Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 473/2023-T
Data da decisão: 2024-08-14  IVA  
Valor do pedido: € 27.087,10
Tema: IVA. Repercussão legal. IVA liquidado em facturas emitidas à Requerente e isenção do art.º 9.º, 27), al. g) do CIVA. Ineptidão da petição inicial. Ilegitimidade. Acto tributário. Operações do sujeito passivo. Facturas.
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SUMÁRIO:

1) O acto tributário objecto de Pedido de Pronúncia Arbitral deve ser concretamente indicado e junto com o articulado inicial, cfr. art.ºs 10.º/2, al. b) do RJAT, 108.º/1 do CPPT e 79.º/3, al. a) do CPTA (estes aplicáveis ex vi art.º 29.º do RJAT). 2) É sobre o autor que recai o ónus de observar os requisitos da petição inicial, ónus processual conforme ao princípio da auto-responsabilidade das partes. 3) Devidamente notificada a Requerente pelo Tribunal para proceder ao aperfeiçoamento sob cominação expressa de a petição ser julgada inepta, e não tendo logrado fazê-lo, ficando o Tribunal no desconhecimento do acto impugnado, confirma-se a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial que determina a nulidade de todo o processo, obsta ao conhecimento do mérito e é causa de absolvição da instância, cfr. art.ºs 577.º, b) e 576.º/2 do CPC (aplicável ex vi art.º 29.º do RJAT).

 

 

DECISÃO ARBITRAL

1. Relatório

 

A...- SOCIEDADE GESTORA DE ORGANISMOS DE INVESTIMENTO COLETIVO, S.A., nipc ..., com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa, doravante “Requerente”, ou simplesmente “Req.te”, veio, ao abrigo dos art.ºs 2.º, n.º 1 al. a) e 10.º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante “RJAT”), submeter ao CAAD pedido de constituição do Tribunal Arbitral.

 

Requer a constituição do Tribunal “para se pronunciar sobre a (i)legalidade da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa (...) junta (...) apresentada pela Requerente com vista à contestação dos atos tributários de (auto)liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), efetuados pelas entidades que prestaram à Requerente serviços de (...) durante o período compreendido entre (...) concretizados através da apresentação das Declarações Periódicas referentes a tais períodos, pelas entidades prestadoras dos referidos serviços (...)”.

 

Peticiona “a anulação (parcial) das liquidações de IVA efetuadas pelas entidades prestadoras, durante os anos 2021 e 2022, de serviços de gestão e administração de Fundos à Requerente, no montante global de € 27.087,10.”[1] (artigo 77.º do PPA)

 

Refere, também, que “[c]onstitui objeto mediato da presente petição, os atos tributários de (auto)liquidação de IVA referente aos meses de janeiro de 2021 a dezembro de 2022, concretizado pelas Declarações Periódicas de IVA referentes a este período temporal entregues pelas entidades que prestaram à Requerente serviços de (...), nos termos do qual, por motivo de erro de direito quanto ao enquadramento jurídico‐tributário aplicável aos serviços adquiridos pela Requerente, esta procedeu ao pagamento, em excesso, do montante de imposto de € 27. 087,10.” (artigo 5.º do PPA)

 

Apresentou reclamação graciosa (“RG”), expressamente indeferida a 05.04.2023. Notificada da decisão de indeferimento a 11.04.2023, interpôs, tempestivamente, o presente Pedido de Pronúncia Arbitral, expõe.

 

Assevera ter legitimidade para a apresentação do Pedido de Pronúncia Arbitral, referindo que “apesar de não ser sujeito passivo dos serviços em apreço, suporta o IVA por repercussão legal”, pelo que “terá direito de ação, dispondo, portanto, do direito de impugnar, de reclamar, de recorrer (...).”[2] (artigo 38.º do PPA)

 

Sustenta, ainda, ter legitimidade processual activa nos autos “por ter suportado indevidamente IVA na aquisição de serviços, cujos fornecedores incorreram em erro na determinação do enquadramento jurídico‐tributário conferido aos mesmos”. (artigo 40.º do PPA)

 

Enquanto repercutido, “ou seja, enquanto entidade que efetivamente suportou o IVA indevidamente liquidado pelos prestadores de serviços”, “vem, nessa qualidade, solicitar a revisão do ato de liquidação em questão com sua a consequente anulação e restituição dos montantes de IVA por si indevidamente suportados”. (artigo 41.º do PPA)

 

Reporta-se, depois, à adequação da RG à sua pretensão, e refere que (i) o princípio da legalidade a que a Administração Tributária está vinculada exige-lhe que, quando tome conhecimento de alguma incorrecção na liquidação do imposto, “tome a iniciativa da revisão dos referidos acto tributário” se em prazo; mais que (ii) os prestadores de serviços que contratou erraram no respectivo enquadramento em IVA, pois que optaram por proceder à sujeição e não isenção e, nessa medida, suportou indevida e erroneamente este imposto, como se propõe demonstrar “em cumprimento do ónus de demonstração da imputabilidade do erro na autoliquidação”, “pese embora o erro tenha sido materializado na fatura emitida pelos respetivos prestadores.” (artigo 48.º do PPA)

 

Alega, desenvolvendo, que os serviços em questão não deveriam ter sido facturados com liquidação de IVA por se subsumirem à isenção da al. g), 27) do art.º 9.º do CIVA, enquanto serviços de “administração ou gestão de fundos de investimento”.

 

As duas empresas que lhe prestaram os serviços facturaram-nos liquidando IVA, à taxa normal. Reporta-se ao “período de tributação compreendido entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022”, refere a base tributável ter sido no valor de € 144.857,10, e o IVA liquidado de € 27.087,10. Junta a título de exemplo duas facturas (de 2022).

 

“Na (auto)liquidação de IVA relativa aos períodos de tributação de janeiro de 2021 a dezembro de 2022 concretizada através da apresentação das Declarações Periódicas referentes a tais períodos” pelas prestadoras de serviços suportou indevidamente o montante de IVA supra, na medida em que tais serviços foram incorrectamente enquadrados como prestações sujeitas e não isentas. (artigo 71.º do PPA)

 

Suportou mais imposto do que deveria, deveria ter sido aplicada a dita isenção à totalidade dos valores que lhe foram facturados em 2021 e 2022 pela prestação dos referidos serviços. “A liquidação do imposto em causa faturado, e, por conseguinte, repercutido, à ora Requerente” é desconforme à legislação nacional e comunitária, alega. (artigo 74.º do PPA)

 

Conclui que “a anulação (parcial) das liquidações que subjazem ao presente pedido e restituição do imposto indevidamente suportado pela Requerente, no montante de € 27.087,10, configura a única forma de dar cumprimento ao direito da União Europeia”. (artigo 174.º do PPA)

 

Requer, a final, (i) seja parcialmente anulada a autoliquidação de IVA efectuada pelas entidades que lhe prestaram os ditos serviços entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022, concretizados através da apresentação, pelas mesmas, das Declarações Periódicas referentes a tais períodos, (ii) seja anulada a decisão de indeferimento da RG, (iii) seja a Requerida condenada a restituir-lhe o valor do IVA que pagou em excesso aos seus prestadores, e (iv) seja a Requerida condenada a pagar-lhe juros indemnizatórios.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD a 03.07.2023 e notificado à AT.

 

Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular a ora signatária, que atempadamente aceitou o encargo.

 

As Partes foram notificadas da designação de árbitro por comunicação de 23.08.2023 e não manifestaram intenção de a recusar, cfr. art.º 11º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT e art.ºs 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído a 12.09.2023. E por despacho de 13.09.2023 o Tribunal notificou a Requerida para apresentar Resposta e juntar o PA.

 

A Requerida veio juntar o PA, consistente no Procedimento de RG, e, bem assim, apresentar Resposta.

 

Na sua Resposta, defende-se, desde logo, por excepção, invocando excepção peremptória de ilegitimidade material da Requerente.

 

Defende-se depois por impugnação, e pugna pela total improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral (“PPA”). Reporta-se aos fundamentos do indeferimento da RG, que transcreve no essencial, e expõe que a Requerente vem alegar ter pago IVA em excesso a dois fornecedores, por serviços que lhe foram facturados em 2021 e 2022, e que, ao invés de ter solicitado a correcção das facturas, apresentou RG contra o dito pagamento.

 

Convoca o art.º 68.º, n.º 1 do CPPT, e conclui que um procedimento de RG não tem por objecto a rectificação e restituição do IVA liquidado em facturas emitidas pelos sujeitos passivos.

 

Expõe, desenvolvendo, que a Requerente deveria ter exigido junto dos prestadores a emissão dos documentos rectificativos das facturas nos termos do art.º 78.º do CIVA. Propõe o PPA seja considerado improcedente, entende prejudicada a validação da isenção invocada, como assim a verificação do montante de imposto a reembolsar e a apreciação do pedido de juros indemnizatórios. Percorre, sem conceder, o regime jurídico ao tempo aplicável aos OICs[3], desenvolve sobre a isenção do art.º 9.º, 27), al. g) do CIVA, e conclui a mesma não se comprovar aplicável.

 

O PPA deve ser julgado improcedente, defende, com todas as consequências legais.

*

 

A 25.10.2023 a Requerente veio solicitar a junção aos autos de uma informação vinculativa de que foi notificada. E notificada para se pronunciar, querendo, a Requerida veio fazê-lo.

 

Por despacho de 10.11.2024, o Tribunal notificou as Partes da admissão da junção solicitada, da dispensa da reunião do art.º 18.º do RJAT, e para produção de alegações escritas facultativas; e a Req.te para aí se pronunciar, querendo, sobre a matéria de excepção constante da Resposta.

 

Ambas as Partes apresentaram alegações.

 

Nas suas alegações a Requerente reitera o vertido no PPA, as razões da posição por que pugna no sentido de ser devida a aplicação da isenção. Mais reitera o seu entendimento de que tem legitimidade processual activa para a apresentação do Pedido, fazendo referência ao n.º 4, al. a), do art.º 18.º, aos art.ºs 54.º, n.º 2, e 65.º da LGT, e ao art.º 9.º, n.º 1 do CPPT. Menciona, ainda, os art.ºs 20.º, n.º 1 e 205.º da CRP[4] que, refere, em conjugação com aquele último e com os art.ºs 9.º, 18.º e 95.º da LGT, habilitam o repercutido “para reclamar, recorrer ou impugnar, contanto que este possua um direito ou interesse legalmente protegido, in casu, a carga tributária que a Requerente suportou indevidamente”, “cabendo respeitar o princípio constitucionalmente reconhecido de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva”. O art.º 18.º, n.º 4, al. a) da LGT “atribui ao repercutido o direito de impugnar a liquidação do imposto repercutido”, e o art.º 9.º, n.º s 1 (parte final) e 4, do CPPT, atribui-lhe “legitimidade processual ativa na impugnação judicial correspondente”. Convoca Acórdão do TJUE (Proc. C-453/22) e refere ter encetado esforços junto dos fornecedores para substituição das facturas, sem sucesso. E que não deve “ver-se coartada do reembolso dos montantes de IVA por si (indevidamente) suportados com a aquisição de serviços (...)” na medida em que tem legitimidade material enquanto repercutido; “(...) dispõe de legitimidade material para reclamar nesta sede, enquanto repercutido legal, a (i)legalidade da decisão de indeferimento que recaiu sobre a Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente e a consequente anulação dos atos de (auto)liquidação de IVA a esta subjacentes.” Conclui, assim, pela improcedência da excepção invocada pela Requerida, “pelo que a decisão da Reclamação Graciosa em apreço deverá ser anulada para todos os efeitos legais e, igualmente, deverão os atos de (auto)liquidação de IVA subjacentes à Reclamação Graciosa em crise ser considerados ilegais, devendo os mesmos ser anulados e o imposto pago pela Requerente ser-lhe integralmente reembolsado, acrescido de juros indemnizatórios.”

 

A Requerida, de seu lado, em alegações remete para o exposto na Resposta. Mais reitera entender não assistir legitimidade à Requerente para o Pedido, acrescentando motivos que considera que o demonstram, e que, em seu entender, demonstram também ser diferente a situação do substituto e a do repercutido. Nota também a Requerente não remeter para elementos de prova ao alegar a isenção ser de aplicar.

 

Por requerimento de 22.12.2023, a Requerida veio dar conhecimento nos autos de Decisão Arbitral proferida em processo que refere ser indêntico ao presente[5].

 

E por requerimento de 27.02.2024 veio a Requerente solicitar a redução do Pedido. Esclarece que ambos os fornecedores procederam à emissão de notas de crédito, e reembolso “de uma parcela dos montantes ora contestados”, no total de € 16.656,60, pelo que requer a condenação passe a cifrar-se no montante de € 10.430,50.

 

Por despacho de 11.03.2024, o Tribunal admitiu a redução do pedido. Mais convidou a Requerente ao aperfeiçoamento, face à não instrução do articulado com o(s) acto(s) tributário(s) impugnado(s), e por se afigurar ao Tribunal a petição inicial (PPA) padecer de irregularidade. Determinou, assim, a notificação da mesma convidando-a para, em dez dias, vir aos autos identificar o(s) acto(s) impugnado(s) a que se refere, e a concretizar especificadamente as operações tributadas em IVA “subjacentes à autoliquidação de IVA efetuada pelas entidades que prestaram à Requerente serviços de (...)”, juntando a documentação formal que o ateste devidamente conciliada. Tudo como aí melhor se explicitou sob cominação expressa de, não dando a Requerente cumprimento ao solicitado, a petição ser julgada inepta, com as consequências legais. Mais se determinou a prorrogação do prazo para prolação da Decisão ao abrigo do art.º 21.º, n.º 2 do RJAT, pelos motivos aí exarados.

 

Em resposta, a Requerente veio, por requerimento de 25.03.2024, “juntar a totalidade das faturas que corporizam os atos de repercussão, cujo enquadramento se contesta”, aduzindo que “[c]onsequentemente, quanto às faturas emitidas, que corporizam as operações tributáveis subjacentes à impugnação sub judice, enquanto atos de repercussão de IVA, nenhuma dúvida subsistirá de que os mesmos se encontram plena e devidamente identificados.”

 

Já quanto aos “atos tributários de (auto)liquidação de IVA” vem afirmar não se encontrarem na sua posse, mais desconhecer em absoluto, e não ter como conhecer, os respectivos elementos identificativos, “sendo-lhe, por isso, impossível proceder à sua junção ou à sua específica identificação”. Convoca Decisões Arbitrais que, segundo refere, tratam situações semelhantes “àquela que aqui se encontra em crise nomeadamente no que concerne à legitimidade processual da figura do repercutido”, refere tratar-se aí de situações em Imposto do Selo e em CSR[6] e defende, convocando o entendimento seguido nas mesmas, que, sendo repercutida, a junção dos actos de autoliquidação não lhe pode ser exigida.

 

Apenas juntou facturas.

 

O Tribunal notificou a Requerida para exercer o contraditório, querendo, e a mesma veio, por requerimento de 16.04.2024, fazê-lo. E por despachos de 08.05.2024 e 10.07.2024 o Tribunal prorrogou o prazo para prolação da Decisão, nos termos do art.º 21.º, n.º 2 do RJAT.

 

2. Saneamento

 

O Tribunal Arbitral é competente, as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e estão devidamente representadas, cfr. art.ºs 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03.2011.

 

Vem invocada na Resposta, como já supra, matéria de excepção. A saber, excepção peremptória inominada da ilegitimidade material da Requerente. A Requerida invoca ainda, no exercício do contraditório a 16.04.2024, excepção dilatória de ilegitimidade activa da Requerente, bem como de ineptidão da petição inicial.

 

Por seu turno, o Tribunal determinara a notificação da Requerente, por despacho de 11.03.2024, para vir proceder à junção do que ali se deixou exarado (cfr. supra), sob expressa cominação de, não o fazendo, a petição inicial ser julgada inepta com as consequências legais.

 

A Requerente defende não ocorrer nenhuma das indicadas excepções. Quanto às excepções de legitimidade, cfr. já supra. Quanto à oficiosamente suscitada excepção de ineptidão da petição inicial, sustentando que, tendo vindo juntar as facturas emitidas, e já que “na qualidade de repercutido legal não dispõe dos atos de (auto)liquidação de IVA”, não pode ser-lhe exigida a junção dos mesmos (v. também supra).

 

Cabe desde já apreciar, então, antes de mais, se se verifica a excepção de ineptidão da petição inicial, que é de conhecimento oficioso, pode ser conhecida a todo o tempo até ao trânsito em julgado da decisão final, e que, a ocorrer, é determinante da nulidade de todo o processo, e causa de absolvição da instância (v. art.º 98.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPPT, art.ºs 87.º, n.ºs 2 e 7 e 89.º, n.ºs 2 e 4, al. b), do CPTA, e art.º s 186.º, n.º 1, 196.º, 278.º, n.º 1, 576.º, n.º 2 e 577.º, al. b), e 578.º, todos do CPC).[7]

 

Apreciando.

 

2.1. Da excepção de ineptidão da petição inicial

 

Quanto ao seu conteúdo, a petição inicial deve observar determinados requisitos, sob pena de ser considerada inepta. O pedido é um elemento objectivo da instância, não podendo subsistir incertezas/dúvidas quanto ao conteúdo da solicitação do autor e quanto ao objecto da actividade jurisdicional subsequente.

 

Dispõe o legislador no art.º 98.º do CPPT, versando sobre as nulidades do processo judicial tributário, assim:

“Artigo 98.º - Nulidades insanáveis

1. São nulidades insanáveis no processo judicial tributário:

a) A ineptidão da petição inicial; / (...)”

 

Por sua vez, nos termos do disposto no art.º 186.º do CPC é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. Dispõe assim o artigo, no que aos autos mais releva:

“Artigo 186.º - Ineptidão da petição inicial

1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

2. Diz-se inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

(...)”

 

A ineptidão da petição inicial é, pois, de tal modo grave que gera a nulidade de todo o processo.

A nulidade de todo o processo é uma excepção dilatória, que cumpre ao Tribunal conhecer, e que, a verificar-se, obsta a que se pronuncie sobre o mérito da causa (v. art.ºs 98.º, n.ºs 1 e 2 do CPPT, 87.º, n.ºs 2 e 7 e 89.º, n.ºs 2 e 4, al. b) do CPTA, 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.º 2 e 577.º, b) do CPC).

 

O Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA) corresponde materialmente a uma petição inicial.

 

A Requerente submeteu o PPA na origem dos presentes autos e requereu, em sede de petitório: “a) Anular parcialmente a autoliquidação de IVA efectuada pelas entidades que prestaram à Requerente serviços de (...) durante o período compreendido entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022, concretizados através da apresentação das Declarações Periódicas referentes a tais períodos pelas entidades prestadoras dos referidos serviços, no âmbito dos quais a Requerente suportou um montante de IVA superior ao legalmente devido, no montante global de € 27.087,10; b) Anular a respetiva decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa sub judice porque manifestamente ilegal;  c) condenar a AT à restituição à Requerente do valor do IVA pago em excesso aos seus prestadores e refletido nas supra referidas Declarações Periódicas de imposto, no montante de  € 27.087,10; d) Condenar a AT a pagar à Requerente os juros indemnizatórios legalmente devidos, por estarem preenchidos os pressupostos do artigo 43.º da LGT.

 

Não obstante, não juntou aos autos - seja ab initio, como devido, seja posteriormente quando notificada pelo Tribunal convidando-a para o efeito (cfr. supra) – o ou os actos tributários cuja anulação vem peticionar em juízo.

 

Os actos tributários, pois, que em contencioso anulatório, como é o nosso caso, constituem necessariamente o objecto do Pedido.[8]

 

Não só não juntou, como era seu dever - e sendo que tal constitui requisito da petição inicial, documento a ser necessariamente junto (cfr. art.º 10.º, n.º 2, al. b), do RJAT, e v. também o art.º 108.º, n.º 1 do CPPT e art.ºs 78.º, n.º 2, al. e) e 79.º, n.º 3, al. a) do CPTA) -, como sequer identificou concretamente esse ou esses que serão os actos que pretende ver anulados pelo Tribunal.

 

Trata-se de documento que deve acompanhar, instruir, a petição, sendo certo que é sobre a Requerente que recai o ónus de dar cumprimento aos requisitos da mesma previstos naqueles preceitos legais (v. parágrafo anterior).

 

Em comentário ao art.º 108.º, n.º 1 do CPPT, escreve Jorge Lopes de Sousa[9] assim: “(...) sendo o fim essencial do processo de impugnação judicial a eliminação jurídica de um acto em matéria tributária, desde que o impugnante o identifique e indique os vícios que entende que o afectam, poderá entender-se que há um pedido implícito de anulação ou declaração de nulidade ou inexistência daquele acto. O essencial será que seja perceptível a intenção do impugnante.”

 

Não há, neste contexto, pedido perceptível sem identificação do concreto acto. Diga-se.

 

Tenha-se presente, ademais, o Princípio processual da auto-responsabilidade das partes, que é inerente ao princípio do dispositivo, e segundo o qual estas sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, que fazem a seu próprio risco. Ao qual o Princípio da cooperação não será alheio, é certo, sem que, porém, elimine aquela responsabilidade, como bem se compreende. Ademais, estando nós em sede de acção constitutiva de anulação. Acção em que se pretende, pois, fazer valer um direito à anulação de um certo acto tributário, o acto concretamente impugnado (ao qual se imputam certos vícios).

 

Sobre o que, há-de ser proferida uma sentença que, a seu tempo, adquirirá força de caso julgado. Anulando, ou não, tal acto. Donde também, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, a importância de que se reveste a identificação do acto impugnado sem equívocos e/ou dúvidas.

 

Em coerência, v. como determinou o legislador tributário no, já referido, art.º 108.º, n.º 1, do CPPT, sob a epígrafe “Requisitos da petição inicial”: “[a] impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juíz do tribunal competente, em que se identifiquem o acto impugnado e a entidade que o praticou (...)”. O acto que se impugna é aquele, o acto X, e não o Y ou o Z.

*

 

O processo de impugnação traduz o exercício de uma “jurisdição restrita”, contencioso de mera legalidade, visando a anulação dos actos tributários (ou a declaração da sua nulidade ou inexistência) - v. art.ºs 99.º e 124.º do CPPT.[10]

 

Entre os elementos essenciais da causa figura, precisamente, o objecto da acção.

 

O próprio acto em crise pode[11] perspectivar-se como sendo o objecto (stricto sensu) da acção.

(V., de novo, e entre o mais, o disposto pelo legislador no RJAT, art.º 10.º, n.º 2, al. b): “O pedido de constituição do tribunal arbitral é feito mediante requerimento enviado por via eletrónica (...) do qual deve constar: (...) b) A identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral.”; ou, assim também, ainda no RJAT, o art.º 24.º, n.º 2, in fine).

 

Já numa perspectiva lato sensu, o objecto da acção será o que se alcança pela conjugação entre pedido e causa de pedir. (V., entre o mais, o mesmo art.º 10.º, n.º 2, agora al. c), do RJAT).

 

O Regime da Arbitragem Tributária foi concebido pelo legislador como um meio alternativo de resolução conflitos em matéria tributária, ainda que só para determinados tipos de litígios (v. art.ºs 1.º e 2.º do RJAT).  A acção arbitral tributária foi, a final, delineada como um meio alternativo ao processo de impugnação judicial.[12]

 

A impugnação judicial dos actos da Administração Tributária concretizados na liquidação de tributos (incluindo os actos que o legislador equiparou a actos de liquidação para este efeito[13]) segue a forma do processo tributário por excelência, a saber, o, já referido, processo de impugnação, comummente também designado “processo de impugnação judicial”v. art.s 99.º e ss do CPPT.

 

Para o RJAT o legislador transportou, com potencial relevo para os autos, tão só, precisamente, o processo de impugnação judicial de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta - cfr. art.º 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.[14] Assim, dos actos tributários stricto sensu.

 

Ora, retornando aos autos, a Requerente não juntou e nem indentificou qualquer concreto acto tributário stricto sensu, qualquer acto tributário de que o Tribunal Arbitral pudesse conhecer. A saber, não juntou e nem identificou concretamente quaisquer autoliquidações - Declarações de IVA submetidas pelo sujeito passivo (ainda que tenha indicado ser esse o “o objeto mediato da presente petição”).

 

Mais, convidada pelo Tribunal a fazê-lo, sob cominação expressa de a petição ser considerada inepta caso o não fizesse, a Requerente veio expressamente reconhecer que, além de tais actos não se encontrarem na sua posse, desconhece e não tem como conhecer os elementos identificativos dos mesmos. Afirma que lhe é impossível proceder à sua junção ou à sua específica identificação (cfr. supra).

 

Ora, conclui-se que o processo carece, assim, de objecto – perspectivado este em sentido estrito (v. supra). Inexiste nos autos acto (ou actos) que o Tribunal possa anular ou declarar ilegal. Sequer indicação concreta/identificação do acto impugnado que constituiria o objecto da acção arbitral que a Requerente desencadeou. O acto (ou actos) que pretendesse impugnar como lesivo dos seus direitos não foi por si junto ou sequer concretamente identificado. (E lembrando que o acto tributário só pode ser provado por documento, prova legal).

 

Perspectivando, por sua vez, o objecto no seu sentido amplo, conjugação do pedido e da causa de pedir, vejamos.

 

Se no petitório se lê, como supra, “a) Anular parcialmente a autoliquidação de IVA efectuada pelas entidades que prestaram à Requerente serviços (...)” (em que desde logo nem o acto vem indentificado, insista-se[15]), percorrendo o PPA são diversos os passos (e assim, também, o articulado no seu conjunto) em que se revela de difícil apreensão o que é pedido, e com que base a Requerente o pede. Assim (v. nossos negritos - Relatório, supra), fala-se em: anulação (parcial) das liquidações de IVA efectuadas pelas entidades prestadoras de serviços à Requerente durante os anos 2021 e 2022 no montante global de € 27.087,10; atos tributários de (auto)liquidação de IVA referente aos meses de janeiro de 2021 a dezembro de 2022 concretizado pelas Declarações Periódicas de IVA referentes a este período temporal entregues pelas entidades que prestaram à Requerente serviços, nos termos do qual, por motivo de erro de direito quanto ao enquadramento jurídico‐tributário aplicável aos serviços adquiridos a Requerente pagou imposto em excesso no montante de € 27.087,10; também se fala em solicitar a revisão do acto de liquidação em questão com sua a consequente anulação e restituição dos montantes de IVA por si Requerente indevidamente suportados; e, ainda, em erro na autoliquidação pese embora o erro tenha sido materializado na factura emitida pelos prestadores; em liquidação do imposto faturado e assim repercutido à Requerente desconforme à legislação nacional e comunitária; na anulação parcial das liquidações que subjazem ao presente pedido e restituição do imposto indevidamente suportado pela Requerente; também se fala, já em sede de alegações, sempre se refira, em fornecedores cujos serviços constituem objecto do processo; em vir nestes autos reclamar a ilegalidade da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa e consequente anulação dos actos de autoliquidação a ela subjacentes; em Reclamação Graciosa em crise; por fim (cfr. requerimento de 25.03.2024), em actos de repercussão cujo enquadramento se contesta.

 

A acrescer, pois, à falta de objecto, por inexistência, nos autos, do acto a sindicar - só por si causa de ininteligibilidade do pedido e, assim, de ineptidão da petição inicial nesta sede (contencioso tributário de mera anulação) - a exposição apresentada pela Requerente revela-se confusa, não é clara e não permite apreender, com segurança, o objecto, lato sensu, da causa.

 

Sempre se coloque, aqui chegados, a pergunta: a ser considerada procedente a acção qual o acto que o Tribunal anulava? Não se sabe. (E, no caso, a mesma pergunta se poderia fazer, ademais, quanto aos vícios concretamente imputados ao acto, quais os vícios imputados ao acto. Não é claro. Lembrando também que IVA constante das facturas é IVA devido - v. art.º 2.º, n.º 1, al. c) do CIVA).

 

E a decisão arbitral tributária assume, como a decisão dos Tribunais Tributários em processo de impugnação judicial, um carácter cassatório, de eliminação, total ou parcial, da Ordem Jurídica, do acto impugnado.

 

Ficando o Tribunal em tal desconhecimento, de qual seja o acto impugnado, e por tudo o que vem de percorrer-se, não pode senão concluir-se pela ineptidão da petição inicial. Por falta de objecto e/ou ininteligibilidade do pedido e causa de pedir. O que determina a nulidade de todo o processo. Excepção dilatória que constitui nulidade absoluta que afecta todo o processo, obsta ao conhecimento do mérito e tem por consequência a absolvição da instância. Tudo como vimos. E como se decidirá.

 

Antes, porém, refiram-se ainda três pontos.

 

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Um primeiro, para dizer que não seria por a Requerida se ter defendido nos autos que a conclusão a que chegámos poderia ser outra. A Requerida exercer defesa, ademais estando em causa direitos indisponíveis, é compreensível e desejável, e pode sim revelar que a mesma aproximou o sentido do pedido - em tese. É natural que se defenda, em tese, quanto às imputações que são feitas. Mesmo se tivesse sido a Requerida a arguir inicialmente a excepção, e se se concluísse que tinha interpretado convenientemente a petição inicial[16], não teria em qualquer caso sido compreendido qual o acto impugnado. E, em decorrência de tudo o que se viu, o contencioso em que nos movemos não é compatível com tal desconhecimento. Do acto.

No caso, aliás, a ambiguidade/falta de clareza da petição acarretou reflexos na defesa apresentada pela Requerida.[17] E - determinante - o acto tributário objecto continua indeterminado.[18] Mais uma vez: a admitir que a acção fosse procedente, e que vinha a ser proferida uma decisão com força de caso julgado material, qual seria então o acto a anular? Nem foi junto, nem decorre do Pedido qual seja. O processo administrativo, e, mais ainda, o processo tributário, não se compadecem com generalidades, e o acto tributário só pode ser provado por documento (prova legal). A excepção de nulidade do processo decorrente da ineptidão da petição sempre se confirmaria.

 

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Um segundo para deixar claro não ter o indeferimento da Reclamação Graciosa a virtualidade de constituir verdadeiramente o acto objecto dos autos. Como é bom de ver, o que se vem peticionar nessa sede, arbitral tributária, é a anulação/declaração de ilegalidade do acto de liquidação (rectius liquidação, autoliquidação, retenção na fonte ou pagamento por conta) – v. art.º 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT. E o acto de segundo grau serve precisamente o propósito de abrir a via para a apreciação da legalidade do acto de liquidação. A redacção conferida pelo legislador ao art.º 2.º do RJAT é clara a respeito, ao expressamente identificar as pretensões para as quais os Tribunais Arbitrais têm competência, e aí apenas se incluindo os actos de primeiro grau (diferentemente, v. o art.º 97.º, n.º 1, al.s c) e d) do CPPT; e poder ver-se, também, como na lei de autorização do RJAT[19] se previa como objecto possível do processo arbitral tributário, além dos actos que o legislador transportou para o RJAT (cfr. al.s a) e b) do n.º 1 do art.º 2.º) também outros, e aí se incluindo os actos de “indeferimento de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, (...)”). O indeferimento da RG não é, pois, o acto em crise, como a certo passo a Requerente também ao mesmo se refere.[20] Aquele cuja anulação a Requerente vem, afinal, peticionar, com base na al. a), do n.º 1, do art.º 2.º do RJAT, que convoca. E que não pode deixar de ser um acto tributário stricto sensu.[21]

 

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E um terceiro, por fim, para sempre referir que outras excepções se verificavam nos autos.

 

Desde logo, a Requerente carece de legitimidade processual (activa).

 

Não é esse o entendimento da própria. Em seu entender assiste-lhe legitimidade processual. Por suportar IVA por repercussão legal, na aquisição dos serviços. É nessa qualidade, de repercutido, que vem aos autos. Defende ter legitimidade processual activa essencialmente com base nos art.ºs 18.º, n.º 4, al. a) da LGT e 9.º, n.º 1 do CPPT. Convoca, ainda, os art.ºs 20.º, n.º1 e 205.º da CRP que, com aqueles e com os art.ºs 9.º e 95.º da LGT, a habilitam, entende, a reclamar, recorrer ou impugnar, desde que tenha um direito ou interesse legalmente protegido.

 

Vejamos.

 

2.2. Da excepção de ilegitimidade 

 

A ilegitimidade das partes configura uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que, sendo julgada procedente, obstará a que o Tribunal conheça do mérito da causa - v. art.º 89.º, n.ºs 1, 2 e 4, al. e) do CPTA, e art.ºs 576.º, n.º 2 e 577.º, al. e) e 578.º do CPC.

 

Quanto ao regime da legitimidade das partes no contencioso tributário, vejamos.

 

Dispõe o legislador no art.º 65.º da LGT, sob a epígrafe “[l]egitimidade”, ainda que por referência ao procedimento tributário, que “[t]êm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”

 

No CPPT dita o art.º 9.º, também sob a epígrafe “[l]egitimidade”, no seu n.º 1, assim: “[t]êm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos (...) e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.” E o seu n.º 4, por sua vez, determina que têm legitimidade no processo judicial tributário (a par de outras) as entidades referidas nos números anteriores e, assim, naquele n.º 1.

 

Ainda no CPPT, sempre se diga, aqui com referência a procedimento, de RG, determina o art.º 68.º, n.º 1, que “o procedimento de reclamação graciosa visa a anulação total ou parcial dos actos tributários por iniciativa do contribuinte, incluindo, nos termos da lei, os substitutos e responsáveis”. [22]

 

No RJAT (v. Preâmbulo) o legislador cuidou de litígios “que opõem a administração tributária ao sujeito passivo”, e do pedido de constituição do tribunal arbitral deve constar a “identificação do sujeito passivo” (cfr. art.º 10.º, n.º 2, al. a) do RJAT).

 

Por sua vez, em matéria de legitimidade, conceito, v. o art.º 9.º do CPTA, que determina que o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida. Pelo que, “(...) a legitimação processual é aferida pela relação jurídica controvertida, tal como é apresentada pelo autor. Deste modo, há que atender à relação jurídica tal como o autor a apresenta e configura, isto é, à pretensa relação jurídica, e não à relação jurídica material, tal como ela se constituiu na realidade, sendo por isso indiferente, para a verificação da legitimidade, a questão de saber se o direito existe na titularidade de quem o invoca (...), matéria que diz antes respeito à questão de fundo e poderá, quando muito, determinar a improcedência da ação (...).”[23]

 

Princípio geral em matéria de legitimidade activa este, vindo de ver, que tem correspondência no CPC, art.º 30.º - “Conceito de legitimidade”, n.º 3: “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”. Ou seja, são partes legítimas as pessoas que o autor indique como sendo os sujeitos da relação controvertida.[24]

 

Ora, nos nossos autos, a própria Requerente reconhece não ser sujeito da relação jurídica controvertida. Reconhece vir aos autos não na qualidade de sujeito (passivo) da relação jurídico-tributária que configura (e do(s) acto(s) de autoliquidação), mas sim na qualidade, outra, de repercutido (legal). E assim pugna pela sua legitimidade processual activa (cfr. supra). Pela “legitimidade processual da figura do repercutido.” (cfr. requerimento de 25.03.2024).

 

Dito isto.

 

Tal como apresenta a relação controvertida, a Requerente não é sujeito (passivo) da mesma. É, diferentemente, e segundo alega, entidade que suporta o encargo do imposto por repercussão legal.

 

Mas a Requerente, ainda assim, entende que tem legitimidade processual activa nos presentes autos. E porquê? Porque apesar de o legislador tributário ter sido claro ao determinar que não é sujeito passivo da relação jurídico-tributária “quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal” - v. n.º 3 versus n.º 4, al. a), do art.º 18.º da LGT - ainda assim o legislador disse que este (o repercutido legal que por essa via suporte o encargo do imposto) não o é (sujeito passivo), mas sem prejuízo do direito a meios de defesa nos termos das leis tributárias. Assim (inserido no Título II – Da relação jurídica tributária):

 

“Artigo 18.º - Sujeitos

(...)

3. O sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva (...) que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.

4.  Não é sujeito passivo quem:

a) Suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias;”

 

O que dizer, então?

 

Que quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal não deixará de ter meios de defesa, administrativos e jurisdicionais, ao seu alcance, no pressuposto de que prove interesse legalmente protegido (v., na LGT, art.ºs 9.º, n.º 1 – “[é] garantido o acesso à justiça tributária para a tutela plena e efectiva de todos os direitos ou interesses legalmente protegidos” e 65.º, segunda parte – “[t]êm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido”, e no CPPT, art.º 9.º, n.º 1, parte final - “[t]êm legitimidade (...) os contribuintes (...) e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido”, e n.º 4).

 

Porém, meios ao seu alcance nos termos das leis tributárias – como logo o disse o legislador no art.º 18.º, n.º 4, al. a) da LGT (supra).

 

Ou seja (e como primariamente decorreria do que já vimos de ver) não bastará a prova de qualquer interesse legalmente protegido, para o interessado poder figurar como parte activa na acção. Além de que tais interesses terão que ser interesses afectados pela decisão que possa ser tomada no procedimento tributário[25], recorde-se a regra da correspondência entre direito e acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo: salvo se a lei determinar o contrário, haverá apenas um determinado meio processual que em cada caso pode ser utilizado para obtenção da tutela judicial (v. também o art.º 98.º, n.º 4 do CPPT, e o art.º 2.º, n.º 2 do CPC).[26]

 

Pois bem.

 

Os meios existentes - as formas de processo, se se preferir (e pensando agora apenas no processo) – são diversos (v. art.º 95.º, n.º 1 da LGT: “O interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, segundo as formas de processo prescritas na lei.”).

 

E só podem ser utilizados por referência a determinados tipos de actos.

 

O processo de impugnação judicial é a forma de processo tributário por excelência, dissemos já. Não a única, pois. E foi no seu âmbito que o legislador criou, como alternativa, a Arbitragem Tributária (v. art.ºs 1.º, 2.º, n.º 1 e 3.º, n.º 2 do RJAT).

 

O processo de impugnação judicial tem por objecto actos tributários (lato sensu).

 

A impugnação judicial prevista na al. a) do n.º 1 do art.º 97.º do CPPT – aquela que tem correspondência na al. a) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT[27] – é a forma de processo adequada, o meio, próprio, nos termos das leis tributárias, para sindicar actos tributários stricto sensu (v. também supra, pág. 14). 

 

A repercussão - repercussão legal, como no caso - não é acto tributário stricto sensu.

Sequer acto tributário. Lembrando que o acto tributário é um acto administrativo. E v. no art.º 148.º do CPA (e no art.º 60.º do CPPT – Secção II – Da decisão), entre o mais, o elemento “decisão”, sempre presente. Decisão no exercício de poderes jurídico-administrativos.

 

***

 

Numa primeira aproximação, numa súmula:

Estamos em IVA. A Requerente é sujeito passivo de IVA (embora não sujeito passivo na relação jurídico-tributária em que se enquadram os falados, mas não concretamente identificados, actos de autoliquidação de IVA de empresas suas fornecedoras, como vimos). Porém, sem possibilidade de deduzir o IVA em que incorra nos seus inputs uma vez que, segundo alega (e vem aceite), está enquadrada no regime de isenção do art.º 9.º do CIVA.

A ser assim, bem se vê, a Requerente poderá estar, quando incorra em IVA nos seus inputs, a suportar ela própria o encargo (económico) do imposto.

A tal ocorrer, estará a suportá-lo por repercussão legal.

Repercussão obrigatória por lei. Cfr. art.º 37.º do CIVA.

E tendo em vista hipotéticas situações neste contexto, previu o legislador, no art.º 18.º, n.º 4, al. a) da LGT, a possibilidade de acesso à justiça tributária, para tutela de direitos ou interesses legalmente protegidos - admitiu, pois, assim, que da repercussão legal em IVA possa resultar a lesão de interesses legalmente protegidos.[28] O que encontra razão no funcionamento do Sistema Uniforme do IVA, com as suas especificidades próprias, em que se elege à qualidade de sujeito passivo (o Assujetti ou Taxable person[29]em IVA) - e v. art.º 2.º, n.º 1, al. a) do CIVA - não aquele no qual se pressupõe a capacidade contributiva que o imposto visa atingir (o Redevable de la taxe), mas sim aquele ou aqueles que no circuito económico intervieram antes dele. Essas as pessoas a quem se entendeu atribuir os deveres não só de liquidar o imposto (a quem se lhes segue na cadeia económica, assim o repercutindo para a frente) como de, regularmente, submeter as Declarações de IVA. Entregando (pagando) ao Estado a diferença (para mais) (a haver) entre o IVA que, a jusante, receberam (liquidaram) e o IVA em que a montante incorreram (nos seus inputs). Deduzindo ao que receberam a jusante aquele em que incorreram a montante, e assim só entregando a diferença. No caso do repercutido legal que se veja pelo próprio enquadramento em IVA ser o último na cadeia - i.e., sem possibilidade de liquidar IVA a seguir a si por virtude de isenção (v. art.º 9.º do CIVA) - o IVA em que incorreu a montante não poderá ser deduzido, a IVA recebido a jusante. Uma vez que o não receba (IVA a jusante). Podendo acabar por funcionar, ele, como o consumidor final. Não sendo afinal, a ser esse o caso, verdadeiro Assujetti mas sim devedor do imposto (Redevable de la taxe). A não lhe assistir a possibilidade de direito ou de facto de o repercutir para a frente, sobre o seu contribuinte natural, suportará assim ele o encargo económico do imposto, por via da repercussão legal. Repercussão obrigatória. Obrigatória para o sujeito passivo (que o antecede na cadeia) - v. art.ºs 29.º, n.º 1, al. b), 36.º, n.º 5, al. d) e 37.º, n.ºs 1 e 2, todos do CIVA. Obrigação, acessória, que recai sobre o sujeito passivo.

 

***

Dito isto.

 

Admitindo o legislador, na LGT, lei geral, que se pretendia ser uma lei de valor reforçado, como se sabe, a possibilidade, neste contexto, de o repercutido legal se ver lesado nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria tributária, determinou (al. a) do n.º 4 do art.º 18.º) que o mesmo poderá (sendo o caso) fazer uso de meios, procedimentais e processuais, para a respectiva tutela “nos termos das leis tributárias”. Habilitando/dirigindo assim o legislador a concretizá-lo nas leis tributárias. Referiu meios, remetendo pois (como nem poderia deixar de ser) para o disposto nas leis tributárias.[30]

 

Ainda na LGT v. os art.ºs 9.º, n.º 2 e 95.º, n.º 1 - actos impugnáveis ou recorríveis nos termos da lei / direito de impugnar ou recorrer segundo as formas de processo prescritas na lei -, e o art.º 101.º, contendo o elenco de meios processuais tributários, depois concretizado no art.º 97.º do CPPT, de onde constam, na al. a) (com correspondência na al. a), n.º 1, art.º 2.º do RJAT) a forma de processo de impugnação sobre actos tributários stricto sensu, e, nas alíneas seguintes, outras (impugnação de outros actos tributários e outras formas de processo).

 

Ao recorrer à forma de processo de impugnação que tem por objecto actos tributários stricto sensu (via Arbitragem Tributária) a Requerente estava a escolher o meio processual nos termos das leis tributárias adequado à apreciação da legalidade de actos de autoliquidação de IVA. Acto tributário stricto sensu. (Que a repercussão legal não é, vimos, e aqui ainda voltaremos).

 

Não sendo sujeito passivo dos actos de autoliquidação de IVA que pretende impugnar (ainda que sem os identificar concretamente), carece de legitimidade processual para o efeito, uma vez que não é sujeito da relação controvertida (a relação jurídico-tributária em que tais actos se inserem), desde logo tal como por si delineada (cfr. supra).

 

E não estava, nisto também, a escolher meio processualmente adequado em sede de repercussão legal nos termos das leis tributárias. (O processo judicial tributário na forma de processo de impugnação judicial cfr. al. a) do n.º 1 do art.º 97.º do CPPT, e v. al. a) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT, tem por objecto a apreciação da legalidade de actos tributários stricto sensu, insista-se.)

 

Também não se verifica, sempre se refira, ao não assistir legitimidade processual nos presentes autos à Requerente, repercutida legal, e por tudo o visto, violação do “princípio constitucionalmente reconhecido de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”. Não ficam preteridos quaisquer normativos Constitucionais a respeito: “[o] interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, segundo as formas de processo prescritas na lei” dita, desde logo, o art.º 95.º, n.º 1 da LGT, dando concretização às garantias consagradas na Constituição (v., ainda, aí, o art.º 9.º, n.º 2).

 

A terminar, e na sequência de tudo o que vimos, retornemos ainda, por uma última vez, ao art.º 18.º, n.º 4, al. a), da LGT, in fine: “nos termos das leis tributárias”.

 

Bem se conhece a manifesta complexidade da Ordem Jurídica tributária, complexidade que também nestas matérias - âmbito de aplicação de meios processuais tributários - impera. Não sendo inclusive de fácil apreensão, por vezes, a interligação entre LGT e CPPT.

 

Certo, porém, é que na LGT o legislador previu os princípios – os princípios fundamentais (cfr. Preâmbulo no respeitante ao Título IV - processo tributário), a depois ser desenvolvidos em sede de direito tributário adjectivo e de codificações especiais de cada tributo.

 

O art.º 18.º, n.º 4, al. a), não foi excepção, vimos, assim se remetendo para o disposto nas leis tributárias. Que é, pois, onde encontraremos os meios que o legislador consagrou, cumprindo o normativo.

 

Ora, vindo a Requerente aos autos (nos termos que vimos e sustentando-se na sua qualidade de repercutido legal) pretender a anulação de actos tributários de autoliquidação em IVA, sempre seríamos remetidos para o CIVA.

 

E no CIVA previu o legislador, como bem se compreende, meios procedimentais próprios, na esfera dos prestadores, para a regularização de IVA (repercutido) em facturas. Desde logo – cfr. art.º 78.º (e v. art.º 98.º, n.º 2). No âmbito dos quais serão emitidos os devidos documentos rectificativos.

 

O repercutido (legal, em IVA) - ou seja, aquele que recebe o encargo (o que não é o mesmo que suporta) por repercussão legal, que não pela qualidade de sujeito passivo da relação jurídica Estado/agente económico - que se considere lesado nos seus direitos podendo desde logo junto dos seus fornecedores procurar fazer valê-los (sendo as regularizações a favor do sujeito passivo facultativas, sempre ficaria na disponibilidade destes a regularização[31]). Como, aliás, a Requerente acabou por fazer, com sucesso em relação a parte das facturas, segundo veio informar nos autos (v. Relatório supra).

 

Como assim[32] (e ao que, também segundo informou nos autos, a Requerente fez, visando situações futuras), podendo requerer informação vinculativa a respeito, fazendo uso do procedimento previsto no art.º 68.º da LGT, para o qual têm legitimidade outros interessados que não o sujeito passivo (cfr. n.º 4). E tendo o legislador previsto, por sua vez, meio processual próprio de reacção à decisão que a Administração Tributária aí vier a proferir (cfr. n.º 20). A saber, “recurso contencioso autónomo”.

 

Em coerência com tudo o que vem de se percorrer, veja-se também, por sua vez, como dispõe o legislador no art.º 97.º do CIVA (“Capítulo VII – Garantias dos sujeitos passivos”) que quem pode recorrer hierarquicamente nos casos previstos no CIVA, reclamar e/ou impugnar a respectiva autoliquidação em IVA (com os fundamentos e nos termos previstos no CPPT) são “os sujeitos passivos e as pessoas solidária ou subsidiariamente responsáveis pelo pagamento do imposto”. Mais, que aqueles meios de defesa não são admitidos quando ainda seja possível a correcção nos termos do, já referido, art.º 78.º. E por fim, no n.º 3, assim: “As liquidações só podem ser anuladas quando esteja provado que o imposto não foi incluído na factura passada ao adquirente nos termos do artigo 37.º”.

 

Conclua-se.

 

Contrariamente ao que vem defendido pela Requerente, a norma - art.º 18.º, n.º 4, al. a) da LGT- não atribui ao repercutido legal o direito de impugnar[33], nem o art.º 9.º do CPPT lhe confere “legitimidade processual ativa na impugnação judicial correspondente”. Tudo como percorrido.

A impugnação judicial terá por objecto um acto tributário, que no caso seria o acto de autoliquidação (que só poderá ser anulado quando provado que o imposto não foi repercutido ao adquirente); e terá legitimidade na impugnação correspondente o respectivo sujeito passivo (que é o sujeito da respectiva relação jurídico-tributária, desde logo tal como configurada pelo autor - cfr. supra).

 

De poder ter um interesse legalmente protegido em matéria tributária e poder assistir ao repercutido legal interesse em recorrer aos Tribunais (v. art.º 9.º do CPPT a que a Requerente faz apelo) não decorre que o mesmo possa ser parte em acção de impugnação judicial tributária, que possa ser parte legítima na mesma. Como se sabe. E por tudo o que se viu.

 

(Não será, afinal, nessa qualidade, de repercutido legal, sujeito de uma relação material controvertida que tenha por objecto um acto tributário; pela simples razão de que não é sujeito passivo desse acto; e tendo a impugnação judicial por objecto um acto tributário, mais não sendo a repercussão um acto tributário – aproximámos já, e v. também conceitos, infra – ele não será sujeito na relação material controvertida, desde logo que delineará/sujeito de acto objecto de acção de impugnação judicial tributária; não será, nesta, parte legítima.)

 

Do mesmo passo, as mesmas consequências se retiram com referência à acção arbitral tributária, meio de que a Requerente veio fazer uso e que é alternativo àquele, seguindo os mesmos termos no essencial.

 

Ainda se dê, aqui chegados, duas notas finais.

 

Uma, a de que é também, quanto a nós, de admitir (sem prejuízo de tudo o que se disse), na menção, no art.º 18.º, n.º 4, al. a), a “pedido de pronúncia arbitral”, ter o legislador partido do teor da lei de autorização do RJAT, onde se referia como podendo vir a incluir-se no objecto do processo arbitral tributário “direitos ou interesses legítimos em matéria tributária”. Com efeito, o trecho em questão da norma é anterior à publicação do RJAT, no qual o objecto do processo arbitral viria a resultar mais restrito (assim amputado dessa matéria).[34] Temos presente o elemento temporal na interpretação.

 

Outra a carecer de algum maior aprofundamento (sempre sem prejuízo de tudo o que se disse), a de que nem as facturas - os únicos documentos que a Requerente carreou nos autos[35] (mesmo após convidada pelo Tribunal a vir juntar o acto tributário) - supririam a inexistência do acto tributário, nem a sua junção permitiria alterar o que quer que seja do que vem dito. Assevera a Requerente que as facturas “corporizam os atos de repercussão”. Apelida-as de “Actos de repercussão de IVA” afirmando que “nenhuma dúvida subsistirá de que os mesmos se encontram plena e devidamente identificados” (cfr. Requerimento de 25.03.2024). Se bem entendemos, pretendendo que as mesmas corporizariam actos tributários. Actos tributários de repercussão de IVA, seria. E convoca, neste iter argumentativo, em defesa de não lhe ser exigível juntar mais que isso, e, concomitantemente, em defesa da sua legitimidade processual enquanto repercutido, Decisões Arbitrais Tributárias nas quais, segundo expõe, se discutiu qual a parte processual em quem deve recair “o ónus de identificação dos atos tributários de liquidação no contexto da repercussão legal” em sede de, refere, Imposto do Selo e CSR. Pretendendo assim argumentar em contrário da verificação das duas excepções dilatórias que vimos de verificar/detectar. Sempre nos foquemos aqui, muito sinteticamente. Aproximado que ficou, entretanto, de que se fala quando se fala em repercussão, legal (v. supra, pp. 23-24).

 

Comecemos então pelos conceitos. Repercussão legal.

Repercussão. Legal.

Depois, Facturas.

E por fim, revertendo ao início, Acto tributário.

 

Repercussão.

Da repercussão tratou - assim apelidou - o legislador em IVA, máxime cfr. artigos já supra identificados - art.ºs 29.º, n.º 1, al. b), 36.º, n.º 5, al. d) e 37.º, n.ºs 1 e 2, todos do CIVA.

De que se trata? De adicionar ao valor da factura a importância do IVA liquidado. Art.º 37.º, n.º 1 do CIVA, sob a epígrafe “Repercussão do imposto”. Inserido na “Secção III – Outras obrigações dos contribuintes”, do “Capítulo V – Liquidação e pagamento do imposto”, depois já de terem sido tratadas as Deduções (na Secção I) e o Pagamento do imposto (na Secção II).

Os sujeitos passivos têm, em IVA[36], assim, para além da obrigação de pagamento (entrega) do imposto (v. art.ºs 27.º e 28.º), outras distintas obrigações (v. art.º 29.º, n.º 1). Desde logo, a de emissão de factura – v. al. b) do n.º 1 do art.º 29.º. E a obrigação de ao valor desta adicionar o valor do IVA liquidado - v. art.º 36.º, n.º 5, al. d). Por si, sujeito passivo (SP) (Assujetti). Em cumprimento deste último comando normativo bem como do do n.º 1 do art.º 37.º 

Ao assim proceder, o SP está, afinal, em cumprimento da lei, a assegurar o regular funcionamento do Sistema Uniforme do IVA. A saber, a garantir que não é ele que suporta o encargo económico do imposto e, no mesmo passo, a assegurar que quem a seguir a si figura na cadeia económica igualmente o não suportará, ao assim passar a poder deduzi-lo. Tudo por o IVA (em cumprimento daqueles comandos legais, máxime cfr. art.º 37.º/1) figurar da factura.

A repercussão é, pois, a transmissão (nestes termos) para a frente (na cadeia económica) do encargo económico do imposto. Que há-de assim acabar por ser suportado no final, na pessoa do consumidor final. Já não agente económico (ou sendo-o, não adquirindo para os fins da sua actividade económica). Ao assim proceder, o SP também liquida (liquidação stricto sensu) o imposto, determina a matéria colectável e aplica a taxa respectiva, apura o valor do IVA (a transmitir, repercutir, para a frente) e adiciona-o ao valor da factura.

 

 

Legal.

(cont.) Sendo que o faz, o SP, por imposição legal. Dos mencionados artigos (37.º e 36.º, n.º 5).

Aquele, por sua vez, a quem esta transmissão do imposto liquidado se dirige, o agente económico seguinte na cadeia, recebe esse encargo porque o SP que o antecede dá cumprimento à imposição legal de liquidação e repercussão. E é assim que é também apelidado de repercutido legal. É repercutido (recebe nestes termos o encargo do imposto) por via da imposição legal de repercussão do imposto liquidado (IVA). Cfr. art.º 37.º: a importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da factura “para efeitos da sua exigência aos adquirentes”.

 

Facturas.

As facturas corporizam, titulam o negócio jurídico a elas subjacente.

E o IVA nelas figura por força de uma operação (prevista por lei) do próprio SP.  Levada a cabo (como determinado por lei com carácter de obrigatoriedade) pelo próprio SP. Sem intervenção (seja então, seja em posterior assentimento/aceitação/confirmação ou não) da Administração Tributária. Não há, aí, uma liquidação administrativa, não há um acto tributário ou liquidação em sentido amplo. Não há uma decisão administrativa sobre uma situação individual e concreta respeitante ao contribuinte em aplicação da lei tributária material.

Não se alcança, pois, como possa ver-se as facturas como “corporizando os atos de repercussão”. Sequer se alcança como possa ver-se nesta transmissão, transferência, repercussão para a frente da importância do IVA, ao longo da cadeia económica, cumprindo o comando legal, como um acto. Menos ainda como um acto administrativo - acto tributário. A querer-se qualificá-lo como um acto, estamos perante um acto do contribuinte de direito, do SP.

Sem maiores desenvolvimentos, recorremos às palavras (a ler com as necessárias adaptações) de Alberto Xavier[37]: “É certo que, ao menos em certos impostos - como no imposto de transacções e nos direitos aduaneiros - a liquidação não é uma simples operação mental, por se dever corporizar num documento (factura ou fórmula de despacho), cuja elaboração é rigorosamente disciplinada por lei (...). A elaboração dos referidos documentos, de harmonia com a lei fiscal, bem como a indicação neles do imposto correspondente ao valor da transacção, constitui, porém, não a forma de um acto jurídico de aplicação da norma tributária material, anterior ao pagamento, mas a simples realização de um dever tributário acessório, imposto por lei (...). Ora, foi a inegável autonomia destas operações de registo e escrita em relação ao pagamento que levou o próprio legislador a assimilá-las à actividade da Administração fiscal, usando os mesmos conceitos para as designar (...) sem se preocupar em distinguir aí onde se verifica a prática de um acto de aplicação da norma material pela Administração dali onde um simples particular, cumprindo um dever instrumental, regista em documentos adequados os factos sujeitos a imposto e o tributo que lhes corresponde.”

A liquidação levada a cabo pelo SP em IVA (e adicionada a respectiva importância à factura) é esta última, cumprimento de um dever instrumental por um particular. Obrigação acessória do SP, havíamos visto já. Operação do SP. Liquidação stricto sensu.

 

Acto tributário.

Aproximámos acima (máxime na p. 23) o conceito de acto tributário. Remetemos para o disposto no art.º 148.º do CPA, e no art.º 60.º do CPPT.

O acto tributário é, além do mais, e do já dito, organicamente administrativo.[38]

Não cabe, pois, visto o percorrido, falar num tal de acto tributário de repercussão de IVA (e que as facturas corporizariam) como parece a Requerente pretender fazer.

 

Pois bem.

Acto tributário em IVA será, contextualizando nos nossos autos, a autoliquidação a que cada SP está também obrigado e que processa através das Declarações Periódicas que, após submetidas à Administração Tributária, entradas na esfera desta, ganharão, a seu tempo, força vinculante na sua situação individual e concreta (e/ou aquela que resulte de intervenção oficiosa da AT). E que o legislador equiparou, para efeitos de impugnação, à liquidação lato sensu, vimos, incluindo-a nos denominados actos tributários stricto sensu. E assim, impugnável – cfr., desde logo, al. a) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT.

Estas as liquidações - os actos tributários - a que o legislador se refere no art.º 97.º, supra.

 

 

Na Jurisprudência Arbitral que a Requerente a este respeito convoca, singelamente se diga, a terminar, com todo o respeito por apreciação distinta, que nem em Imposto do Selo vemos ocorrer repercussão (mas sim substituição, e v. art.º 18.º, n.º 3 da LGT, onde cabem substituto e substituído), nem em CSR vemos, a haver repercussão, ocorrer repercussão legal. Pelo que, independentemente do mais, em qualquer caso não estariam em apreciação situações assimiláveis, no entender deste Tribunal, à dos presentes autos.

 

*

Em suma, verificava-se nos autos, a par da excepção de ineptidão da petição inicial, também e desde logo, excepção dilatória de ilegitimidade processual activa.

 

 

3. Decisão

Termos em que decide este Tribunal Arbitral:

Declarar nulo todo o processo por ineptidão da petição inicial e, consequentemente, absolver a Requerida da instância.

 

 

4. Valor do processo

Nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, e 306.º, n.º 2 do CPC, fixa-se o valor do processo em € 27.087,10, valor indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida (cfr. também art.º 299.º, n.º 1, primeira parte, do CPC).

 

5. Custas

Conforme disposto no art.º 22.º, n.º 4 do RJAT, no art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento já referido e na Tabela I a este anexa, fixa-se o montante das custas em € 1.530,00, a cargo da Requerente (cfr. art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, considerando-se, quanto à acção, que a perde o Autor quando o Réu é absolvido da instância).

 

Lisboa, 14 de Agosto de 2024

O Árbitro,

 

(Sofia Ricardo Borges)

 



[1] Todos os sublinhados e/ou negritos na presente serão nossos, salvo se indicado em contrário.

[2] Negrito como no original.

[3] Organismos de Investimento Colectivo

[4] Constituição da República Portuguesa

[5] Refere-se ao Proc. n.º 471/2023-T.

[6] Contribuição sobre o Sector Rodoviário

[7] Todos Diplomas Legais aplicáveis ex vi art.º 29.º do RJAT.

[8] Se dúvidas houvesse, pode ver-se Joaquim Freitas da Rocha, in “Lições de Procedimento e Processo Tributário”, Almedina, 6.ª Ed., 2018, p. 307, ii) in fine (reportando-se ao processo de impugnação judicial): “(...) o certo é que, indubitavelmente, é o ato de liquidação (ou equiparado) o seu objeto.”

[9] in “Código de Procedimento e de Processo Tributário” Anotado e Comentado, Vol. II, Áreas Editora, 6.ª Ed., p. 208.

[10] (ainda que com a abrangência, que se reconhece na competência dos Tribunais que neste contexto decidem, de condenar nas consequências dessa mesma anulação).

[11] (e deve, no nosso contexto, vimo-lo já)

[12] V., entre o mais, o n.º 2 da Lei de Autorização - Lei n.º 3-B/2010, de 28.04, art.º 124.º (não tendo a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, que dali constava, sido concretizada no RJAT).

[13] Autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta, cfr. art.º 97.º, n.º 1, al. a) do CPPT

[14] (incluídos foram, também, em separado, os actos de fixação da matéria tributável em certas circunstâncias, actos de determinação da matéria colectável, e actos de fixação de valores patrimoniais - cfr. não já al. a) mas sim al. b) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT – o que não releva para os nossos autos)

 

[15] (dispensando maiores desenvolvimentos, sempre se diga que nem seria uma referência genérica a determinado espaço temporal dentro do qual teriam sido submetidos actos por terceiros que cumpriria, como bem se compreende, com o desiderato, que permitiria identificar os actos que a Requerente pretenderá ver anulados) 

[16] (a expressão do legislador no CPC, art.º 186.º, n.º 3)

[17] (e o mesmo no indeferimento da RG)

[18] (nem, além do mais e sem prejuízo de tudo o que se disse, a Req.da estaria no conhecimento da contabilidade das entidades prestadoras para conciliar as facturas emitidas à Req.te por serviços alegadamente isentos com as Declarações submetidas por aquelas ao longo do tempo e descortinar se e quando as mesmas foram ou não devida e efectivamente consideradas em quais Declarações)

[19] LOE 2010, art.º 124.º (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril)

[20] E que foi o acto que a Requerente juntou ao Pedido de Constituição do Tribunal Arbitral.

[21] No mesmo sentido de ser objecto da acção arbitral o acto de primeiro grau, e não os de segundo ou terceiro, pode ver-se Carla Castelo Trindade, in “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Anotado”, Almedina, 2016, pp. 70-71

[22] Donde, a Requerente não sendo contribuinte de direito (o sujeito passivo em IVA) do ou dos falados actos de autoliquidação de IVA (os actos tributários), logo aí não lhe assistia legitimidade, como reclamante.

[23] v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 5.ª edição, Almedina, 2021

[24] (salvo quando a lei disponha em contrário)

[25] V. Jorge Lopes de Sousa em anotação ao art.º 9.º do CPPT, op. cit., Vol. I, p. 120, nota 11.

[26] Também o referindo, em anotação ao art.º 98.º do CPPT, v. Jorge Lopes de Sousa, op. cit., Vol. II, p. 88

[27] (vimos já que nem a outra al. do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT releva aos autos)

[28] Com interesse, e essencialmente no mesmo sentido, do enquadramento do art.º 18.º/4, al. a) da LGT, bem como da distinta situação do substituto versus do repercutido legal, v. Vítor Faveiro, in “O estatuto do contribuinte, A pessoa do contribuinte no estado social de direito”, Coimbra Editora, 2002, pp. 822-823.

[29] (nas expressões francesa e inglesa, respectivamente)

[30] Como também ao tratar das garantias no procedimento – art.º 54.º, n.º 2 da LGT – logo disse que se aplicam à repercussão legal a terceiros da dívida tributária garantias na parte não incompatível com a natureza desta figura. 

[31] V. art.º 78.º, n.º 3

[32] (sem preocupações de exaustão)

[33] (menos ainda “o direito de impugnar a liquidação do imposto repercutido” - uma impugnação terá por objecto um acto tributário, o acto tributário de autoliquidação de IVA, não liquidação de imposto repercutido)

[34] V. nota 12.

[35] (além da decisão de indeferimento da RG, cfr. supra).

[36] Serão do CIVA todos os artigos que agora mencionemos sem indicação de Diploma Legal.

[37] Alberto Pinheiro Xavier, “Conceito e Natureza do Acto Tributário”, Livraria Almedina, Coimbra, 1972, pp. 62-63

[38] Como também nas palavras de Alberto Xavier, op cit, p. 89