Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 6/2024-T
Data da decisão: 2024-09-11   Outros 
Valor do pedido: € 188.505,12
Tema: Contribuição do serviço rodoviário (CSR)
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SUMÁRIO

I.          A Contribuição do Serviço Rodoviário é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo porque, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos, o que não acontece, na medida em que não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e as invocadas finalidades de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.

II.        O tribunal arbitral é competente para conhecer do pedido de pronúncia sobre o indeferimento tácito do pedido de revisão dos actos tributários de liquidação da Contribuição do Serviço Rodoviário, uma vez que este tributo deve ser tratado como imposto para efeitos da Portaria 112-A/20111 de 22.3, por não haver um nexo específico entre o benefício emanado da actividade pública titular da contribuição (a Intraestruturas de Portugal, SA) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparecendo, por isso, a natureza de contribuição financeira.

III.  A não identificação dos actos de liquidação da CSR cuja devolução é pedida resulta na ineptidão da petição por ficar por demonstrar a existência desses actos e o efectivo pagamento do tributo, o que impossibilita também a demonstração da repercussão e da verificação da tempestividade do pedido de revisão oficiosa em que assenta o pedido de pronúncia arbitral.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros, Fernando Araújo (presidente), Sofia Ricardo Borges e Rui M. Marrana, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, acordam no seguinte:

 

 

Relatório

1.A..., S.A., titular do número único de pessoa colectiva..., e B..., LDA., titular do número único de pessoa colectiva..., ambas com sede em ..., n.os... e..., ...‐... Prior Velho, - doravante referidas por Requerentes – vieram requerer, ao abrigo do disposto nos art.os 2.º/1 a), 3.º-A/2 e 10.º/1 a) e 2 do DL 10/2011, de 20.1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) e dos art.os 1.º e 2.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3 a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir o respectivo pedido de pronúncia sobre os actos de liquidação de Contribuição do Serviço Rodoviário (CSR) e consequentes actos de repercussão consubstanciados em facturas de gasolina e gasóleo rodoviário por si adquiridos às empresas C..., Lda, e D..., SA, entre Maio e Dezembro de 2022.

2.É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.

3.Em 3 de Janeiro de 2024 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

4.Ainda antes da constituição do tribunal- em 25 de Janeiro de 2024 -, a Requerida apresentou um requerimento no qual solicitava que as Requerentes identificassem os actos de liquidação cuja legalidade pretendem ver sindicada, tendo o Ex.mo Presidente do CAAD, nessa data, determinado o envio do mesmo ao tribunal arbitral a constituir, por ser o órgão competente para a sua apreciação.

5.As Requerentes apresentaram requerimento em 2 de Fevereiro seguinte, esclarecendo que todos os actos tributários cuja legalidade foi contestada eram passíveis de identificação através do p.p.a. e dos documentos juntos, o que, na mesma data, mereceu idêntico despacho do Ex.mo Presidente do CAAD.

6.De acordo com o preceituado nos artigos 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a) do RJAT, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessas designações, não manifestaram vontade de as recusar.

7.O Tribunal Arbitral ficou constituído em 12 de Março de 2024.

8.Em 24 de Abril de 2024 a Requerida apresentou Resposta, com defesa por excepção e impugnação, juntando o processo administrativo.

9.Em 26 de Abril de 2024 o Presidente do tribunal arbitral concedeu, por despacho, 10 dias às Requerentes para se pronunciarem, querendo, sobre a matéria de excepção suscitada na Resposta apresentada pela Requerida, o que aconteceu em 6 de Maio seguinte, tendo as Requerentes juntado também documentos.

10.Nesse mesmo dia foi proferido despacho dispensando a reunião prevista no art. 18.º do RJAT, facultando às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas, sendo, para o efeito, concedido um prazo de 10 dias sucessivos.

11.As Requerentes indicaram em 13 de Maio seguinte não pretenderem alegar e a Requerida dispensou-se de o fazer.

Posição das Requerentes

12.As Requerentes ainda antes de exporem os termos do pedido arbitral, começam por sustentar a competência do tribunal arbitral para apreciar esse pedido, insistindo que o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa foi interposto tempestivamente (dentro do prazo de 4 anos fixado no art. 78.º da Lei Geral Tributária – LGT e de 90 dias fixado no art. 10.º/1 a) do RJAT e do art. 102.º/1 d) do Código de Procedimento e de Processo Tributário - CPPT) e é arbitrável nos termos do art. 10.º/1 a) do RJAT e 102.º do CPPT, tal como foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) e vem sendo reconhecido pela jurisprudência do CAAD.

13.Insistem depois que essa competência dos tribunais arbitrais inclui a apreciação da legalidade de actos de repercussão da CSR.

14.Esclarecem ainda que a CSR é um imposto para efeitos do disposto no art. 2.º da Portaria 112-A/2011 de 22.3, conforme vem sendo reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência do CAAD, adiantando que não pretendem a apreciação da legalidade do regime jurídico da CSR, mas apenas a ilegalidade dos actos tributários, mormente os de repercussão de CSR.

15.Avançam, depois, as Requerentes, explicando que a coligação de autores e cumulação de pedidos é admissível nos termos do art. 3.º/1 do RJAT, verificadas que estão as respectivas condições (liquidação do mesmo imposto, identidade da matéria de facto e dos fundamentos).

16.Entrando na identificação do pedido arbitral, as Requerentes explicam não se conformarem com os indeferimentos tácitos dos pedidos de revisão oficiosa por si formulados e, por conseguinte, com a legalidade dos actos de liquidação de CSR que lhe estão subjacentes e os consequentes actos de repercussão desse tributo, vindo, por isso, suscitar a sua apreciação arbitral.

17.Explicam que as fornecedoras de combustível (C..., Lda, e D..., SA) entregaram ao Estado os valores apurados nos actos de liquidação conjunta de Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (ISP) e CSR praticados pela AT com base nas DIC por aquelas submetidas, tendo repercutido nas facturas a CSR correspondente a cada consumo realizado pelas Requerentes, num total 188.505,12 €, correspondentes a 1.330.678,47 litros de gasóleo e gasolina.

18.Nestas circunstâncias, tendo a CSR sido considerada ilegal por contrariar o Direito da União, as Requerentes suscitaram a revisão oficiosa dos actos tributários de liquidação e consequentemente dos actos de repercussão, pedidos esses tacitamente indeferidos por não terem obtido decisão no prazo de 4 meses previsto no art, 57.º/1 da LGT

19.Essa ilegalidade da CSR resulta de o seu regime contrariar o disposto no art. 1.º/2 da Directiva 2008/118 de 16.12.2008 (Directiva IEC), o qual condiciona a cobrança pelos Estados-membros de outros impostos indirectos sobre produtos sujeitos a impostos especiais de consumo, à existência de motivos específicos (e à conformidade com as demais normas do Direito da União). Ora, as finalidades orçamentais não podem ser consideradas como motivos específicos – que é o que acontece com a CSR, a qual visa o financiamento da EP - Estadas de Portugal (art. 2.º da Lei 55/2007 de 31.8), tal como reconheceu o TJUE no seu Despacho de 7.2.2021 (Vapo Atlantic, C‐460‐21).

20.Os sujeitos passivos da CSR eram (já que este tributo foi extinto pela Lei 24-E/2022 de 30.12) os sujeitos passivos de imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP), havendo, todavia, uma repercussão legal desse montante sobre o consumidor (tal como acontece com a generalidade dos impostos sobre o consumo).

21.As requerentes surgem, assim, como entidades terceiras sobre as quais a CSR foi legalmente repercutida, vindo o presente pedido de pronúncia arbitral, contestar, em primeiro lugar, a legalidade dos referidos actos de repercussão da CSR (materializados nas facturas que lhe foram emitidas pela fornecedora de combustível), e, em segundo lugar, em face da existente correlação causal entre os dois tipos de actos acima indicados, a legalidade dos antecedentes actos de liquidação de CSR (praticados pela AT e notificados, tão somente, à referida entidade repercutente), actos que estão na origem daquelas repercussões e sem os quais as mesmas não existiriam.

22.Essa repercussão foi, aliás declarada pelas fornecedoras de combustível das Requerentes através de documento (3) junto aos autos, estando materializada nas facturas emitidas pelos mesmos fornecedores. Não podem as Requerentes apresentar prova dos actos de liquidação por serem estes praticados pela AT, não tendo estas acesso aos mesmo, mas estando os mesmos identificados nos termos do art. 74.º/2 da LGT.

23.Tais actos (de liquidação), sendo praticados ao abrigo de normas internas contrárias à Directiva 2008/118, padecem do vício de ilegalidade abstracta, pelo que a AT estava obrigada a desaplicar as referidas normas internas com fundamento na apontada desconformidade com o Direito da União. A aplicação dessas normas desconformes resulta, assim, em erro imputável aos serviços (art. 78.º/1 da LGT), que a AT deveria ter corrigido em sede de revisão oficiosa. Não o tendo feito, essa tarefa caberá ao tribunal arbitral.

24.As Requerentes peticionam, portanto, a devolução dos montantes e o pagamento de juros indemnizatórios nos termos dos art. 43.º e 100.º da LGT, a contar da data do pagamento indevido (art. 43.º/3 d) da LGT).

Posição da Requerida

25.A Autoridade Tributária, na sua resposta, começa por fazer um enquadramento da situação explicando a criação da CSR pela Lei 55/2007, a qual assumia a finalidade de  financiar a rede rodoviária nacional, no que respeitava à respectiva concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento. Essas funções eram atribuídas à EP – Estradas de Portugal, EPE, entidade que, na sequência do Decreto-Lei 91/2015 foi incorporada, por fusão, na Rede Ferroviária Nacional – REFER, EPE., que foi transformada em sociedade anónima, assumindo a designação Infraestruturas de Portugal, SA. 

26.Nos termos do art. 3.º/1 da Lei 55/2007, a CSR representava a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, incidindo sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário, sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP) e dele não isentos (art. 4.º/1 do mesmo diploma), sendo devida pelos sujeitos passivos desse ISP, com a introdução ao consumo (formalizada através da respectiva declaração, processada por transmissão electrónica de dados). Na prática a CSR acrescia ao ISP, sendo as respectivas taxas estabelecidas pela Portaria 16-C/2008, de 9.1.

27.As introduções no consumo (formalizadas através da Declaração de Introdução no Consumo – DIC – , processada por transmissão electrónica de dados nos termos do art. 10.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo - CIEC) efectuadas num determinado mês pelos sujeitos passivos que detenham um dos estatutos previstos no CIEC são globalizadas no mês seguinte, numa única liquidação, processada de forma automática (art. 10.º-A do CIEC), sendo estes notificados da liquidação do imposto até ao dia 15 do mês da globalização, devendo o tributo ser pago até ao último dia útil do mês em que foi notificada a liquidação (art. 11.º e 12.º do CIEC).

28.Depois de introduzidos no consumo (feitas as respectivas declarações) estes combustíveis são, por sua vez, destinados a uma multiplicidade de destinos/clientes (grossistas, distribuidores, postos de abastecimento e consumidores finais) .

29.Feito o enquadramento da CSR, a Autoridade Tributária suscita seguidamente as excepções da incompetência do tribunal em razão da matéria e em razão da causa de pedir.

30.Neste ponto, contrariando a argumentação da Requerente, a AT lembra que a sua vinculação à jurisdição dos Tribunais arbitrais ocorre nos termos da Portaria 112-A/2011, de 22.3, sendo que no objecto desta vinculação, definido pelo artigo 2.º, se refere a apreciação das pretensões relativas a impostos. Apenas impostos, portanto, deixando de fora outras contribuições ou tributos, como é o caso da CSR.

31.Fundamenta o seu entendimento no facto de o legislador não ter enquadrado a CSR no conceito, tal como é referido no art. 4.º da LGT. Cita, a propósito, o entendimento convergente de alguma jurisprudência do CAAD (nomeadamente do Conselheiro Lopes de Sousa no proc. 31/2023-T, o qual encontra do regime definido na Portaria 112-A/2011 um intuito claramente restritivo que impõe uma leitura no mesmo sentido).

32.Nestes termos (encontrando-se a CSR excluída da arbitragem tributária por força do disposto nos art.os 2.º e 3.º do RJAT e art. 2.º da Portaria 112-A/2011, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição), não se encontra verificada a arbitrabilidade do thema decidendum,. Ou seja, não são os tribunais arbitrais do CAAD materialmente competentes para conhecer do mérito do pedido em apreço, o que prejudica o conhecimento do mérito da causa.

33.. Além disso, entende e AT que a incompetência material do tribunal em razão da matéria é alcançável por outra via: é que o pedido de pronúncia arbitral visa a não aplicação da CSR o que supõe a apreciação genérica da sua legalidade do respectivo regime, o que excede a competência da instância arbitral, enquanto contencioso de mera anulação.

34.Há, portanto, novamente incompetência material do tribunal arbitral, tal como tem sido reconhecido em diversos processos (nomeadamente 372/2023-T, 466/2023-T [voto de vencido]).

35.E mesmo que se admitisse a competência do tribunal arbitral para a apreciação da ilegalidade dos actos de liquidação de ISP/CSR, essa incompetência material ressurgiria como resultado do facto de o tribunal arbitral não poder pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos actos de liquidação de ISP/CSR (cf. proc.os 296/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 466/2023-T, 467/2923-T e 490/2023-T).

36.Argui, depois, a Requerida, a ilegitimidade processual das Requerentes, por não serem os sujeitos passivos que procederam à introdução no consumo dos produtos no território nacional, provando o pagamento dos respectivos ISP/CSR.

37.No caso, seria às empresas que procederam a essa introdução no consumo (eventualmente a D..., SA, que tem esse estatuto, mas já não a C..., Lda.) que caberia identificar os actos de liquidação e solicitar, em caso de erro, a sua revisão, com vista ao reembolso dos montantes cobrados (art.os 15.º e 16.º do CIEC, ex vi art. 5.º/1 L 55/2007; tb. art. 78.º/1 da LGT), já que estamos na presença de impostos monofásicos.

38.Não se encontram, portanto, reunidos os pressupostos para a revisão dos actos tributários, porquanto tal direito não se encontra incluído na esfera jurídica do repercutido económico ou de facto, não podendo a entidade, em que alegadamente teria sido repercutido o imposto, apresentar pedido de revisão ou de reembolso por erro. Donde, não sendo as Requerentes sujeitos passivos nos termos e para o efeito do disposto no art. 4.º do CIEC, não têm legitimidade, nos termos supra, nem para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral.

39.Esta situação é reforçada pelo facto de as Requerentes não serem também os sujeitos passivos que suportam o encargo do imposto por repercussão legal, pelo que, a falta de legitimidade decorre também do disposto no art. 18.º/4 a) da LGT.

40.No caso, não existe repercussão legal, mas meramente de facto ou económica. De facto, os sujeitos passivos poderão eventualmente, no âmbito das suas relações comerciais proceder (ou não), à transferência, parcial ou total, da carga fiscal para outrem (os seus clientes), tendo em conta a política de definição dos preços de venda e as consequências para a sua actividade.

41.Assim – tal como acontece, em geral, com a CSR –, não existem actos de repercussão legal  subsequentes e autónomos  da liquidação, sendo que as facturas apresentadas não corporizam actos de repercussão de CSR, nem atestam que tal tributo foi suportado pelas Requerentes enquanto consumidoras finais.

42.Constata-se, portanto, que as Requerentes não conseguem demonstrar que o valor pago pelo combustível que adquiriram às suas fornecedoras, tem incluído o valor da CSR pago pelos sujeitos passivos de ISP/CSR, nem que suportaram, a final, o encargo de tal tributo, isto é, que não o repassou no preço dos serviços praticados aos seus clientes, enquanto consumidores finais.

43.Conclui-se, assim, pela ilegitimidade das Requerentes, no sentido de diversas decisões arbitrais (proc. 296/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 438/2023-T, 466/2023-T, 467/2023-T e 490/2023-T), já que estas não são sujeitos passivo de ISP/CSR e não integram a relação tributária subjacente à liquidação, ou liquidações, contestadas, não sendo devedoras, nem estando obrigadas ao seu pagamento ao Estado. Estão a jusante do sujeito passivo na cadeia económica (que, em termos jurídicos, não é um terceiro substituído). Não suportam a contribuição por repercussão legal, nem tão pouco correspondem a consumidores finais, pelo que não têm legitimidade nem para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral, nos termos do artigo 15.º/2 do CIEC e do art. 18.º/3 e 4 a) da LGT.

44.De facto, a ilegitimidade substantiva das Requerentes, sempre decorrerá também do facto de estas - mesmo tendo adquirido combustível, suportando, na compra o custo da CSR por repercussão – terem vindo certamente, mais tarde a prestar serviços no âmbito da sua actividade em cujo preço terão repercutido esse encargo. E, assim sendo, quem terá suportado a CSR terão sido os consumidores finais, o que retira às Requerentes legitimidade substantiva para reclamarem a sua devolução.

45.A AT levanta ainda um problema prático concorrente: caso se aceite que as Requerentes tenham legitimidade para efectuar o pedido de revisão e de anulação parcial da liquidação do ISP, reclamando o reembolso da CSR alegadamente suportada, poder-se-ia estar perante uma situação de ilegítima, infundada e indevida restituição reiterada de elevadas quantias monetárias a diversas entidades intervenientes no ciclo de comercialização com base nos mesmos (alegados) factos, sem qualquer possibilidade de controlo.

46.Na verdade, sem a possibilidade de se identificar o registo de liquidação correspondente às transacções posteriores, a Requerida poderia vir a ser sucessivamente condenada a pagar os mesmos montantes de CSR a qualquer operador económico que tenha tido intervenção na cadeia comercial de combustíveis: desde o sujeito passivo de imposto, passando pelos grossistas, distribuidores e revendedores, até ao consumidor final (tenham ou não estes suportado os valores em causa) – tal como se referiu no voto de vencida da decisão do proc. 491/2023-T.

47.A AT invoca, de seguida, a ineptidão do pedido arbitral por falta de objecto, dado não estarem identificados os actos tributários objecto do pedido (as liquidações e as alegadas repercussões), conforme determina o art. 10.º/2 b) do RJAT – questão que, aliás, havia referido logo no requerimento apresentado ainda antes da constituição do tribunal (cf. supra § 4).

48.Atente-se que, com os dados indicados pelas Requerentes, seria impossível à Requerida identificar os actos e factos essenciais omitidos por estas. Assim, a introdução no consumo é feita diariamente, mas as declarações são globalizadas mensalmente para efeitos de liquidação, e a alfândega competente não coincide necessariamente com a sede/domicílio do sujeito passivo (que pode apresentar as suas declarações em mais do que uma). Além disso, o combustível abrangido por uma liquidação é destinado a uma multiplicidade de clientes.

49.Donde, não tendo procedido à identificação dos actos, nem solicitado no momento adequado a documentação que os comprovasse (sendo certo que, conforme se referiu, a mera indicação de facturas de aquisição não permite a esta identificar as correspondentes liquidações que terão sido efectuadas pelos sujeitos passivos de ISP, nos termos do art. 4.º do CIEC, na sequência da necessária Declaração de Introdução no Consumo), o pedido arbitral é inepto, o que determina a nulidade de todo o processo e obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (art.os 186.º/1, 576.º/1 e 2, 577.º b) e 278.º/1 b), do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º do RJAT).

50.A Requerida prossegue invocando, depois, a caducidade do direito de acção, a qual decorrerá da falta de indicação dos actos de liquidação, o que impede a aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa das liquidações, já que o prazo de 4 anos previsto no art. 78.º/1 da LGT se conta a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do acto de liquidação.

51.Ora a tempestividade da apresentação do pedido arbitral decorre da tempestividade do pedido de revisão, o que, face à não identificação dos actos tributários, é impossível.

52.No caso, aliás, tratando-se de aquisições no período compreendido entre Maio de 2019 e Dezembro de 2022, deve assumir-se que, em 31 de Maio de 2023 (data da apresentação do primeiro pedido de revisão oficiosa), há muito que se encontrava ultrapassado o prazo da reclamação graciosa de 120 dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISP/ CSR, previsto no art. 78.º/1, primeira parte, da LGT.

53.Será por isso que a Requerente fundamenta o pedido de revisão oficiosa em erro imputável aos serviços – de modo a fazer valer-se do prazo de 4 anos previsto no mesmo art. 78.º/1, mas na segunda parte dessa norma – o que não tem cabimento, pois estando a Requerida vinculada ao princípio da legalidade e tendo efectuado as liquidações em estrita observância dos normativos legais em vigor à data dos factos, não existe qualquer erro imputável aos serviços.

54.Acresce que, no âmbito dos impostos especiais de consumo, os pedidos de reembolso apresentados nas alfândegas devem ser apreciados à luz do disposto nos art.os 15.º a 20.º do CIEC, tendo em 31 de Maio de 2023 terminado o prazo de 3 (três) anos previsto naquele normativo para requerer o reembolso do alegado valor pago por alegada repercussão económica de CSR.

55.Donde, face á impossibilidade de se aferir em pleno da tempestividade do pedido de revisão oficiosa e de reembolso por alegado pagamento de valores a título de alegada repercussão económica da CSR, será também impossível conferir da tempestividade do pedido arbitral, o que consubstancia uma excepção peremptória, devendo, nessa medida, a Requerida ser absolvida do pedido.

56.Ou, se não se entender, sempre subsistirá uma excepção dilatória nos termos dos art.os 89.º/1, 2 e 4 k) do CPTA, o que conduz à absolvição do pedido ou da instância.

57.Respondendo, depois, por impugnação, a AT insiste no facto de as Requerentes não fazerem prova de que pagaram e suportaram integralmente o encargo do pagamento da CSR, por repercussão (sendo que esse ónus recaía sobre si, nos termos do art. 74.º da LGT, não ocorrendo qualquer inversão desse ónus, como parecem pretender as Requerentes).

58.De facto, as Requerentes não identificam quaisquer liquidações de ISP/CSR – o que teria de fazer com base em Declarações de Introdução no Consumo (DIC) – assumindo, aparentemente, que tais declarações terão sido apresentadas pelas fornecedoras.

59.As facturas apresentadas pelas Requerentes não fazem prova do alegado pagamento de CSR já que nelas apenas constam valores referentes ao IVA, sem qualquer  referência a montantes pagos a título de ISP ou CSR.

60.Além disso, as facturas referem a existência de descontos (sem descritivo dos mesmos) o que denota falta de rigor e suscita dúvidas quanto a própria presunção da repercussão da CSR.

61.Ora, a própria jurisprudência do CAAD tem convergido no sentido de que a prova desses factos seria essencial e cabia às Requerentes (cf. 452/2023-T),

62.Ressurgindo novamente, neste enquadramento, o risco (já referido anteriormente – cf. § 45) de, por falta de identificação dos actos relevantes, se estar a admitir restituição reiterada de elevadas quantias monetárias a diversas entidades intervenientes no ciclo de comercialização com base nos mesmos (alegados) factos, sem qualquer possibilidade de controlo.

63.Impugna ainda a Requerida o montante de CSR alegadamente suportado pelas Requerentes por se limitar a aplicar à quantidade de litros fornecidos e constantes das facturas dos fornecedores, a taxa de CSR que se encontrava em vigor às datas das mesmas. Ora nos termos do art. 91.º do CIEC a unidade tributável dos produtos petrolíferos e energéticos (e consequentemente da CSR) é de 1000 litros convertidos para a temperatura de referência de 15º C, o que faz com que, não tendo existido certificação da medição da temperatura ambiente na descarga do combustível adquirido, não seja possível realizar a correspondência para o número de litros a 15º C. O que torna incorrectos os números aduzidos pelas Requerentes.

64.A AT debruça-se depois sobre o Despacho do TJUE de 7 de Fevereiro de 2022 no proc. C-460/21, explicando que a sua análise se limitou aos termos específicos das questões colocadas sem ter analisado a CSR com profundidade (§ 33.º e 34.º), não havendo, em rigor, qualquer decisão judicial que considere ilegal a CSR, pelo que também não existe qualquer erro imputável aos serviços da Requerida. 

65.Por outro lado, ao contrário do que afirmam as Requerentes, subsiste um motivo específico subjacente à CSR, em sede de diminuição da sinistralidade rodoviária.

66.A AT termina contestando o pedido do pagamento de juros indemnizatórios, os quais serão devidos apenas depois de decorrido um ano após a apresentação dos pedidos de revisão oficiosa, e não desde a data do pagamento do imposto (ac.s STA de 28.1.2015, proc. 0722/14, de 11.12.2019, proc. 058/19.9BALSB, 20.5.2020, proc. 05/19.8BALSB e de 26.5.2022, proc. 159/21.3BALSB – e, no mesmo sentido, as decisões do CAAD nos proc. 296/2020-T, 18/2021-T, 785/2020-T e 271/2021-T).

Posição das Requerentes relativamente às excepções

67.Pronunciando-se relativamente às excepções invocadas pela AT, as Requerentes começaram por contestar a pretendida incompetência do tribunal por o art. 2.º da Portaria 112-A/2011 de 22.3 apenas considerar arbitráveis as pretensões relativas a impostos (quando a CSR será uma contribuição).

68.Recordaram que a CRP identifica três tipos de tributos; impostos, taxas e contribuições financeiras, sendo o conteúdo material dessas figuras especificado pelos art.os 3.º e 4,º da LGT – que, no entanto, especificam que os impostos incluem contribuições especiais.

69.A doutrina desenvolveria os conceitos, explicando que essas contribuições especiais (equiparadas a impostos) envolviam prestações resultantes de vantagens económicas particulares ou de actividades que dão origem a despesas acrescidas de uma entidade pública.

70.Por sua vez. a jurisprudência do Tribunal Constitucional caracterizou as contribuições financeiras a favor de entidades públicas por se destinarem a financiar despesas associadas a certos serviços públicos a cargo de determinadas entidades.

71.Com a revisão constitucional de 1997 ficou mais claro que as contribuições financeiras se referirão a todos os tributos não fiscais – i.e., não qualificáveis como impostos – que, não sendo subsumíveis de forma integral na tipologia das taxas, venham a financiar entidades públicas. Nesse sentido, a LGT aprovada pelo Decreto-Lei 398/98 esclareceu no art. 4.º/3 que as contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade são consideradas impostos.

72.Ora a CSR tem por função, nos termos da proposta de Lei que lhe está na origem, remunerar a EP - Estradas de Portugal, EPE (actualmente integrada na Infraestruturas de Portugal, SA) pela utilização que é feita da rede rodoviária, repercutindo nos seus utilizadores os custos inerentes à sua gestão. Há, portanto, uma finalidade tipicamente fiscal – a arrecadação de receita – que convive com outra (incentivo à utilização de outros transportes).

73.Tratar-se-á, portanto, de uma prestação devida pelo grupo de presumíveis utilizadores da rede rodoviária nacional (identificados por via do seu consumo de combustível) na medida em que essa utilização dê origem a presumíveis maiores despesas de gestão da respectiva rede rodoviária.

74.Enquanto contribuição especial por maiores despesas, a CSR configura um verdadeiro imposto, sendo, portanto, arbitráveis os litígios a ela relativos, nos termos do art. 2.º da Portaria 112-A/2011.

75.Respondem depois, as Requerentes, à invocada incompetência absoluta deste Tribunal Arbitral por via da impossibilidade de ser sindicada nesta sede a validade intrínseca dos actos normativos que constituem o regime da CSR, constantes da Lei n.º 55/2007.

76.Neste âmbito, recordam que está em causa nos presentes autos a apreciação da ilegalidade de actos tributários de repercussão de CSR decorrentes da aplicação de um regime – o da CSR – comprovadamente desconforme com o direito da União, nos termos já decretados pelo TJUE.

77.Trata-se, portanto, de uma situação de ilegalidade abstracta da liquidação, por esta não residir no acto que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita. Esta constitui também um vício de violação de lei, pois a liquidação terá feito aplicação de uma norma que não é válida em face de uma regra de hierarquia superior.

78.Não impugnam, portanto, as Requerentes quaisquer actos legislativos, mas apenas a invalidade dos actos de repercussão de CSR.

79.Contestam, de seguida, as Requerentes a suscitada ilegitimidade processual das Requerentes para apresentarem pedidos de reembolso de CSR na qualidade de terceiros repercutidos,

80.Assim, a AT fundamenta essa pretensa ilegitimidade no regime dos art.os 15.º e 16.º do CIEC (que limita essa legitimidade aos sujeitos passivos dos tributos), mas esse regime não será aplicável à CSR por a remissão feita (pelo art. 5.º da Lei 55/2007) para o CIEC operar exclusivamente quanto às matérias de liquidação, cobrança e pagamento da CSR, deixando-se de fora – i.e., sujeitando ao respectivo regime geral – todas as restantes matérias, entre as quais as atinentes aos meios e prazos de reacção para contestar este tributo.

81.Sendo certo que, em sentido inverso, o legislador o legislador determinou clara e expressamente que o encargo económico da CSR deve recair, por via de repercussão legal, nos utilizadores da rede rodoviária nacional, (art. 3.º/1, in fine, da Lei n.º 55/2007).

82.Insistindo na legitimidade das Requerentes para solicitarem a revisão oficiosa dos actos de liquidação da CSR, estas recordam que nos termos do art. 78.º/7 da LGT, a AT deve promover a revisão oficiosa no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços, possibilidade essa que se estende ao contribuinte no seu sentido mais lato. Qualquer posição contrária violaria o disposto nos art. 13.º (igualdade) e 20.º (tutela jurisdicional efectiva) da CRP.

83.Respondendo à excepção de ineptidão da petição as Requerentes insistem que foram identificados no pedido de pronúncia arbitral todos os actos tributários de que foram destinatárias, decaindo sobre a Requerida o ónus de identificação das antecedentes liquidações de CSR praticadas pela própria AT.

84.Assim, tal como foi já reconhecido na jurisprudência do CAAD (proc. 468/2020-T) no âmbito de uma relação jurídico-tributária sujeita a repercussão legal (como a de CSR), os actos de repercussão legal consubstanciam actos tributários autonomamente sindicáveis por parte dos respectivos repercutidos (in casu, as Requerentes), cabendo-lhes, ao abrigo do princípio geral de repartição do ónus da prova  consagrado no art. 74.º da LGT, o ónus de identificação e de comprovação dos pertinentes actos tributários de repercussão que pretendam contestar (corporizados nas facturas que lhes foram emitidas pelas entidades repercutentes), mas já não o ónus de identificação e de comprovação dos antecedentes actos de liquidação repercutidos, o qual caberá à própria Requerida.

85.Ademais, sendo a Requerida a entidade incumbida de promover a liquidação da CSR, é esta quem está, na verdade, em condições de identificar os actos pressupostos pelos actos de repercussão.

86.Não cabe, portanto, às Requerentes, mas antes à própria AT – caso considere necessário – proceder à concreta e específica identificação dos actos de liquidação de CSR objecto de repercussão, constituindo ónus das Requerentes, apenas, indicar os elementos de que disponham para esse efeito.

87.Respondendo à excepção de intempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado pelas Requerentes, estas recordam que cabendo à AT a identificação dos actos de liquidação, não deve ser agravada a situação fiscal do contribuinte apenas por este não poder apresentar prova documental específica a que não tem acesso (proc. 467/2020-T).

88.Concluem as Requerentes sugerindo o reenvio prejudicial para o TJUE, nos termos do art. 267.º do TFUE.

 

Saneamento

89.O tribunal foi regularmente constituído e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e encontram-se regularmente representadas (art.os 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3).

90.Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito, remetendo-se o tratamento das excepções para a análise da matéria de Direito.

 

Matéria de facto

Factos provados

91.Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

A.  As Requerentes são sociedades comerciais portuguesas que se dedicam ao transporte e aluguer de automóveis. 

B.  No período compreendido entre Maio de 2019 e Dezembro de 2022, as Requerentes adquiriram à C..., Lda, e à D..., SA 1.330.678,47 litros de gasolina e gasóleo.

C.  Alegando ter sido integralmente repercutido sobre si o montante de 188.505,12 € de CSR, através das facturas emitidas pela C..., Lda, e pela D..., SA, as Requerentes apresentaram em 31.5.2023 e 31.7.2023 pedidos de revisão oficiosa com vista à anulação das referidas liquidações de CSR, e dos consequentes actos de repercussão consubstanciados nas facturas emitidas pelas fornecedoras de combustíveis.

D. Esses pedidos foram tacitamente indeferidos.

E.  Em 3.1.2024 as Requerentes apresentaram no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

Factos não provados

92.Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar:

A. Quem foram os sujeitos passivos de CSR dos combustíveis adquiridos pelas Requerentes e quais os valores de CSR liquidados e pagos;

B. Que a CSR tenha sido repercutida total ou parcialmente na Requerentes;

C. Quais os efeitos económicos de tais repercussões.

93.Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos.

94.Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123.º/2 do CPPT e art.os 596.º/1 e 607.º/3 e 4 do Código de Processo Civil - CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º/1 a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.os 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - CPTA e art.os 5.º/2 e 411.º do CPC).

95.Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16.º e) do RJAT e art. 607.º/4 do CPC, aplicável ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT).

96.Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do art. 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607.º/5 do CPC ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT).

94. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade que se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

95. O tribunal considera que as facturas das fornecedoras de combustível, apresentadas pelas Requerentes não identificam os originais sujeitos passivos de ISP e de CSR, não podendo substituir-se a documentos que possam comprovar a liquidação conjunta destes tributos pelos sujeitos passivos: as Declarações de Introdução no Consumo, ou o Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou documentos que, ao menos, permitissem identificar, com um mínimo de certeza, quem foram esses sujeitos passivos originários.

 

Matéria de Direito

97.Reconhece este tribunal que a CSR é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo.

98.De facto, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos (cf. art. 1.º/1 a) e 2 da referida directiva), o que não acontece, já que a mera afectação do produto desse tributo ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional não é suficiente, mesmo se associada à redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.

99.Na verdade, não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e essas finalidades (já que o produto da CSR não se destina exclusivamente ao financiamento de operações que supostamente concorrem para a realização desses dois objectivos), nem é evidente uma real vontade de desencorajar a utilização quer da rede quer dos principais combustíveis rodoviários, pelo que subsiste uma finalidade puramente orçamental.

100.As directivas são actos através dos quais os órgãos competentes da União impõem aos Estados-membros a transposição do respectivo regime, ou seja, a adopção de actos subsequentes que adeqúem a sua ordem jurídica às regras por elas fixadas.

101.Por não se dirigirem aos particulares, entende-se genericamente que não podem ser invocadas por estes como tendo criado direitos na respectiva esfera jurídica (não têm, portanto, efeito directo).

102.A jurisprudência europeia reconheceu, todavia, uma excepção (ac. 17.12.70 SACE, proc. 33/70): tratando-se de disposições precisas e incondicionais de directivas, a não transposição destas (ou a transposição incorrecta) no prazo por elas estabelecido, permite aos particulares invocá-las contra entes públicos (efeito directo vertical), já que, caso contrário, esses entes estariam a retirar vantagem de um incumprimento das obrigações gerais face ao Direito da União, privando esses mesmos particulares de direitos que teriam sido constituídos na sua esfera jurídica se a transposição tivesse ocorrido nos termos previstos.

103.Essa será a situação em apreço: a proibição constante do art. 1.º da Directiva 2008/118 pode ser invocada pelas Requerentes para arguir a ilegalidade dos actos de liquidação de CSR que a contrariam, por não se verificarem os necessários motivos específicos.

104.Isso mesmo foi reconhecido explicitamente pelo TJUE – a quem cabe determinar em exclusivo a interpretação do Direito da União (art. 267.º TFUE) – no Despacho de 2.2.2022 (Vapo Atlantic SA c. Autoridade Tributária, proc. C-460/21).

105.Ora, o Direito da União aplica-se na ordem interna portuguesa nos termos por ele definidos (art. 8.º/4 da Constituição), sendo que esses termos determinam a sua prevalência sobre o Direito nacional, por força do princípio do primado (ac. 15.07.1964 Costa c. ENEL, proc. 6/64 e  Declaração sobre o primado do direito comunitário, anexa ao TFUE).

106.Neste enquadramento, dúvidas não subsistirão quanto à ilegalidade genérica dos actos de liquidação da CSR.

107.Não obstante, no caso em apreço são arguidas pela AT diversas excepções. A saber: a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria (por não se tratar de um imposto mas de mera contribuição), a ilegitimidade das Requerentes (por não serem os sujeitos passivos da CSR mas meras repercutidas), a ineptidão da petição inicial (por falta de objecto, dada a não identificação dos actos tributários cuja nulidade é arguida) e a caducidade do direito de acção (por não ser possível efectuar contagem dos prazos dado não haver identificação – e consequentemente data – dos actos de liquidação).

108.Relativamente à pretendida incompetência do tribunal arbitral reconhece-se que a Portaria de vinculação à jurisdição arbitral (Port.ª 112-A/2011 de 22.3) estabelece duas limitações: as pretensões relativas a impostos de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos tribunais arbitrais e a impostos cuja administração esteja acometida à AT. Conclui-se, portanto, que essa vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no art. 2.º/1 do RJAT que respeitem a impostos, com exclusão de outros actos tributários.

109.As contribuições financeiras são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidas à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos com rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efectivas (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2015, Coimbra, p. 287). Não há dúvidas que se distingam dos impostos.

110.No caso da CSR, esta visa financiar a rede rodoviária nacional (afectando-se, para esse efeito, as receitas dela decorrentes à Infraestruturas de Portugal SA, a qual assume esse encargo), sendo devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre produtos petrolíferos (ISP), aplicando-se o CIEC à sua liquidação, cobrança e pagamento (nos termos do art. 5.º/1 da Lei 55/2007 de 31.8).

111.Dificilmente pode considerar-se a CSR como uma contribuição financeira, já que não tem como pressuposto uma prestação a favor de um grupo de sujeitos passivos por parte de uma pessoa colectiva. Ela é estabelecida a favor da Infraestrururas de Portugal, SA, mas os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis) não são os destinatários da actividade dessa empresa (que consiste na concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas – cf. art. 3.º/2 da Lei 55/2007).

112.Inexistindo um nexo específico entre o benefício emanado da actividade pública titular da contribuição (a Intraestruturas de Portugal, SA) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparece essa natureza de contribuição financeira, devendo, por isso, ser assumida como um imposto, para efeitos do art. 2.º/1 do RJAT.

113.Segue-se, nesta questão a orientação maioritária do CAAD, que reconhece na CSR um verdadeiro imposto e, por isso integrando a competência arbitral (por todos, v. proc. 465/2023-T).

114.A AT, ainda sobre a pretendida incompetência do tribunal arbitral, entende que este não poderá conhecer do pedido, por este pretender discutir a legalidade do regime da CSR no seu todo e a sua desconformidade com o Direito da União.

115.Este reparo assenta num evidente equívoco já que, conforme se referiu supra, a efectiva desconformidade da CSR com a Directiva 2008/118 integra a competência do tribunal arbitral, por afectar a validade das liquidações desse tributo, da mesma maneira que essa validade poderia ser afectada por desconformidade com normas de direito interno, dado o regime de vigência do Direito da União.

116.Improcede, portanto, a excepção de incompetência do tribunal.

117.Relativamente às outras excepções invocadas pela Requerida (ilegitimidade das Requerentes, ineptidão da petição e caducidade do direito de acção), abordá-las-emos conjugadamente a partir de um elemento que, da análise do processo e da jurisprudência (nem sempre convergente) que vem surgindo na matéria, nos parece determinante: a imprescindibilidade da identificação dos actos tributários impugnados.

118.Essa identificação, conforme se referiu supra (§ 95), não resulta das facturas dos fornecedores de combustível, apresentadas pelas Requerentes, já que nenhuma referência nelas surge sobre originais sujeitos passivos de ISP e de CSR (os quais constarão das Declarações de Introdução no Consumo, ou do Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou eventualmente de outros documentos que lograssem tal identificação com um mínimo de certeza).

119.Ora essa identificação é imprescindível já que a pretendida devolução dos montantes pagos em sede de CSR se funda na nulidade do acto de liquidação (que fundamenta o pedido de revisão oficiosa). E se dificilmente pode ser apreciado o vício do acto sem se demonstrar a sua existência, impossível será conferir da sua repercussão efectiva.

120.Assim, assumem as Requerentes que tendo as compras das mercadorias ocorrido na vigência da Lei 55/2207, a sujeição à CSR seria obrigatória, o que, genericamente se poderia aceitar – conquanto ignoremos que se trata de mera presunção de facto.

121.Todavia, o que está em questão, mais do que saber se os combustíveis em causa foram ou não presumivelmente sujeitos a CSR, será saber, também, quem terá suportado esses encargos originaria e efectivamente, pois só a partir daí será possível atestar da sua existência e, além disso, conferir se foram efectivamente pagos e repercutidos nas Requerentes.

122.É que, não havendo repercussão legal da CSR, esse efeito não poderá presumir-se, carecendo de prova, a qual depende - novamente - da identificação dos actos tributários de liquidação originários.

123.Chega-se, assim, à ilegitimidade das Requerentes, as quais, não sendo sujeitos passivos, mas meros repercutidos (eventuais) de facto, terão de demonstrar essa repercussão. E a prova desta só poderá fazer-se a partir dos actos tributários da liquidação da CSR. Não sendo os mesmos identificados, impossível se torna a demonstração da repercussão.

124.Atente-se ao facto de que este tribunal arbitral não afasta a possibilidade de uma eventual repercussão, mas também não dispensa a sua demonstração, a qual depende - como se referiu - da identificação dos actos tributários originais de liquidação.

125.Neste ponto, releva o argumento da AT quando salienta o risco de o pedido de devolução de CSR poder ser feito por todos os intervenientes no processo de comercialização dos combustíveis.

126.Esse risco só é controlável na medida em que, sendo identificados os actos tributários originais de liquidação, possa ser conferida a efectiva repercussão do imposto, a qual determinará o titular do direito à sua devolução, com exclusão dos demais (na medida em que tenham repercutido, a montante e não tenham sido repercutidos, a jusante, se surgirem no referido processo).

127.Neste ponto, será excessivo pretender que seja a AT a identificar os actos tributários em causa por força de um dever genérico de colaboração. Esse dever não pode equivaler (como parecem pretender as Requerentes) a uma verdadeira inversão do ónus da prova. E, por outro lado, nada impede que os consumidores obtenham dos seus fornecedores cópias das declarações de introdução ao consumo (DIC), ou, que estes efectuem essa mesma diligência, caso não tenham sido eles a fazer tal declaração.

128.Atente-se, finalmente, a que a referida imprescindibilidade da identificação do acto tributário se justifica ainda enquanto elemento essencial para a conferência dos prazos relevantes.

129.De facto, a contagem do prazo para o pedido de revisão oficiosa (e subsequentemente para a apresentação do pedido arbitral), dependem da identificação dos actos tributários de liquidação. Sem estes será impossível fazer-se a necessária conferência. Trata-se, conforme se referiu anteriormente, de um elemento de prova cuja produção compete ao interessado.

130.Nestes termos, entende o tribunal que, a imprescindibilidade da identificação dos actos tributários cuja declaração de nulidade é requerida faz com que a inexistência dessa identificação torne a petição inepta por falta de objecto (art. 186.º e 576.º/2 do CPC ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT) - para além de conduzir simultânea e subsidiariamente à ilegitimidade das Requerentes, tornando ainda impossível conferir da tempestividade do exercício do direito de revisão do acto e do pedido arbitral (art. 576º/2 e 3 e 577.º a)  ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT).

131.A procedência das excepções impede o conhecimento da demais matéria da presente acção arbitral.

Decisão

Em face do supra exposto, decide-se:

  1. Considerar totalmente improcedente o pedido por procedência das excepções de ineptidão da petição, ilegitimidade das partes e caducidade do direito de acção, com as consequências legais, mormente a nulidade do processo;
  2. Condenar as Requerentes no pagamento integral das custas do presente processo.

 

Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em 188.505,12 € (cento e oitenta e oito mil quinhentos e cinco euros e doze cêntimos) nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do art. 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 3.672,00 € (três mil seiscentos e setenta de dois euros), a pagar pelas Requerentes, nos termos dos artigos 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 11 de Setembro de 2024

 

Os Árbitros,

 

Fernando Araújo (Presidente)

(Estou de acordo com o sentido último da decisão, com a ressalva de que entendo que nem a junção, pelos repercutidos, de cópias de declarações de introdução ao consumo [DIC], que lhe fossem facultadas pelos sujeitos passivos de ISP e CSR, impediria a ineptidão por ininteligibilidade do pedido, dado que, na ausência de uma repercussão formalizada, ao estilo do IVA, não é possível identificar / rastrear as liquidações de CSR às quais corresponderiam – a existir repercussão – as facturas dadas como prova, continuando os actos impugnados a não estar satisfatoriamente identificados, em violação dos arts. 10º, 2, b) do RJAT, 108º do CPPT e 78º do CPTA. Isso acarretaria sempre a consequência da nulidade de todo o processo, constituindo uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, geradora da absolvição da instância, nos termos dos arts. 193º, 1, 493º, 1 e 2, 494º, b) e 495º do CPC).

 

Sofia Ricardo Borges (vogal, com declaração de voto infra)

 

 

 

Rui M. Marrana (vogal, relator)

 

Texto elaborado em computador.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

 

 

Declaração de voto

 

Voto a Decisão, com as ressalvas que seguem.

Considero o Tribunal materialmente competente com fundamento distinto. A saber, considero a CSR ao tempo qualificar como Contribuição Financeira, sendo que, ainda assim, a competência material do Tribunal se verifica (afastando-me também por aqui do ponto 108). Não me revendo no mais vertido no Acórdão a respeito da qualificação. Cfr. Decisão Arbitral de 9 de Setembro no processo n.º 192/2024-T.

Por outro lado, considero efectivamente verificar-se excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, por entender reunidos os respectivos pressupostos - não ter sido junto aos autos o acto tributário objecto do Pedido, mesmo após as Requerentes convidadas a pronunciar-se a este respeito, o que determina a nulidade de todo o processo, obsta ao conhecimento do mérito e é causa de absolvição da instância. Ressalvando ainda que o alegado indeferimento tácito, acto de segundo grau, não constitui objecto do Pedido Arbitral. Tudo cfr. Decisão Arbitral de 9 de Setembro no processo n.º 192/2024-T.

Mais acompanho que se verifica também nos autos, a par da ineptidão da petição inicial, a excepção dilatória de ilegitimidade processual activa – porém por as Requerentes não serem sujeitos da relação material controvertida de CSR tal como configurada a lide. Acrescentando que a “conferência da tempestividade do exercício do direito de revisão...” (ponto 130 do Acórdão) ficaria prejudicada por, assim o vejo, a montante não se ter formado indeferimento tácito. Por economia do Voto, remeto mais uma vez para o desenvolvido na Decisão Arbitral no processo n.º 192/2024-T, de 9 do corrente.

 

Aos 11 de Setembro de 2024,

 

Sofia Ricardo Borges