Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 785/2023-T
Data da decisão: 2024-09-16  IRC  
Valor do pedido: € 123.831,44
Tema: IRC. Apresentação de declaração modelo 22 após a emissão de liquidação oficiosa. Procedimento de revisão oficiosa. Erro imputável aos serviços.
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SUMÁRIO

 

1. Praticada liquidação oficiosa com base num lucro tributável estimado e sendo apresentada declaração Modelo 22 do IRC, baseada na realidade contabilística do sujeito passivo e desta refletora, que aponta para um outro lucro tributável - este eventualmente real e não estimado - a manutenção do acto tributário questionado exige a realização de diligências inspectivas pela AT no sentido de aferir do acerto da matéria colectável que lhe subjaz, ou seja, exige a apreciação e a decisão, quanto ao fundo, do pedido de revisão daquela liquidação oficiosa.

 

2. Constitui erro imputável aos serviços, determinante da anulação do acto tributário, aquele em que incorre a Autoridade Tributária, ao indeferir o pedido de revisão oficiosa na presença de elementos da contabilidade que põem em causa o acerto dos pressupostos de facto do acto impugnado.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (Presidente), Dra. Sónia Martins Reis e Dr. Martins Alfaro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral Colectivo, constituído em 16-01-2023, acordam no seguinte:

 

A - RELATÓRIO

 

A.1 – Requerente

 

A..., LDA., com o número de identificação de pessoa colectiva ... e com sede social na Rua de ..., n.º..., ...-... Lisboa.

 

A.2 – Requerida

 

Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

 

A.3 - Objecto do pedido de pronúncia arbitral

 

Actos de liquidação oficiosa de IRC n.º 2021..., no valor de € 61.010,44, relativo ao exercício de 2019, e n.º 2022..., no valor de € 62.821,00, relativo ao exercício de 2020.

 

A.4 - Pedido

 

Anulação dos actos de liquidação oficiosa de IRC supra identificados.

 

A.5 - Fundamentação do pedido

 

No ordenamento jurídico tributário não existe qualquer disposição legal que impeça o sujeito passivo de entregar a declaração de rendimentos em falta em momento posterior à realização e notificação da liquidação oficiosa, desde que o faça no decurso do prazo de caducidade do respectivo tributo.

 

O n.º 12 do artigo 90.º do Código do IRC prevê que as liquidações oficiosas possam ser corrigidas dentro do prazo de caducidade.

 

Assim, considerando que, face à apresentação das declarações de rendimentos Modelo 22 para 2019 e 2020, estão em causa períodos de tributação cujo prazo de caducidade só ocorre em 31.12.2023 e 31.12.2024, respectivamente, e atenta a natureza provisória das liquidações oficiosas, a AT deveria ter procedido à apreciação dos pedidos de revisão oficiosa apresentados pela Requerente.

 

Ou seja: tendo sido apresentadas declarações de rendimentos após a emissão das liquidações oficiosas, mas dentro do prazo de caducidade e mediante a faculdade consignada no artigo n.º 12 do artigo 90.º do Código do IRC, o princípio da tributação pelo rendimento real impõe outras diligências por parte da AT, designadamente, a realização de acção inspectiva para aferição de todos os elementos que foram supervenientemente apresentados pelo contribuinte e na sequência de pronúncia da AT.

 

Em face do exposto, só se pode concluir que, perante um pedido de revisão oficiosa do acto tributário, fundado em erro nos pressupostos de facto, a AT encontra-se investida no poder-dever de apreciar e decidir o pedido de revisão em causa, formulado pelo contribuinte, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT.

 

Não o tendo feito, é-lhe imputável o erro na quantificação da matéria colectável, não podendo os actos tributários de liquidação oficiosa subsistirem na ordem jurídica por violação do princípio da tributação do rendimento real, constitucionalmente consagrado (n.º 2 do artigo 102.º da CRP).

 

A.6 - Resposta da Requerida

 

Verifica-se a excepção da incompetência material do Tribunal Arbitral para conhecer do presente pedido, uma vez que o mesmo vem deduzido contra a decisão que negou provimento ao pedido de revisão oficiosa por não estarem preenchidos os pressupostos do n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 78.º da LGT, sem que a AT se tivesse pronunciado sobre o mérito das liquidações em crise.

 

Por excepção, deve o Tribunal Arbitral julgar extinta a instância com fundamento em inimpugnabilidade das liquidações em crise em virtude de as mesmas, findo o prazo da reclamação graciosa, se terem já consolidado na ordem jurídica, o que também determina a caducidade do direito de acção.

 

A competência da liquidação foi devolvida à AT, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º todos do CIRC, face à falta de apresentação das DR Modelo 22 pela Requerente.

 

Tendo a AT procedido de acordo com os seus poderes vinculados, não existe fundamento para proceder à revisão oficiosa dos actos tributários referentes a esses períodos de tributação com base em erro imputável aos serviços.

 

Relativamente aos gastos incorridos em cada período tributário, com objectivo de desenvolver a actividade económica a que a sociedade se propõe, pese embora estejam parcialmente refletidos por faturas registadas no E-fatura, com os elementos disponibilizados pelo sujeito passivo, não é possível validar o cumprimento das normas contabilísticas e dos pressupostos exigidos pelo CIRC mormente e entre outros, no artigo 17.º, n.ºs 1 e 3, 18.º e 23.º do CIRC.

 

Os elementos disponibilizados pelo sujeito passivo, assentam simplesmente no conjunto de registos contabilísticos que compõem o resultado líquido do período e não contêm suportes explícitos, em primeiro lugar, que revelem a sua ocorrência nos períodos de tributação subjacentes, e em segundo lugar, que produzam prova quanto à sua dedutibilidade fiscal ou não.

 

Neste sentido e considerando os elementos carreados pela Requerente, sempre se concluiria que tais elementos são muito insuficientes para validar o “quantum” da matéria tributável da Requerente, não sendo possível, com a informação que a AT dispõe, colmatar essas falhas e validar com rigor a situação contabilístico-tributária da Requerente evidenciada nas DR Modelo 22 entregues fora do prazo, referentes aos períodos de tributação de 2019 e 2020.

 

Termina, requerendo que a Requerida seja absolvida da instância, com fundamento nas excepções invocadas e, caso estas não procedam, que o pedido seja julgado improcedente.

 

 

B - SANEAMENTO

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo a Requerida manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o tribunal arbitral colectivo foi regularmente constituído em 16-01-2023.

 

Apresentada a Resposta pela Requerida, por despacho de 06-03-2024, foi a Requerente notificada para exercer, querendo, contraditório, no prazo de dez dias, em relação à matéria de exceção suscitada pela Requerida, o que fez, sustentando a improcedência das referidas exceções.

 

Por despacho de 04-06-2024, o Tribunal proferiu dispensando a reunião prevista no artigo 18.º do RJAMT e notificou as partes para alegações, prosseguindo o processo para decisão até ao final do prazo do artigo 21.º, n.º 1, do RJAT

 

Ambas as partes produziram alegações, nas quais, no essencial, reiteraram as posições já assumidas.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

 

C - MATÉRIA DE FACTO

 

C.1 - Factos provados

 

Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

 

A Requerente não apresentou até ao final do prazo legal as declarações periódicas de rendimentos Modelo 22 do IRC referentes aos anos de 2019 e 2020 - Facto aceite por acordo (pedido de pronúncia arbitral e Resposta).

 

Assim, na falta de entrega da declaração Modelo 22 do IRC para o exercício de 2019, a AT instaurou o procedimento irregular n.º ..., do qual resultou e emissão do “Aviso n.º GIC-...” que foi notificado à Requerente, por Via CTT, em 18-11-2020, considerando-se notificada do mesmo em 06-12-2020, sobre faltosos Modelo 22, para no prazo máximo de 15 dias proceder à entrega da Declaração de rendimento em falta - Processo Administrativo, não impugnado.

 

E, na falta de entrega da declaração Modelo 22 do IRC para o exercício de 2020, a AT instaurou o procedimento irregular n.º..., do qual resultou e emissão do “Aviso n.º GIC-...” que foi notificado à Requerente, por ViaCTT, em 19-11-2021, considerando-se notificado do mesmo em 07-12-2021, sobre faltosos Modelo 22, para no prazo máximo de 15 dias proceder à entrega da Declaração de rendimento em falta  - Processo Administrativo, não impugnado.

 

Nesta sequência, a AT procedeu à emissão das liquidações oficiosas de IRC dos exercícios de 2019 e 2020, liquidação n.º 2021..., de 29-11-2021, no montante total a pagar de € 61.010,44, e liquidação n.º 2022..., de 05-01-2022, no montante total a pagar de € 62.821,00, as quais foram efectuadas ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, liquidações essas que constituem objecto do presente pedido de pronúncia arbitral  - Facto aceite por acordo (pedido de pronúncia arbitral e Resposta).

 

A liquidação oficiosa de IRC, relativa ao exercício de 2019, resultou de um lucro tributável apurado, também oficiosamente, no montante de € 294.818,25 - Processo Administrativo, não impugnado.

 

A liquidação oficiosa de IRC, relativa ao exercício de 2020, resultou de um lucro tributável apurado, também oficiosamente, no montante de € 294.818,25 - Processo Administrativo, não impugnado.

 

As liquidações impugnadas foram validamente notificadas à Requerente  - Facto aceite por acordo (pedido de pronúncia arbitral e Resposta).

 

Em 03-06-2022, a Requerente procedeu à entrega da declaração periódica de rendimentos Modelo 22 do IRC, referente ao exercício de 2019, da qual resultava um lucro tributável no valor de € 20.684,58 - Processo administrativo e pedido de pronúncia arbitral.

 

A declaração referida no parágrafo anterior não deu origem a qualquer liquidação, ficando como “Doc. Não Liquidável”, uma vez que da declaração submetida, resultou imposto inferior ao da liquidação oficiosa emitida pela AT - Processo Administrativo e resposta da Requerida, não impugnado pela Requerente.

 

Em 31-12-2022, a Requerente procedeu à entrega da declaração periódica de rendimentos Modelo 22 do do IRC, referente ao exercício de 2020, da qual resultava um lucro tributável no valor de € 7.192,64 - Processo administrativo e pedido de pronúncia arbitral.

 

A declaração referida no parágrafo anterior não deu origem a qualquer liquidação, ficando como “Doc. Não Liquidável”, uma vez que da declaração submetida, resultou imposto inferior ao da liquidação oficiosa emitida pela AT - Processo Administrativo e resposta da Requerida, não impugnado pela Requerente.

 

Em 16-02-2023, a Requerente submeteu dois pedidos de revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º da LGT, contra as liquidações objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.

 

Aos procedimentos de revisão oficiosa atrás referidos, couberam os números de ordem ...2023... e ...2023..., respectivamente quanto às liquidações de 2019 e de 2020 - Processo Administrativo.

 

Com os pedidos de revisão oficiosa, a Requerente juntou a documentação contabilística que fundava o apuramento de lucro tributável de IRC, constante das declarações Modelo 22 anteriormente apresentadas - Processo Administrativo.

 

A decisão final do procedimento de revisão oficiosa, relativo ao IRC, do ano de 2019, foi notificada à Requerente, por carta, com registo postal efectivado em 31-07-2023 - Processo Administrativo.

 

A decisão final do procedimento de revisão oficiosa referido no parágrafo anterior - que expressamente se apropriou das informações prestadas na instrução daquele procedimento - entendeu que:

 

Analisados os elementos constantes dos autos, conclui-se que a liquidação foi emitida por falta de entrega da declaração de rendimentos dentro do prazo estipulado na lei, tal como estava obrigada. O rendimento foi determinado à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, pelo que a liquidação não sofre de qualquer ilegalidade. Da consulta aos autos e de acordo com o informado, mormente nos pontos IV e V, conclui-se que não se encontram verificados os pressupostos para efetuar a revisão da liquidação, pelo que afigura-se ser de NEGAR PROVIMENTO à presente revisão oficiosa […] - Processo Administrativo.

 

A decisão final do procedimento de revisão oficiosa relativo ao IRC do ano de 2020 foi notificada à Requerente, por carta, com registo postal efectivado em 31-07-2023 - Processo Administrativo.

 

A decisão final do procedimento de revisão oficiosa referido no parágrafo anterior - que expressamente se apropriou das informações prestadas na instrução daquele procedimento - entendeu que:

 

Analisados os elementos constantes dos autos, conclui-se que a liquidação foi emitida por falta de entrega da declaração de rendimentos dentro do prazo estipulado na lei, tal como estava obrigada. O rendimento foi determinado à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, pelo que a liquidação não sofre de qualquer ilegalidade. Da consulta aos autos e de acordo com o informado, mormente nos pontos IV e V, conclui-se que não se encontram verificados os pressupostos para efetuar a revisão da liquidação, pelo que afigura-se ser de NEGAR PROVIMENTO à presente revisão oficiosa […] - Processo Administrativo.

 

A Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e apresentou o pedido de pronúncia arbitral em 31-10-2023 - Sistema de Gestão Processual do CAAD.

 

 

C.2 - Factos dados como não provados

 

Inexistem outros factos relevantes para a decisão que não devam considerar-se provados.

 

C.3 - Motivação quanto à matéria de facto

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados em função da sua relevância jurídica, face às soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

Com efeito, o Tribunal não está obrigado a pronunciar-se sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, tomando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamentam o pedido formulado pelo autor (cfr. artigos 596.º, n.º 1, e 607.º, n.ºs 2 a 4, do Código do Processo Civil) e consignar se a considera provada ou não provada (cf. ainda o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, ex vi o artigo 29.º do RJAT).

 

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação à prova produzida, na sua convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas  (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC).

 

Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - artigo 371.º, do CPC), é que não prevalece, na apreciação da prova produzida, o princípio da livre apreciação.

 

Por outro lado, nos termos do artigo 16.º, alínea e), do RJAMT, vigora no processo arbitral tributário o princípio da livre apreciação dos factos, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros.

 

A matéria de facto dada como provada tem génese no processo administrativo e nos documentos juntos pela Requerente e pela Requerida, nenhuns dele impugnados e os quais, analisados de forma crítica, constituíram a base da convicção do Tribunal Arbitral quanto à realidade dos factos descrita supra.

 

A convicção do Tribunal fundou-se igualmente nos factos articulados pelas partes; o acervo probatório carreado para os autos foi objecto de uma análise crítica e de adequada ponderação, à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e de razoabilidade.

 

 

D - O DIREITO

 

D.1 - Exceções invocadas pela Requerida

 

O artigo 124.º do CPPT não faz alusão às questões processuais, diversamente do que sucede no CPC, no artigo 608.º, n.º 1, do CPC, o qual estabelece um critério de precedência lógica, que impõe ao tribunal a apreciação prioritária das questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.

 

Com efeito, nos termos do artigo 608, n.º 1, do CPC, «sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica».

 

Considera-se aplicável ao processo arbitral o estabelecido no artigo 608, n.º 1, do CPC, ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

E o artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, refere-se expressamente às «excepções que seja necessário apreciar e decidir antes de conhecer do pedido».

 

Assim, apreciar-se-ão primeiramente as excepções invocadas pela Requerida, a saber:

 

D.1.1 - 1.ª excepção invocada - Incompetência do Tribunal arbitral em razão da matéria

 

A competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que se impõe a respectiva apreciação, previamente à verificação dos demais pressupostos processuais (cf. artigos 16.º do CPPT, e 13.º do CPTA, ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).

 

A Requerida excepcionou a incompetência material do Tribunal Arbitral, uma vez que, na decisão final dos procedimentos de revisão oficiosa, a AT não teria apreciado a legalidade das liquidações em causa, pronunciando-se apenas pela intempestividade dos pedidos administrativos.

 

Segundo alega ainda a Requerida, deste modo, não é possível à Requerente, em sede da presente acção arbitral, ver discutida a legalidade das decisões de indeferimento por intempestividade dos pedidos de revisão oficiosa, porquanto o meio processual adequado para discutir a legalidade daquelas decisões é a acção administrativa, a qual constitui o meio processual adequado quando o acto impugnado é relativo a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade de um acto de liquidação.

 

Daí concluindo que este Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para a apreciação do presente pedido de pronúncia arbitral.

 

Apreciando:

 

A competência dos tribunais arbitrais é delimitada pelo disposto no artigo 2.º do RJAT e pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

Dali resulta que a competência dos Tribunais Arbitrais compreende exclusivamente a apreciação das pretensões relacionadas com a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamento por conta, de actos de fixação da matéria tributável que não dêem origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.

 

A definição assim efectuada normativamente em razão da matéria, corresponde, genericamente, às pretensões sindicáveis por via da impugnação judicial  (cf. o artigo 97.º, n.º 1, do CPPT).

 

A Requerida excepcionou com a incompetência deste Tribunal, em razão da matéria, alegando que a AT não apreciou, em sede de procedimento de revisão oficiosa, a legalidade das liquidações em causa, pelo que, em consequência, tais actos tributários não são sindicáveis por via de impugnação judicial ou por via arbitral, sendo-o, antes, por acção administrativa.

 

Ora, a verdade é que a Requerida, na apreciação do pedido de revisão oficiosa, não apreciou apenas a questão da tempestividade do pedido de abertura daquele procedimento, tendo-se pronunciado também sobre o mérito, embora acabe por concluir pela rejeição liminar com base naquele fundamento.

 

Como consta dos factos provados, as decisões finais dos procedimentos de revisão oficiosa - que expressamente se apropriaram das informações prestadas na instrução daqueles procedimentos - entenderam, em ambos os casos, que:

 

Analisados os elementos constantes dos autos, conclui-se que a liquidação foi emitida por falta de entrega da declaração de rendimentos dentro do prazo estipulado na lei, tal como estava obrigada. O rendimento foi determinado à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, pelo que a liquidação não sofre de qualquer ilegalidade. Da consulta aos autos e de acordo com o informado, mormente nos pontos IV e V, conclui-se que não se encontram verificados os pressupostos para efetuar a revisão da liquidação, pelo que afigura-se ser de NEGAR PROVIMENTO à presente revisão oficiosa […].

 

Ao entender que a liquidação não sofre de qualquer ilegalidade, em resultado do modo de apuramento do lucro tributável, as decisões finais dos procedimentos de revisão oficiosa em causa, apreciaram efectivamente a legalidade das liquidações.

 

Acresce que, para concluir pela extemporaneidade do pedido, a Requerida teve de aferir a existência do pressuposto de “erro imputável aos serviços”, o que, em rigor, encerra a análise de argumentos pertinentes ao fundo da causa e, desta forma, à ilegalidade dos actos.

 

De qualquer modo, mesmo que assim não se entendesse, a jurisprudência mais recente do STA pronunciou-se no sentido de que, sendo o pedido do sujeito passivo dirigido à anulação por ilegalidade do acto tributário, está em causa a apreciação dessa mesma ilegalidade, qualquer que seja a razão ou o vício que conduziram à rejeição ou indeferimento dessa pretensão.

 

Veja-se, por todos, o acórdão do STA, de 13-01-2021, processo n.º 0129/18.9BEAVR:

 

“A impugnação judicial é o meio processual adequado para discutir a legalidade do ato de liquidação - artigo 99.º do CPPT - independentemente de ter sido ou não precedida de meio gracioso e, no caso de assim ter acontecido, independentemente do teor da decisão que sobre ele recaiu, ou seja, de ser uma decisão formal ou de mérito – acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18/11/2020, proferido no processo 0608/13.4BEALM 0245/18. E visa a anulação total ou parcial do ato tributário (a liquidação).

 

Ao invés, a ação administrativa, meio contencioso comum à jurisdição administrativa e tributária, será o meio processual a usar quando a pretensão do interessado não implique a apreciação da legalidade do ato de liquidação.

 

Assim, se na sequência do indeferimento do meio gracioso, o interessado pedir ao tribunal que aprecie a legalidade da liquidação e que, em consequência, a anule (total ou parcialmente), o meio processual adequado é a impugnação judicial, ainda que esse conhecimento tenha de ser precedido da apreciação dos vícios imputados àquela decisão administrativa.

 

Daí que se tenha vindo a afirmar que nestas situações, em que o meio gracioso precede o contencioso, a impugnação judicial tem um objeto imediato (a decisão administrativa) e um mediato (a legalidade da liquidação).

 

[…]

 

Importa dizer que sobre esta matéria a posição deste Tribunal tem também sido uniforme no sentido de adotar, na interpretação do pedido formulado, um critério flexível com vista a alcançar uma justiça efetiva e não meramente formal, pois só assim é garantida uma tutela jurisdicional efetiva”.

 

Deste modo, o facto de a AT ter considerado intempestivo o pedido de revisão oficiosa, não impede nem compromete a apreciação, por este Tribunal Arbitral, do pedido identificado no pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, a saber: a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários impugnados.

 

Tendo a Requerente estabelecido como pedido principal a declaração de ilegalidade dos já referidos atos de liquidação de IRC - e acompanhando a jurisprudência citada -, é indiferente o teor, formal ou material, da decisão dos actos administrativos em matéria tributária, de segundo ou de terceiro grau.

 

Se o que é pedido ao Tribunal Arbitral é uma pronúncia sobre a legalidade do acto de liquidação, então o meio processual adequado é a impugnação judicial, aplicando-se tal raciocínio à acção arbitral, por identidade de razões.

 

Com efeito, nos termos do regime estatuído nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, a determinação da competência material do Tribunal arbitral afere-se em função do objecto do processo.

 

Da leitura do pedido de pronúncia arbitral resulta inequívoco pretender a Requerente a apreciação da legalidade das liquidações de IRC impugnadas.

 

Assim, configurando a Requerente aqueles actos de liquidação como objecto do processo arbitral, é em relação a eles que deve ser aferida a competência do Tribunal.


Por abundância, diga-se, ainda, que constitui posição pacífica da jurisprudência tributária que a decisão de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa com fundamento na inexistência de “erro imputável aos serviços” para efeitos de aplicação do artigo 78.º da LGT comporta a apreciação da legalidade de um acto de liquidação - Acórdãos do STA, processos n.ºs 01958/13,[1] 0129/18.9BEAVR,[2] 0608/13.4BEALM,[3] e decisões do CAAD, processos n.ºs 167/2022-T,[4] 457/2022-T [5] e 92/2021-T [6].

 

E por tudo isto, tal pretensão tem cabimento na jurisdição arbitral tributária, pelo que este Tribunal Arbitral se considera materialmente competente e julga improcedente a exceção deduzida pela Requerida.

 

D.1.2 - 2.ª excepção invocada - Intempestividade do pedido de revisão oficiosa

 

A Requerida invocou igualmente - ainda que sem desenvolvimento - a inadmissibilidade do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, defendendo que aquele deverá ser rejeitado por intempestividade do pedido de revisão oficiosa, dado que inexiste qualquer “erro imputável aos serviços”, uma vez que a AT não teve qualquer intervenção nas autoliquidações de imposto realizadas pela Requerente de acordo com o quadro legal vigente.

 

É pacífico que a tempestividade da reclamação administrativa constitui condição necessária para a tempestividade da subsequente impugnação judicial ou pedido de pronúncia arbitral - vejam-se, entre muitos, os seguintes arestos:

 

Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul, proferido em 23-03-2017, no processo n.º 07644/14:

 

«Estando a reclamação graciosa fora de prazo à data em que foi apresentada, em consequência e independentemente da mesma ter sido ou não decidida, a impugnação judicial também será intempestiva».[7]

 

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 02-04-2009, no processo n.º 0125/09:

 

«Só a tempestividade da reclamação graciosa abre à impugnante, neste caso, a possibilidade de discutir a legalidade das liquidações impugnadas, pois a sua extemporaneidade da reclamação ainda que não consequencie a extemporaneidade da impugnação conduz à sua necessária improcedência, por se reagir, então, contra um caso decidido ou resolvido».[8]

 

E «só a tempestividade da reclamação graciosa abre à impugnante, neste caso, a possibilidade de discutir a legalidade das liquidações, pois a confirmar-se a intempestividade da reclamação tudo se passa como se esta não tivesse existido».[9]

 

Deste modo, a intempestividade do pedido de revisão oficiosa, que precedeu o presente pedido de pronúncia arbitral, a verificar-se, implicaria a absolvição da instância, da Requerida.

 

Contudo, no caso dos presentes autos, entende o Tribunal Arbitral não se verificar a invocada excepção de intempestividade.

 

Seguir-se-á, nesta parte, o que, a propósito, se escreveu na douta Decisão Arbitral proferida em 05-03-2024, processo n.º 491/2023-T.[10]

 

Ali se entendeu que:

 

“Já o artigo 78.º, n.º 1, da LGT tem a seguinte redação: «A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços».

 

Daqui resulta que a revisão do ato tributário prevista naquele n.º 1 constitui um meio de correção de erros na liquidação de tributos levado a cabo pela própria administração tributária (a revisão é da competência de quem praticou o ato tributário), e que pode partir da iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa (reclamação graciosa) e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou da iniciativa da administração, no prazo de 4 anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

 

É entendimento pacífico da jurisprudência do STA que, para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e em face da teleologia que subjaz ao instituto da revisão, este não abrange apenas os pedidos de revisão oficiosa da iniciativa da administração tributária, mas também a revisão do ato de liquidação requerida pelo sujeito passivo e como tal abrangida pelo prazo alargado de 4 anos. A revisão é, portanto, um afloramento do dever de revogação de atos tributários ilegais, que encontra arrimo nos princípios da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, que são princípios fundamentais da atividade administrativa (cf. artigo 266.º, n.º 2 CRP e artigo 55.º da LGT). E «face a tais princípios, não se vê como possa a Administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do acto quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes»” (acórdão do STA, 11.05.2005, processo n.º 0319/05).

 

Neste sentido, tal como este Tribunal arbitral a compreende, a revisão do ato tributário prevista no n.º 1 do artigo 78.º da LGT é um modo de reação complementar aos meios administrativos e contenciosos gerais e especiais, que tem o seu campo primordial de aplicação naquelas situações em que já não é possível a impugnação do ato tributário, ou seja, em todos os casos em que o contribuinte, não logrou lançar mão, por sua iniciativa, dos processos impugnatórios previstos na lei (cf. decisão arbitral do CAAD de 24.06.2021, processo n.º 500/2020-T). Como se lê no acórdão do STA de 08.06.2022, processo 0174/19.7BEPDL, “[e]m função do respetivo, integral, conteúdo normativo, o art. 78.º da LGT consubstancia, no âmbito da proteção dum Estado de Direito, um depósito de garantias, acrescidas, de defesa e reposição da legalidade, concedidas aos sujeitos de relações jurídico-tributárias”.

 

E ainda:

 

Esta modalidade de revisão do ato tributário só é possível nas situações em que haja “erro imputável aos serviços”, aqui compreendido não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, do qual tenha resultado, para o contribuinte, uma liquidação de imposto superior ao devido. Essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro (cf., entre outras, a decisão arbitral do CAAD de 24.03.2022, processo n.º 615/2021-T, e, entre outros, os acórdãos do STA de 12.02.2001, recurso n.º 26233, de 11.05.2005, recurso n.º 0319/05, de 26.04.2007, recurso n.º 39/07, de 14.03.2012, recurso n.º 01007/11 e de 18.11.2015, recurso n.º 1509/13).

 

Como se lê no acórdão do STA de 12.02.2001, recuperado recentemente no acórdão do STA de 03.06.2020, «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...)» (cf. acórdão do STA de 03.06.2020, processo n.º 018/10).

 

E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais  que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, acesso direto à Constituição – não tem a Administração Tributária o poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e, por maioria de razão, normas contrárias ao direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado - e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto - estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto (acórdão Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, § 31).

 

Assim, havendo – como se demonstrará claramente infra - erro imputável aos serviços, o prazo para apresentar o pedido de revisão oficiosa é de 4 anos após a liquidação, e não de 120 dias, como sustenta a AT […].

 

Assim, tendo sido requerida a abertura de ambos os procedimentos de revisão oficiosa em 16-02-2023 e respeitando estes procedimentos a uma liquidação efectuada em 29-11-2021 (exercício de 2019) e a outra, efectuada em 05-01-2022 (exercício de 2020), os pedidos de revisão oficiosa foram tempestivamente apresentados, isto é, antes de decorridos quatro anos desde a data das liquidações, que é o prazo que releva à luz do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, em face da ocorrência de “erro imputável aos serviços”.

 

No que respeita à tempestividade do pedido de constituição do Tribunal arbitral, tendo a decisão final de ambos os procedimentos de revisão oficiosa sido notificadas em 03-08-2023 e tendo este apresentado o seu pedido de constituição do Tribunal Arbitral em 31-10-2023, não há dúvidas de que este foi igualmente tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

Pelo que, pelas razões expostas, improcede a excepção da intempestividade dos pedidos de revisão oficiosa, suscitada pela Requerida.

 

D.2 - Mérito do pedido de pronúncia arbitral

 

É a seguinte, a questão a decidir: Se se verifica o vício de violação de lei, fundado em erro nos pressupostos de facto e de direito invocados pela Requerente, resultante de a Requerida AT não ter aceite o apuramento do lucro tributável em IRC, resultante das declarações Modelo 22 do IRC, referentes aos exercícios de 2019 e de 2020, ambas apresentadas pela Requerente após o termo do prazo normal de entrega e após a emissão e notificação de liquidações oficiosas de IRC?

 

Na apreciação desta questão, este Tribunal Arbitral irá acompanhar de muito perto o que se escreveu no douto Acórdão do TCA - Sul, de 15-12-2021, processo n.º 2399/15.5BELSB.[11]

 

Ali se escreveu que:

 

[…] a norma do artigo 78.º/1, da LGT (versão vigente), estabelece que: «[a] revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços».

 

Estão em causa nos autos liquidações oficiosas de IRC, cujo regime resulta do disposto no artigo 90.º/1/c), do CIRC. Ou seja, «[a] liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos: (…) c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha». «A liquidação prevista no n.º 1 pode ser corrigida, se for caso disso, dentro do prazo a que se refere o artigo 101.º [prazo de caducidade do direito à liquidação], cobrando-se ou anulando-se então as diferenças apuradas [artigo 90.º/12, do CIRC].

 

A propósito da liquidação oficiosa de IRC, são pontos firmes os seguintes:

i) «O IRC prevê que, em face do incumprimento pelo sujeito passivo da obrigação de apresentar declaração de rendimentos e nela proceder à autoliquidação do imposto, a AT proceda à liquidação oficiosa com base na matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada [art. 83.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, na redacção aplicável, a que hoje corresponde o art. 90.º, n.º 1, alínea b)]».[12]

ii) «Contrariamente ao que sucede nos casos em que a declaração de rendimentos é apresentada nos termos previstos na lei – aí se incluindo o prazo legal para a sua apresentação, pois que os termos previstos na lei o incluem também -, a declaração de rendimentos tardiamente apresentada não beneficia da presunção de verdade estabelecida no artigo 75.º da Lei Geral Tributária, sendo livremente valorada. // A entrega tardia da declaração de rendimentos não tem necessariamente por efeito a anulação da liquidação oficiosa da liquidação de IRC na medida da diferença para menos, como julgado, pois que os valores aí declarados, por si só, não se presumem verdadeiros».[13]

 

Em face da orientação jurisprudencial fixada, suscita-se a questão de saber se, expirados os prazos de apresentação de declaração de IRC e de dedução de meio gracioso ou contencioso (ordinário), de contestação da legalidade da liquidação oficiosa, esta última se mantém na ordem jurídica, por razões de certeza e segurança jurídica, mesmo que desconforme com o rendimento real da contribuinte? Ou se, em nome do princípio constitucional da tributação do rendimento real das empresas (Artigo 104.º/2, da CRP) é devida a correcção da liquidação oficiosa que daquele se afasta? E de que forma, através de que vias de correcção, tal rectificação pode ter lugar?

 

Neste quadro, importa ter presente que a jurisprudência e a doutrina têm sublinhado o carácter precário da liquidação oficiosa.

 

Assim, a afirma-se que «[i]ndependentemente do direito de a Administração Tributária lançar mão do disposto no artigo 83º, nº1, al. b) do CIRC e, nesse caso, perante a falta de apresentação de declaração de rendimentos, liquidar imposto com base na matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada, a verdade é que essa pretensão não pode sobrepor-se à constatação, resultante de acção de fiscalização (prévia) desencadeada para o efeito, do facto de aí se ter fixado o lucro tributável em zero e, bem assim, de aí a Administração se ter abstido de efectuar qualquer correcção à matéria colectável».[14] Aduz-se, também que «[t]endo sido apresentada declaração de rendimentos após a emissão de liquidação oficiosa, mas dentro do prazo de caducidade e mediante a faculdade consignada no artigo 76.º, nº4 do CIRS, o princípio da tributação pelo rendimento real impõe outras diligências por parte da Administração Tributária, designadamente, a realização de ação inspetiva para aferição de todos os elementos que foram supervenientemente apresentados pelo contribuinte e na sequência de pronúncia da Administração Tributária. Inexistindo tal procedimento ocorre excesso de quantificação de rendimentos».[15] Vinca-se que «[s]e o Fisco dispõe de elementos que permitam uma configuração mais aproximada da realidade tributaria do sujeito passivo, então torna-se mister que os mesmos sirvam de base à avaliação da matéria colectável. Na prática, o caso mais eloquente será o da inexistência do facto tributário».[16]

 

Em face do exposto, impõe-se concluir que, perante um pedido de revisão oficiosa do acto tributário, fundado em erro nos pressupostos de facto, a Administração Tributária encontra-se investida no poder-dever de apreciar e decidir o pedido de revisão em causa, formulado pelo contribuinte, à luz do disposto no artigo 78.º/1, da LGT. Resta-nos, todavia, apurar se aquela pode objectar a extemporaneidade do pedido de revisão oficiosa, com base na preclusão dos prazos de reclamação administrativa ordinária.

 

A resposta à presente questão depende da comprovação da ocorrência de erro imputável aos serviços (78.º/1, in fine, da LGT). Para que o erro seja imputável aos serviços, é necessário que a desconformidade do acto tributário com a realidade da matéria colectável não se deva a conduta negligente do contribuinte. «O erro imputável é um erro relevante, que tenha conduzido a errado apuramento da situação tributária do contribuinte e que tenha causado um prejuízo efectivo e suficientemente grave».[17] Se a Administração, dentro do prazo de caducidade da liquidação, toma conhecimento através dos elementos fornecidos pelo contribuinte, de que as liquidações oficiosas emitidas enfermam de erro na determinação da matéria colectável e rejeita apreciar e decidir o pedido de revisão oficiosa das mesmas, o erro torna-se imputável aos serviços, na medida em que, em face dos elementos disponíveis, mantém na ordem jurídica liquidações oficiosas sem suporte factual adequado. Por outras palavras, perante a junção de elementos relativos à contabilidade da contribuinte que justificam a existência de prejuízos nos exercícios em causa (n.º 23 do probatório), a manutenção dos actos tributários questionados exige a realização de diligências inspectivas no sentido de aferir do acerto da matéria colectável que lhes subjaz, ou seja, exige a apreciação e a decisão, quanto ao fundo, do pedido de revisão dos actos tributários em apreço. O que no caso não sucedeu, pelo que, seja o despacho de indeferimento do pedido de revisão, seja os actos de liquidação que o mesmo preserva, mostram-se inquinados com o vício de violação de lei (78.º/1, in fine, da LGT), o que determina a sua anulação.

 

Identicamente, também no caso dos presentes autos, a AT procedeu - justificadamente - a liquidações oficiosas, com base num lucro tributável estimado, mas perante a apresentação das declarações modelo 22, de IRC, baseadas na realidade contabilística do sujeito passivo e desta reflectoras e que apontam para um outro lucro tributável - este eventualmente, o lucro real e não o lucro estimado -, «a manutenção dos actos tributários questionados exige a realização de diligências inspectivas no sentido de aferir do acerto da matéria colectável que lhes subjaz, ou seja, exige a apreciação e a decisão, quanto ao fundo, do pedido de revisão dos actos tributários em apreço».

 

Ora, sucedeu precisamente o contrário, ou seja, AT rejeitou apreciar os pedidos de revisão oficiosa e - mesmo quando se pronunciou, quiçá inadvertidamente, quanto ao bem fundado das liquidações - decidiu rejeitar os pedidos de revisão oficiosa, tendo-se o erro tornado imputável aos serviços, na medida em que, em face dos elementos disponíveis, a AT manteve na ordem jurídica liquidações oficiosas sem suporte factual adequado.

 

Neste mesmo sentido, veja-se o recente Acórdão do STA, de 12-04-2023, processo n.º 03428/15.8BEBRG.[18]

 

Por fim, refira-se que ao Tribunal não parece aceitável que a Requerida pretenda, neste processo arbitral, vir analisar e discutir a contabilidade e os respectivos documentos de suporte, que originaram as declarações apresentadas pela Requerente, quando teve plena oportunidade de fazê-lo no âmbito do procedimento de revisão oficiosa e, não obstante, não o fez - sendo certo que eram esses o lugar e o momento certos para o efeito.

 

Deste modo, irá decidir-se, na parte dispositiva, pela anulação das liquidações objecto do pedido de pronúncia arbitral.

 

 

E - DECISÃO:

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral dar provimento ao pedido arbitral e, consequentemente, revogar as decisões finais proferidas nos procedimentos de revisão oficiosa números ...2023... e ...2023..., e determinar a anulação dos actos de liquidação de IRC, relativos aos exercícios de 2019 e 2020, aqui impugnados, com as mais consequências legais.

 

 

F - VALOR DA CAUSA

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 123.831,44, correspondente ao valor das liquidações impugnadas, objeto do pedido de pronúncia arbitral. O valor indicado pela Requerente não foi impugnado e considera o Tribunal Arbitral não existir fundamento para o alterar, pelo que se fixa à presente causa o valor de € 123.831,44.

 

 

G - CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, indo a Requerida, que foi vencida, condenada nas custas do processo.

 

Notifique-se.

 

CAAD, em 16 de setembro de 2024

 

Os Árbitros,

 

 

 

 

(Rita Correia da Cunha, Presidente, com Declaração de Voto em anexo)

 

 

 

 

 

(Sónia Martins Reis)

 

 

 

(Martins Alfaro)

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

Não concordando integralmente com a Decisão Arbitral, venho fundamentar a minha declaração de voto nos termos que se seguem. No caso sub judice, a Requerente não apresentou declarações de rendimento Modelo 22 do IRC, referentes a 2019 e 2020, dentro do prazo legal. Veio a Requerente submeter as referidas declarações de rendimento em 2022, e submeter pedidos de revisão oficiosa contra as mesmas em 2023, juntando documentação contabilística às mesmas.

A este propósito, cumpre notar que os sujeitos passivos de IRC estão sujeitos às obrigações declarativas previstas no n.º 1 do artigo 117.º do Código do IRC, de entre as quais se destaca a declaração periódica de rendimentos Modelo 22 do IRC (cf. alínea b) do n.º 1 do artigo 117.º do Código do IRC), em que se procede ao apuramento do resultado fiscal do exercício anterior, e que deve ser apresentada até ao último dia do mês de maio (cf. artigo 120.º, n.º 1, do Código do IRC). A importância do cumprimento desta obrigação declarativa dentro do prazo legal é evidente à luz das seguintes considerações:

  • De acordo com artigo 59.º, n.º 2, do CPPT, o apuramento da matéria tributável baseia-se nas declarações dos contribuintes, desde que estes as apresentem nos termos previstos na lei (e.g., dentro do prazo legal, etc.) e forneçam à administração tributária os elementos indispensáveis à verificação da sua situação tributária.
  • O normativo do n.º 1 do artigo 75.º da LGT prescreve que se presumem verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei. Assim, se a AT não demonstrar a existência de incoerências ou a falta de correspondência entre o teor de tais declarações e a realidade, o seu conteúdo terá de se presumir verdadeiro.

Quando o sujeito passivo não apresenta a declaração Modelo 22 do IRC dentro do prazo legal, a lei determina o seguinte:

  • O procedimento de liquidação é instaurado pela AT com base em todos os elementos de que disponha ou venha a obter (cf. artigo 59.º, n.º 1, do CPPT). Nestes elementos compreendem-se os que sejam declarados pelo sujeito passivo para efeitos de IVA e constantes do sistema do e-Fatura, bem como elementos declarados por terceiros.
  • A AT emite uma declaração oficiosa até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita, com base no maior dos seguintes montantes: (1) “a matéria coletável determinada, com base nos elementos de que a administração tributária e aduaneira disponha, de acordo com as regras do regime simplificado, com aplicação do coeficiente de 0,75”; (2) “a totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada”; (3) “o valor anual da retribuição mínima mensal” (cf. artigo 90.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, na redação da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, em vigor entre 1 de janeiro de 2018 e 1 de janeiro de 2022, tendo sido alterada pela Lei n.º 12/2022, de 27 de junho).
  • Esta declaração oficiosa resulta num tipo de tributação indireta da matéria tributável, pelo que compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação” (cf. artigo 74.º, n.º 3, da LGT).
  • Se o contribuinte for previamente notificado para apresentar a declaração em falta e persistir na situação de incumprimento, a lei dispensa a audição prévia do contribuinte relativamente a uma liquidação oficiosa emitida com base em valores objetivos previstos na lei (cf. artigo 60.º, n.º 2, alínea b), da LGT).
  • As declarações do sujeito passivo (e.g., declaração Modelo 22 do IRC) apresentadas fora do prazo legal não gozam da presunção de verdade e boa-fé contida n.º 1 do artigo 75.º da LGT (cf. artigo 75.º, n.º 2, alínea a), da LGT), sendo livremente valoradas, conforme confirmado pelos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 03-02-2021, processo n.º 0416/09.7BECBR e de 04-05-2016, processo n.º 0415/15, e no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 13-10-2022, processo n.º 1968/12.0 BELRS.
  • Se, não obstante a apresentação tardia da declaração Modelo 22 do IRC, o sujeito passivo tiver a sua contabilidade imaculada, organizada de acordo com regras legais, os elementos contabilísticos continuam a beneficiar da presunção de verdade e boa-fé contida n.º 1 do artigo 75.º da LGT (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 05-12-2018, processo n.º 0220/11.2BEVIS 0286/18).

In casu, a factualidade dada por provada revela que, não obstante notificada para apresentar as declarações em falta, a Requerente persistiu no incumprimento relativamente à sua obrigação de submeter a declaração Modelo 22 do IRC, e que a AT, com base nos elementos à sua disposição (nomeadamente, a informação constante no sistema e-Fatura), emitiu liquidações oficiosas ao abrigo do artigo 90.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC. Ao lançar mão ao mecanismo legal previsto no artigo 90.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, a AT recorreu a uma matéria tributável ficcionada, o que equivale a dizer que a AT recorreu a uma avaliação indireta da matéria tributável, procedimento este que fundamentou nos termos legais e cujos pressupostos não foram postos em causa pela Requerente.

Assim sendo, as liquidações impugnadas, em si mesmas, não enfermam de qualquer irregularidade ou vício de lei, porquanto foram realizadas com base em valores objetivos previstos na lei, e na sequência de notificações efetuadas à Requerente a fixar-lhe o prazo de 15 dias para apresentar as declarações em falta.

Concluindo-se pela validade das liquidações contestadas, emitidas nos termos do artigo 90.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, por a Requerente não ter apresentado as declarações Modelo 22 do IRC dos exercícios de 2019 e 2020 no prazo legal, interessa referir duas questões que têm sido levantadas na jurisprudência e na doutrina quando o sujeito passivo entrega a declaração Modelo 22 de IRC após a AT emitir a liquidação oficiosa nos termos do artigo 90.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC.

A primeira questão que se levanta quando a AT emite uma liquidação oficiosa ao abrigo do artigo 90.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC é a de saber se, para a AT corrigir a mesma no prazo de caducidade do direito de liquidação de quatro anos (nos termos dos artigos 90.º, n.º 12, e 101.º do Código do IRC, e 45.º e 46.º da LGT), ou para o Tribunal anular a mesma, deverá ser exigido ao sujeito passivo que traga ao conhecimento da AT ou do Tribunal Arbitral (em sede de reclamação graciosa, recurso hierárquico, pedido de revisão oficiosa, impugnação judicial, ou processo arbitral, consoante os casos) elementos probatórios que permitam verificar que a liquidação oficiosa não se poderá manter?

Tal como o Supremo Tribunal Administrativo esclareceu num Acórdão recente, para uma liquidação oficiosa emitida pela AT ser anulada, é imprescindível que o sujeito passivo, à luz do ónus da prova que sobre ele impende, ofereça prova de que a referida liquidação sofre do vício de excesso na quantificação, não sendo suficiente ao sujeito passivo apresentar uma declaração de rendimentos posterior (que não goza da presunção de veracidade do n.º 1 do artigo 75.º da LGT), ou invocar uma violação do princípio do inquisitório, ou do princípio da tributação das empresas fundamentalmente pelo rendimento real (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-02-2021, processo n.º 0416/09.7BECBR).

No caso dos autos, tal como referido supra, no decorrer dos procedimentos de revisão oficiosa, a Requerente apresentou documentos contabilísticos nos quais fundou o apuramento do lucro tributável para efeitos de IRC.

Entendo, assim, que cumpria ao Tribunal Arbitral concluir se a Requerente ofereceu elementos probatórios idóneos e credíveis para cumprir o ónus da prova que sobre ela impendia, ou seja, para demonstrar que as liquidações de IRC impugnadas sofrem do vício de excesso na quantificação.

Interessa ainda considerar uma segunda questão: Em que circunstâncias tem a AT o dever de conduzir diligências complementares para aferição dos elementos que foram supervenientemente apresentados pelo sujeito passivo (designadamente, realizar uma ação inspetiva visando determinar qual o lucro obtido por esse sujeito passivo no exercício em causa)?

O Supremo Tribunal Administrativo reconheceu que, perante a apresentação de uma declaração de rendimentos em falta em tempo útil (i.e., no decurso do prazo de caducidade), a AT fica vinculada a realizar as diligências instrutórias e inspetivas necessárias à prossecução do interesse público e à descoberta da verdade material, com o inerente apuramento da matéria coletável do período de tributação em causa, e a proceder às correções que se mostrem necessárias à liquidação emitida oficiosamente, ou à anulação da mesma.

Este entendimento encontra-se espelhado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 05-12-2018, processo n.º 0220/11.2BEVIS 0286/18, no qual se pode ler:

“(...) somos levados a considerar, por atenção a outros princípios norteadores do direito fiscal e designadamente o da verdade material/fiscal que a AT não só podia, como devia, diligenciar, designadamente através de acção inspectiva, no sentido de apurar, até onde fosse possível, qual a matéria tributável do período em causa (o valor real ou presumido dos rendimentos sujeitos a tributação), de modo a, dentro do prazo da caducidade do direito de liquidar o tributo, proceder às correcções que se mostrassem pertinentes e à consequente liquidação adicional ou anulação da liquidação oficiosa (consoante fosse positiva ou negativa a diferença entre o montante de imposto liquidado oficiosamente nos referidos termos e o que viesse a mostrar-se devido). Só desta forma se podia evitar a consideração essencialmente dos lucros, sem a quantificação das despesas efectuadas para os adquirir o que numa actividade de revenda/mercearia, como sucede no caso dos autos, é absolutamente impossível de suceder.”

No mesmo Acórdão, concluiu o Douto Supremo Tribunal Administrativo:

“c) O princípio da tributação do rendimento real impunha a sua apreciação e aconselhava a realização de inspecção perante os elementos supervenientes que foram apresentados e que por não gozarem já da presunção de veracidade, estavam sujeitos a livre apreciação e confirmação pela AT.

d) Não o tendo feito, resultou a ocorrência de evidente excesso de quantificação de rendimentos que influenciou a liquidação oficiosa agora questionada a qual não se pode manter.”

Neste contexto, a questão que se coloca é a de saber se à AT é exigível a realização de diligências instrutórias e inspetivas sempre que os sujeitos passivos apresentem a sua declaração Modelo 22 do IRC tardiamente, após a AT emitir uma liquidação oficiosa ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC? E, caso a AT não disponha de meios suficientes para realizar tais diligências relativamente a todos os sujeitos passivos que apresentem a sua declaração Modelo 22 do IRC tardiamente, devem os sujeitos passivos que não foram objeto de uma ação inspetiva serem beneficiados pela anulação da liquidação oficiosa emitida nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC? Em que circunstâncias não será de exigir à AT a realização de diligências instrutórias e inspetivas para a descoberta da verdade fiscal?

A este respeito, pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-02-2021, processo n.º 0416/09.7BECBR:

“A Recorrente faz ainda alusão à violação dos princípios do inquisitório, deveres de imparcialidade, justiça e proporcionalidade, bem como do princípio da tributação pelo rendimento real.

Ora, como se crê ter demonstrado, recaindo sobre o sujeito passivo, neste caso, o ónus da prova do excesso da matéria tributável tida em consideração na liquidação oficiosa, e não tendo carreado para os autos da reclamação graciosa ou do recurso hierárquico quaisquer elementos probatórios, não era exigível à AT a realização de quaisquer diligências complementares que se mostrassem necessárias à comprovação desses dados.

Além disso, o princípio constitucional consagrado no artigo 104º, nº 2 da CRP, no sentido de que a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real é perfeitamente compatível com o apuramento da matéria tributável por meios indirectos.

Efectivamente, o Ac. do Tribunal Constitucional nº 84/2003, Proc. 531/99) refere que “a tributação das empresas pelo seu rendimento real constitui um princípio ou uma regra que permite, excepcionalmente, desvios ou excepções”, ou seja, aquele TC tem admitido o apuramento da matéria tributável por meio de presunções, desde que as mesmas sejam ilidíveis, o que se verifica no caso concreto.

Sendo assim, como é, não merece qualquer censura a decisão recorrida quando aponta que “o princípio constitucional da tributação das empresas sobre o seu rendimento real não é impeditivo de qualquer liquidação tendo por base os elementos que a Administração Fiscal disponha, mormente a totalidade da matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada, no caso de o sujeito passivo não cumprir com as obrigações declarativas ou não as cumprir nos prazos legalmente estabelecidos.”

À luz desta jurisprudência, conclui-se que, se por um lado, o sujeito passivo tem obrigação de apresentar elementos de prova com referência ao apuramento do lucro tributável para efeitos de IRC, por outro lado, a AT tem o dever de considerar e valorar todos os elementos apresentados pelos sujeitos passivos, bem como todos os elementos em seu poder, na procura da verdade fiscal (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 05-12-2018, processo n.º 0220/11.2BEVIS 0286/18), assim como o dever de realizar diligências probatórias complementares, o que não sucedeu no caso em apreço.

Em face das razões enunciadas supra, andou bem o Tribunal Arbitral ao julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade e anulação das decisões de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa em apreço, com fundamento na violação dos princípios do inquisitório ou da tributação fundamentalmente pelo rendimento real no decurso do procedimento administrativo. E quanto às liquidações de IRC impugnadas?

Ao contrário do pretendido pela Requerente, entendo que a violação dos princípios do inquisitório ou da tributação fundamentalmente pelo rendimento real no decurso de procedimento administrativo não resulta na anulação das liquidações de IRC ora em crise, mas apenas na anulação das decisões de indeferimento proferidas nos procedimentos de revisão oficiosa em causa.

De facto, a atuação da AT no decorrer destes procedimentos administrativos apenas é relevante para aferir da legalidade das decisões de indeferimento que concluíram os mesmos. Os vícios procedimentais verificados apenas nesta fase (como sejam a violação do dever de audição prévia, de fundamentação, ou de descoberta da verdade material) não resultam na anulação de liquidações de imposto, mas apenas na anulação de decisões de indeferimento contestadas e na emissão de novas decisões por parte da AT que supram os ditos vícios procedimentais. Neste sentido, pode ler-se no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25/06/2009, processo n.º 0345/09:

“A ocorrência de um vício de forma no procedimento de reclamação graciosa, como é o caso da falta de audição prévia, não projecta efeitos anulatórios sobre o acto tributário de liquidação que o antecede, antes conduzindo à anulação da respectiva decisão de indeferimento da reclamação graciosa”.

Por Acórdão de 12/10/2011, proferido no processo n.º 0463/11, o Supremo Tribunal Administrativo clarificou o seguinte:

“(...) deduzida impugnação judicial do indeferimento de uma reclamação graciosa, das duas uma:

a) ou o tribunal confirma o indeferimento, mantendo-se o acto tributário impugnado;

b) ou o tribunal anula esse indeferimento, nomeadamente por vício procedimental; neste caso, o tribunal tem de apreciar os vícios imputados ao acto de liquidação, uma vez que a impugnação tem por objecto, tanto a decisão da reclamação, como os vícios do próprio acto de liquidação.”

No mesmo sentido: Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 30/10/2019, processo n.º 02453/05.1BEPRT 0402/18; de 15/10/2018, processo n.º 0542/08; de 12/10/2016, processo n.º 0427/16; de 07/03/2012, processo n.º 01123/11; de 16/11/2011, processo n.º 0723/11; de 12/10/2011, processo n.º 0463/11; de 16/06/2004, processo n.º 01877/03. O Tribunal Central Administrativo Norte adere também a este entendimento, conforme explanado no Acórdão de 19/06/2019, proferido no processo n.º 00643/10.4BEPNF. Com relevância para a decisão da causa, interessa também sublinhar o disposto no sumário do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 04/06/2020, processo n.º 74/07.3BESNT:

“I. No âmbito do procedimento tributário, a Administração Tributária está sujeita ao princípio do inquisitório (cfr. artigo 58.º da LGT), o qual é um corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua actuação.

II. Não tendo a Administração Tributária investigado e analisado os elementos trazidos ao procedimento pelo contribuinte, sem que fundadamente os considere dispensáveis, a sua actuação colide com o princípio do inquisitório, consubstanciando um vício procedimental, que é fundamento de ilegalidade da decisão que recaiu sobre a reclamação graciosa e susceptível de determinar a sua anulação.

III. A impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objeto imediato a decisão da reclamação e por objeto mediato os vícios imputados ao acto de liquidação.

IV. Os vícios do procedimento de reclamação graciosa apenas implicam a anulação da decisão de indeferimento; nunca a anulação do acto tributário de liquidação anteriormente praticado e que não configura o objeto imediato da impugnação judicial.

V. Anulado o indeferimento da reclamação por vício procedimental desta, cabe ao tribunal conhecer dos restantes vícios imputados ao acto tributário, uma vez que este é competente para conhecer em tal impugnação, quer do indeferimento da reclamação, quer dos vícios imputados ao acto tributário.”

Em conformidade com esta jurisprudência, e considerando que a AT violou o princípio do inquisitório e o seu dever de descoberta da verdade material (expressamente consagrados no artigo 58.º da LGT), repita-se, o Tribunal Arbitral andou bem ao declarar ilegal e anular os atos de indeferimento que recaíram sobre os pedidos de revisão oficiosa apresentados pela Requerente.

Todavia, em minha opinião, deveria o Tribunal ter apreciado os vícios imputados às liquidações de IRC autonomamente, mormente, se as mesmas padecem de erro na quantificação do rendimento subjacente à liquidação de imposto, sem presumir que o apuramento do lucro/matéria coletável subjacente às declarações Modelo 22 do IRC apresentadas pela Requerente fora de prazo estivessem corretas ou incorretas, ou que refletissem ou não a real situação contributiva da Requerente. Isto porque em conformidade com o disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, cabia à Requerente demonstrar que o valor da liquidação de IRC contestada se encontra efetivamente incorreto.

Ora, na Decisão Arbitral, o Tribunal Arbitral não determinou se as liquidações de IRC emitidas pela AT sofreram efetivamente do vício de excesso na quantificação do rendimento, nem aferiu da idoneidade e credibilidade dos elementos probatórios oferecidos pela Requerente em cumprimento do ónus da prova que sobre ela impendia, centrando-se essencialmente na conclusão de que a AT violou o princípio do inquisitório e da descoberta da verdade material.

É neste sentido que, com o maior respeito, não posso acompanhar a posição dos meus Colegas Árbitros.

Rita Correia da Cunha

 

 



[7] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/BC99C5C939871CC1802580F200365C84              

[9] Ídem.

[12] Acórdão do STA, de 11-05-2016, P. 0442/15. No mesmo sentido, v. Acórdão do STA, de 03-07-2019, P. 0561/03.2BTCBR 01438/15.

[13] Acórdão do STA, de 04-05-2016, P. 0415/15. No mesmo sentido, v. Acórdão do STA, de 03-02-2021, P. 0416/09.7BECBR.

[14] Acórdão do TCAN, de 09.12.2012, P. 00175/05.2BEPRT.

[15] Acórdão do TCAS, de 25-06-2019, P: 506/14.4BEBJA.

[16] Paulo Marques, Joaquim Miranda Sarmento, e Rui Marques, IRC, Problemas Actuais, 2017, p. 148.

[17] Paulo Marques, A revisão do acto tributário, IDEFF, 2018, p. 235.