DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins (presidente), Rosa Branca Areias e Jorge Bacelar Gouveia, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 26 de fevereiro de 2024, acordam no seguinte:
I. Relatório
A..., Lda., contribuinte fiscal n.º..., com sede na Rua ..., n.º ... ... Coimbra, doravante individualmente designada por Requerente, juntamente com B..., contribuinte fiscal n.º..., e C..., contribuinte fiscal n.º ..., casados entre si no regime de bens da comunhão de adquiridos, ambos com morada na Rua ..., ..., ...-... Coimbra, doravante designados por Requerentes, vieram, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, do artigo 3.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º e com a alínea a) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, apresentar Pedido De Constituição De Tribunal Arbitral Sem Designação De Árbitro E Pedido De Pronúncia Arbitral, no seguimento dos Relatórios Finais de Inspeção Tributária de IRC e IRS, que se juntam como Documento 1 e Documento 2, e posterior liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2023... e acerto de contas n.º 2023..., que ora se junta como Documento 3, e futura liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”).
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Em 18 de dezembro de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD, do que foi notificada a AT.
De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os ora árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 26 de fevereiro de 2024.
Em 8 de abril de 2024, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por impugnação, e juntou aos autos o processo administrativo (“PA”).
Por despacho deste Tribunal, de 24 de abril de 2024 foi proferido o seguinte:
“1. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito e a prova produzida é meramente documental.
2. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação do acórdão.
3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, até a data limite da prolação da decisão final.
4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.
Notifiquem-se as partes do presente despacho.”
Posição do Requerente
O presente pedido de pronúncia arbitral tem por objeto:
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Ato de liquidação de IRC n.º 2023 ..., e respetiva declaração de acerto de contas n.º 2023 ... no montante a reembolsar de Euro 3.643,77 (três mil, seiscentos e quarenta e três Euros e setenta e sete cêntimos), conforme Documento 3 -, o qual, por sua vez, teve por objeto o Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) correspondente à Ordem de Serviço n.º OI2023..., elaborado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Coimbra (“SIT”), doravante designado por RIT 1, conforme Documento 1.
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Futuro ato de liquidação de IRS -, com origem no RIT correspondente à Ordem de Serviço n.º OI2023..., elaborado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Coimbra, doravante designado por RIT 2, conforme Documento 2 -, o qual será junto a este processo através de uma ampliação do pedido, como adiante melhor se concretizará.
A Requerente é uma sociedade comercial por quotas de direito português cujo objeto social é a “compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim e arrendamento dos mesmos imóveis”.
Os sócios-gerentes da Requerente são B..., farmacêutico, gerente de facto, e C..., gerente de direito (doravante os “Requerentes”).
Os sócios da sociedade detêm, cada um, 50% do capital social da mesma.
Acrescenta-se que os mesmos são casados entre si e foram tributados em sede de IRS, no período de tributação de 2021, segundo o regime da tributação conjunta de rendimentos.
A Requerente encontrou-se abrangida pelo regime da transparência fiscal durante os períodos de tributação de 2014 a 2020, tendo vindo a ser tributada em sede de IRS na esfera dos sócios e não de IRC, em conformidade com o disposto no artigo 6.º do Código do IRC.
A ora Requerente foi alvo de um procedimento de inspeção tributária de natureza interna e âmbito parcial (IRC) ao exercício de 2021, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., do qual resultaram correções em matéria de IRC (cfr. Documento 1).
Com efeito, procederam os SIT à correção meramente aritmética à matéria tributável no valor de Euro 250.714,51 (duzentos e cinquenta mil, setecentos e catorze Euros e cinquenta e um cêntimos).
Em concreto, no RIT 1 foram alegadas as seguintes irregularidades:
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O enquadramento, pela Requerente, no regime geral de IRC;
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A consideração de uma mais-valia fiscal no montante de Euro 216.821,20 (duzentos e dezasseis mil, oitocentos e vinte e um Euros e vinte cêntimos); e
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A desconsideração, como gasto fiscal, do montante de Euro 8.121,45 (oito mil, cento e vinte e um Euros e quarenta e cinco cêntimos) referente a depreciações de imóveis.
Relativamente à primeira irregularidade, consideram os SIT que a Requerente cumpria, relativamente ao ano de 2021, os requisitos para ser considerada uma sociedade de simples administração de bens, em conformidade com o disposto no artigo 6.º do Código do IRC, alegando, para o efeito, que os anos a atender para efeitos de enquadramento nesse regime por referência ao exercício de 2021 são 2018, 2019 e 2020, por serem os três períodos de tributação a analisar para efeitos do cálculo da “média dos últimos três anos”.
No que concerne à segunda irregularidade, os SIT entendem que, após a aquisição, pela Requerente, de dois créditos pelo montante global de Euro 485.000,00, ficando credora da quantia de Euro 767.153,14, a Requerente procedeu a um perdão de crédito no montante de Euro 150.000,00 (o qual não foi considerado como gasto fiscalmente relevante pela AT), o que gerou, aquando da recuperação do montante de Euro 551.821,22, uma mais-valia no montante de Euro 216.821,20.
Na alegação da terceira irregularidade, os SIT alegam que a Requerente não utiliza o método da linha reta nem o método das quotas decrescentes, mas um outro método não tipificado, o que impunha que a Requerente dispusesse de uma autorização prévia emitida pela AT;
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ainda, alegam que a escolha por um método diferente dos referidos não permitia efetuar as depreciações às taxas utilizadas pela Requerente;
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consta, também, do RIT 1, que a Requerente não indicou os valores dos terrenos que têm de ser excluídos para efeitos de aplicação da taxa de depreciação, tendo incluído o valor dos mesmos para efeitos de depreciação;
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por último, a AT (“Autoridade Tributária”) invoca que, «para que as depreciações fossem aceites para efeitos fiscais com base no período de utilização esperada, (…) deveriam ter preenchido o Mapa Modelo 32 de acordo com as instruções de preenchimento».
Em resultado do mencionado procedimento de inspeção tributária, a AT emitiu o ato de liquidação de IRC n.º 2023..., referente ao período de tributação de 2021, do qual resultou o montante a reembolsar de Euro 3.643,77, refletindo, por conseguinte, as correções vertidas no RIT 1.
Cumpre, numa tentativa de enquadramento, referir que, na sequência do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (“PRIT”), que se junta como Documento 4, a Requerente apresentou Direito de Audição contestando as correções propostas no mesmo, que se junta como Documento 5.
No entanto, os SIT não aceitaram as justificações apresentadas pela Requerente, tendo emitido, conforme referido, o RIT 1 e a respetiva liquidação de IRC, melhor identificada supra.
Na decorrência do RIT 1, os SIT emitiram o RIT 2, no qual concluíram que «a A... no período em análise, encontra-se abrangida pelo regime da transparência fiscal (…). Não sendo esta sociedade tributada em IRC (com exceção das tributações autónoma), não haverá lugar a liquidação adicional deste imposto.».
Em consequência, afirmaram que «relativamente à matéria coletável de IRC e às retenções na fonte, no valor de € 250.724,55 e de € 13.609,11 respetivamente, apurados na esfera da sociedade, vai ser feita a respetiva imputação, com base nas percentagens de cada um dos sócios».
Ora, por não se conformar com o entendimento subjacente à emissão dos aludidos RIT 1 e RIT 2 e consequentes liquidações de IRC e IRS, por manifestamente ilegais, como adiante melhor se demonstrará, a ora Requerente e os Requerentes apresentam o presente pedido de pronúncia arbitral, por forma a que seja determinada a ilegalidade das liquidações em apreço, com as necessárias consequências legais.
Não obstante, refira-se que a Requerente recebeu já o reembolso de IRC no montante de Euro 3.643,77, conforme Documento 3.
Posição da Requerida
POR EXCEÇÃO – DA EXCEÇÃO DILATÓRIA DE INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL EM FUNÇÃO DO VALOR
Conforme se recorta dos autos os Requerentes vem suscitar junto do Tribunal Arbitral a pronúncia sobre a legalidade da liquidação oficiosa de IRC n.º 2023 ... e acerto de contas n.º 2023 ..., no montante a reembolsar de € 3.643,77 e, concomitantemente da futura liquidação de IRS correspondente à Ordem de Serviço
n.º OI2023..., elaborado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Coimbra, peticionando pela procedência do pedido de pronúncia arbitral e pela anulação das liquidações de IRC n.º 2023... e a futura liquidação de IRS.
Ora, sendo o ato sob escrutínio nos presentes autos a liquidação oficiosa de IRC n.º 2023... e acerto de contas n.º 2023..., no montante a reembolsar de € 3.643,77, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º Art.º 97.º-A, do CPPT, aplicável à arbitragem tributária ex vi Art.º 29.º, do RJAT, o valor da causa nunca poderá corresponder ao valor atribuído pelos Requerentes € 157.545,93, mas no montante de € 3.643,77.
É certo que como resulta do Art.º 32.º, n.º 7 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável por força do disposto na alínea c) do Art.º 2.º do CPPT e 29.º, alínea c) do RJAT, que “quando sejam cumulados, na mesma ação, vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles, mas cada um deles é considerado em separado para o efeito de determinar se a sentença pode ser objeto de recurso, e de que tipo” (norma em tudo simétrica à comtemplada no artigo 297.º, n.º 2 do CPC).
Todavia, no caso dos autos, o valor a considerar é o que resulta da liquidação oficiosa de IRC n.º 2023 ... e acerto de contas n.º 2023..., no montante a reembolsar de € 3.643,77, e não do alegado somatório do valor dessa liquidação e de uma futura liquidação de IRS (cfr., decisão arbitral proferida no processo n.º 422/2017-T).
Ora, não excedendo o montante referente à liquidação oficiosa de IRC n.º 2023... e acerto de contas n.º 2023..., no montante a reembolsar de € 3.643,77, ao valor correspondente ao dobro da alçada do Tribunal Central Administrativo (i.e., € 60.002), decorre do Art.º 5.º, do RJAT que apenas um tribunal arbitral singular tem competência para apreciar o mesmo, sendo o tribunal colectivo relativamente incompetente, em razão do valor, para apreciar tal pedido, o que configura uma exceção dilatória que é de conhecimento oficioso (cfr. Art.ºs 104.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 576.º n.º 2 do CPC).
Nestes termos, conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 104.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 576.º n.º 2 do CPC, com o Art.º 32.º, n.º 7 do CPTA e de acordo com o mencionado Art.º 5.º, n.º 2 do RJAT, se argui a incompetência do Tribunal colectivo em função do valor para a apreciação do pleito.
Acresce que a possibilidade de remessa oficiosa dos autos ao tribunal competente (i.e. tribunal singular) não está contemplada no âmbito da justiça arbitral, como se mencionou na decisão arbitral atinente ao processo n.º 649/2021-T.
Por outro lado, não compete a este tribunal pronunciar-se sobre o destino a dar aos autos ou sobre a via processual a ser seguida para a tutela dos direitos e interesses dos Requerentes se esta entender prosseguir na contestação aos atos impugnados.
Em particular, não cabe a este tribunal, mas sim ao tribunal arbitral singular que eventualmente venha a ser constituído, pronunciar-se, para efeitos do Art.º 24.º n.º 3 do RJAT, e atenta a matéria de facto que vier a dar por provada, sobre se este é um caso de decisão arbitral que pôs termo ao processo “sem conhecer do mérito da pretensão por facto não imputável ao sujeito passivo” para efeitos de dedução de novo pedido de pronúncia arbitral com o mesmo objeto do Pedido de Pronuncia Arbitral apresentado e que deu origem aos presentes autos (vd. Decisão arbitral proferida no Proc. n.º 649/2021-T).
POR EXCEÇÃO – DA FALTA DE OBJECTO DO PRESENTE PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL RELATIVAMENTE A FUTURA LIQUIDAÇÃO DE IRS
Conforme resulta dos autos, o Requerente veio sindicar a legalidade da Acto de liquidação de IRC n.º 2023..., e respetiva declaração de acerto de contas n.º 2023... no montante a reembolsar de € 3.643,77, o qual, teve por objeto o Relatório de Inspeção Tributária correspondente à Ordem de Serviço n.ºOI2023..., elaborado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Coimbra e concomitantemente o Futuro ato de liquidação de IRS, com origem no RIT correspondente à Ordem de Serviço n.º OI2023..., elaborado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Coimbra.
Ou seja, os Requerentes pretendem ver sindicado quer a legalidade da Acto de liquidação de IRC n.º 2023..., e respetiva declaração de acerto de contas n.º 2023 ... no montante a reembolsar de € 3.643,77, e um futuro ato de liquidação de IRS, decorrente das correções técnicas efetuadas pelos Serviços de inspeção da Requerida, pretendendo uma futura ampliação do pedido nos termos do disposto no Art.º 264.º do CPC.
Ora, recorta-se assim que os Requerentes pretendem a sindicância da legalidade de um ato de liquidação de IRS, futuro e que ainda não foi emitido.
Conforme determina a alínea b) do n.º 2 do Art.º 10 RJAT no pedido de pronúncia arbitral deverá constar a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral.
Ora, nos presentes autos apenas foi identificado como o atos de liquidação em crise o Acto de liquidação de IRC n.º 2023..., e respetiva declaração de acerto de contas n.º 2023... .
Inexistindo qualquer identificação relativamente ao alegado ato de IRS, nem consta no introito a sua identificação.
Neste desiderato, afere-se que o pedido de pronúncia arbitral carece de objeto na parte em que pretende ver apreciada a futura liquidação de IRS.
Com efeito, inexistindo liquidação a ser sindicada, apenas subjazem as correções efetuadas no âmbito do relatório de inspeção tributária, as quais não constituem os atos finais do procedimento tributário.
Por outro lado, e de acordo com o disposto no Art.º 54.º do CPPT, e Art.º 66.º da LGT em face da consagração do princípio da impugnação unitária e do carácter meramente preparatório do procedimento de inspeção, no contencioso tributário só há impugnação contenciosa do ato final do procedimento, o qual afeta imediatamente a esfera patrimonial do contribuinte.
Ato esse que não se confunde, por distinto e subsequente, com o relatório final de inspeção tributária, independentemente da circunstância de neste se apurar ou não imposto.
Neste sentido, afirma Jorge Lopes de Sousa, em anotação ao artigo 54.º do CPPT (cf. Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, I.º volume, 6.ª edição, Áreas Editora, páginas 467 e 483, respetivamente): «No contencioso tributário vigora o princípio da impugnação unitária, nos termos do qual, em regra, só há impugnação contenciosa do ato final do procedimento, que afeta imediatamente a esfera patrimonial do contribuinte, fixando a posição final da administração tributária perante este, definindo os seus direitos e deveres. Esse princípio extrai-se também do art. 66.º da LGT, em que se estabelece o regime dos atos interlocutórios do procedimento tributário […].Nos termos do art. 11.º do RCPIT, “o procedimento de inspeção tributária tem um carácter meramente preparatório ou acessório dos atos tributários ou em matéria tributária, sem prejuízo do direito de impugnação das medidas cautelares adotadas ou de quaisquer outros atos, nos termos da lei”. Em face do princípio da impugnação unitária e da natureza preparatória do procedimento de inspeção tributária, o acto que lhe põe termo não é diretamente impugnável, só o sendo o posterior ato de liquidação que incorpore o decidido naquele procedimento ou o ato de fixação da matéria tributável, nos casos em que não haja lugar a ato de liquidação (por matéria tributável ser negativa ou existir isenção).»
Igualmente neste sentido, veja-se o acórdão do STA de 2008.04.16, proferido no Proc. n.º 01085/07, no qual se pugnou que: «Em face da consagração do princípio da impugnação unitária (artigo 54.º do CPPT) e do carácter meramente preparatório do procedimento de inspeção tributária (artigo 11.º do RCPIT), no contencioso tributário só há impugnação contenciosa do ato final do procedimento, o qual afeta imediatamente a esfera patrimonial do contribuinte.»
Neste desiderato, verifica-se a falta de objeto do presente processo na parte em que pretende que o tribunal arbitral aprecie a questão relacionada com a futura liquidação de IRS decorrente da correção efetuada pelos serviços de inspeção tributária, a qual constitui uma exceção perentória, a qual se invoca para todos os efeitos legais, nos termos do disposto no n.º 3 do Art.º 577.º do CPC, na redação dada pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, aplicável ex viArt.º 1.º do CPTA, a qual dá lugar à absolvição da Requerida do pedido, nos termos e para os efeitos no disposto no n.º 3 do Art.º 576.º do CPC. SEM CONCEDER;
POR IMPUGNAÇÃO
No âmbito do presente processo vem os Requerentes vem os Requerentes suscitar junto do Tribunal Arbitral a pronúncia sobre a legalidade da liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2023 ... e acerto de contas n.º 2023..., no montante a reembolsar de € 3.643,77 e, concomitantemente da futura liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), correspondente à Ordem de Serviço n.º OI2023..., elaborado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Coimbra.
A Requerente sustenta que, tendo em consideração o rendimento nos três últimos anos, conforme tabela apresentada no artigo 39 do pedido de pronuncia arbitral, entende a mesma dever ser tributada em sede de IRC, não operando a imputação aos Requerentes em sede de IRS, considerando ainda que não se depreende, do Art.º 6.º do CIRS, que os três anos a considerar são os três períodos de tributação que antecedem o ano por referência ao qual se preenche a declaração de rendimentos modelo 22, mas sim os últimos três anos, naturalmente incluindo este em análise-
Antes de mais, cumpre referir que os valores que constam na tabela apresentada no ponto n.º 39 do pedido de pronuncia arbitral não correspondem aos valores que constam do balancete analítico de 2021.12.31 (cfr relatório de inspecção tributária que se junta para todos os efeitos legais).
No período de 2021 foram reconhecidos na conta 721000 – Prestações de serviços o montante de €70.040,48 e na conta 787800- Outros rendimentos €67.245,57.
Estes valores coincidem com os valores inscritos nas demonstrações de resultados por natureza da declaração anual de informação empresarial simplificada (IES) do período de 2021.
Relativamente aos anos que relevam para efeitos de cálculo da média, recorta-se que são utilizados os 3 anos anteriores relativamente ao período de tributação 2021, ou seja, 2018, 2019 e 2020.
Insurge-se os Requerentes contra tal entendimento entendendo que que a alínea b) do n.º 4 do Art.º 6.º do CIRC, não se depreende que os 3 anos a considerar são os 3 períodos de tributação que antecedem o ano por referência ao que se preenche a declaração de rendimentos modelo 22, mas sim os últimos 3 anos, naturalmente incluindo este em análise.
Ora, por remissão do Art. 11.º, n.º 1 da LGT, ao previsto no Código Civil, estabelece o Art. 9.º, n.º 1 do C.C. que “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.”
Assim a letra assume-se, naturalmente, como o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa, qual seja, não poder ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Também como refere Oliveira Ascensão, “a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito”.
Ora como se recorta do disposto na alínea b) do n.º 4 do Art.º 6.º do CIRC, a consignação na norma da média dos últimos 3 anos, não poderá ter outro significado, senão a que se reporta aos 3 anos anteriores relativamente ao período de tributação em análise.
Donde, sendo o enquadramento no regime de tributação de IRC referente ao ano de 2021, afere-se na data do facto gerador do imposto, ou seja, no dia 31 de Dezembro de 2021, portanto no último dia do ano de 2021, nos termos do n.º 9 do Art.º 8.º do CIRC, pelo que, o enquadramento da sociedade no período de tributação 2021, far-se-á com base na média dos últimos três anos, ou seja, 2018, 2019 e 2020.
Neste desiderato, improcedem liminarmente os argumentos invocados pelos Requerentes.
DAS MAIS-VALIAS REFERENTES AOS CRÉDITOS ADQUIRIDOS – A sociedade Requerente adquiriu dois créditos distintos, tendo assumido, as posições jurídicas litigiosas, das empresas D..., Lda e E..., no processo de insolvência, em que é insolvente F... (Proc. º n.º .../17...T8CBR) e no processo de insolvência em que é insolvente Herança de G... (P. º n.º .../17...T8CBR), respetivamente.
Relativamente ao crédito à sociedade D..., Lda, os Requerentes desistiram da instância, conforme consta no documento enviado pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Comércio de Coimbra – Juiz 3, (em anexo 1 ao Relatório de Inspeção Tributária).
Consta na cópia de sentença enviada pelo referido Tribunal que este processo de insolvência foi encerrado em 2019/06/17 “(..) em virtude da satisfação integral dos créditos sobre a insolvência, o incidente de exoneração do passivo restante (..) ”.
Com efeito, pode ler-se na página 2 do referido documento que “ A..., Lda. veio, por apenso aos autos de insolvência de F..., deduzir o presente incidente de habilitação de cessionário contra a massa insolvente e o devedor, alegando que o credor H... lhe cedeu os créditos que detinha sobre o insolvente, e pedindo a sua habilitação em substituição deste credor.
Antes de ordenada a citação dos requeridos, veio a requerente, através do requerimento subscrito por mandatário dotado de poderes especial para desistir, declarar que desiste do incidente (..) (negrito nosso).
Recorta-se assim, que os Requerentes prescindiram, em 2019.06.7, de receber a dívida reclamada nesse processo no montante de € 215.257,62, a qual tinha sido adquirida em 2019.05.15 pelo valor de € 150.000,00.
Estamos, assim à revelia do alegado pelos Requerentes, perante um perdão de dívida, relativamente ao tratamento contabilístico, na esfera do credor.
E tal facto traduziu-se num gasto, resultante do desreconhecimento do direito de receber o crédito.
Contudo, o gasto associado a esta assunção do perdão da dívida a receber deveria ter sido reconhecido em 2019, ano em que os Requerentes renunciaram, ao direito de receber o crédito.
Muito embora os créditos possam, de alguma forma estar relacionados, certo é que se trata da aquisição de dois créditos em processos de insolvência distintos, sendo que, relativamente, ao crédito adquirido ao E... (Proc. º n.º .../17...T8CBR), no ano de 2021, os Requerentes conseguiram reaver o montante de € 551.821,22, não sendo aceitável que o custo de aquisição do outro crédito esteja a afetar o ganho gerado por esta recuperação.
Tal, como estabelecido no n.º 2 do Art.º 46.º do Código do IRC “As mais-valias e as menos-valias são dadas pela diferença entre o valor de realização, líquido dos encargos que lhe sejam inerentes e o valor de aquisição(..).
Com efeito, a lei é clara, somente são admitidos como despesas os encargos relacionados com o valor de realização.
Donde, os gastos associados com a aquisição do crédito à empresa D..., Lda, (Processo .../17...T8CBR) não podem influenciar os resultados obtidos com a recuperação do crédito adquirido ao E... (Processo .../17...T8CBR).
Neste desiderato, são manifestamente infundados os argumentos aventados pelos Requerentes.
DOS GASTOS COM DEPRECIAÇÕES – Conforme se recorta dos autos, no âmbito do procedimento inspetivo os Requerentes juntaram o documento de suporte aos gastos com depreciações e amortizações - mapa Modelo 32 que deve integrar o dossier fiscal, previsto no Art.º 130.º do CIRC, e nos termos do anexo I da Portaria 51/2018 de 16 de Fevereiro.
Entre outras recomendações que devem ser observadas no preenchimento do referido mapa, no que respeita aos edifícios, os mesmos “devem ser discriminados elemento a elemento, com separação, em linhas sucessivas, do valor da construção e do valor do terreno”.
Esta instrução vai de encontro ao estabelecido no parágrafo 58 da NCRF 7 que determina que “os terrenos e edifícios são ativos separáveis e são contabilizados separadamente, mesmo quando sejam adquiridos conjuntamente.”
Conforme se afere da consulta aos documentos remetidos pelos Requerentes, balancete e mapa de depreciações (anexos 4 e 3, respetivamente, juntos ao Relatório de Inspecção Tributária), os terrenos não foram reconhecidos separadamente dos edifícios na contabilidade e foram depreciados conjuntamente.
Ora, importa desde já assentir que, não cabe à Requerente discriminar os bens adquiridos em estado de uso, ou seja, para que as depreciações sejam aceites para efeitos fiscais com base no período de utilidade esperada.
Nos termos do n.º 2 do Art.º 5º do DR 25/2009, os Requerentes deveriam ter preenchido o Mapa Modelo 32 de acordo com as instruções de preenchimento, ou seja, “Os bens adquiridos em estado de uso devem ser incluídos em último lugar, sob o título, na coluna (2), de "Bens adquiridos em estado de uso", preferencialmente desenvolvidos por grupos homogéneos”, o que não corresponde ao procedimento seguido pelos Requerentes.
Para que as depreciações sejam aceites para efeitos fiscais com base no período de utilidade esperada, nos termos do n.º 2 do Art.º 5º do DR 25/2009, deveriam ter preenchido o Mapa Modelo 32 de acordo com as instruções de preenchimento, ou seja, “Os bens adquiridos em estado de uso devem ser incluídos em último lugar, sob o título, na coluna (2), de "Bens adquiridos em estado de uso", preferencialmente desenvolvidos por grupos homogéneos”.
Deveriam igualmente, ter preenchido a coluna (7) do referido mapa “Estimativa do número de anos de utilidade esperada dos bens cujas depreciações ou amortizações são determinadas atendendo a tal estimativa, nomeadamente os adquiridos em estado de uso e as grandes reparações e beneficiações (n.ºs 2 a 5 do artigo 5.º do DR 25/2009).”
Neste conspecto são claramente espúrios os argumentos aduzidos pelos Requerentes.
II. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do CPPT, contado da formação da presunção de indeferimento da reclamação deduzida contra os atos tributários impugnados.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas, assistindo ao substituído o direito de ação, nos termos do disposto nos artigos 20.º e 65.º da LGT e 9.º e 132.º do CPPT, e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
Não foram identificadas nulidades ou outras questões que obstem ao conhecimento do mérito.
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Fundamentação de Facto
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Factos Provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
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A sociedade Requerente iniciou a sua atividade em 2000/12/19, encontrando-se registada para o exercício das atividades de compra e venda de bens imobiliários e de arrendamento;
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De acordo com a Apresentação AP..../20001220 da Conservatória do Registo Comercial de Coimbra, referente à inscrição 1, o objeto social da sociedade é “Compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim e arrendamento dos mesmos imóveis”;
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Em sede de IRC, desde 2014 até ao período de 2020 inclusive, a sociedade esteve abrangida pelo regime de transparência fiscal previsto na alínea c) do n.º 1 do Art.º 6.º do Código do IRC, por se enquadrar na tipificação de uma sociedade de simples administração de bens;
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No período em análise (2021) apresentou a declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, assinalando, no quadro 4 – Regimes de Tributação dos Rendimentos – o campo 1, sendo, por isso, tributada pelo regime geral de tributação;
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No período de 2021 declarou um volume de negócios de € 70.040,48, que resulta da do reconhecimento das rendas recebidas;
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Neste período foram ainda reconhecidos ganhos obtidos com a alienação da recuperação dos créditos adquiridos em 2018 ao E... e em 2019 à sociedade D..., Lda no montante de € 68.373,20;
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Nos períodos de 2018, 2019 e 2020 na rubrica “Outros rendimentos e ganhos” foram reconhecidos proveitos nos montantes de € 62.956,12; € 70.331,85 e
€ 72.240,48 respetivamente, que dizem respeito a rendas recebidas;
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A sociedade foi alvo de um procedimento de inspeção tributária de natureza interna e âmbito parcial (IRC) ao exercício de 2021, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., do qual resultaram correções em matéria de IRC no montante de €157.545,93;
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Foi alterado o lucro tributável e a correspondente matéria coletável de € 93.168,58 para € 250.714,51;
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A Requerida considerou que neste período a sociedade se encontra abrangida pelo regime da transparência fiscal, previsto no Art.º 6.º do Código do IRC, pelo que a matéria coletável apurada foi imputada aos sócios, integrando-se nos seus rendimentos tributáveis para efeitos do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) – Art.º 6.º do Código do IRC e artigo 20.º do Código do IRS;
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Assim em resultado do mencionado, foi emitida a liquidação de IRC n.º 2023..., referente ao período de tributação de 2021, do qual resultou o montante a reembolsar de € 3.643,77.
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Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do Código de Processo e Procedimento Tributário (“CPPT”), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos.
Não existem factos alegados com relevância para a apreciação da causa que devam considerar-se não provados.
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Questões prévias
IV.A. Quanto À ampliação do pedido
Após entrega da Resposta, as Requerentes vêm requerer a ampliação do pedido relativamente à um ato de liquidação de IRS no valor de ..., com origem no RIT correspondente à Ordem de Serviço n.º OI2023..., elaborado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Coimbra.
Este requerimento de junção resulta daquilo que a Requerente já solicitava no pedido inicial, a saber:
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Ato de liquidação de IRC n.º 2023..., e respetiva declaração de acerto de contas n.º 2023 ... no montante a reembolsar de Euro 3.643,77 (três mil, seiscentos e quarenta e três Euros e setenta e sete cêntimos), conforme Documento 3 -, o qual, por sua vez, teve por objeto o Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) correspondente à Ordem de Serviço n.º OI2023..., elaborado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Coimbra (“SIT”), doravante designado por RIT 1, conforme Documento 1.
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Futuro ato de liquidação de IRS -, com origem no RIT correspondente à Ordem de Serviço n.º OI2023..., elaborado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Coimbra, doravante designado por RIT 2, conforme Documento 2 -, o qual será junto a este processo através de uma ampliação do pedido, como adiante melhor se concretizará.
Consideram as Requerentes que esta ampliação do objeto processual salvaguarda os princípios da economia processual e de uniformidade de decisões e evita que as Requerentes tenham de recorrer, de novo, à via contenciosa. Concluem que a ampliação do objeto deve ser admitida à face do disposto no artigo 265.º do CPC, aplicável por força do artigo 20.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, conjugado com o artigo 3.º, n.º 1 deste diploma e com o artigo 104.º do CPPT e 63.º do CPTA, estando em causa idênticos fundamentos de facto e de direito.
Interessa, antes de mais, notar que a modificação do objeto do processo, na qual se inclui a sua ampliação e redução, somente é admitida em determinadas circunstâncias pois constitui um desvio ao princípio processual da estabilidade da instância, segundo o qual “[c]itado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.”, previsto no artigo 260.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
No processo arbitral, a instância inicia-se com a constituição do Tribunal, de acordo com o artigo 15.º do RJAT (e não, como é habitual nos Tribunais Estaduais, com o recebimento na secretaria da respetiva petição inicial, atualmente por transmissão eletrónica de dados, como resulta do disposto nos artigos 259.º e 144.º do CPC). Por outro lado, no Tribunal Arbitral Tributário, a notificação do dirigente máximo do Serviço da AT para apresentar Resposta (cf. artigo 17.º, n. 1 do RJAT) equivale à “citação do réu”.
Assim, a partir do momento da notificação da AT para apresentar Resposta firma-se o objeto processual arbitral – pedido e causa de pedir – por forma a que o Tribunal Arbitral não seja constantemente confrontado com alterações que dificultariam a condução da lide e comprometeriam o andamento do processo, em manifesta contradição com as finalidades da jurisdição arbitral, a cuja criação presidiu o objetivo da resolução de litígios com maior celeridade.
Nem o RJAT, nem os compêndios processais subsidiariamente aplicáveis – CPPT, CPTA ou CPC – preveem a possibilidade de modificação (ampliação) da instância nas circunstâncias pretendidas pelas Requerentes, em concreto: (i) de novos atos tributários; (ii) respeitantes a outros períodos de imposto; (iii) que não vêm substituir os atos impugnados, e que (iv) são supervenientes à instauração do processo e ao decurso do prazo de Resposta da Requerida (neste caso a ampliação foi requerida em fase de alegações finais). Conclusão não se altera pelo facto de os fundamentos dos atos serem idênticos.
Com efeito, no que se refere ao RJAT, apenas o artigo 20.º versa sobre a matéria de modificação objetiva da instância, prevendo essa possibilidade quando, na pendência do processo, os atos objeto do pedido de decisão arbitral sejam substituídos.
O CPPT não contém normas sobre a ampliação do pedido ou qualquer outra modificação da instância, pelo que, ao abrigo do artigo 29.º, n.º 1 do RJAT e do artigo 2.º, alíneas c) e e), essa regulação tem de procurar-se no CPTA e no CPC.
Quanto ao CPTA, continuando a seguir a ordem de aplicação do direito subsidiário ao RJAT, com relevância para a situação vertente, dispõe o artigo 63.º, n.º 1, sob a epígrafe “Ampliação da instância”:
“1 – Até ao encerramento da discussão em primeira instância, o objeto do processo pode ser ampliado à impugnação de atos que venham a surgir no âmbito ou na sequência do procedimento em que o ato impugnado se insere, assim como à formulação de novas pretensões que com aquela possam ser cumuladas.”
Referem MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Almedina 2005, no “Comentário ao CPTA”, de pp. 317-319, que se trata da manifestação do princípio da flexibilidade do processo, estruturante do novo regime processual, tendo em vista a tutela jurisdicional efetiva dos direitos dos interessados: “A ampliação do objeto do processo é assim configurada em termos inteiramente inovatórios, visando assegurar que o contencioso de impugnação de atos administrativos «não se circunscreva necessariamente à apreciação da validade de um único ato administrativo, mas passe a disciplinar todo o quadro da relação jurídico-administrativa em que se inscreve o ato impugnado»”.
Neste contexto, enumeram os mencionados autores cinco situações distintas em que é possível haver lugar à ampliação do pedido na pendência do processo, conforme de seguida se sintetiza:
1.ª – Novos atos administrativos proferidos no âmbito do mesmo procedimento, que se encontrem numa relação de prejudicialidade ou de dependência;
2.ª – Factos supervenientes que legitimem o demandante a ampliar o pedido de impugnação do ato com pretensões de outro tipo;
3.ª – Celebração de contrato, tendo sido impugnado um ato pré-contratual relativo à formação daquele;
4.ª – Atos administrativos novos, consequentes, que sobrevenham a outros de cuja validade ou existência dependam;
5.ª – Atos administrativos novos, cujos efeitos se oponham à utilidade pretendida no processo, i.e., que impeçam ou contradigam o efeito útil que poderia advir da sentença anulatória.
Na situação em análise trata-se da emissão de um ato tributário novo, respeitante a um imposto diferente (IRS) daquele que está em discussão no processo pendente (IRC), sendo que ambos os atos de liquidação resultam de RIT diferentes, pelo que não é enquadrável em nenhuma das situações tipificadas.
Também não se afigura que o artigo 265.º do CPC possa alicerçar a pretendida ampliação do pedido pois apenas a admite, nos termos do seu n.º 2, se esta for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo o que não é o caso, pois estamos perante dois pedidos distintos, com objetos – atos tributários – de impostos diferentes e resultantes de procedimentos decisórios distintos, sendo que a própria relação de prejudicialidade não resulta apenas do que o Requerente quer fazer crer ou alegar, uma vez que deve resultar de uma ponderação de factos e de direito, que só é possível através de uma decisão por um tribunal competente.
Em face do exposto, indefere-se a ampliação do pedido requerida pelas Requerentes.
IV.B. Quanto À Exceção dilatória de incompetência (relativa) em função do valor
Pelo que se disse o que está em causa no presente processo é o seguinte ato de liquidação:
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Ato de liquidação de IRC n.º 2023..., e respetiva declaração de acerto de contas n.º 2023 ... no montante a reembolsar de Euro 3.643,77 (três mil, seiscentos e quarenta e três Euros e setenta e sete cêntimos), conforme Documento 3 -, o qual, por sua vez, teve por objeto o Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) correspondente à Ordem de Serviço n.º OI2023..., elaborado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Coimbra (“SIT”), doravante designado por RIT 1, conforme Documento 1.
Ora, nos termos do n.º 2 do artigo 104.º do Código de Processo Civil (adiante designado apenas por CPC), aplicável pela alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, a eventual incompetência relativa do Tribunal em razão do valor é de conhecimento oficioso pelo Tribunal, apesar de a Requerida ter invocado.
Nos termos das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 5.º do RJAT, os tribunais arbitrais funcionam com árbitro singular quando: a) o valor do pedido de pronúncia não ultrapasse duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo (i.e., quando não ultrapasse € 60.000,00) e b) o sujeito passivo opte por não designar árbitro.
Nos termos da alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, o pedido de constituição de Tribunal Arbitral é feito [...] do qual deve constar: e) a indicação do valor da utilidade económica do pedido.
A Requerente optou por não designar árbitro. A Requerente indicou, inicialmente, no Pedido de Pronúncia Arbitral, o valor de € 157.545,93, como o valor da utilidade económica do pedido. Foi, por isso, constituído Tribunal Arbitral Coletivo.
Porque importante para a fundamentação da presente Decisão Arbitral, reproduzem-se, aqui, os pontos 27 a 37 da Decisão Arbitral (do CAAD), datada de 15 de Fevereiro de 2018, no processo n.º 322/2017-T: 27. Em face do contexto supra, e fruto, desde logo, da introdução (ainda recente) da arbitragem tributária no meio jurídico português, é essencial ao bom funcionamento deste mecanismo uma abordagem prudente na análise destas questões perante a eventualidade de um erro de julgamento lesivo do interesse de qualquer uma das partes[1], posteriormente sujeito às reduzidas possibilidades de impugnação e recurso das decisões arbitrais.
28. A este respeito, e não por acaso, veja-se o disposto no artigo 5.º do RJAT no qual se definem os critérios subjacentes à composição dos tribunais arbitrais, nomeadamente o seu funcionamento com árbitro singular ou com intervenção do coletivo de três árbitros.
29. [...] os tribunais singulares funcionam quando o valor do pedido de pronúncia não ultrapasse duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo (atualmente o valor da alçada é de € 30.000) e o sujeito passivo opta por não designar árbitro.
30. Por outro lado, os tribunais arbitrais funcionam com intervenção do coletivo de três árbitros quando o valor do pedido da pronúncia ultrapasse o aludido limite de duas vezes o valor da alçada ou quando o sujeito passivo opte por designar árbitro (independentemente do valor do pedido da pronúncia).
31. Neste contexto, salienta-se como variável determinante à constituição de um tribunal coletivo o valor do pedido (inicialmente definido pela Requerente), procurando, por esta via, garantir-se a adequada proteção dos direitos e garantias das partes em diferendo, ao promover a análise do tema por um coletivo, e não unicamente por um único árbitro.
32. Com efeito, tal consubstancia um dos principais mecanismos no âmbito da arbitragem tributária no sentido de garantir a necessária ponderação e discussão de qualquer decisão a proferir, particularmente relevante quando o valor do pedido assume um caráter potencialmente material na esfera dos contribuintes, nos termos definidos no referido artigo 5.º.
33. De facto, existem múltiplas referências no artigo 5.º do RJAT ao “valor do pedido”, ainda que não exista nenhuma indicação sobre a forma de o determinar.
34. Neste contexto, refira-se a alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, em que se faz referência à “indicação do valor da utilidade económica do pedido”, como um dos requisitos do pedido de constituição do tribunal arbitral a apresentar pela Requerente.
35. De facto, o RJAT transfere para a Requerente a responsabilidade pela definição inicial do valor da utilidade económica do pedido, ainda que, naturalmente, sujeita a apreciação pelo tribunal, como se verifica no caso em apreço.
36. Neste contexto, não se vislumbra qualquer outra conclusão possível que não seja que a referência do artigo 10.º não é mais do que uma definição (ainda que apenas ligeiramente) mais detalhada do conceito do valor do pedido constante do artigo 5.º.
37. A este respeito, e conforme desenvolvido em doutas decisões arbitrais (veja-se, a título de exemplo, a decisão proferida no âmbito do processo n.º 151/2013T) a legislação subsidiária em relação ao RJAT para este efeito é o CPPT em que se encontram, no artigo 97.º-A, as regras expressas para a determinação do valor da causa, potencialmente aplicáveis a todas as situações referidas no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT.
Em 21-05-2024, a Requerente vem, na sequência da invocação da exceção dilatória por parte da Requerida pronunciar-se em requerimento próprio:
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Reconhecer - A Requerente e os Requerentes apresentaram um pedido de pronúncia arbitral peticionado a anulação das liquidações de IRC n.º 2023... no montante a reembolsar de Euro 3.643,77 e da futura liquidação de IRS, acrescidas dos respetivos juros indemnizatórios.
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concluir, referindo-se à liquidação de IRC e à nova liquidação de IRS o seguinte:
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por razões de economia processual, faz todo o sentido cumular ambos os pedidos no mesmo processo, evitando a discussão em sede procedimental e/ou em sede arbitral perante um outro juiz(es).
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Porém, uma vez que, como referido, a AT não procedeu à notificação do ato de liquidação de IRS em tempo útil para efeitos de apresentação de pedido de pronúncia arbitral de IRC, no passado dia 20 de maio, os Requerentes apresentaram uma reclamação graciosa através dqual refutam o ato de liquidação de IRS emitido pela AT, que ora se junta como Documento n.º 1.
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Pelo exposto, e por uma questão de celeridade processual, e ao abrigo do disposto no número 1 do artigo 3.º do RJAT, requer-se a cumulação do pedido de anulação do ato de liquidação de IRS entretanto notificado aos Requerentes, que ora se junta como Documento n.º 2.
É o que aqui de analisa.
A Requerida não se pronunciou mais.
Veja-se,
A Requerente refere na resposta às exceções: “A Requerente e os Requerentes apresentaram um pedido de pronúncia arbitral peticionado a anulação das liquidações de IRC n.º 2023... no montante a reembolsar de Euro 3.643,77 e da futura liquidação de IRS, acrescidas dos respetivos juros indemnizatórios”.
Ou seja, no caso em apreço, a Requerente queria ver analisadas e decididas por este Tribunal Arbitral Coletivo duas situações individuais e perfeitamente delimitadas, resultantes de impostos diferentes e de Relatórios igualmente diferentes.
Tal como exigido pela alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, o pedido de constituição de Tribunal Arbitral deverá conter a indicação do valor da utilidade económica do pedido.
Porque importante para a fundamentação da presente Decisão Arbitral, reproduz-se, aqui, parte do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, datado de 13 de Março de 2014, no processo n.º 07125/13: Nos termos do artigo 296.º/1, do CPC, «[a] toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido». Dispõe o artigo 297.º/1, do CPC, que «[s]e pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício». Por seu turno, determina o artigo 32.º, n.º 1, do CPTA, «[q]uando pela ação se pretenda obter o pagamento de quantia certa, é esse o valor da causa»; nos termos do n.º 2 do preceito, «[q]uando pela ação se pretenda obter um benefício diverso do pagamento de uma quantia, o valor da causa é a quantia equivalente a esse benefício».
Em termos gerais, as regras de determinação do valor do processo, i.e., as regras de fixação do valor da causa nos processos tributários, são as constantes do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (adiante designado apenas por CPPT). Nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do referido artigo 97.º-A do CPPT, os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende; b) Quando se impugne o ato de fixação da matéria coletável, o valor contestado; [...].
Como Ensina Jorge Lopes de Sousa[16], nos processos de arbitragem tributária não há alçada, pelo que, a fixação do valor da causa apenas releva para efeitos de custas e para determinar se o processo é julgado por Tribunal Arbitral singular ou coletivo[17]. O valor da causa deve ser indicado pelo sujeito passivo no pedido de constituição do Tribunal Arbitral, correspondendo à utilidade económica do pedido. Assim, quando são impugnados atos de liquidação [...], o valor da causa é o da importância cuja anulação se pretende, que corresponde à utilidade económica do pedido [...]. Mas, a viabilidade prática de aplicação de uma norma a determinada situação jurídica, constitui, naturalmente, um requisito indispensável da sua utilização, pois a impossibilidade natural é um obstáculo intransponível a tudo, inclusivamente à aplicação de qualquer norma. Por isso, a referida alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º tem de ser interpretada restritivamente, com a limitação natural e forçosa de que o valor dos processos arbitrais será a utilidade económica do pedido, quando for possível determinar a utilidade. Há litígios [...] que não têm utilidade económica determinável, pois a sua definição depende de fatores que não são conhecidos no momento da apresentação do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, nem mesmo o serão até ao termo do processo. Semelhante inviabilidade de determinação da utilidade económica do litigio ocorre nos pedidos de declaração de ilegalidade de atos de fixação de matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, designadamente por quando a matéria tributável for negativa (prejuízos fiscais), pois os prejuízos apurados poderão mesmo nunca vir a ser relevantes para a prática de qualquer ato de liquidação, já que essa relevância dependerá de em algum ou alguns dos períodos de tributação em que for legalmente admissível fazer o reporte dos prejuízos [...]. Nestas situações em que a utilidade do pedido não é determinável, não contendo o RJAT qualquer critério de determinação do valor dos litígios, haverá que atender à legislação subsidiária, designadamente o artigo 97.º-A do CPPT, que contém regras expressas para a determinação do valor da causa, potencialmente aplicável a todas as situações referidas no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT. Nas alíneas b) e [...] estabelece-se que o valor atendível quando se impugne o ato de fixação da matéria coletável é o valor contestado.
De facto, como amplamente referido acima, a Requerente considerou (querendo fazer valer essa situação jurídica), duas situações jurídicas, mas apenas uma deles tinha um valor certo – o de 3.643,77 EUROS, fazendo depender o restante valor de uma liquidação de um imposto diferente e na sequência de um procedimento inspetivo diferente, que já foi julgada por este Tribunal como ampliação do pedido não admitida.
Considerando o valor de 3.643,77 euros, entende este Tribunal Arbitral Coletivo que deverá ser este valor considerado para efeitos de valor da causa, pelo que julga procedente a exceção de incompetência em função do valor, sendo competente para julgar este processo um Tribunal Arbitral Singular.
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Decisão
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
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Julgar a exceção de incompetência em função do valor procedente, com a consequente absolvição da instância da Requerida;
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Condenar a Requerente ao pagamento das custas arbitrais.
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Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 157.545,93, indicado pelo Requerente, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
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Custas
Custas no montante de 3.672,00 € (três mil seiscentos e setenta e dois euros), a suportar integralmente pela Requerente, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.
Lisboa, 8 de agosto de 2024.
Os árbitros,
Guilherme W. d'Oliveira Martins
(Presidente)
Rosa Branca Areias
Jorge Bacelar Gouveia