal, e na Irlanda, ao abrigo do regime aplicável aos “ordinarily residents”.
Ademais, o referido conflito sempre decorre do incumprimento, por parte de um dos Estados Contratantes (Irlanda), das disposições previstas na convenção, nomeadamente, dos critérios do artigo 4.º da CDT Portugal – Irlanda, de acordo com os quais o Requerente apenas deveria ser considerado residente fiscal em Portugal, estado que teria a competência exclusiva de tributação, inclusive, sobre os rendimentos de fonte irlandesa objecto dos presentes autos.
Ora, na minha opinião, este conflito poderá – e, acrescente-se, deverá – ser resolvido através do mecanismo do “procedimento amigável” a que alude o artigo 25.º da CDT Portugal – Irlanda, ao qual ambos os Estados se vincularam.
Decorre do mencionado artigo 25.º da CDT Portugal – Irlanda que “quando uma pessoa considerar que as medidas tomadas por um Estado Contratante ou por ambos os Estados Contratantes conduzem ou poderão conduzir, em relação a si a uma tributação não conforme com o disposto nesta Convenção, poderá, independentemente dos recursos estabelecidos pela legislação nacional desses Estados, submeter o seu caso à autoridade competente do Estado Contratante de que é residente (…)”, a qual, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, “(…) se a reclamação se lhe afigurar fundada e não estiver em condições de lhe dar uma solução satisfatória, esforçar-se-á por resolver a questão através de acordo amigável com a autoridade competente do outro Estado Contratante, a fim de evitar a tributação não conforme com o disposto na presente Convenção”.
Ou seja, existindo uma CDT entre dois Estados e ocorrendo divergência da sua leitura ou desarmonia na sua aplicação prática, não se configura que sejam “as pessoas” na definição das referidas convenções, a suportar o ónus de dirimir essas divergências ou desarmonias dos Estados Contratantes.
Adicionalmente, sendo o Requerente residente fiscal em Portugal (residência esta que se encontra conforme os critérios do artigo 4.º da CDT Portugal – Irlanda), dúvidas não subsistem de que a reclamação mencionada no artigo 25.º da CDT teria necessariamente de ser apresentada em Portugal, como efectivamente o foi. Por conseguinte, cabia ao Estado português lançar mão do referido mecanismo, com vista a “evitar a tributação não conforme com o disposto na presente Convenção”.
Por esse motivo, no que concerne à eventual ilegalidade do acto tributário por violação da CDT Portugal - Irlanda e do artigo 81.º, n.º 1 do Código do IRS, adiro, ao aludido nos pontos 24 a 49 da decisão arbitral proferida pelo CAAD no âmbito do processo n.º 47/2020-T, onde se decidiu o seguinte:
“24. A Dupla tributação é um conceito com que, no Direito Tributário, se designam os casos de concurso de normas. Este concurso caracteriza-se pela verificação de que o mesmo facto se integra na previsão de duas normas diferentes. Há, assim, concurso de normas de Direito Tributário quando o mesmo facto se integra na hipótese de incidência de duas normas materiais distintas, dando origem à constituição de mais do que uma obrigação de imposto (Alberto Xavier, em Direito Tributário Internacional, 2ª Edição, Almedina, pp 30).
25. Este concurso de normas pode ocorrer em Estados diferentes, consubstanciando, face à existência de identidade do facto tributário e pluralidade de normas de sujeição pertencentes a ordenamentos jurídico-tributários diferentes, a denominada Dupla Tributação Internacional.
26. A identidade do facto tributário, para se verificar, exige que entre as duas (ou mais) tributações exista: identidade do objeto; identidade do sujeito; identidade do período tributário e identidade do imposto. “A propósito desta última identidade, diz-se que há identidade do imposto, quando, em ambos os ordenamentos, o imposto tem idêntica natureza substancial.” (Américo Brás Carlos, Impostos – Teoria Geral, Almedina, p. 236)
27. Ora, por forma a eliminar a dupla tributação internacional e obviar às consequências negativas que a mesma representa para o desenvolvimento da atividade económica internacional, foram colocados à disposição dos Estados, dois tipos de instrumentos, a saber:
i) as medidas unilaterais – disposições internas dos Estados – e;
ii) as medidas bilaterais – tratados ou convenções de dupla tributação internacional.
28. No tocante às medidas unilaterais, ensina AMÉRICO BRÁS CARLOS (obra atrás referida p. 237 e 238) que “Os mecanismos unilaterais são, como o próprio nome indica, mecanismos internos de eliminação de dupla tributação internacional adoptados por cada Estado, sem a necessária correspondência em outros ordenamentos. Estes mecanismos podem agir relativamente à matéria colectável auferido no estrangeiro, isentando-a (Isenção integral ou progressiva), ou em relação ao imposto ali pago, permitindo a sua dedução ao imposto a pagar no país da sua residência (crédito de imposto, como seja o artigo 81.º do CIRS e o artigo 91.º do CIRC).”
29. Quanto às medidas bilaterais, temos as denominadas Convenções para Eliminar a Dupla Tributação Internacional, que se consubstanciam nos “tratados internacionais celebrados entre dois Estados – Estado da fonte e o Estado da residência – através dos quais estes regulam entre si o modo de tributar factos que, por força dos elementos de conexão utilizados se compreendem no âmbito de aplicação tributária de ambos os Estados, de modo a eliminar a dupla tributação.” (p. 240 da obra atrás referida), as quais não eliminando completamente a dupla tributação, sempre a poderão atenuar.
(…)
30. As pessoas singulares residentes em Portugal são tributadas, nos termos do artigo 15.º, n.º 1 do CIRS, a título de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, pela totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território, em conformidade com o princípio da universalidade.
31. “No direito tributário português, é o princípio da universalidade (da totalidade, da tributabilidade ilimitada ou do world-wide-income) que governa a tributação das pessoas singulares e das pessoas colectivas. O princípio da universalidade – cujas origens remontam à Lei prussiana, de 24 de Julho de 1891, do imposto sobre o rendimento e ao imposto sobre o rendimento americano de 1913 – encontra-se entre nós consagrado, quanto às pessoas singulares no artigo 1.º, n.º do 2 do CIRS, segundo o qual “os rendimentos, quer em dinheiro, quer em espécie, ficam sujeitos a tributação, seja qual for o local onde se obtenham, a moeda e a forma por que seja auferido”; e ainda no artigo 15.º, n.º 1 do mesmo Código, segundo o qual ”sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.” (obra atrás citada p. 489)
32. Nesta sequência, e segundo ensina, ainda, aquele Autor, “Via de regra, as legislações que consagram o princípio da universalidade contêm disposições unilaterais tendentes a eliminar ou atenuar a dupla tributação a que ela pode conduzir, prevendo a outorga de um crédito de imposto por dupla tributação internacional.
Até ao final de 1993, a legislação portuguesa restringia o crédito de imposto por dupla tributação internacional ao círculo de países com os quais Portugal tinha celebrado acordos de dupla tributação, assim penalizando os movimentos internacionais de pessoas e capitais para os restantes, pois que dificilmente um rendimento suporta ser tributado duas vezes. Em 1994, alargou-se o âmbito do crédito de imposto por dupla tributação.
Era deveras surpreendente que o legislador português tivesse reiterado a consagração do princípio da universalidade, tanto em matéria de pessoas singulares, como de pessoas colectivas, sem ter dele extraído as consequências reflexas que uma justa ponderação de interesses comporta.
Com efeito, se a lei pretendia reconhecer o movimento de internacionalização da economia portuguesa, deveria tê-lo feito de modo amplo e racional: tributar, por um lado, a totalidade dos rendimentos mundiais, mas, por outro lado, conceder automaticamente e de pleno direito, créditos de imposto estrangeiro, fosse qual fosse a natureza do contribuinte – pessoa singular ou colectiva, filial ou sucursal de sociedade portuguesa.
Relativamente às pessoas singulares – que aqui nos ocupa – vigoram disposições similares. Assim, no CIRS, no seu artigo 81.º, n.º 1 prevê que os titulares das diferentes categorias de rendimentos, obtidos no estrangeiro, têm direito a um crédito de imposto por dupla tributação internacional, dedutível até à concorrência da parte da colecta proporcional a esses rendimentos líquidos, que corresponderá à menor das seguintes importâncias: (i) imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro; (ii) fracção da colecta do IRS, calculada antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos das deduções específicas previstas no referido Código.
De acordo com o n.º 2 deste artigo, quando existir convenção para evitar a dupla tributação celebrada por Portugal, aquela dedução não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro, nos termos previstos na convenção.”
33. Nos casos em que o Estado da fonte, onde são obtidos os rendimentos (estrangeiros) também possa tributar esses rendimentos, caberá ao Estado da residência – no presente caso – Portugal – eliminar ou atenuar a dupla tributação segundo o método da isenção ou da imputação (ou crédito) do imposto estrangeiro.
34. A inexistência de uma Convenção potencia as situações de dupla tributação, em virtude de o Estado da fonte se poder arrogar mais facilmente do direito de tributar os rendimentos ali obtidos.
35. Com efeito, e por forma a obviar tais situações, em Portugal (e no caso de rendimentos obtidos por pessoas singulares), a eliminação ou atenuação da dupla tributação poderá ocorrer por força do regime unilateral previsto no n.º 1 do artigo 81.º do CIRS.
36. Ora, o artigo 81.º do CIRS sob a epígrafe: “eliminação da dupla tributação internacional”, no seu n.º 1, prevê o regime regra, segundo o qual: “os titulares de rendimentos das diferentes categorias obtidos no estrangeiro têm direito a um crédito de imposto por dupla tributação internacional dedutível até à concorrência da parte da colecta proporcional a esses rendimentos líquidos, considerados nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 22.º, que corresponderá à menor das seguintes importâncias:
a) Imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;
b Fracção da colecta do IRS, calculada antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos das deduções específicas previstas neste Código.”
37. E no seu n.º 2, que será a exceção àquele n.º 1, prevê que: “quando existir convenção para eliminar a dupla tributação internacional celebrada por Portugal, a dedução a efectuar nos termos do n.º anterior não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos pela convenção.”
38. Resulta assim, da conjugação destes n.ºs do artigo 81.º do CIRS, supra transcritos, que o n.º 1 é uma medida unilateral de eliminação ou atenuação de dupla tributação internacional, de imposto pago no estrangeiro não previsto em CDT, e que será a REGRA GERAL, enquanto que, o n.º 2 prescreve situações em que os limites previstos podem ser abarcados sem que, no entanto, ultrapassem as deduções previstas na Convenção.
39. Segundo entendemos, este n.º 2 consubstancia, nas palavras de AMÉRICO BRÁS CARLOS (obra atrás citada, p. 239) “(…) as medidas unilaterais [que] podem aplicar-se conjuntamente como medidas bilaterais resultantes das convenções para evitar a dupla tributação internacional que limitem a tributação do país da fonte (ou origem) do rendimento a uma taxa inferior à normal. A consequência é a de que a dedução à colecta do imposto português não pode ser superior ao imposto pago no estrangeiro nos termos previstos na convenção” – V.G. artigo 81.º, n.º 2 do CIRS.
40. Significa isto que, a aplicação do n.º 2 do artigo 81 do CIRS emprega apenas um limite à dedução dos impostos, previsto na CDT, limite este que não pode ser superior ao imposto pago no estrangeiro, nos termos previsto na convenção.
41. Com efeito, a limitação estatuída do artigo 81.º do CIRS pretende evitar que um contribuinte que possa acionar a convenção no país da fonte, não o tendo feito, venha obrigar o estado português a devolver imposto seu, por força da omissão/neglicência do contribuinte.
42. Determina, o n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS que:
«Aos residentes não habituais em território português que obtenham, no estrangeiro, rendimentos da categoria B, auferidos em atividades de prestação de serviços de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, ou provenientes da propriedade intelectual ou industrial, ou ainda da prestação de informações respeitantes a uma experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico, bem como das categorias E, F e G, aplica-se o método da isenção, bastando que se verifique qualquer uma das condições previstas nas alíneas seguintes:
-
Possam ser tributados no outro Estado contratante, em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado; ou
-
Possam ser tributados no outro país, território ou região, em conformidade com o modelo de convenção fiscal sobre o rendimento e o património da OCDE, interpretado de acordo com as observações e reservas formuladas por Portugal, nos casos em que não exista convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, desde que aqueles não constem de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, relativa a regimes de tributação privilegiada, claramente mais favoráveis e, bem assim, desde que os rendimentos, pelos critérios previstos no artigo 18.º, não sejam de considerar obtidos em território português.»
(…)
43. No tocante ao âmbito de aplicação dos tratados de dupla tributação internacional, e segundo, ALBERTO XAVIER, in ob. cit. pág. 122, “pode ser examinado de cinco ângulos distintos: quanto às pessoas, quanto aos tributos, quanto ao território, quanto à sucessão de Estados e quanto ao tempo.
O âmbito de aplicação dos tratados contra a dupla tributação, no que concerne às pessoas, é definido em função do critério da residência e não da nacionalidade (…); em matéria de impostos sobre o rendimento e o capital – que aqui nos interessa - aplicam-se, em princípio, aos tributos que revestem aquela natureza substancial, independentemente da sua denominação (nome iuris), da pessoa de direito público, que é o seu titular ou do método adoptado para a sua cobrança. (…) Os Estados contratantes elaboram, via de regra, uma lista dos impostos actuais a que a convenção se aplica, lista que se reveste de carácter meramente declaratório, não tendo alcance limitativo.
A indicação dos impostos abrangidos pelas Convenções foi, entre nós, objecto de três técnicas distintas: as convenções procedem à definição geral do tipo de tributo sobre o rendimento, seguida de uma enumeração cujo carácter exemplificativo resulta do uso da expressão, nomeadamente; (…) outras convenções procedem também à definição geral das características dos impostos a que se aplicam, mas logo após , elaboram uma lista taxativa dos impostos actuais nela abrangidos, pelo que a definição só faz sentido para efeitos de julgar a aplicabilidade a impostos futuros (…); enfim, o terceiro grupo de Convenções limita-se a estabelecer uma lista taxativa dos impostos actuais a que a convenção se aplica, dispensando-se de qualquer definição genérica.
(…).
44. Ora, quanto à matéria que aqui nos ocupa, cumpre, desde já, aludir que, o Governo da República Portuguesa e o Governo da Irlanda, com vista a evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre o rendimento, celebraram, em 01 de junho de 1993, uma Convenção, (Resolução da Assembleia da República n.º 29/94, de 09.02.1994 – alterada pelo Protocolo ratificado pela AR por resolução nº 62/2006 de 06.12.2006), nos termos da qual, a mesma se aplica a pessoas residentes de um ou de ambos os Estados Contratantes.(artigo 1.º da CDT).
45. O artigo 2.º da Convenção enuncia os impostos visados pela Convenção, e que aqui se transcrevem:
“1 - Esta Convenção aplica-se aos impostos sobre o rendimento, exigidos por cada um dos Estados Contratantes, suas subdivisões políticas ou administrativas e suas autarquias locais, seja qual for o sistema usado para a sua percepção.
2- São considerados impostos sobre o rendimento os impostos incidentes sobre o rendimento total ou sobre parcelas do rendimento, incluídos os impostos sobre os ganhos derivados da alienação de bens mobiliários ou imobiliários, bem como os impostos sobre as mais-valias.
3- Os impostos actuais que constituem objecto desta Convenção são:
a) Relativamente à Irlanda:
i) O imposto de rendimento (the income tax);
ii) O imposto de sociedades (the corporation tax); e
iii) O imposto de mais-valias (the capital gains tax);
(a seguir referidos pela designação «imposto irlandês»);
b) Relativamente a Portugal:
i) O imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) (personal income tax);
ii)O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) (corporate income tax); e iii) A derrama (local surtax on corporate income tax);
(a seguir referidos pela designação «imposto português»).
4 - A Convenção será também aplicável aos impostos de natureza idêntica ou similar que entrem em vigor posteriormente à data da assinatura da Convenção e que venham a acrescer aos actuais ou a substituí-los. As autoridades competentes dos Estados Contratantes comunicarão uma à outra as modificações importantes introduzidas nas respectivas legislações fiscais”.
46. Da dicotomia apresentada por ALBERTO XAVIER quanto aos tipos/grupos de enumeração de tributos previstos na CDT Portugal/Irlanda, será pacífico concluir que a CDT aqui em questão se encontra no terceiro grupo referido por aquele Autor, tendo-se limitado “a estabelecer uma lista taxativa dos impostos actuais a que a convenção se aplica, dispensando-se de qualquer definição genérica.”
47. Ora, Portugal, tal como noutros ordenamentos jurídicos, para além das inúmeras Convenções para eliminação ou atenuação da dupla tributação que celebrou com outros Estados, tem no seu ordenamento jurídico, como supramencionado, disposições que invocam medidas unilaterais com o mesmo objetivo, pelo que, antes de avançarmos, será prudente abordar a questão quanto ao lugar das convenções internacionais na hierarquia das fontes de Direito português.
48. Sobre este assunto elucida-nos, ALBERTO XAVIER, in obra citada, pág. 117 que: “No direito português não existe, (…), acto de transformação do direito convencional em direito interno. Com efeito o n.º 2 do artigo 8.º da Constituição (que manteve intacta a sua redacção, mesmo após as revisões constitucionais subsequentes) dispõe que as normas constantes de convenções internacionais validamente celebradas (e, portanto regulamente ratificadas e aprovadas) vigoram na ordem interna logo que publicadas. Daqui decorre que os tratados são fonte imediata de direito e obrigações para os seus destinatários, podendo ser invocados, como tal, perante os tribunais (princípio da eficácia directa e imediata); e que à interpretação dos seus preceitos são aplicáveis as regras da hermenêutica que vigoram quanto aos tratados e, não as que respeitam à legislação interna de cada Estado contratante.
Por outras palavras, o direito português consagra uma cláusula geral de recepção automática plena do direito internacional convencional, de harmonia com a visão monista, ou seja, a cláusula pela qual o Direito Internacional Público adquire relevância na ordem interna, independentemente de outra formalidade que não seja a mera publicação. O direito internacional vigora, assim, na ordem interna portuguesa, por efeito da vinculação internacional do Estado português e vigora na sua qualidade de direito internacional, não sendo necessária uma “transformação” ou “ordem de execução”, caso a caso, ou seja, entrando em vigor independentemente de conversão legal (princípio da aplicabilidade directa ou imediata).”
49. Não obstante, a superioridade hierárquica dos tratados se encontrar proclamada quer no disposto nos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena, bem como no n.º 2 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, “[d]aqui decorrem duas conclusões: (a) a de que o Direito Internacional convencional é colocado na ordem jurídica interna num grau hierárquico superior ao da lei; (b) a de que, em caso de conflito, o tratado se sobrepõe à lei interna.
Esta é a posição consagrada do Tribunal Constitucional.
A supremacia do tratado sobre a lei interna não se traduz, porém na revogação desta última. Com efeito, não se está aqui perante um fenómeno ab-rogativo, já que a lei interna mantém a sua eficácia plena fora dos casos subtraídos à sua aplicação pelo tratado. Trata-se, isso sim, de limitação da eficácia da lei que se torna relativamente inaplicável a certo círculo de pessoas e situações, limitação esta que caracteriza precisamente o instituto da derrogação.”, a verdade é que, esta questão - quanto ao primado das leis internacionais aprovadas e ratificadas pelo Estado português – deverão ser aferidas no presente caso.”
Ora, in casu, conforme resulta da matéria dada como provada, em 2021 o Requerente, de nacionalidade irlandesa (cf. ponto 1 da matéria de facto) recebeu:
-
Dividendos com origem inicial no Reino Unido;
-
Outros rendimentos de capitais com origem na Irlanda;
-
Mais-valias com venda de unidades de participação com origem na Irlanda e no Luxemburgo.
Conforme se extrai igualmente do probatório e já supra mencionado, os referidos rendimentos, com excepção dos dividendos, foram, de facto, sujeitos a uma dupla tributação, em Portugal e na Irlanda, país com o qual Portugal celebrou uma convenção para evitar a dupla tributação. Ademais, saliente-se que o Requerente comprovou neste processo o imposto pago na Irlanda relativamente aos rendimentos aqui controvertidos, como se alcança das alíneas H) e I) dos factos provados.
Termos em que é inequívoco que não pode subsistir a dupla tributação jurídica internacional sobre os rendimentos de capitais com origem na Irlanda e sobre as mais-valias com venda de unidades de participação com origem na Irlanda e no Luxemburgo, auferidos pelo Requerente no ano de 2021.
Quanto aos rendimentos de fonte irlandesa em crise, conforme aludido, de acordo com a CDT Portugal – Irlanda, a competência de tributação compete em exclusivo a Portugal, termos em que é por demais evidente o incumprimento das disposições da convenção, por parte da Irlanda.
No que concerne aos rendimentos de fonte luxemburguesa, caso se entenda inexistir convenção aplicável, uma vez que não se aplica a CDT Portugal – Irlanda (visto que os rendimentos são de fonte luxemburguesa) nem a CDT Portugal – Luxemburgo (uma vez que o conflito que se pretende dirimir resulta da tributação indevida dos rendimentos na Irlanda – que não é parte na CDT Portugal – Luxemburgo), sempre se teria de concluir pela aplicação dos mecanismos unilaterais de eliminação da dupla tributação previstos no artigo 81.º, n.º 1 do Código do IRS, por inexistir convenção aplicável, não relevando, tampouco, a limitação do n.º 2 do mencionado artigo.
Por esse motivo, entendo que caberia ao Estado português, numa primeira via, lançar mão dos mecanismos bilaterais de eliminação da dupla tributação, nomeadamente, do procedimento amigável previsto no artigo 25.º da CDT Portugal – Irlanda para tentar dirimir o conflito e, não se revelando tal frutífero, accionar o mecanismo unilateral de eliminação da dupla tributação previsto no artigo 81.º, n.º 1 do Código do IRS, sob pena de violação do artigo 81.º do Código do IRS, da CDT Portugal – Irlanda e, no limite, dos princípios e liberdades consagrados na CRP e no Direito Europeu.
Atento o exposto, e com o devido respeito por entendimento contrário, entendo que a posição do Requerente merece acolhimento e que deveria proceder o pedido formulado, com todas as consequências legais.
A Árbitra,
Sofia Quental
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