Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 46/2024-T
Data da decisão: 2024-09-09   Outros 
Valor do pedido: € 349.219,82
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário. Competência dos Tribunais arbitrais. Ineptidão da petição inicial.
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SUMÁRIO:

  1. A Contribuição de Serviço Rodoviário é um imposto, pelo que um pedido de anulação de liquidações deste tributo encontra-se abrangido não apenas no âmbito da competência material dos tribunais arbitrais, definida pelo artigo 2.º do RJAT, como também no âmbito da vinculação prévia da Autoridade Tributária, estabelecida pela Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março.
  2. Os tribunais arbitrais são incompetentes para apreciar autonomamente atos de repercussão de impostos.
  3. No caso da CSR, por não existir uma repercussão legal, não existe um elo formal entre a transação, a repercussão e a liquidação, não sendo possível identificar os atos de liquidação correspondentes às transações de venda de combustível.
  4. Assim sendo, não se identificando na petição inicial os atos de liquidação que se impugnam, a mesma é inepta por insuficiente identificação do objeto do pedido.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I - RELATÓRIO

A... LDA., pessoa coletiva nº NIPC n.º..., com sede na Rua ..., N.º ..., ...-... ..., apresentou, em 09.01.2024, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º- A, n.º 2, e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista à declaração da ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário adquirido pela Requerente no período compreendido entre 13 de junho de 2019 a 31 de dezembro de 2022, bem como das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis.

É Requerida no pedido a Autoridade Tributária.

Por decisão do Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa foram designados os árbitros Fernando Araújo (árbitro presidente), Nina Aguiar (árbitro adjunto relator) e Jesuíno Alcântara Martins (árbitro adjunto), para integrarem o coletivo arbitral. Nestas circunstâncias, e em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 e n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 18.03.2024.

Por despacho do tribunal de 18.03.24, a Requerente foi notificada para se pronunciar sobre o requerimento apresentado pela Requerida em 25.01.2024, em momento anterior à constituição do Tribunal arbitral.

O requerimento apresentado pela Requerida em 25.01.2024 tinha o seguinte teor:

“A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT), notificada em 15/01/2024 do pedido de constituição de tribunal arbitral no processo supramencionado, apresentado por A... LDA., NIPC ..., e outra, vem informar, que analisado o pedido, não detetou a identificação de qualquer ato tributário. Identificação que, aliás, também não consta da plataforma do Centro de Arbitragem Tributária. Tendo em conta, que:

a) A competência dos tribunais arbitrais, que funcionam no CAAD, abrange exclusivamente a apreciação direta da legalidade de ato(s) de liquidação ou de atos de segundo ou terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de ato(s) daquele tipo, conforme decorre do n.º 1, do artigo 2.º do RJAT e como se depreende das referências expressas que se fazem na alínea a), do nº 1, do artigo 10.º do RJAT ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT;

b) Conforme dispõe expressamente a alínea b), do nº 2, do artigo 10º do RJAT, do requerimento em que é formulado o pedido de constituição de tribunal arbitral deve constar a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral; c) Sem a identificação, por parte dos interessados, do ato ou atos tributários, cuja ilegalidade é invocada, não pode o dirigente máximo da AT exercer a faculdade prevista no artigo 13.º do RJAT. Solicita-se que seja(m) identificado(s) o(s) ato(s) de liquidação cuja legalidade o requerente pretende ver sindicada, entendendo-se que o termo inicial do prazo para o exercício da faculdade prevista no artigo 13º do RJAT só ocorre após a notificação, à Autoridade Tributária e Aduaneira, da identificação, em concreto, do(s) ato(s) de liquidação cuja ilegalidade é suscitada.

Sobre este requerimento recaiu, ainda em 25.01.2024, despacho do Senhor Presidente do CAAD, com o seguinte teor:

“Exmo(a) Senhor(a) Requerida,

Com referência ao Processo em epígrafe e na sequência da comunicação da Autoridade Tributária envie-se a mesma ao Tribunal Arbitral a constituir, por ser esse o órgão competente para a sua apreciação.

Notifique-se.

Com os melhores cumprimentos,

O Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD)

(...)”

Em resposta à notificação do Tribunal de 18.03.2024, a Requerente pronunciou-se, em 28.03.2024, nos seguintes termos:

1º No requerimento apresentado pela requerida em 25.01.2024, vem esta alegar que da análise do pedido para constituição do Tribunal arbitral apresentado pela Requerente não detetou a identificação de qualquer ato tributário, nem tal consta da plataforma do Centro de Arbitragem Tributária

2º com o devido respeito, não assisto aqui razão à Requerida.

Porquanto

3º No âmbito da relação jurídico tributária da Contribuição sobre o Serviço Rodoviário (CR), emergem necessariamente, duas tipologias distintas de atos tributários, a saber,

4º Os atos de liquidação da CSR, praticados pela AT com base nas DIC’s apresentadas pelos sujeitos passivos primários da relação jurídico-tributária subjacente, na sequência dos quais estes entregam ao estado o imposto aí apurado, são notificados apenas aos respetivos sujeitos passivos, de modo que o ónus da sua identificação recai necessariamente sobre a Requerida.

5º Os atos de repercussão legal da CSR assim liquidados corporizados nas faturas emitidas pelas entidades repercutentes, fornecedores de combustível, aos consumidores de combustível, aqui requerente, e sobre a qual recaiu o encargo económico da CSR, pelo que a esta que caberá o ónus da sua identificação.

6º Com efeito, é lógico que, no âmbito de uma relação de repercussão legal de tributos, os repercutidos apenas tenham o ónus de identificar e de comprovar os únicos atos tributários de que são destinatários no âmbito da relação jurídico tributária, ou seja os atos de repercussão legal que resultam das faturas ou documentos equivalentes que lhes são emitidos pelos respetivos sujeitos repercutentes.

7º Por conseguinte, caberá à Requerida e não à Requerente, caso considere necessário, proceder à concreta e específica identificação dos atos de liquidação da CSR objeto de repercussão, constituindo ónus da Requerente apenas indicar os elementos que disponha para o efeito.

8º O que de resto a requerente cumpriu, tendo indicado os sujeitos repercutentes das liquidações de CSR, identificando o período temporal, a que dizem respeito tais atos tributários, ou seja, entre 13 junho 2019 e 31 dezembro 2022, e procedeu à junção, com a petição inicial, das faturas que corporizam os referidos atos de repercussão, sob os docs. nº 1 a 12.

9º Acresce ainda que a Requerente, igualmente, junta com a PI, sob o doc. nº 13, o pedido de revisão oficiosa, donde resulta, tendo em conta o período temporal compreendido entre 13 junho 2019 e 31 dezembro 2022, a identificação mensal do número de litros de combustível adquiridos às entidades repercutente das liquidações de CSR, e a identificação das faturas respetivas, e que juntou nessa sede sobre os docs. nº 1 a 12.

10º Logo, torna-se evidente que, a Requerente identificou os atos de liquidação impugnados, não se vislumbrando motivo para a realização de diligências complementares atinentes à identificação dos atos que constituem objeto dos presentes autos.

11º pelo que se requer a Vossa excelência que se pronuncia pela improcedência do solicitado pela Requerida, em 20 5/1/2024 e em consequência, notifique o dirigente máximo do serviço da administração tributária para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta ao pedido de Constituição de tribunal arbitral.

(...)”

Por despacho do tribunal de 08.04.24, nos termos do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, a AT foi notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta, e, no mesmo prazo, remeter ao Tribunal cópia do processo administrativo, o que aquela fez em 26.04.2024.

Na sua resposta, a Autoridade Tributária suscitou as exceções de incompetência material do tribunal, de ilegitimidade processual e substantiva da Requerente e da caducidade do direito de ação, bem como a questão da ineptidão da petição inicial, por falta de objeto do pedido e por contradição entre o pedido e a causa de pedir.

Por despacho de 26.04.2024, o Tribunal Arbitral notificou a Requerente para se pronunciar sobre a matéria de exceção suscitada pela Requerida na sua resposta, o que aquela fez em 14.05.2024.

Por despacho de 15.05.2024, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, e fixou o prazo de dez dias para as Partes apresentarem alegações, o que a Requerente fez em 27.05.2024 e a AT em 05.06.2024.

 

II - SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

A Autoridade Tributária suscitou as exceções de incompetência material do tribunal, de ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, e da caducidade do direito de ação, e ainda a questão da ineptidão da petição inicial por falta de objeto do pedido e contradição entre o pedido e a causa de pedir, as quais serão apreciadas adiante.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e encontram-se devidamente representadas.

À parte a invocada ineptidão da petição inicial que será apreciada adiante, o processo não padece de vícios que o invalidem e não existem incidentes que importe decidir.

A cumulação de pedidos é admissível ao abrigo do art.º 104.º, n.º 1 al. b) CPPT, aplicável ao processo tributário por força da al. a) do nº 1 do art.º 29.º do RJAT, uma vez que a apreciação dos pedidos cumulados tem por base as mesmas circunstâncias de facto, e os mesmos são suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo.

 

III – POSIÇÃO DAS PARTES

  1. Da Requerente
  • Durante o período compreendido entre 13 de junho de 2019 a 31 de dezembro de 2022, a Requerente adquiriu 3.094.012,32 litros de gasóleo rodoviário;
  • Destas aquisições tem faturas emitidas pelas vendedoras que são do conhecimento oficioso da AT;
  • Sobre o combustível adquirido foi paga pelas empresas fornecedoras Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), que pode ter sido repercutida no preço pago pela Requerente, como seria atestado por declarações emitidas pelas sociedades fornecedoras. Através dessa repercussão, a Requerente teria suportado CSR no montante de 343,435,37 euros, facto que seria do conhecimento oficioso da DGAIEC;
  • Sendo a CSR um imposto ilegal, por violação da Diretiva 2008/118/CE, de 16 de Dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, e que revoga a Diretiva 92/12/CEE as liquidações de CSR;
  • Por conseguinte, as liquidações de CSR seriam ilegais e deveriam ser anuladas, e consequentemente deveria o imposto ser reembolsado à Requerente.

 

  1. Da Requerida

Em síntese, a Requerida alega o seguinte, na sua resposta:

  1. Por exceção
  • Sendo a CSR uma contribuição, e não um imposto, as matérias que lhe digam respeito encontram-se excluídas da arbitragem tributária, por ausência de enquadramento legal;
  • Além disso, o tribunal arbitral é também incompetente porque, como resulta do teor do pedido, a Requerente suscita junto desta instância arbitral a legalidade do regime da CSR, no seu todo. Pretendendo a Requerente, em rigor, a não aplicação de diplomas legislativos aprovados por Lei da Assembleia da República, decorrentes do exercício da função legislativa, visa, com a presente ação, suspender a eficácia de atos legislativos. Sucede que, conforme decorre do RJAT, a instância arbitral constitui um contencioso de mera anulação. E este contencioso não consente nem o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-legislativa do Estado, nem a pronúncia sobre a restituição de valores/montantes, por conta da declaração de ilegalidade ou anulação de atos de liquidação (o que só pode ser determinado em sede de execução da decisão);
  • Ainda que se considerasse a competência do tribunal arbitral para a apreciação da ilegalidade dos atos de liquidação de ISP/CSR (que a Requerente não consegue identificar), nunca poderia o tribunal arbitral pronunciar-se sobre atos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, e que, para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto;
  • Por outro lado, apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago, de acordo com o regime previsto no CIEC (artigos 15.º a 20.º); os múltiplos adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do ato tributário e consequente pedido de reembolso do imposto;
  • Assim, não se encontram reunidos os pressupostos para a revisão dos atos tributários, porquanto tal direito não se encontra incluído na esfera jurídica do repercutido económico ou de facto, não podendo a entidade em que alegadamente teria sido repercutido o imposto apresentar pedido de revisão ou de reembolso por erro. Ou seja, não sendo a Requerente sujeito passivo nos termos e para o efeito do disposto no artigo 4.º do CIEC, não tem legitimidade nem para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral;
  • A requerente também não tem legitimidade atendendo ao disposto no art.º 18.º, n.º 4 al. a) da LGT, pois não é sujeito passivo quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sendo que no caso concreto não está em causa uma alegada situação de repercussão legal, mas, eventualmente, de mera repercussão económica;
  • Contrariamente ao pretendido pela Requerente, as faturas apresentadas não corporizam atos de repercussão de CSR, nem atestam que tal tributo foi suportado pela Requerente enquanto consumidor final. De onde decorre a falta de legitimidade da Requerente;
  • As transações que ocorrem após a introdução no consumo, independentemente do número de intervenientes na cadeia de abastecimento/comercialização, não têm por base um ato de liquidação específico, não podendo assim ser identificado, em concreto, o ato tributário que lhe está subjacente;
  • A Requerente, enquanto sociedade comercial, desenvolve atividade com fins lucrativos, relacionada com o transportes nacional e internacional e a prestação de serviços a terceiros no âmbito da logística, planificação controlo, coordenação e direção, das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição receção e circulação de bens ou mercadorias, bem como aluguer de veículos automóveis ligeiros sem condutor, aluguer de veículos pesados de mercadorias ou mistos, reboques ou semirreboques destinados ao transporte de mercadorias sem conduto e ainda armazenagem frigorifica e armazenagem não frigorífica, o que implica que repassa, necessariamente, no preço dos serviços prestados, os gastos em que incorre, nomeadamente, com a aquisição de combustíveis, pelo que as entidades potencialmente lesadas com o encargo da CSR, seriam os consumidores finais de tais serviços, e não a Requerente.
  • Não se concretizando, demonstrando, e muito menos provando que a Requerente pagou os valores referentes à CSR, carece igualmente, a mesma, de interesse em agir;
  • Ocorre ainda ineptidão da petição inicial, porquanto a Requerente não identifica os atos tributários impugnados;
  • Por sua vez, a falta de identificação dos atos de liquidação em discussão impede a aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa da liquidação formulado pela Requerente, o que importa a caducidade do direito de ação.
  • Finalmente, a Requerente não faz prova de que pagou a CSR que reclama ter pago.

 

  1. Por impugnação
  • A Requerente não logra fazer prova de que pagou e suportou integralmente o encargo do pagamento da CSR por repercussão, nem se pode presumir a existência de repercussão quando estamos perante uma repercussão que não é legal, mas meramente económica ou de facto;

 

  1. Da Requerente, quanto à matéria de exceção

No requerimento em que se pronuncia sobre a matéria de exceção suscitada, a Requerente aduz contra a procedência das exceções invocadas os seguintes argumentos:

  • No caso da CSR, o legislador determinou que o encargo económico do imposto devesse ser suportado pelos respetivos utilizadores da rede rodoviária nacional, tal como esta utilização é verificada pelo consumo dos combustíveis, o que induz que a CSR liquidada até deve ser legalmente repercutida até atingir a entidade nomeada pelo legislador como devendo suportar, em termos finais, o encargo económico deste tributo: o apontado consumidor de combustível.
  • Assim, a relação de repercussão legal da CSR esgota-se na venda realizada por uma entidade cuja atividade seja a comercialização de combustíveis a qualquer entidade cuja atividade pressuponha o efetivo consumo do combustível adquirido.
  • Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União europeia que perante a desconformidade de determinado tributo com o direito da União, o respetivo Estado membro deve restituir os impostos cobrados em violação do direito comunitário fazendo-o diretamente ao repercutido, o que se verificará precisamente no caso da CSR; sendo por isso a requerente parte legítima no processo.
  • Quanto à invocada ineptidão da petição inicial por falta de indicação do objeto do pedido, no âmbito de uma relação de repercussão legal de tributos, os repercutidos apenas têm o ónus de identificar e de comprovar os únicos atos tributários de que são destinatários, ou seja os atos da repercussão legal corporizados nas faturas ou documentos equivalentes que lhes são dirigidos pelos respetivos sujeitos repercutentes, como vem afirmando a jurisprudência.
  • No âmbito de uma relação jurídica tributária sujeita a repercussão legal, como a CSR, os atos de repercussão legal consubstanciam atos tributários autonomamente sindicáveis por parte dos respetivos repercutidos, no caso a requerente, cabendo-lhes ao abrigo do princípio geral da repartição do ónus da prova consagrado na LGT, o ónus de identificação e da comprovação dos pertinentes atos tributários da repercussão que pretendem contestar, mas já não ónus de identificação e de comprovação dos antecedentes atos de liquidação repercutidos, o que caberá à própria AT;
  • Quanto à invocada caducidade do direito de ação, nas situações, como a presente, em que a entidade requerente no âmbito de um pedido de pronúncia arbitral suporte o imposto por via do mecanismo da repercussão legal e em que, nesse contexto, não tenha na sua posse os atos de liquidação que constituem o objeto da respetiva repercussão, caberá à AT, através dos meios ao seu dispor, e ao abrigo dos poderes de indagação, averiguar a correlação entre os respetivos atos de repercussão legal, no caso identificados pela Requerente, e os atos de liquidação de CSR que os antecedem e que estão na sua origem, não podendo a situação processual da Requerente sair prejudicada pelo referido facto de não de lhe ser possível apresentar uma prova documental específica a que não pode ter acesso;

IV – QUESTÕES A DECIDIR

Antes de iniciar a apreciação das questões de fundo, será necessário apreciar as questões de natureza excetiva suscitadas pela Autoridade Tributária, nomeadamente:

  1. A incompetência material do Tribunal Arbitral;
  2. A ineptidão da petição inicial;
  3. A ilegitimidade processual ativa da Requerente;
  4. A ilegitimidade substantiva da Requerente;
  5. A caducidade do direito de ação.

Não se verificando nenhuma exceção dilatória que obste à apreciação do mérito da causa, deverão ser apreciadas as seguintes questões relativas ao mesmo:

  1. Se a repercussão à Requerente da CSR liquidada às fornecedoras de combustível é ilegal e deve ser anulada;
  2. Se se pode considerar provado que a CSR liquidada às fornecedoras foi repercutida no preço do combustível comprado pela Requerente;
  3. Se, por força da anulação das liquidações, a Requerente tem direito ao reembolso, pelo Estado, das quantias repercutidas.

 

V – FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO

  1. Factos considerados provados

O Tribunal Arbitral dá como provados os seguintes factos:

  1. Durante o período compreendido entre 13 de junho de 2019 a 31 de dezembro de 2022, a Requerente comprou 3.094.012,32 litros de gasóleo rodoviário às sociedades: B..., S. A., C... S. A., D... S. A. e E..., GMBH;
  2. A Requerente tem como objeto social o transporte nacional e internacional de mercadorias por conta de outrem, bem como a prestação de serviços a terceiros no âmbito da logística, planificação, controlo, coordenação e direção, das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição receção e circulação de bens e mercadorias (Ponto 15 do pedido de revisão oficiosa);
  3. Em 14.06.2023, a Requerente apresentou, junto do Diretor da Alfândega de Alverca do Ribatejo, um pedido de promoção de revisão oficiosa, contra as liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira, refletidas nas faturas emitidas pelas sociedades vendedoras do combustível adquirido pela Requerente no período referido;
  4. A pedido da Requerente, a sociedade C..., S.A. emitiu uma declaração com o seguinte teor:

“C...S. A., pessoa coletiva nº ..., com sede na ..., nº ..., ...-... Lisboa, pela presente d clara, para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do estado, por referência ao combustível rodoviário fornecido à transportadora A..., limitada, com o número de identificação da pessoa coletiva ..., nos anos de 2019 a 2022, foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa.”.

  1. A pedido da Requerente, a sociedade B... S. A., emitiu uma declaração com o seguinte teor:

“A sociedade B... S. A., com o número único do registo na conservatória do registo comercial e de pessoa coletiva ..., concede em ..., ..., ..., ...-... Porto Salvo (“declarante”), pela presente declara que repercutiu nos montantes faturados, o montante relativo à Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), nas vendas de combustível que efetuou à empresa A... Lda, pessoa coletiva número ..., com sede na Rua ..., nº ..., ...-... Loures. Mais declara que os referidos montantes repercutidos integram as liquidações de ISP da Declarante, efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.”

  1. A pedido da Requerente, a sociedade E... GMBH, emitiu uma declaração com o seguinte teor:

“E... GMBH, empresa com sede em..., ..., ..., Alemanha, com o número de identificação fiscal na Alemanha DE... e registo de IVA português número ..., representada pelos seus administradores com capacidade de insuficiência de poderes de representação para este hiato, declara que, relativamente às vendas de combustível em Portugal, repercutiu nos seus clientes um valor correspondente a contribuição de serviço rodoviário (CSR) suportada pela E... GMBH a quando da aquisição do referido combustível a B... SA”.

  1. A pedido da Requerente, a sociedade B... S.A, emitiu uma declaração com o seguinte teor:

B... S.A, com o número único de registo na conservatória do registo comercial e de pessoa coletiva ..., com sede em..., ...- piso ...- ...-... Porto Salvo (“declarante”) declara que repercutiu nas vendas de combustível efetuadas a empresa E..., com sede em ..., ..., ..., Alemanha, com o número de identificação fiscal na Alemanha DE... e registo de IVA português número ..., a totalidade do valor correspondente a Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) entregue ao estado de acordo com as liquidações de ISP da declarante, efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.”

  1. À data da apresentação do pedido arbitral, a Requerente não havia ainda sido notificada de decisão sobre o procedimento de revisão oficiosa, tendo passado o prazo após o qual se presume o respetivo indeferimento tácito.
  2. Em 09.01.2024 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

  1. Factos considerados não provados

Analisada a prova produzida nos autos, com relevo para a decisão da causa, não se consideram provados os seguintes factos:

  1. Que as sociedades B..., S. A., C... S. A., D... S. A. e E..., GMBH entregaram ao Estado, enquanto sujeitos passivos da respetiva relação jurídico-tributária, qualquer montante a título de Contribuição de Serviço Rodoviário.
  2. Que nas compras de combustível efetuadas pela Requerente, foi repercutida CSR correspondente a determinadas liquidações concretamente identificadas.

 

O Tribunal não dá como provados ou não provados quaisquer outros factos com relevância para o julgamento da causa.

A matéria de facto dada como provada assenta nos documentos juntos pela Requerente bem como no processo administrativo, de que foi junta cópia pela AT, os quais, analisados de forma crítica, constituem a base da convicção do Tribunal quanto à realidade dos factos descrita supra.

 

VI – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

  1. Questões prévias

O conhecimento das exceções dilatórias deve obedecer à ordem estabelecida nos arts. 595.º, n.º 1, al.ª a), e 278.º, ambos do CPC, aplicável ao processo arbitral tributário por força do artigo 29º, nº 1 al. e).

Deste modo, deve conhecer-se, em primeiro lugar, a exceção de incompetência material do Tribunal.

O conhecimento da matéria de ineptidão da petição inicial deve preceder o das restantes exceções (Acórdão TRC de 21.11.2023, proc. 158/19.5T8LRA.C2. Rel: Arlindo Oliveira).

 

  1. Questão da competência material do tribunal arbitral

A Requerida suscita a exceção de incompetência material do tribunal arbitral, alegando que a CSR, sendo uma contribuição financeira e não um imposto, encontra-se excluída da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março.

A competência material dos Tribunais Arbitrais é delimitada pelo artigo 2º do RJAT nos seguintes termos:

Artigo 2.º

Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável

1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

 

Sendo esta a norma, e a única norma, que define a competência material dos tribunais arbitrais tributários, é evidente que a competência material dos tribunais arbitrais abrange todas as espécies de tributos, sendo assim irrelevante, para efeitos de competência material do Tribunal, a qualificação da Contribuição de Serviço Rodoviário dentro das espécies de tributos.

A Autoridade Tributária cita, porém, vários acórdãos arbitrais (processos 31/2023-T, 508/2023-T e 520/2023-T), em que se conclui que, estando em causa um tributo que o legislador designou como contribuição financeira, este não é abrangido pelo âmbito de vinculação da Autoridade Tributária à arbitragem tributária.

Os referidos acórdãos concluem que, faltando a vinculação da Autoridade Tributária, se está perante incompetência relativa.

Com efeito, o artigo 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março (“portaria de vinculação”) veio estabelecer a prévia vinculação da AT do seguinte modo:

Artigo 2.º

Objeto da vinculação

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.

Em vez do termo “tributos”, abrangente de todas as espécies tributárias, a “portaria de vinculação” usa o termo “impostos”.

Portanto, apesar de a Autoridade Tributária, na sua resposta, alegar a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, cremos que se pretenderia antes alegar a incompetência relativa do Tribunal por falta de vinculação da AT ao processo arbitral na matéria em causa.

Desta forma, a qualificação da Contribuição de Serviço Rodoviário como imposto ou como contribuição financeira devém, efetivamente, uma questão decisiva para aferir da verificação de um pressuposto processual fundamental.

A qualificação da Contribuição de Serviço Rodoviário tem vindo a ser debatida pelos tribunais arbitrais e a jurisprudência tem-se dividido.

As decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 31/2023-T, 508/2023-T e 520/2023-T consideraram a CSR como uma contribuição financeira.

No sentido oposto pronunciaram-se as decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022‑T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T, que qualificaram a CSR como imposto.

Por concordarmos com o pensamento exposto acerca da questão na decisão proferida no processo arbitral nº 304/22, reproduzimos aqui o que aí se disse sobre esta matéria:

Desde a revisão constitucional de 1997, que deu à alínea i) do nº 1 do art.º 165.º da CRP a sua atual redação, não pode restar mais qualquer dúvida de que o sistema tributário português comporta três categorias de tributos: os impostos, as taxas e as “demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (acórdãos TC n.º 365/2008, de 02.07.2008; e n.º 539/2015, de 21.10.2015, proc. 27/15).

Quanto à taxa, ela consiste numa prestação pecuniária, definitiva, sem caráter sancionatório, que forma o objeto de uma obrigação ex lege, e que se destina ao financiamento dos gastos públicos; esta espécie de tributo distingue-se do imposto pelo caráter bilateral, ou sinalagmático da relação jurídica da qual é o objeto, na medida em que o sujeito passivo da taxa tem um direito especificamente ligado ao seu pagamento, direito esse a que corresponde um dever jurídico por parte do sujeito ativo, sendo que um e outro se contêm na estrutura da relação jurídica tributária (vd. acórdãos do TC nº 20/2003, de 15.01.2003, proc. 327/02; n.º 461/87, de 16.12.1987, proc. 176/87; n.º 76/88, de 07/04/1988, proc. 2/87; n.º 67/90, de 14.03.1990, proc. 89/89; 297/2018, de 07/06/2018, proc. 1330/17, entre muitos outros).

Quanto ao imposto, ele consiste numa prestação pecuniária, que forma o objeto ou conteúdo material de uma obrigação ex lege, com caráter definitivo, mas sem caráter sancionatório, e que se destina “à satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas” (acórdãos TC n.º 539/2015, de 21.10.2015, proc. 27/15; nº 437/2021, de 22.06.2021, proc. 82/21). O imposto caracteriza-se ainda por se inserir numa relação tributária unilateral, não sinalagmática, o que significa que não existe, pela  parte do sujeito passivo, nenhum direito específico correlacionado com a obrigação tributária, nem da parte do sujeito ativo, nenhuma obrigação específica para com o primeiro, que tenha o caráter de contrapartida pelo pagamento do imposto (esta conceção do imposto encontra-se plenamente sancionada por uma vasta e consistente jurisprudência do Tribunal Constitucional, podendo citar-se os acórdãos  nº 582/94, de 26.10.1994, proc. 596/93; n.º 583/94, de 26.10.1994, proc. 536/93; n.º 584/94, de 26.10.1994, proc. 540/93; n.º 1140/96, de 06.11.1996, proc. 569/96; n.º 274/2004, de 20.04.2004, proc. 295/03, entre muitos outros).

Dada a estrutura unilateral, não sinalagmática, da relação tributária que tem como objeto o imposto, a definição do respetivo quantum baseia-se na capacidade contributiva dos sujeitos passivos (acórdão TC n.º 437/2021, de 22.06.2021, proc. 82/21); já no caso da taxa, dada a estrutura bilateral ou sinalagmática da relação jurídica tributária da qual aquela é objeto, a definição do respetivo quantum baseia-se numa aproximação ou estimativa do valor da contraprestação (princípio da equivalência jurídica) (acórdão TC n.º 301/2021, de 13.05.2021, proc. 181/20), podendo esse valor ser definido pelo custo que a prestação tem para o sujeito ativo, pelo valor do benefício que o sujeito passivo obtém, ou ainda por outras grandezas sempre estreitamente correlacionadas com a prestação pública individualizada que integra o sinalagma.

Quanto à “contribuição financeira” (designemo-la assim, ficando entendido que nos referimos às “demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas” referidas na al. i) do nº 1 do art.º 165.º da CRP, e salvaguardando que não se encontra doutrinal ou jurisprudencialmente encerrada a questão da designação, única ou plural, desta categoria de tributos bem como das espécies que ela possa comportar), o Tribunal Constitucional tem optado por não adotar uma definição fechada, recorrendo antes a vários contributos que vão sendo desenvolvidos pela doutrina.

No acórdão nº 7/2019 (de 13.05.2021, proc. 301/21, relator Almeida Ribeiro), o Tribunal Constitucional diz:

“Segundo Sérgio Vasques estes tributos situam-se no terreno intermédio que vai das taxas aos impostos, incluindo-se nesta categoria «não apenas as taxas de regulação económica, mas toda a parafiscalidade associativa, as contribuições para a segurança social, as contribuições especiais de melhoria, assim como o universo crescente dos tributos ambientais, todos eles com estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários» (...).”

No mesmo aresto o tribunal cita também Suzana Tavares da Silva, nos seguintes termos:

“E de acordo com Suzana Tavares da Silva estes tributos podem «agrupar-se em três tipos fundamentais: 1) como instrumento de financiamento de novos serviços de interesse geral que ocasionam um benefício concreto imputável a alguns destinatários diferenciados (ex. prevenção de riscos naturais) - contribuições especiais financeiras; 2) como instrumento de financiamento de novas entidades administrativas cuja atividade beneficia um grupo homogéneo de destinatários (ex. taxas de financiamento das entidades reguladoras) — contribuições especiais parafiscais; e 3) como instrumentos de orientação de comportamentos (finalidades extrafiscais) — contribuições orientadoras de comportamentos ou (...) contribuições especiais extrafiscais» (...)”

Finalmente, no mesmo aresto, o Tribunal cita a sentença do tribunal a quo, nos seguintes termos:

 “(...) [E]sta linha divisória estabelece-se entre a existência ou não de um nexo de bilateralidade /causalidade entre o Estado e o sujeito passivo do tributo, ou seja, apenas se podem qualificar como contribuições financeiras a favor de entidades públicas os tributos que se possam reconduzir a uma prestação pecuniária coativa destinada a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos, acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública — mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas - sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários.”

Não há, pois, dúvida de que a “contribuição financeira” é hoje entendida, consensualmente, como uma prestação pecuniária coativa definitiva e não sancionatória (um tributo, portanto) que forma o objeto de uma relação jurídica tributária com uma estrutura de “bilateralidade ou comutatividade coletiva ou grupal”, na medida em que a obrigação tributária impende individualmente sobre os membros de um grupo de sujeitos passivos, mas tendo essa obrigação uma contrapartida, a qual consiste numa prestação, de caráter público, a que está obrigado o sujeito ativo, não individualizada, mas coletiva, na medida em que a atividade é prestada de forma difusa ao grupo de sujeitos passivos.

Sendo, assim, a comutatividade coletiva o traço distintivo que caracteriza a contribuição financeira, a dificuldade está em concretizar em que se traduz essa comutatividade coletiva que não assenta, como na taxa, numa contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo.

O Supremo Tribunal Administrativo já por várias vezes analisou a questão e, sem em nenhum momento se afastar da jurisprudência do Tribunal Constitucional, tem caraterizado o “nexo de bilateralidade ou comutatividade coletiva” nos seguintes termos (STA 2 Sec. ac. de 04.07.2018, proc. 01102/17, relator Casimiro Gonçalves):

 “(...) quer os impostos, quer as contribuições, podem ter na sua origem prestações administrativas dirigidas a grupos mais ou menos alargados de sujeitos passivos, embora nenhum desses tributos tenha como pressuposto uma prestação administrativa de que o sujeito passivo seja efetivo e direto beneficiário; todavia, ao contrário dos impostos e, mesmo, das contribuições especiais, as contribuições financeiras têm como finalidade compensar prestações administrativas e realizadas, de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”

Baseando-nos em todas os anteriores contributos jurisprudenciais e doutrinários, mas sobretudo no último acórdão citado do STA, concluímos que não é o simples facto de um tributo ter, desde logo, a designação de “contribuição” (ac. TC nº 539/2015) e nem o facto de esse tributo ter a respetiva receita consignada (ac. TC nº 232/2022), que o qualifica automaticamente como “contribuição financeira”; antes é, para tal, necessário, como judicia o STA, que esse tributo tenha com finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”

Com efeito, o sistema tributário comporta tributos que têm a designação de “contribuições” e são verdadeiros impostos, como se extrai, desde logo, do n.º 3 do art.º 4.º da LGT.

Por outro lado, o sistema tributário comporta igualmente impostos que, ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos (estabelecido no art.º 7.º da Lei de Enquadramento Orçamental[1]), têm a sua receita consignada (vg. ac. TC nº 369/99, de 16.06.1999, proc. 750/98).

Por conseguinte, nem o nomen juris “contribuição”, nem a afetação da receita a uma finalidade específica são suficientes para qualificar um tributo como “contribuição financeira”.

O elemento decisivo para essa qualificação é a existência de uma estrutura de comutatividade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita e os sujeitos passivos do tributo.

A mesma conceção encontra-se plasmada no acórdão do TC nº 232/2022 (de 31.03.2022, proc. 105/22, relator J.E. Figueiredo Dias), em que o tribunal afirma:

“[E]sta linha divisória estabelece-se entre a existência ou não de um nexo de bilateralidade/causalidade entre o Estado e o sujeito passivo do tributo, ou seja, apenas se podem qualificar como contribuições financeiras a favor de entidades públicas os tributos que se possam reconduzir a uma prestação pecuniária coativa destinada a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos (...)”

E o tribunal acrescenta nesse mesmo aresto, com particular importância para a questão que nos ocupa no presente processo:

“(...) acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários”.

Ou seja, para que possamos afirmar estar-se perante uma “contribuição financeira”, é necessário que as prestações públicas que constituem a contrapartida coletiva do tributo beneficiem ou sejam causadas pelos respetivos sujeitos passivos.

Confrontemos esta construção, totalmente amparada na jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, bem como na doutrina por estes citada, com o decidido no processo arbitral nº 629/2021-T (decisão de 03.08.2022, relator Vítor Calvete) sobre a mesma questão de que se ocupa o presente processo arbitral.

A decisão arbitral cita Filipe de Vasconcelos, nos seguintes termos:

“(...) [O] nexo bilateral que subjaz ao respetivo facto tributário [tem] caráter derivado, já que resulta de uma presunção de benefício ou utilidade na esfera dos sujeitos passivos, por pertencerem ou integrarem, num determinado intervalo de tempo, um grupo, tendencialmente homogéneo de interesses”, (...) “homogeneidade de interesses” e (...) “responsabilidade de grupo (…) que se deve ao facto de os sujeitos passivos deste tipo de tributo partilharem um ónus ou responsabilidade de custeamento ou suporte da atividade pública que não pode atribuir-se isoladamente, mas apenas em face daquela que é a respetiva inserção no grupo a que efetivamente pertencem.”

Cita ainda Suzana Tavares da Silva, nos seguintes termos:

“(...) [A] A. recorre, para a delimitação dos contornos das contribuições financeiras, aos critérios desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional Alemão:  “1) incidir sobre um grupo homogéneo; 2) manter uma proximidade com a obrigação tributária e as suas finalidades; 3) corresponder a uma relação encargo/benefício capaz de demonstrar que as receitas geradas são fruídas pelos membros do grupo” (p. 91).”

Concluindo o Tribunal:

“(...) o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas coletivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária.”

A conclusão a que chegámos acima, com base na jurisprudência quer do Tribunal Constitucional quer do Supremo Tribunal Administrativo, mostra-se plenamente coincidente com a decisão arbitral citada.

Entendemos, assim, que o que distingue uma “contribuição financeira” de um imposto de receita consignada é a necessária circunstância, de, na primeira, a atividade da entidade pública titular da receita tributária ter um vínculo direto e especial com os sujeitos passivos da contribuição. Tal vínculo pode consistir no benefício que os sujeitos passivos, em particular, retiram da atividade da entidade pública, ou pode consistir num nexo de causalidade entre a atividade dos sujeitos passivos e a necessidade da atividade administrativa da entidade pública.

A Contribuição de Serviço Rodoviário não cabe em nenhuma destas hipóteses. Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007).

Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se  inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.

A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.

No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o  grupo dos respetivos sujeitos passivos.

Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.

Nos termos do nº 1 do art.º 20.º da LGT, “a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte”.

Para que estivéssemos, no caso presente, perante uma situação de substituição tributária, era necessário que os consumidores que pagam o preço dos combustíveis aos revendedores estivessem na posição de “contribuintes”.

Sobre o conceito de contribuintes, o nº 3 do art.º 18.º diz que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.” De onde se retira que o contribuinte é uma das espécies da categoria “sujeitos passivos” e estes são as pessoas (ou entidades) que estão obrigadas ao pagamento da prestação tributária, o que não acontece com os consumidores dos combustíveis.

Concluímos, assim, que não estamos perante uma situação de substituição, pelo que os sujeitos passivos da CSR são igualmente os respetivos contribuintes diretos.

Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.

Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.

É ainda relevante a posição do Tribunal de Contas, na Conta Geral do Estado de 2008, onde se lê:

 “Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspetos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança.

Com efeito, a contribuição de serviço rodoviário é devida ao Estado, na medida em que é este o sujeito ativo da respetiva relação jurídica tributária, pelo que os princípios constitucionais e legais da universalidade e da plenitude impõem a inscrição da previsão da cobrança da sua receita na Lei do Orçamento do Estado de cada ano.

(...)

Face ao exposto, não se antevê suporte legal bastante, face à Constituição e à lei, para a contribuição de serviço rodoviário ser paga diretamente a uma sociedade anónima, sem passar pelo Orçamento do Estado. Para além disso, o Tribunal de Contas não pode deixar de assinalar que esta situação leva a uma saída de receitas e despesas da esfera orçamental e, por consequência, da sua execução, o que conduz à degradação, nesta sede, do âmbito do controlo das receitas e despesas públicas.”

A posição do Tribunal de Contas apenas reforça a conclusão do Tribunal, já anteriormente enunciada, de que a CSR é um imposto de receita consignada.

A interpretação que adotamos é igualmente corroborada por Casalta Nabais, J., Estudos sobre a Tributação dos Transportes e do Petróleo, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 42-43, em que o Autor afirma que “estarmos perante tributos que, atenta a sua estrutura unilateral, se configuram como efetivos impostos, muito embora dada a titularidade ativa das correspondentes relações tributárias (e o destino da sua receita), tenham clara natureza parafiscal.”

Tendo por base toda a argumentação expendida, que perfilhamos integralmente, conclui-se pela não procedência, nem da alegada exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral – exceção que, na opinião do tribunal, nunca resultaria da exclusão do tributo do âmbito da vinculação prévia da Autoridade Tributária à arbitragem tributária – nem da exceção de falta de vinculação de uma das partes, em virtude da natureza do tributo. Sendo a Contribuição Especial Rodoviária um verdadeiro imposto, ela encontra-se abrangida quer no âmbito da competência material dos tribunais arbitrais tributários, definido pelo art.º 2.º do RJAT, quer no âmbito da vinculação prévia da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais.

A Autoridade Tributária alega ainda que “sempre existiria incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, por outra via”, pois a Requerente pede a não aplicação de um diploma legislativo aprovado por Lei da Assembleia da República, decorrente do exercício da função legislativa e, portante visa, com a presente ação, suspender a eficácia de atos legislativos. Sendo que o contencioso de mera anulação, em que a arbitragem tributária se enquadra, não consente “nem o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-legislativa do Estado, nem a pronúncia sobre a restituição de valores/montantes, por conta da declaração de ilegalidade ou anulação de atos de liquidação (o que só pode ser determinado em sede de execução da decisão)”.

Quanto a este ponto, remetemos mais uma vez a nossa apreciação para o acórdão arbitral no processo já citado (processo arbitral nº 304/22), em que se afirma:

“Estamos aqui perante o que se designa por “ilegalidade abstrata ou absoluta da liquidação”, que se distingue da “ilegalidade em concreto” por na primeira estar em causa a ilegalidade do tributo e não a mera ilegalidade do ato tributário ou da liquidação (STA 2 Sec., ac. de 20.03.2019, proc. 0558/15.0BEMDL 0176/18, relator Aragão Seia). Na ilegalidade abstrata a ilegalidade não reside diretamente no ato que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita, não sendo, por isso, a existência de vício dependente da situação real a que a lei foi aplicada nem do circunstancialismo em que o ato foi praticado (Lopes de Sousa, J., Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 5ª ed., II vol., pág. 323).”

Com efeito, a invalidade da norma em que se baseou a liquidação, resultante de essa mesma norma ofender qualquer norma de categoria hierárquica superior (como é o caso da Constituição da República Portuguesa ou do direito da União Europeia, em relação a uma lei de imposto), dá causa à ilegalidade da própria liquidação, podendo esta ilegalidade ser fundamento de impugnação (STA, Plenário, acórdão de 07.04.2005, proc. nº 01108703. Rel: Jorge de Sousa).

A apreciação que o tribunal faz da validade da norma legal é uma apreciação incidental, necessária para assegurar a impugnabilidade de atos de liquidação feridos de ilegalidade abstrata.

Finalmente, a Autoridade Tributária alega também que o Tribunal seria incompetente para “pronunciar-se sobre atos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, e que para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto, como, à frente, se desenvolverá.”

Quanto a este ponto, apenas se observa que, no caso vertente, a Requerente não pede a apreciação da legalidade dos atos de repercussão, mas apenas das liquidações do imposto.

Já quanto à competência do tribunal para apreciar os atos de repercussão, cuja apreciação a Requerente também pede, a questão é diferente.

Neste ponto perfilhamos inteiramente o entendimento exposto na decisão proferida no processo nº 467/2023-T (Rel: Carla Castelo Trindade), que passamos, por esse motivo, a transcrever:

“(...) [a]apreciação da legalidade de atos de repercussão de CSR extravasa o âmbito material da arbitragem tributária. 43. Os atos de repercussão materializam “um fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem”, tal como evidencia SÉRGIO VASQUES, ob. cit., p. 399. 44. Fenómeno este que não se subsume a nenhuma das realidades visadas pelo artigo 2.º do RJAT anteriormente transcrito, que determina que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de atos de liquidação (alínea a) do n.º 1) e de atos de fixação da matéria tributável/matéria coletável/valores patrimoniais na eventualidade de não terem originado qualquer ato de liquidação (alínea b) do n.º 1).

45. Com efeito, independentemente da posição que se adote sobre a natureza jurídica dos atos de repercussão – i.e., saber se são atos que integram uma relação jurídico-tributária complexa ou se são um fenómeno económico de natureza estritamente privada – certo é que aqueles não são atos tributários em sentido lato, porque não envolvem o apuramento da matéria coletável/tributável através da aplicação de uma norma tributária substantiva a um caso concreto e muito menos atos tributários de liquidação stricto sensu, que tornam certa, líquida e exigível a obrigação tributária através da operação aritmética de aplicação da taxa legal à matéria tributável previamente determinada (neste sentido vide SERENA CABRITA NETO e CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, vol. I, Almedina, 2017, p. 278). (…)

Para Leite de Campos/Benjamim Rodrigues/Lopes de Sousa, entre o terceiro repercutido “e o sujeito ativo não existe vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do sujeito ativo. A sua obrigação não nasce da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga o direito de o sujeito passivo de repercutir e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar o sujeito passivo quando este exerça o seu direito. Daqui decorre, nomeadamente, que as relações entre o sujeito passivo e o repercutido inadimplente se regem pelo Direito privado.” Sendo isso assim em tese geral, face ao elenco das competências dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, e que constam dos artigos 2.º a 4.º do RJAT, nem sequer é preciso discutir a natureza jurídica desses atos de repercussão porque, qualquer que seja, não estão contemplados na única potencial norma atributiva de competência a este Tribunal: a da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT: “A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;”. Quer dizer que este Tribunal se declara liminarmente incompetente para apreciar o primeiro pedido da Requerente (declarar a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente).”.

Acompanhando o acórdão citado, também este tribunal se declara incompetente para apreciar atos de repercussão, ressalvando, no entanto, que a eliminação do ato de repercussão da ordem jurídica seria sempre uma consequência da anulação do ato de liquidação a que aquele está ligado.

Verificando-se a incompetência do tribunal quanto a uma parte do pedido, mas não quanto a outra, não constitui aquela incompetência motivo de absolvição da instância.

  1. Questão da ineptidão da petição inicial

A Requerida invoca ainda a questão da ineptidão da petição inicial, alegando que a Requerente não identifica, em nenhum lado do seu pedido de pronúncia arbitral, qualquer ato tributário que a Requerente pretenda ver apreciado, e também a existência de uma contradição entre o pedido e a causa de pedir.

Vejamos:

O artigo 98º, n.º 1, alínea a) do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto no artigo 29º, n.º 1, alínea d) do RJAT, indica como uma das nulidades insanáveis do processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial.

Por seu turno, sobre o que se considera constituir ineptidão da petição inicial, dispõe o artigo 186º, n.º 1 do CPC, também subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT, que se diz inepta a petição inicial:

  1. Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir
  2. Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
  3. Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

No caso vertente estão à partida excluídas as causas das alíneas b) e c), pelo que haverá que averiguar se se verifica a situação prevista na al. a): falta ou ininteligibilidade da indicação do pedido ou da causa de pedir.

O pedido existe. A Requerente pede que o Tribunal arbitral declare a ilegalidade dos atos de repercussão de liquidações de CSR efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, correspondentes ao combustível vendido à Requerente.

A causa de pedir reside na ilegalidade da própria CSR, por violação do Direito da União Europeia, nomeadamente da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, por não prosseguir “motivos específicos”, e no facto de ter existido repercussão desse imposto ilegal no preço do combustível cobrado à Requerente. A causa de pedir é, pois, claramente inteligível.

Quanto à inteligibilidade do pedido, consideramos que esta pode ter várias dimensões. Uma delas é a da formulação do pedido em termos jurídicos, linguísticos e lógicos inteligíveis. Essa inteligibilidade não se põe em causa no caso dos autos. Mas uma outra vertente é a identificação do objeto do pedido.

Como já se disse no acórdão arbitral emanado no processo 604/2023-T, para a inteligibilidade do pedido “não basta que o pedido seja claro em abstrato na sua formulação, mas é ainda necessário que ele seja suficientemente concretizado para poder servir de base ao processo, ie, para que o tribunal possa efetivamente conhecer o objeto do processo.” E concretizar o pedido, no caso do contencioso de anulação de atos administrativos, “significa necessariamente identificar os atos cuja anulação se pretende, como, aliás decorre do artigo 108º do CPPT, quando estipula que “[A] impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o ato impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido”.

Importa, pois, ver se estão identificados os atos de liquidação impugnados e se, a verificar-se falta dessa identificação, esta compromete irremediavelmente a inteligibilidade do pedido.

Desde logo, efetivamente, não encontramos no pedido de pronúncia arbitral a identificação dos atos de liquidação de CSR cuja anulação é pedida.

A Requerente pede ao Tribunal que declare a “ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário adquirido pela Requerente no período compreendido entre 13 junho 2019 e 31 dezembro 2022, bem como das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedores de combustíveis (...)”

É clara e compreensível a intenção da Requerente de identificar as liquidações de CSR impugnadas através da sua correspondência com os atos de repercussão da mesma CSR no preço das aquisições de combustível efetuadas pela Requerente às suas fornecedoras. O que seria, aliás, perfeitamente viável se estivéssemos perante uma repercussão formal, como existe no IVA.

O problema, que faz com que a construção da Requerente não possa ser aceite, está em que uma tal correspondência, entre a liquidação de CSR e a as faturas de aquisição de combustível – das quais não consta qualquer menção à CSR, mas, aliás, mesmo que constasse – não é suscetível de ser realizada por não existir um ato de repercussão formal.

Ao contrário do que acontece no IVA, em que são os atos de repercussão do imposto (no preço cobrado ao adquirente), efetuados anteriormente à liquidação de IVA propriamente dita, que determinam esta, quanto ao seu montante e quanto ao seu período temporal, existindo uma correspondência exata entre o ato de repercussão e a liquidação de IVA, no caso da CSR (mesmo admitindo, a priori, que existem atos de repercussão), estes não estão formalmente ligados ao ato de liquidação.

Os atos de repercussão - a existirem, ressalva-se de novo - não estão formalmente ligados ao ato de liquidação nem podem estar, pela própria mecânica do imposto. No IVA, o imposto é devido quando ocorre uma venda ou prestação de serviços. Mais uma vez, é a transação entre o sujeito passivo e o seu cliente que determina o nascimento da obrigação do próprio imposto. Por esse motivo, existe um elo formal entre a transação, a repercussão e a liquidação. No caso da CSR, é a introdução no consumo que faz nascer a obrigação tributária (art.º 8.º do CIEC, aplicável à CSR por remissão do art.º 5.º da Lei que estabelece o regime daquele imposto), podendo a repercussão do imposto ter lugar em qualquer data dentro de um intervalo de tempo indeterminado. Deste modo, o facto gerador da CSR ocorre sem uma conexão temporal determinada com a transação em que a mesma possa ser repercutida.

Ou seja, ao não estarmos perante uma repercussão formalizada, não é possível, nem ao Tribunal, nem à Autoridade Tributária, identificar as liquidações de CSR às quais corresponderiam – a existir repercussão – as vendas de combustível. Só as entidades fornecedoras, na melhor das hipóteses, poderiam efetuar a correspondência entre as faturas emitidas e as liquidações de CSR. Mas tal correspondência não foi realizada, pois não foram indicadas as liquidações de CSR impugnadas.

A propósito da impossibilidade de a Requerida identificar os atos de liquidação a partir das faturas, tenha-se em conta que a própria Autoridade Tributária já alega, na sua contestação (cfr. artigos 146 e seguintes), que não lhe é possível estabelecer correspondência entre as faturas e quaisquer liquidações de imposto.

E, portanto, embora a Requerente diga várias vezes que a Autoridade Tributária tem conhecimento oficioso dos atos de liquidação que correspondem às faturas, a verdade é que não existem elementos objetivos que permitam estabelecer uma tal correspondência em termos seguros.

Será importante ainda referir que, ainda que o tribunal viesse, numa apreciação do mérito da causa, a dar como provado que nas faturas da compra do combustível foi repercutida CSR, com base na declaração das fornecedoras ou por qualquer outro meio, ainda assim não seria possível ao Tribunal, devido à configuração do processo contencioso de anulação, condenar a Requerida ao reembolso do imposto, porventura indevido, sem, primeiro, anular as liquidações de CSR. Pelo que, sem a identificação destas liquidações, não é possível satisfazer o interesse da Requerente.

Importa ainda referir que a ineptidão foi invocada pela Requerida e foi dada a possibilidade à Requerente de sobre a mesma se pronunciar, não tendo esta suprido a omissão da identificação dos atos de liquidação.

Assim sendo, verifica-se efetivamente uma falta de concretização do pedido, por falta de identificação dos atos de liquidação da CSR, que o torna ininteligível, na parte referente à identificação do objeto, verificando-se igualmente, em consequência, a ineptidão da petição inicial, a qual é uma exceção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição da Requerida da instância, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil (Ac. TRC, de 18.10.2016, proc. 203848/14.2YIPRT.C. Rel: Manuel Capelo).

Considerada inepta a petição inicial, por insuficiente identificação do objeto do pedido, no que respeita ao pedido de anulação das liquidações, e sendo o tribunal incompetente para apreciar os atos de repercussão, fica prejudicado o conhecimento das restantes exceções, bem do mérito da causa.

 

VII – DECISÃO

Por todo o exposto, julga-se procedente a invocada exceção de incompetência do tribunal para declarar a ilegalidade dos atos de repercussão, bem como a invocada ineptidão da petição inicial com fundamento em insuficiente identificação do objeto do pedido e, em consequência:

  1. Declara-se nulo o processo, por ineptidão da petição inicial;
  2. Absolve-se a Requerida da instância, nos termos do disposto no artigo 278º, nº 1, alíneas a) e b) do CPC, aplicável ao processo arbitral tributário por força do artigo 29º, nº 1, al. e) do RJAT;
  3. Condena-se a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

VIII - VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC e 97.ºA do CPPT, e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em 343,435,37 € (trezentos e quarenta e três mil, quatrocentos e trinta e cinco euros e trinta e sete cêntimos).

 

IX - CUSTAS ARBITRAIS

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 5.814,00 € nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente.

 

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 9 de Setembro de 2024

Os Árbitros

 

(Fernando Araújo)

[ressalvando que entendo haver, além de ininteligibilidade, contradição entre o pedido e a causa de pedir, visto que, dada a prova produzida, a congruência entre pedido e causa de pedir dependeria crucialmente da existência de um regime de repercussão legal, de “repercussão formalizada”; um regime que, no ISP e na CSR, não existiu]

 

 (Nina Aguiar)

 

(Jesuíno Alcântara Martins)

 



[1] Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto.