Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 647/2023-T
Data da decisão: 2024-09-20  IRC  
Valor do pedido: € 48.408,39
Tema: IRC – Princípio da periodização – Preços de transferência
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SUMÁRIO:

 

I – Da correção administrativa do lucro tributável de 2019 – consideração como rendimentos desse exercício do valor dos juros auferidos pelas sociedades B... e  C...–, resultou o direito do sujeito passivo a uma correção simétrica, à anulação da relevação, por si feita, de tais valores como proveitos de 2020, sob pena de existir uma dupla consideração como rendimento tributável dos mesmos valores, em manifesta violação de princípios enformadores do nosso sistema fiscal, nomeadamente do princípio da tributação das empresas pelo seu rendimento real.

II – No âmbito das regras de preços de transferência, a utilização do método do preço comparável de mercado pressupõe o mais elevado grau de comparabilidade entre operações, que não se verifica nos casos em que sejam utilizadas as médias mensais ponderadas publicadas no Boletim Estatístico do Banco de Portugal enquanto referencial das taxas de juro que seriam praticadas no mercado entre entidades independentes de acordo com o princípio da plena concorrência, sem que esteja acautelada a garantia da identidade substancial com as operações praticadas entre entidades especialmente relacionadas.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            I. RELATÓRIO

 

  1. A... S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede na ...-..., n.º ..., ..., ...-... Carnaxide, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, nos termos conjugados dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“RJAT”) e 102.º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), tendo em vista anulação da liquidação n.º 2023..., emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira ("AT"), em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas ("IRC"), por referência ao exercício de 2019, da qual resultou um valor de imposto a pagar de € 48.408,39.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral feito em 14 de setembro de 2023 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro do Tribunal Arbitral a Dra. Maria Alexandra Mesquita, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 3 de novembro de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

  1. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído em 21 de novembro de 2024, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.

 

  1. Em 8 de janeiro de 2024, a Requerida apresentou resposta, defendendo-se por impugnação e requerendo a sua absolvição de todos os pedidos, sendo que o processo administrativo foi junto em 30 de janeiro de 2024.

 

  1.  Em 9 de janeiro de 2024, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT. Naquele despacho foi ainda conferida às partes a possibilidade de apresentarem alegações escritas, direito que a Requerida e a Requerente exerceram, respetivamente, em 29 de janeiro e 19 de fevereiro de 2024.

 

  1. Em 6 de março de 2024, foram as Partes informadas, por despacho do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD de 5 de março de 2024, da substituição da Árbitra, Dra. Maria Alexandra Mesquita pelo Dr. Francisco Melo.

 

  1. Em 27 de março de 2024, veio a Requerente solicitar a junção aos autos do Acórdão do CAAD, proferido no processo n.º 140/2023-T, de 10 de novembro de 2023, por considerar discutir-se questão semelhante à dos presentes autos, apelando a uma interpretação e aplicação uniformes do Direito.

 

  1. Por despachos de 20 de maio e 19 de julho de 2024, o Tribunal Arbitral prorrogou o prazo para prolação de Decisão Arbitral, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT.

 

A posição e os fundamentos da Requerente

 

  1. A Requerente para fundamentar o pedido alega, em síntese, o seguinte:
  1. Na origem da Liquidação Contestada estão duas correções, promovidas pela AT, que a Requerente reputa de ilegais:

a. Correções por falta de registo contabilístico no quarto trimestre de 2019 dos réditos apurados pela B... e pela C..., em alegado incumprimento do regime do acréscimo ou da periodização económica, previsto no artigo 18.º do Código do IRC; e

b. Correções por alegado incumprimento de regras de Preços de Transferência previstas no artigo 63.º do Código do IRC;

tendo ambas as correções sido promovidas por referência aos juros obtidos pelas entidades B... e C..., no âmbito do Contrato de Cash Pooling (remuneração recebida nos termos de tal contrato pelos excedentes de tesouraria disponibilizados);

  1. Questiona a Requerente:

i. Se, quanto ao princípio da especialização dos exercícios, se encontra a AT legitimada a levar a cabo correções aos resultados obtidos por B... e C... através da aplicação estrita do princípio da especialização dos exercícios, em violação dos princípios da tributação pelo rendimento real e da verdade material, da justiça e do inquisitório, que devem pautar a atuação da AT, bem como sem atender à mais reputada doutrina e jurisprudência, que unanimemente postulam a primazia do princípio da justiça sobre a especialização dos exercícios, em casos como o atual em que a discrepância temporal no registo do rendimento se deve exclusivamente a lapso - não intencional - dos sujeitos passivos, sem prejuízo para o erário público, conforme manifestamente é o caso (o que não é controvertido);

ii. Se a AT poderia promover ajustamentos em matéria de preços de transferência, ao abrigo do artigo 63.º do Código do IRC, quando B... e C... demonstraram ter usado taxas que manifestamente obedecem às regras de preços de transferência, tendo subjacente o método do preço comparável de mercado, e cuja taxa de juro apurada é corroborada por dados oficiais do Banco de Portugal, os quais demonstram que as taxas de juro médias aplicadas no decurso do ano de 2019 a novos depósitos a prazo com prazo até 1 ano (de curto prazo, tal como no Contrato de Cash Pooling, cf. arts.º 98.º e seg. do PPA), tendo aquela análise sido injustamente afastada AT e substituída por uma análise fundada unicamente no comparável interno do Contrato de Suprimentos, operação vinculada e de longo prazo, a qual não só não assegura o mínimo de comparabilidade, consubstanciando uma violação do artigo 63.º do Código do IRC; e

iii. Acresce que a fundamentação para tais ajustamentos é manifestamente contraditória, o que equivale a falta de fundamentação, nos termos do art.º 125º do CPA, aplicável ex vi art.º 2.º do CPPT e 25.º do RJAT, que sempre votaria a Liquidação Contestada à anulabilidade.

  1. Entende a Requerente que a Liquidação Contestada é ilegal e deve tal ilegalidade ser conhecida e declarada por este doutro Tribunal, ordenado a anulação do ato submetido à sua apreciação e o consequente reembolso do imposto indevidamente pago, acompanhado de juros indemnizatórios).
  2. Por um lado, reputa de ilegal a correção promovida em sede da aplicação estrita e puramente formalista do princípio da especialização dos exercícios (cf. art.º 18.º do Código do IRC) e na origem da Liquidação Contestada, por considerar que aquela aplicação:

i. Desconsidera, ilegalmente, o princípio da justiça, que doutrina e jurisprudência unanimemente postulam dever prevalecer sobre o princípio da especialização dos exercícios sempre que (i) não haja intenção dolosa por parte do sujeito passivo, que não pretende selecionar o período fiscal mais conveniente para registo do rendimento em causa, visando a obtenção de uma poupança fiscal e que (ii) de tal situação não decorra prejuízo para o erário público, o que manifestamente é o caso em disputa nos presentes autos, já a própria AT reconhece que no registo com atraso do rendimento em causa ocorreu por mera negligência;

ii. Desconsidera, ilegalmente, o princípio da tributação das empresas pelo lucro real, com consagração constitucional no art.º 104.º, n.º 2 da CRP, na medida em que a sua atuação gera uma situação de dupla tributação dos mesmos rendimentos - nos anos de 2019 e 2020 - que a AT recusa corrigir por sua iniciativa, sugerindo antes que deverá ser a Requerente a promover a sua correção, através de uma multiplicidade de meios administrativos e judiciais, com vista a repor a justiça fiscal, através da anulação de tributação de rendimentos num dos anos em causa, propondo um calvário gracioso e contencioso que está em seu poder evitar;

iii. Desconsidera, ilegalmente, os seus deveres de atuação dirigidos à descoberta da verdade material, previstos nos artigos 58.º e 58.º da LGT, ao recusar anular a correção promovida à luz do princípio da justiça ou proceder a qualquer correção correlativa no ano de 2020.

  1. Por outro lado, reputa também de ilegal as correções promovidas pela AT em sede de preços de transferência na origem da Liquidação Contestada, por incorreta aplicação do disposto no art.º 63.º do Código do IRC e no art.º 6.º, n.º 1, da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro, na medida em que:

i. Tendo B... e C... realizado uma análise de preços de transferência e apurado as taxas de juro de mercado correspondentes, ao abrigo do princípio at arm’s lenght, não carecia a sua situação de nenhumas correções em matéria de preços de transferência - de facto, conforme ficou demonstrado, os juros auferidos por B... e C... ao abrigo daquele contrato, correspondem ao custo da dívida de curto prazo suportado pela D... SA e pela E..., respetivamente sociedade mãe e sociedade financeira do Grupo, em transações não vinculadas (com terceiros) operadas no trimestre anterior, com duração inferior a um ano (como papel comercial, descobertos bancários e empréstimos sob a forma de conta-corrente), acrescido de todos os custos de hedging e outros suportados para assegurar liquidez, o que permitiu apurar que nos quatro trimestres de 2019 as taxas de juro praticadas ao abrigo do Contrato de Cash Pooling fossem, respetivamente, de 0,10%, 0,11%, 0,10% e 0,14% (cf. Docs. 11 a 13 juntos ao PPA e relatório de auditores junto posteriormente pela Requerente), valores esses que são ademais corroborados pelas estatísticas do Banco de Portugal em depósitos de prazo inferior a um ano carreadas para o processo pela Requerente e que cabalmente cumprem o ónus da prova da entidade, com recurso a elementos adicionais para além da “documentação interna” que AT e FP alegam ter sido os únicos disponibilizados (cf. arts.º 98 e seg. do PPA).

ii. Acresce que a correção promovida pela AT assenta em fatores de comparabilidade não comparáveis, e utiliza como referência uma operação vinculada não comparável (i.e., o Contrato de Suprimento, operação vinculada de longo prazo e por isso necessariamente distinta do Contrato de Cash Pooling), na medida em que não atende ao carácter atípico e especial natureza do Contrato de Cash Pooling - incomparabilidade essa que a própria AT chega mesmo a reconhecer (“não podemos comparar as duas operações”, cf. ponto V.1.1.3.2 de ambos os RITs, juntos ao PPA como Docs. 9 e 10, págs. 59 e 60 do RIT da B... e 58 e 59 do RIT da C...), sem contudo retirar daí consequências -, gerando necessariamente o apuramento de um preço que não é de mercado e não pode por isso manter-se;

iii. Acresce que aquelas correções foram feitas em incumprimento do dever de fundamentação da AT, cuja exigência é acrescida ao abrigo do art.º 77.º, n.º 3, da LGT, na medida em que incorre em contradição de fundamentação, a qual é equiparada a falta de fundamentação, nos termos do nos termos do art.º 125.º, n.º 2, do CPA, aplicável a atos tributários ex vi art.º 2.º do CPPT e ainda o art.º 268.º, n.º 3, da CRP, visível nos RITs, onde a AT compara o Contrato de Cash Pooling: (i) primeiro, ao Contrato de Suprimentos, concluindo não serem aqueles comparáveis, (ii) segundo, com contratos de depósitos e empréstimos, (iii) e finalmente novamente com o Contrato de Cash Pooling, concluindo afinal serem aqueles comparáveis e aplicando efetivamente as taxas de juro deste último ao Contrato de Cash Pooling, o que não só redunda na aplicação de métricas de uma operação vinculada a outra operação vinculada, violando as normas aplicáveis em matéria de preços de transferência, como resulta na contradição ainda do que a AT havia postulado anteriormente da impossibilidade de recorrer a métricas internas do Grupo para levar a cabo uma análise de preços de transferência (vício que imputa - como vimos injustamente - à Requerente, embora não o aplique ao seu próprio raciocínio e argumento).

 

A posição e os fundamentos da Requerida

 

  1. Na resposta apresentada nestes autos, alega a Requerida, em síntese e no essencial, o seguinte:

 

Da correção relativa ao regime do acréscimo

  1. O acréscimo ao resultado fiscal dos juros obtidos e não registados na contabilidade da B... e da C... referentes ao quarto trimestre de 2019, resulta do estrito cumprimento do regime do acréscimo ou da periodização económica, consagrado na norma contabilística no § 22 da Estrutura Conceptual do Sistema de Normalização Contabilística e prescrito no art.º 18.º do CIRC, que leva a que os efeitos das transações e de outros acontecimentos sejam reconhecidos quando eles ocorram (e não quando caixa ou equivalentes de caixa sejam recebidos ou pagos), sendo registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionam, não imputando um determinado resultado de uma operação para o período de tributação mais convém para o sujeito passivo, diferindo a tributação do mesmo.
  2. Os SIT referiram nos RIT que a eventual correção correlativa não cabia nos procedimentos inspetivos em causa e que as sociedades dominadas podiam – caso assim o entendessem – proceder à entrega de declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC referente ao período de 2020 e consequentemente fazer refletir essa correção na declaração fiscal Modelo 22 de IRC do Grupo Fiscal.

 

CORREÇÃO AO IRC RELATIVA A PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA

  1. No nosso ordenamento jurídico, é permitido à AT ajustar o lucro tributável das empresas relacionadas colocando-o, para efeitos exclusivamente tributários, no montante que teria caso a troca tivesse sido realizada em situações normais de mercado, “expurgando-o, assim, dos efeitos fiscais imputáveis à especialidade das relações entre os contraentes”. Proc. 300/2013-T CAAD.
  2. Assim, A IT está legitimada a colocar em crise a metodologia de observância do princípio de plena concorrência utilizada pelo sujeito passivo sempre que considere que o mesmo não satisfaz com os critérios legais.
  3. O princípio da plena concorrência, como garantia da neutralidade do ponto de vista fiscal, está instituído no ordenamento jurídico nacional, pelas normas inscritas no artigo 63.º do Código do IRC e na Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.
  4. Em sentido lato, o conceito de preços de transferência poderá ser apresentado como o preço praticado numa operação realizada entre duas entidades relacionadas.
  5. Constitui facto assente entre as partes que tanto a B... como a C... encontravam-se em situação de relações especiais com a F... BV e G... SAS e realizaram operações vinculadas materialmente relevantes com estas sociedades, durante o período de 2019.
  6. Conforme referido por Joaquim Pires, “num ambiente de relações especiais, o mercado, em princípio, ficará de fora e os preços são estabelecidos em função de outros fatores”.
  7. De facto, conforme referido por João Sérgio Ribeiro, a correção dos preços de transferência visa evitar a manipulação dos preços com o intuito de transferir rendimentos (sob a forma de lucro ou juro, por exemplo) de um sujeito passivo para outro. Cf. João Sérgio Ribeiro, Tributação Presuntiva do Rendimento, col. Teses, ed. Almedina, pag. 394.
  8. A IT apreciou os contratos e concluiu que os valores pagos pelo SP não estavam de acordo com os preços de mercado, quantificando o excesso face ao valor comparável de mercado e, em consequência de tal constatação, retificou o lucro tributável do SP, nos termos do art.º 63º do CIRC.
  9. No que diz respeito à fundamentação, devemos referir que qualquer correção que tenha por base o artigo 63.º do CIRC deve ser fundamentada nos termos do n.º 3 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária, impondo requisitos especiais de fundamentação, como sejam a descrição das relações especiais, a indicação das obrigações incumpridas pelo sujeito passivo, a aplicação dos métodos previstos na lei e a quantificação dos respetivos efeitos.
  10. No RIT o dever de fundamentação foi cumprido. Foi utilizada uma linguagem científica ou técnica acessível ao destinatário que, como podemos verificar da sua petição, demonstra que este ficou claramente esclarecido.
  11. De salientar que, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), a fundamentação é um conceito relativo que varia em função do tipo legal de ato e visa responder às necessidades de esclarecimento do contribuinte, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática e por que motivo se decidiu num sentido e não noutro, ou, dito de outro modo, o iter cognoscitivo e valorativo do ato (cf. Acórdão do STA, de 2 de fevereiro de 2006, processo n.º 01114/05). Um ato está suficientemente fundamentado sempre que um destinatário normal, colocado perante o mesmo, possa ficar ciente das razões que sustentam a decisão nele prolatada (cf. Acórdão do STA, de 20 de novembro de 2002, processo n.º 42180), apreender o raciocínio decisório, as causas e o sentido da decisão (cf. Acórdão do STA, de 14 de março de 2001, processo n.º 46796).
  12. Partilhamos, assim, da opinião de LUÍS MENEZES LEITÃO, quando afirma que “efetivamente, não se justifica que a Administração Fiscal, relativamente a operações que estatisticamente se sabe serem normalmente simuladas e destinadas a propiciar uma evasão fiscal, se veja obrigada a demonstrar em cada caso a falsidade da operação para proceder à cobrança do imposto”. Cf. Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Estudos de Direito Fiscal – volume II, Almedina, p. 95.
  13. Constata-se que o RIT contém com clareza e detalhe os argumentos, de facto e de direito, nos quais a AT alicerçou as correções efetuadas, que foram bem percecionados pela requerente, incluindo a aplicação do método e os critérios utilizados.
  14. O RIT externou as razões pelas quais os elementos de comparabilidade empregues pela requerente foram afastados e, conforme consta do probatório, explicitou os critérios usados em sua substituição, quantificando os seus efeitos, conforme previsto no n.º 3 do artigo 77.º da LGT.
  15. Posto isto, incumbia à requerente “demonstrar qual a importância real das vantagens [que advém] do contrato e provar que os encargos estabelecidos constituem a justa remuneração dessas vantagens, [podendo aqui, proceder à comparação de] custos de serviços análogos no mercado”. Cf. Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Estudos de Direito Fiscal – volume II, Almedina, p. 95.
  16. O ajustamento efetuado pela IT ao resultado tributável declarado pela requerente teve em vista o alcance do mesmo resultado que teria sido obtido se as operações em causa se tivessem processado numa situação normal de mercado (n.º 2 do art.º 3º da Portaria) tendo sido selecionado, de entre os preços de transferência previstos (n.ºs 1 e 2 do art.º 4º da Portaria n.º 1446-C/2001), o método do preço comparável de mercado (MPCM).
  17. O método escolhido pela IT permitiu concluir de forma direta, com fiabilidade, que os contratos celebrados entre o SP e as entidades relacionadas, considerando as circunstâncias específicas, não era consistente com o princípio de plena concorrência.
  18. O método do preço comparável de mercado consiste em comparar o preço praticado em operações vinculadas com o preço praticado em operações realizadas entre entidades que não se encontrem numa situação de relações especiais. Desde que seja possível identificar operações comparáveis em mercado aberto, o método do preço comparável de mercado constitui o meio mais direto e fiável de aplicação do princípio da plena concorrência, devendo ser-lhe dada preferência sobre os demais.
  19. O teste de comparabilidade apresentado pela requerente não comprova as condições de mercado da taxa de juro praticada, na medida em que, em função dos fatores de comparabilidade, não poderemos utilizar comparáveis internos para aferir das condições de Plena Concorrência, dado que as sociedades B... e a C... não têm empréstimos obtidos junto de entidades independentes.
  20. Ou seja, é apresentada documentação interna do grupo H..., sendo omitida qualquer prova externa, designadamente contratos de empréstimo do grupo junto de entidades bancárias e bordereaux/documentos bancários que comprovem os gastos suportados com juros pelo grupo
  21. Conclui-se que os únicos elementos de prova apresentados limitam-se a “comparáveis” internos ao grupo, ficando bastante aquém das disposições da norma de direito interno e do normativo da OCDE, revelando-se estes elementos probatórios insuficientes quando comparados com os elementos de prova que a AT carreou para os RIT
  22. Mais se destaca que a informação incluída no PPA relativamente às taxas de juros que a B... e C... poderiam obter caso depositassem os excedentes numa entidade financeira da Zona Euro, não constitui um comparável exato por ter uma natureza distinta tal como é reconhecido pela própria requerente nos arts.167.º e 168.º do PPA (e também nos RIT).
  23. Trata-se de informação sem a coerência exigida e portanto a mesma não é passível de contrariar a posição da AT
  24. Afirma a requerente que a AT não pode referir que as correções efetuadas se justificam porque as taxas de juro praticadas no Contrato de Cash Pooling eram inferiores às que as sociedades obteriam se realizassem depósitos.
  25. Ora, e conforme longamente demonstrado pelos SIT, o que se pretendeu demonstrar foi que a remuneração obtida pelas sociedades B... e C... no âmbito da relação de financiamento com a G... SAS [ao abrigo do Contrato de Cash Pooling] decorrente da aplicação de uma taxa de juro que, em 2019, oscila entre 0,1% e 0,11% aos montantes transferidos, fica comprovadamente muito aquém daquela que poderiam obter nos mercados financeiros, tanto se optassem por depositar os excessos de tesouraria junto de uma instituição bancária na zona Euro, como se efetuassem empréstimos a entidades não relacionadas conforme se pode constatar pela análise detalhada às taxas de juros oficiais (dados extraídos do website do Banco de Portugal - www.bportugal.pt consultáveis em https://bpstat.bportugal.pt/conteudos/quadros/889), efetuada pelos SIT ao longo dos RIT, sendo que o diferencial em termos de risco de crédito não justifica, por si só, o desvio da remuneração obtida pelas sociedades, sendo, portanto, de concluir que esta não é consistente com o princípio da plena concorrência
  26. Invoca a requerente que o comparável usado pela AT para demonstrar o afastamento das taxas praticada face às condições de mercado não é uma operação comparável, por se tratar de um empréstimo de longo prazo que nada tem que ver com a disponibilização de fundos no âmbito de um contrato de cash pooling, e que não pode por isso servir de referente.
  27. Refuta-se tal argumentação da requerente, uma vez que, de acordo com a informação disponível, tal não corresponde à realidade, conforme pode ser consultado no site do Banco de Portugal - https://bpstat.bportugal.pt/conteudos/quadros/889, cuja descrição da série cronológica refere “Taxa de juro acordada anualizada (TAA) dos novos empréstimos acima de 1 milhão de euros, concedidos por bancos (outras instituições financeiras monetárias) às empresas não financeiras de países da área euro - taxa mensal em percentagem”, abarcando diversos prazos de fixação inicial da taxa de juro, taxa esta que apenas inclui a componente de juro excluindo, portanto, outros encargos tais como seguros, comissões, etc..
  28. No que se refere à natureza do contrato de cash-pooling, e contrariamente ao que a requerente afirma a AT não só solicitou na notificação inicial às sociedades B... e C... diversos esclarecimentos e documentos de suporte aos contratos de financiamentos obtidos/concedidos, incluindo o cash-pooling (vide ponto 2 das notificações efetuadas), como também descreveu exaustivamente nos seus relatórios todas as condições contratuais e implicações não só a nível das taxas de juros praticadas, colocando em causa as mesmas, como procedeu igualmente às competentes correções em sede de IRC e imposto do selo.
  29. Em contraponto às menções da requerente patenteadas nos arts..179.º a 207.º do PPA, cumpre-nos clarificar que o processo de análise de comparabilidade passa por um conjunto de fases, sendo indispensável a avaliação de eventuais comparáveis internos, bem como a identificação de fontes de informação disponíveis referentes a comparáveis externos, quando necessária a sua utilização e validação das mesmas.
  30. Para o caso em apreciação, importa reter o que está plasmado nos art.º 5 e 6º da Portaria. O método escolhido deve ser aquele que mais se adequa à distorção do preço praticado face ao paradigma do princípio da plena concorrência. A fiabilidade relativa do MPCM depende do grau de precisão dos ajustamentos introduzidos para efeitos de comparabilidade, sendo que o preço de mercado determinado pela IT, conduziu à determinação do justo valor da operação vinculada, demonstrando inequivocamente que esta não respeitava o princípio de plena concorrência.
  31. De facto, a aplicação prática do princípio de plena concorrência não se afigura fácil em virtude das questões emergentes com a comparabilidade das operações. Tal como afirmado por Joaquim Pires, “para que essa comparação tenha significado, é necessário que as caraterísticas económicas das situações em apreço sejam comparáveis (…) a existirem algumas diferenças, podem ser efetuados ajustamentos razoavelmente fiáveis a fim de eliminar o efeito dessas diferenças”. JOAQUIM PIRES, Os Preços de Transferência – análise e aspetos fundamentais, Vida Económica, p. 40.
  32. Nas comparações, há que considerar as diferenças substanciais entre as operações ou entre as entidades que intervêm nessas mesmas operações.
  33. Consequentemente, deve ser selecionado o método mais apropriado e determinado o indicador mais adequado, bem como os potenciais comparáveis. Neste processo pode ser necessária a determinação e execução dos ajustamentos de comparabilidade a efetuar, quando apropriado, ou seja, quando existem diferenças materiais. Assim, entende - se que – contrariamente ao que a requerente invoca – existe comparável externo, ou seja, comparáveis com condições de mercado aplicável à operação/contrato de cash-pooling.
  34. Não obstante, e embora se admita que os termos e condições fixados na operação vinculada podem ser distintos dos termos e condições que normalmente seriam fixados no contexto de um mercado em plena concorrência, tal não obsta a que se apliquem as regras dos preços de transferência, na medida em que, caso existam operações comparáveis com diferenças materiais, como se referiu, pode-se introduzir ajustamentos para eliminar tais diferenças, conforme define os n.ºs 2 e 3 do art.º 4.º e n.º 3 do art.º 6.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro, o que veio a suceder no caso em apreço.
  35. Muito embora e em substância, os fundos disponibilizados pelas sociedades B... e C... a favor da E... abrigo do Contrato de Cash Pooling, contenham inegavelmente elementos típicos do contrato de empréstimo e de empréstimos sob a forma de conta-corrente, as taxas de juro praticadas pelas sociedades B... e C... são inexplicavelmente baixas face às taxas de juro publicadas pelo Banco de Portugal, que, contrariamente ao aventado pela Requerente, incluem as praticadas em empréstimos de curto prazo (Taxas de juro sobre novas operações de empréstimos concedidos por instituições financeiras monetárias a sociedades não financeiras residentes na zona Euro – transações acima de 1 milhão de Euros).
  36. Ou seja, e tal como concluíram os SIT, a taxa de juro praticada pelas duas sociedades nesta operação vinculada não é consistente com o princípio da plena concorrência.
  37. Assim, e face às especificidades deste contrato atípico, para efeitos de quantificação, os SIT procederam ao ajustamento necessário, concluindo ser também de utilizar nesta operação, as taxas aplicadas nos empréstimos obtidos pelas duas sociedades junto da F... com um prazo de reembolso superior a um ano, mas cujas taxas de juro são muito semelhantes às taxas de juro publicadas pelo Banco de Portugal supra referidas que abarcam as taxas de juros aplicadas em todos os prazos contratuais mas que não incluem os restantes encargos associados aos contratos.
  38. Em conclusão, a atuação da AT e as correções fiscais efetuadas no âmbito dos preços de transferência observaram os todos os requisitos impostos prescritos no art.º 63.º do CIRC e na Portaria n.º1446-C/2001, de 21 de dezembro.

 

II. SANEAMENTO

 

  1. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e o pedido é tempestivo nos termos do artigo 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. O processo não enferma de nulidades, nem existem exceções ou outras questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

§1 – Factos provados

 

  1. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma pessoa coletiva residente, cuja atividade comercial se centra nas áreas de negócio da “exploração, administração e gestão de centros comerciais e lojas, podendo acessoriamente dedicar-se à compra e venda e arrendamento de imóveis” (CAE 68200) (cf. referido no artigo 7.º do PPA e no Relatório de Inspeção Tributária junto ao PPA como Documento 4 - facto não controvertido).
  2. Em 2019, o capital social da Requerente era integralmente detido pela sociedade F... BV (a “F...”), sociedade de direito holandês, com o número fiscal NL ... (cf. referido no artigo 8.º do PPA e no Relatório de Inspeção Tributária junto ao PPA como Documento 4 - facto não controvertido).
  3. A Requerente faz parte do grupo multinacional H..., encabeçado pela sociedade cotada francesa D... S.A. (cf. referido no artigo 9.º do PPA e no Relatório de Inspeção Tributária junto ao PPA como Documento 4 - facto não controvertido).
  4. A Requerente é tributada em sede de IRC ao abrigo do RETGS, nos termos do artigo 69.º do Código do IRC, juntamente com as sociedades B... S.A. (B...) e C... S.A.(C...) e outras sociedades, desde 1 de janeiro de 2019 (o “Grupo fiscal”), tendo a Requerente sido nomeada sociedade dominante designada no país, ao abrigo do disposto no art.º 69.º-A, n.º 3 do Código do IRC  (cf. referido no artigo 10.º do PPA, no Relatório de Inspeção Tributária junto ao PPA como Documento 4, e no Documento 5 também junto ao PPA- facto não controvertido).
  5. Em 8 de junho de 2017, a G..., sociedade de direito francês, celebrou o Contrato de Cash Pooling com diversas entidades do Grupo empresarial, entre elas a B..., a C... e a Requerente, na qual a G... assumiu as funções de “cash pool leader” ou entidade centralizadora (cf. referido no artigo 13.º do PPA e no Documento 11 junto ao PPA - facto não controvertido).
  6. Nos termos do Contrato de Cash Pooling, os saldos a crédito das contas bancárias tituladas pelos participantes, sociedades do Grupo empresarial, são transferidos para contas “master”, detidas pela G..., na qualidade de “cash pool leader” ou entidade centralizadora, sendo posteriormente utilizadas por outras entidades do Grupo empresarial com carências de tesouraria (cf. referido no artigo 15.º do PPA - facto não controvertido).
  7. A sociedade G..., na qualidade de entidade centralizadora ao abrigo daquele contrato (i.e., cash pooler), estabeleceu, naquele contexto, um acordo prévio com o I..., sendo estabelecido que cada participante deveria concordar e aderir ao “Master Bank Agreement”, ao qual as sociedades B... e C... aderiram (cf. referido no artigo 17.º do PPA - facto não controvertido).
  8. Tal como contratualmente acordado, a taxa de juro aplicada em cada trimestre ao abrigo do Contrato de Cash Pooling foi sempre determinada tendo por base o custo agregado dos financiamentos a curto prazo obtidos pelo Grupo empresarial (através da sociedade-mãe D... SA e da E...) junto de entidades não relacionadas no trimestre imediatamente anterior (cf. Documento 12 junto ao PPA - facto não controvertido).
  9. O Grupo empresarial, na figura da E..., levou a cabo uma análise de preços de transferência, no qual analisou as condições de mercado relevantes e apurou a fórmula de cálculo da taxa de juro remuneratória a aplicar ao abrigo do Contrato de Cash Pooling (cf. referido no artigo 20.º do PPA e no Documento 12 junto ao PPA - facto não controvertido).
  10. Nos termos do relatório, a respeito dos custos trimestrais aplicados ao ano fiscal de 2019, aqueles corresponderam a taxas de: “0,10% in Q4 2018, 0,11% in Q1 2019, 0,10% in Q2 2019 and 0,14% in Q3 2019”, sendo tais taxas aplicadas para determinar os juros devidos com referência ao trimestre imediatamente seguinte àquele em que foram apuradas (cf. referido no artigo 22.º do PPA e no Documento 12 junto ao PPA - facto não controvertido).
  11. As sociedades B... e C... mantiveram em 2019 o Contrato de Suprimentos com a F..., sendo aquele um financiamento de longo prazo prestado pela sua sócia única e cuja taxa de juro variou ao longo daquele ano entre 2,55% e 2,97%, definindo desse modo os encargos suportados por B... e C... ao abrigo daquele contrato, no qual atuaram como entidades financiadas e devedoras (cf. Documentos 4, 9 e 10 juntos ao PPA - facto não controvertido).
  12. As taxas de juro aplicadas ao abrigo do Contrato de Suprimentos foram apuradas de acordo com os custos de refinanciamento suportados pela F..., acrescidos de um spread de 0,21% (cf. Documentos 9 e 10 juntos ao PPA - facto não controvertido).
  13. As sociedades B... e C... foram ambas objeto de procedimentos inspeção tributária, de âmbito geral, referente ao exercício de 2019, ao abrigo das Ordens de Serviço, respetivamente, OI 2022... e OI2022..., no âmbito das quais a AT promoveu as seguintes correções à matéria coletável das entidades inspecionadas (cf. Documentos 9 e 10 juntos ao PPA - facto não controvertido):

(i) Correções fiscais no total de €534.401,48 efetuadas ao prejuízo fiscal declarado individual da sociedade dominada B... S.A. (B...).

As correções em causa respeitam ao não reconhecimento, em 2019, de (i) juros recebidos decorrentes do contrato de cash pooling celebrado com a sociedade francesa G... S.A.S (entidade centralizadora), com fundamento no art.º 18.º do CIRC (€6.476,33) e de (ii) juros obtidos decorrentes da aplicação do regime de preços de transferência, nos termos do art.º 63.º do CIRC (€527.925,15);

(ii) Correções fiscais de €690.624,62 efetuadas ao lucro tributável individual da sociedade dominada C... S.A.(C...),

As correções em causa respeitam ao não reconhecimento, em 2019, de (i) juros recebidos decorrentes do contrato de cash pooling celebrado com a sociedade francesa G... S.A.S (entidade centralizadora), com fundamento no art.º 18.º do CIRC (€9.079,27) e de (ii) juros obtidos decorrentes da aplicação do regime de preços de transferência, nos termos do art.º 63.º do CIRC (€681.545,35)

  • As referidas correções foram posteriormente transpostas para a Requerente na qualidade de sociedade dominante designada do Grupo fiscal (através da correção dos prejuízos fiscais do Grupo fiscal apurados em 2019, no valor de € 1.225.026,10, e das Derramas Municipal e Estadual da  C...), na sequência de procedimento de inspeção efetuado pelos Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da DF Lisboa ao abrigo da Ordem de Serviço interna n.º OI2023... de âmbito parcial (IRC) (cf. Documento 4 junto ao PPA - facto não controvertido).
  • Na sequência do RIT, a Requerente foi notificada do ato de liquidação de IRC n.º 2023..., demonstração de acerto de contas n.º 2023..., e demonstração de liquidação de juros n.º 2023..., referentes ao exercício de 2019, do qual resultou um valor de imposto a pagar de € 48.408,39, com data limite para pagamento de 14 de junho de 2023 (cf. Documento 1 junto ao PPA - facto não controvertido);
  • Em 12 de setembro de 2023, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que está na base dos presentes autos.

§2 – Factos não provados

 

  1. Com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que não se tenham consideram provados.

 

§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

  1. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

11. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

12. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pela Requerente e do PA junto aos autos pela Requerida, que foram apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

 

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

§1. Da correção relativa ao regime do acréscimo

 

  1. A Requerente reconheceu, em sede de inspeção tributária, que, por lapso, as sociedades B... e C... não tinham registado no período de 2019 os juros auferidos no decurso do quarto trimestre de 2019.

 

  1. No entanto salientou que esses valores foram registados em 2020, em janeiro de 2020 na conta #79140 (juros, dividendos e outros rendimentos similares).

 

  1. A AT procedeu ao acréscimo ao resultado fiscal dos juros obtidos e não registados na contabilidade da B... e da C... referentes ao quarto trimestre de 2019, notando que a eventual correção correlativa não cabia nos procedimentos inspetivos em causa.

 

  1. Resulta daqui uma clara duplicação na consideração dos valores auferidos a títulos de juros como proveitos fiscais, em dois diferentes exercícios: o de 2019, por força da correção operada por ação inspetiva; o de 2020, por via da contabilização do próprio sujeito passivo.

 

  1. Ora, da correção administrativa do lucro tributável de 2019 – consideração como rendimentos desse exercício do valor dos juros auferidos pelas sociedades B... e C... –, resultou o direito do sujeito passivo a uma correção simétrica, à anulação da relevação, por si feita, de tais valores como proveitos de 2020.

 

  1. De outra forma, haveria uma dupla tributação (melhor, dupla consideração como rendimento tributável) dos mesmos valores, em manifesta violação de princípios enformadores do nosso sistema fiscal, nomeadamente do princípio da tributação das empresas pelo seu rendimento real, previsto no artigo 104.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa.
  2. Em face do exposto, julga-se procedente o pedido formulado pela Requerente a este respeito.

 

§2. Da correção de preços de transferência: juros obtidos ao abrigo do Contrato de Cash Pooling

 

  1. Segundo refere a AT, em sede de RIT, “(…) o financiamento concedido à G... SAS sob a forma de “cash-pooling” é na substância um empréstimo, pelo que as taxas a aplicar para cálculo de juros deverão ser as taxas publicadas pelo Banco de Portugal.”.

 

  1. Mais refere a AT que “De fato e utilizando as regras constantes das normas emanadas pela OCDE relativamente ao Método do Preço Comparável de Mercado, a informação estatística publicada pelo Banco de Portugal é a informação por excelência que permite atingir tal objetivo, tendo sido utilizada para determinar se os termos e condições acordados e praticados nos acordos de financiamento no decorrer do exercício fiscal de 2019, respeitam o princípio de plena concorrência (…)”.

 

  1. Como assinala a AT, na Resposta apresentada “O que se pretendeu demonstrar foi que a remuneração obtida pelas sociedades B... e C... no âmbito da relação de financiamento com a G... SAS [ao abrigo do Contrato de Cash Pooling] decorrente da aplicação de uma taxa de juro que, em 2019, oscila entre 0,1% e 0,11% aos montantes transferidos, fica comprovadamente muito aquém daquela que poderiam obter nos mercados financeiros, tanto se optassem por depositar os excessos de tesouraria junto de uma instituição bancária na zona Euro, como se efetuassem empréstimos a entidades não relacionadas conforme se pode constatar pela análise detalhada às taxas de juros oficiais (dados extraídos do website do Banco de Portugal - www.bportugal.pt consultáveis em https://bpstat.bportugal.pt/conteudos/quadros/889), efetuada pelos SIT ao longo dos RIT, sendo que o diferencial em termos de risco de crédito não justifica, por si só, o desvio da remuneração obtida pelas sociedades, sendo, portanto, de concluir que esta não é consistente com o princípio da plena concorrência.”.

 

  1. Por seu turno, a Requerente considera que as correções promovidas pela AT em sede de preços de transferência foram emitidas em violação do regime preços de transferência, já que:

(i) “Por um lado, quanto à análise de preços de transferência, faz a AT recurso a operações não comparáveis (e que a própria AT admite não serem comparáveis): o Contrato de Cash Pooling e o Contrato de Suprimentos, fazendo ainda menção a estatísticas do Banco de Portugal (que não usa) sobre contratos de empréstimo e depósito a longo prazo, os quais têm razões de ser e naturezas claramente distintas, pelo que usar aquelas comparações como base para ajustamentos em sede de regras de preços de transferência sempre seria ilegal, na medida em que a lei impõe a comparação entre “operações comparáveis”6 ou “operações idênticas ou similares”7 (cf. jurisprudência e doutrina citadas pela Requerente nos arts.º 176.º e seg. do PPA).”

(ii) “Por outro lado (…) importa referir que a Requerente levou a cabo uma análise congruente e clara, com base em critérios fiáveis e demonstrados e que comprovam qual o preço de mercado a utilizar ao abrigo do Contrato de Cash Pooling: com base no custo da dívida de curto prazo8 do Grupo empresarial9 (suportado pela sociedade mãe do Grupo, a D... SA) contraída junto de entidades terceiras em operações não vinculadas, com base no custo médio trimestral (percentual) da dívida de curto prazo que tem para com terceiros10, a Requerente apurou a taxa de juro a praticar no Contrato de Cash Pooling (cf. Cl. 5.1. do Contrato de Cash Pooling e Cl. 2.5.1.2.1. e anexo 6.1. do dossier de preços de transferência juntos como Docs. 11 e 12, respetivamente, ao PPA).

(iii) “Mais, ainda que não exista um comparável externo (que seria um contrato idêntico com uma entidade terceira, o que naturalmente não existe porque os contratos de gestão centralizada de tesouraria têm por elemento típico serem intragrupo), a figura provavelmente mais próxima seria um contrato de depósito a curto prazo, estando demonstrado – pelas mesmas estatísticas do Banco de Portugal que a AT refere embora não utilize depois – que as taxas praticadas na zona Euro no período considerado são até inferiores às utilizadas pela Requerente na operação em causa.”.

 

  1. Sintetizadas as posições das partes neste tema, cumpre apreciar e decidir.

 

  1. Na redação vigente à data dos factos, o artigo 63.º do CIRC estabelece o seguinte, no que aqui interessa:

 

Artigo 63.º

Preços de transferência

1 - Nas operações efetuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis. 

2 - As operações a que se refere o número anterior abrangem operações comerciais, incluindo qualquer operação ou série de operações que tenha por objeto bens tangíveis ou intangíveis, direitos ou serviços, ainda que realizadas no âmbito de um qualquer acordo, designadamente de partilha de custos e de prestação de serviços intragrupo, bem como operações financeiras e operações de reestruturação ou de reorganização empresariais, que envolvam alterações da estruturas de negócio, a cessação ou renegociação substancial dos contratos existentes, em especial quando impliquem a transferência de bens tangíveis, intangíveis, direitos sobre intangíveis, ou compensações por danos emergentes ou lucros cessantes. 

3 - Para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o sujeito passivo deve adotar qualquer dos métodos seguintes, tendo em conta, entre outros aspetos, a natureza da operação, a disponibilidade de informações fiáveis e o grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efetua e outras substancialmente idênticas, efetuadas entre entidades independentes:

a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado, o método do custo majorado, o método do fracionamento do lucro ou o método da margem líquida da operação; 

b) Outro método, técnica ou modelo de avaliação económica de ativos geralmente aceites, sempre que os métodos previstos na alínea anterior não possam ser utilizados devido ao carácter único ou singular das operações ou à falta ou escassez de informações e dados comparáveis fiáveis relativos a operações similares entre entidades independentes, em especial quando as operações tenham por objeto direitos reais sobre bens imóveis, partes de capital de sociedades não cotadas, direitos de crédito e intangíveis. 

4 - Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre:

a) Uma entidade e os titulares do respetivo capital, ou os cônjuges, ascendentes ou descendentes destes, que detenham, direta ou indiretamente, uma participação não inferior a 20 % do capital ou dos direitos de voto;

b) Entidades em que os mesmos titulares do capital, respetivos cônjuges, ascendentes ou descendentes detenham, direta ou indiretamente, uma participação não inferior a 20 % do capital ou dos direitos de voto;

c) Uma entidade e os membros dos seus órgãos sociais, ou de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, e respectivos cônjuges, ascendentes e descendentes;

d) Entidades em que a maioria dos membros dos órgãos sociais, ou dos membros de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, sejam as mesmas pessoas ou, sendo pessoas diferentes, estejam ligadas entre si por casamento, união de facto legalmente reconhecida ou parentesco em linha recta;

e) Entidades ligadas por contrato de subordinação, de grupo paritário ou outro de efeito equivalente;

f) Empresas que se encontrem em relação de domínio, nos termos do artigo 486.º do Código das Sociedades Comerciais;

g) Entidades cujo relacionamento jurídico possibilita, pelos seus termos e condições, que uma condicione as decisões de gestão da outra, em função de factos ou circunstâncias alheios à própria relação comercial ou profissional;

h) Uma entidade residente ou não residente com estabelecimento estável situado em território português e uma entidade sujeita a um regime fiscal claramente mais favorável residente em país, território ou região constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças.

 

  1. Este regime, à data dos factos, era complementado pela Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro, que estabelecia o seguinte, nos seus artigos 4.º e 6.º:

 

Artigo 4.º

Determinação do método mais apropriado

1 - O sujeito passivo deve adoptar, para determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método mais apropriado a cada operação ou série de operações, tendo em conta o seguinte:

a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado;

b) O método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro método apropriado aos factos e às circunstâncias específicas de cada operação que satisfaça o princípio enunciado no n.º 1 do artigo 1.º desta portaria, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam.

2 - Considera-se como método mais apropriado para cada operação ou série de operações aquele que é susceptível de fornecer a melhor e mais fiável estimativa dos termos e condições que seriam normalmente acordos, aceites ou praticados numa situação de plena concorrência, devendo ser feita a opção pelo método mais apto a proporcionar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e outras não vinculadas e entre as entidades seleccionadas para a comparação, que conte com melhor qualidade e maior quantidade de informação disponível para a sua adequada justificação e aplicação e que implique o menor número de ajustamentos para efeitos de eliminar as diferenças existentes entre os factos e as situações comparáveis.

3 - Duas operações reúnem as condições para serem consideradas comparáveis se são substancialmente idênticas, o que significa que as suas características económicas e financeiras relevantes são análogas ou suficientemente similares, de tal modo que as diferenças existentes entre as operações ou entre as empresas nelas intervenientes não são susceptívies de afectar de forma significativa os termos e condições que se praticariam numa situação normal de mercado ou, sendo-o, é possível efectuar os necessários ajustamentos que eliminem os efeitos relevantes provocados pelas diferenças verificadas.

4 - Sempre que existam dúvidas fundadas acerca da fiabilidade dos valores que seriam obtidos com a aplicação de um dado método, o sujeito passivo deve tentar confirmar tais valores mediante a aplicação de outros métodos, de forma isolada ou combinada.

5 - Se, no âmbito de aplicação de um método, a utilização de duas ou mais operações não vinculadas comparáveis ou a aplicação de mais de um método considerado igualmente apropriado conduzir a um intervalo de valores que assegurem um grau de comparabilidade razoável, não se torna necessário proceder a qualquer correcção, caso as condições relevantes da operação vinculada, nomeadamente o preço ou a margem de lucro, se situarem dentro desse intervalo.

 

Artigo 6.º

Método do preço comparável de mercado

1 - A adopção do método do preço comparável de mercado requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objecto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes.

2 - Este método pode ser utilizado, designadamente, nas seguintes situações:

a) Quando o sujeito passivo ou uma entidade pertencente ao mesmo grupo realiza uma transação da mesma natureza que tenha por objecto um serviço ou produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, com uma entidade independente no mesmo ou em mercados similares;

b) Quando uma entidade independente realiza uma operação da mesma natureza que tenha por objecto um serviço ou um produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, no mesmo mercado ou em mercados similares.

3 - Sempre que uma operação vinculada e uma operação não vinculada não sejam substancialmente comparáveis, o sujeito passivo deve identificar e quantificar os efeitos provocados pelas diferenças existentes nos preços de transferência, que devem ser de natureza secundária, procedendo aos ajustamentos necessários para os eliminar, por forma a determinar um preço ajustado correspondente ao de operação não vinculada comparável.

 

  1. No presente caso não é controvertido nos autos que as sociedades B... e C... se encontram em situação de relações especiais com a E... e com a F..., sujeitas às regras de preços de transferência previstas no artigo 63.º do Código do IRC.

 

  1. O objeto do litígio reside, portanto, no método do preço comparável de mercado a utilizar para aferir se as taxas de juros contratadas são ou não substancialmente idênticas às que seriam praticadas em operações comparáveis, na ausência de relações especiais, de acordo com o princípio da plena concorrência.

 

  1. A Requerente teve por metodologia o custo da dívida de curto prazo do Grupo empresarial (suportado pela sociedade mãe do Grupo, a D... SA) contraída junto de entidades terceiras em operações não vinculadas, com base no custo médio trimestral (percentual) da dívida de curto prazo que tem para com terceiros, apurando assim a taxa de juro a praticar no Contrato de Cash Pooling.

 

  1. Por seu turno, entende a AT que o financiamento concedido à G... SAS sob a forma de “cashpooling” é na substância um empréstimo, pelo que as taxas a aplicar para cálculo de juros deverão ser as taxas publicadas pelo Banco de Portugal (Taxas de juro sobre novas operações de empréstimos concedidos por instituições financeiras monetárias a sociedades não financeiras residentes na zona Euro - transações acima de 1 milhão de Euros (Dados extraídos do website do Banco de Portugal - www.bportugal.pt)).

 

  1. Cabendo decidir, verifica-se que esta mesma questão foi já objeto de apreciação pelos Tribunais Arbitrais, cuja jurisprudência deve ser aqui considerada por força do disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil que determina que “[n]as decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”. Nesta matéria, este Tribunal revê-se no entendimento proferido no no acórdão do Tribunal Arbitral proferido em 10 de novembro de 2023, no âmbito do processo n.º 140/2023-T:

 

24.  (…) Neste sentido, referiu-se o seguinte no acórdão do Tribunal Arbitral proferido em 8 de Janeiro de 2020, no âmbito do processo n.º 253/2019‑T:

 

“Como se refere no artigo 6.º, n.º 1, da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, «a adopção do método do preço comparável de mercado requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objecto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes».

«Duas operações reúnem as condições para serem consideradas comparáveis se são substancialmente idênticas, o que significa que as suas características económicas e financeiras relevantes são análogas ou suficientemente similares, de tal modo que as diferenças existentes entre as operações ou entre as empresas nelas intervenientes não são susceptíveis de afectar de forma significativa os termos e condições que se praticariam numa situação normal de mercado ou, sendo-o, é possível efectuar os necessários ajustamentos que eliminem os efeitos relevantes provocados pelas diferenças verificadas» (n.º 4 do artigo 4.º da Portaria n.º 1446-C/2001).

Afigura-se que a utilização de taxas de juros médias relativas a empréstimos concedidos por instituições financeiras monetárias a residentes na área do EURO (médias ponderadas mensais) não é um método que satisfaça as exigências de comparabilidade de operações formuladas pelo n.º 2 do artigo 63.º do CIRC, que alude à ponderação das «caraterísticas dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais caraterísticas relevantes dos sujeitos passivos envolvidos, as funções por eles desempenhadas, os ativos utilizados e a repartição do risco».

Na verdade, subjacentes àquela taxa de juro média sobre operações de empréstimos estão necessariamente subjacentes operações completamente distintas, como, por exemplo: de curto, médio e longo prazo; garantidas e não garantidas; dívidas subordinadas e dívidas seniores; financiamento de actividades de risco agravado e de menor risco; empréstimos a devedores com passado exemplar e com passado de incumprimento e a devedores com boa situação financeira e com má situação financeira; empréstimos reembolsados em tranches e empréstimos com reembolso apenas na maturidade; empréstimos a taxa variável e a taxa fixa.

Assim, correcção de preços foi efectuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira com invocação de um dos métodos previstos na lei, que é o método do preço comparável de mercado, mas é manifesto que não foram satisfeitos os requisitos legais previstos para utilização desse método, que «requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objecto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes» (artigo 6.º, n.º 1, da Portaria n.º 1446-C/2001).

Na verdade, para duas operações serem consideradas comparáveis é necessário que sejam «substancialmente idênticas, o que significa que as suas características económicas e financeiras relevantes são análogas ou suficientemente similares» (n.º 4 do artigo 4.º da Portaria n.º 1446-C/2001), o que afasta manifestamente a possibilidade de ser utilizado para efeito da determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes um valor médio para cujo apuramento foi considerado um conjunto indefinido de operações cujas características não estão determinadas (empréstimos concedidos por instituições financeiras monetárias a residentes na área do EURO), mas em que, segura e inevitavelmente, por se tratar da generalidade dos empréstimos em euros concedidos por instituições financeiras a residentes em 2016, se incluem operações substancialmente distintas, com características económicas e financeiras relevantes completamente distintas das que têm as operações vinculadas, a nível de garantias e de risco do credor.

Assim, tem de se concluir que o método utilizado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, viola o os citados n.º 2 do artigo 63.º do CIRC e o n.º 4 do artigo 4.º e o n.º 1 do artigo 6.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro.

Por outro lado, no caso em apreço, ficou demonstrado que, ao contrário do que entendeu a Autoridade Tributária e Aduaneira, há razão para distinguir as taxas aplicadas pelas entidades centralizadoras do cash pooling e pelas participantes aos respectivos saldos devedores, justificando-se que sejam superiores as taxas dos saldos devedores de que são credoras as entidades centralizadoras, como forma de remuneração da actividade de gestão do cash pooling, uma vez que não foi prevista remuneração separada.

Pelo exposto, conclui-se que as correcções efectuadas enfermam de vícios de erro sobre os pressupostos de facto e erro sobre os pressupostos de direito que justificam a sua anulação, nos termos artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.”.

 

   (…)

 

26. Acresce que as taxas de juros médias relativas a empréstimos concedidos por instituições financeiras monetárias a residentes na área do EURO (médias ponderadas mensais) que constam dos dados publicados pelo Banco de Portugal também não podem servir como referencial de comparação para aferir o cumprimento do princípio da plena concorrência ao abrigo do método do preço comparável de mercado.

 

27. Isto na medida em que esta metodologia reclama o grau mais elevado de comparabilidade entre operações, seja ao nível do objecto, seja ao nível das demais particularidades que caracterizam a operação e as entidades intervenientes, o que não se pode dar como verificado. É que o referencial das taxas de juros médias aferidas pelo Banco de Portugal inclui todas as operações de crédito de valor superior a um milhão de euros, concedidas por instituições de crédito residentes em Portugal a empresas da área do Euro no período de 2018, independentemente de terem ou não características idênticas às operações praticadas pela Requerente.

 

28. Consequentemente, conclui-se que não estavam reunidas as condições para utilizar o método do preço comparável de mercado, pelo menos nos termos em que o foi no RIT, de modo que as correcções feito pela AT violam as regras em matéria de preços de transferência previstas nos artigos 4.º, n.º 3 e 6.º da Portaria n.º 1446-c/2001, de 21 de Dezembro e do artigo 63.º do Código do IRC.

 

(…)

 

 34. Com efeito, utilizar a média ponderada de taxas acordadas anualizadas de 1,90% quanto a novas operações de empréstimos de montante superior a um milhão de euros, concedidos por instituições financeiras localizadas em Portugal a empresas residentes na área do euro, durante o exercício de 2018, com o empréstimo com características de suprimentos no valor total de € 12.000.000,00 celebrado entre a Requerente e a C... AG, em que foi acordada uma taxa de 4% no ano de 2018, é um método que não satisfaz as regras de preços de transferência no que respeita às exigências de comparabilidade de operações. Isto na medida em que aquela média ponderada engloba operações de natureza financeira que têm maturidades, condições de risco e garantias muito diversas entre si, o que não só afecta o grau de comparabilidade entre as operações, mas que para além disso tem potencialidade para afectar significativamente a correspondência da taxa de juro de 1,90% como aquela que seria praticada em condições normais de mercado.

 

35. Em sentido próximo, concluiu o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 3 de Maio de 2017, no âmbito do processo n.º 687/2016-T, onde sublinhou o seguinte:

“Na verdade, comparar a taxa de juro que seria praticada entre a requerente e uma entidade independente, nas condições dos empréstimos negociados e demais termos de comparabilidade, com “a taxa de juro sobre novas operações de empréstimos concedidos …a sociedades não financeiras residentes na área euro”, - como se lê no excerto da figura 2 – afigura-se um comparável demasiado frágil.

Ele não leva em conta o impacto da situação económico-financeira da requerente como entidade independente, os riscos da natureza subordinada dos empréstimos, da forma de reembolso e pagamento de juros, do tipo de garantias, do risco de mercado, do risco país, e outros elementos da situação concreta aqui em causa a que a lei, a doutrina e a jurisprudência dão largo relevo.

(E a taxa obtida não é praticada pelo banco de Portugal, e sim uma média ou agregação de taxas de juro na área euro. Uma eventual análise interquartil das taxas, em função do rating dos devedores, ajudaria a uma análise porventura mais pertinente).

(…)

Para mais, a OCDE, nas suas Guidelines, também refere que o simples uso de médias não ajustadas deve ser usado com cautela. Expressa-o assim (subl. do tribunal):

§1.35 Where there are differences between the situations being compared that could materially affect the comparison, comparability adjustments must be made, where possible, to improve the reliability of the comparison. Therefore, in no event can unadjusted industry average returns themselves establish arm’s length conditions.”.

 

  1. Perante o exposto, julga-se procedente o pedido formulado pela Requerente a este respeito.

 

  1. Nessa medida, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento dos restantes vícios que são imputados nesta sede pela Requerente.

 

§3. Juros indemnizatórios

 

  1. A Requerente peticionou o pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante indevidamente pago.

 

  1. O direito a juros indemnizatórios encontra-se regulado no artigo 43.º da LGT, que, no que interessa nestes autos, estabelece o seguinte:

 

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.

 

  1. Tendo em conta que as correções que se julgaram anteriormente ilegais são unicamente imputáveis à AT, verificam-se preenchidos os pressupostos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT, pelo que é devido à Requerente o reembolso da quantia indevidamente paga acrescido de juros indemnizatórios calculados desde a data do pagamento indevido, isto é, desde 15 de junho de 2023, até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

V. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

 

  1. Anular o ato de liquidação de IRC n.º liquidação n.º 2023 ... e respetiva liquidação de juros compensatórios;
  2. Condenar a Requerida no reembolso à Requerente do montante de imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios, contados desde o dia 15 de junho de 2023 até à data do processamento da respetiva nota de crédito;
  3. Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

Tudo, com as legais consequências.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

           

Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 48.408,39.

 

VII. CUSTAS

 

            Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 2.142,00, a cargo da Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Porto, 20 de setembro de 2024

 

O Árbitro,

 

 

Francisco Melo