Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 31/2024-T
Data da decisão: 2024-09-09  IRC  
Valor do pedido: € 179.678,60
Tema: IRC – Derrama municipal – rendimentos provenientes do estrangeiro
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SUMÁRIO:

Para efeitos de cálculo da Derrama Municipal, deve ser excluída do lucro tributável sujeito e não isento de IRC a componente do lucro tributável obtida fora do território nacional.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Nuno Miguel Morujão e Gonçalo Marquês de Menezes Estanque, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

            1. A..., S.A, titular do número de identificação de pessoa colectiva ..., com sede na Rua ... n.º ..., ...-... Lisboa (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), tendo em vista declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e, nessa medida, dos actos de autoliquidação de IRC, na concreta parte da Derrama Municipal suportada nos períodos de tributação de 2018 e 2019 em relação a rendimentos provenientes de fonte estrangeira, peticionando ainda o reembolso do imposto indevidamente pago no montante de € 179.678,60, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados desde a data do respectivo pagamento.

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral apresentado pela Requerente em 4 de Janeiro de 2024, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

 

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 26 de Fevereiro de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 15 de Março de 2024.

 

            5. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, em 20 de Abril de 2024, tendo-se defendido por excepção e por impugnação.

 

            6. Em 25 de Abril de 2024, foi a Requerente notificada para, querendo, exercer o contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida, direito que esta não pretendeu utilizar.

 

            7. Em 30 de Agosto de 2024, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações, remetendo-se para a decisão final a apreciação da matéria de excepção, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.

 

 

II. SANEAMENTO

 

            8. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT e nos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

            9. Na sua resposta invocou a Requerida que o Tribunal Arbitral era materialmente incompetente para apreciar a legalidade do acto de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente. Em síntese, arguiu a Requerida que no artigo 2.º n.º 1 do RJAT e no artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, o legislador optou por limitar a apreciação na jurisdição arbitral aos actos de autoliquidação que tivessem sido precedidos de reclamação graciosa necessária nos termos do artigo 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), independentemente dos fundamentos invocados, não bastando assim uma qualquer outra intervenção administrativa anterior. Tal restrição não pode, segundo a Requerida, ser suprida com base na equiparação que tem sido feita pela jurisprudência entre a reclamação graciosa e a revisão oficiosa, já que a mesma está legalmente vedada em sede arbitral, em virtude da natureza voluntária desta jurisdição. Concluiu assim a Requerida pela sua absolvição da instância nos termos do disposto nos artigos 576.º n.ºs 1 e 2 e 577.º alínea a) do Código de Processo Civil (“CPC”) ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e) do RJAT.

 

            10. A Requerente, apesar de não ter exercido o direito ao contraditório, sustentou no pedido de pronúncia arbitral que o Tribunal Arbitral era materialmente competente para apreciar a legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa. De acordo com a Requerente, a decisão de indeferimento não teve como fundamento a não verificação de certos pressupostos formais, tendo pelo contrário a AT apreciado a legalidade dos actos de autoliquidação, o que se enquadra na competência da jurisdição arbitral. Referiu também a Requerente que, independentemente disso, resulta da actual jurisprudência do STA a irrelevância do teor da decisão da AT no precedente procedimento administrativo, bastando que tenha sido feito um pedido para apreciação da legalidade dos actos de autoliquidação para que os Tribunais Arbitrais sejam competentes.

 

            11. A questão de saber se os Tribunais Arbitrais têm competência para apreciar a legalidade de actos de autoliquidação que não foram precedidos de reclamação graciosa mas sim de revisão oficiosa foi já amplamente discutida na jurisprudência arbitral e dos tribunais superiores. Vejam-se, por todos, as considerações feitas no acórdão arbitral proferido no processo n.º 560/2023-T, em 15 de Abril de 2024, às quais se adere e aqui se citam:

 

O primeiro fundamento invocado pela AT para sustentar a incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer diretamente da legalidade do ato tributário respeita ao facto de não ter existido recurso prévio à reclamação graciosa, cujo pedido deveria ter sido apresentado no prazo de dois anos contados do termo do prazo para pagamento do imposto.

O recurso à via administrativa é exigido como condição de impugnabilidade contenciosa dos atos de retenção na fonte e de autoliquidação nos termos do artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e da remissão por esta operada para o artigo 131.º do CPPT, que dispõe que a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa.”

            Tal alegação é, todavia, improcedente, pois o pedido de revisão oficiosa constitui um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa, tendo sido apresentado previamente à propositura da ação arbitral, entendimento reiterado sucessivamente pela doutrina e jurisprudência portuguesas.

            É verdade que os artigos 131.º e 132.º do CPPT, para os quais a Portaria n.º 112-A/2011 remete, fazem referência à reclamação graciosa, mas não à revisão oficiosa dos atos tributários. Não obstante, deve ser entendido como abrangendo, além da reclamação, a via da revisão dos atos tributários aberta pelo artigo 78.º da LGT, pois a finalidade visada pela norma é a de garantir que a autoliquidação e as retenções na fonte (em que os contribuintes atuam em substituição e no interesse da Autoridade Tributária) sejam objeto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro “litígio”. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar sobre o erro na autoliquidação do contribuinte ou nas retenções na fonte efetuadas pelo substituto tributário e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo contencioso.

            Efetivamente, a doutrina e a jurisprudência portuguesas[1] veem no pedido de revisão do ato tributário um meio impugnatório administrativo com um prazo mais alargado que os restantes, um mecanismo de abertura da via contenciosa, perfeitamente equiparável à reclamação graciosa necessária.

Como referido por Carla Castelo Trindade[2], “(…) as reclamações graciosas necessárias, previstas nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, justificam-se pela necessidade de uma filtragem administrativa, prévia à via judicial, por estarem em causa actos que não são da autoria da Administração Tributária, mas do próprio sujeito passivo e nos quais esta não teve, ainda, qualquer intervenção. Nesse sentido, o pedido de revisão oficiosa serve o propósito dessa filtragem administrativa, porque aí a Administração já terá possibilidade de se pronunciar sobre o acto de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta. Excluir a jurisdição arbitral apenas porque o meio utilizado não foi efectivamente uma reclamação graciosa seria violar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, tal como consagrado no artigo 20.º da CRP.

E esta admissibilidade vale, por maioria de razão, tanto para o pedido de revisão oficiosa apresentado fora do prazo previsto para a reclamação graciosa necessária (que é de 2 anos nos termos daqueles artigos do CPPT), como para o pedido que é realizado quando ainda era possível a apresentação de reclamação graciosa.”

Não se alcança que deva ser outro o propósito da norma de remissão da Portaria de Vinculação que indica expressamente as pretensões “que não tenham sido precedid(a)s de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, ou seja, referindo-se com clareza a um procedimento administrativo prévio e não, em exclusivo, à reclamação graciosa. Por outro lado, seria incoerente e antissistemático que os artigos 131.º a 133.º do CPPT revestissem distintos significados consoante estivessem a ser aplicados nos Tribunais Administrativos e Fiscais e nos Tribunais Arbitrais.

Aliás, sob idêntica perspetiva se pode afirmar que a alegada falta de suporte literal também se verificaria quanto àqueles Tribunais (administrativos e fiscais), pois as normas interpretandas são as mesmas, o que poria em causa a jurisprudência consolidada do STA, solução a que não se adere, até porque é inequívoco que a revisão oficiosa consubstancia um procedimento de segundo grau que se insere na “via administrativa”, locução empregue pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 122-A/2011, aludindo-se neste sentido às decisões proferida nos processos arbitrais n.º 245/2013-T e 678/2021T.

De igual modo, o Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”) pronunciou-se sobre a questão no sentido da admissibilidade do recurso à arbitragem tributária quando se reaja a indeferimento de pedido de revisão oficiosa contra ato de liquidação, entre outros, no acórdão de 26.05.2022, no âmbito do processo n.º 96/17.6BCLSB, cujo excerto se transcreve de seguida:

“O que cumpre aqui aferir é se estão ou não abrangidas, na competência material dos tribunais arbitrais tributários, as situações de reação a indeferimento de pedido de revisão de autoliquidação, em relação à qual não foi apresentada reclamação graciosa. Adiantemos, desde já, que a resposta é afirmativa, como, aliás, tem vindo a ser decidido por este TCAS – v. os acórdãos de 11.03.2021 (Processo: 7608/14.5BCLSB), de 13.12.2019 (Processo: 111/18.6BCLSB), de 11.07.2019 (Processo: 147/17.4BCLSB), de 25.06.2019 (Processo: 44/18.6BCLSB) e de 27.04.2017 (Processo: 08599/15). Desde logo, o art.º 2.º do RJAT não exclui casos como o dos autos, devendo considerar-se que são abrangidas as situações em que a liquidação seja o objeto imediato ou mediato da impugnação arbitral. Portanto, por esta via, não há que restringir o alcance desta norma de competência. Por outro lado, a exclusão constante da al. a) do seu art.º 2.º da Portaria de vinculação não tem o alcance que lhe é dado pela Impugnante, porquanto visa salvaguardar as situações em que o legislador consagrou a reclamação administrativa necessária prévia – sendo certo que a nossa jurisprudência admite a possibilidade de se formularem pedidos de revisão de autoliquidações, ao abrigo do art.º 78.º da LGT, ainda que não tenha sido apresentada reclamação graciosa (cfr., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.05.2012 (Processo: 0140/13)(…)”

 

De referir ainda que o problema deve ser juridicamente analisado na perspetiva das condições de impugnabilidade do próprio ato tributário e não da competência do tribunal, pois o que está em causa é a necessidade de uma (específica) interpelação administrativa prévia. Este requisito configura o pressuposto processual da impugnabilidade do ato (in casu, dos atos de autoliquidação, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4 alínea i) do CPTA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT[3]. Dito de outro modo, se a tese da AT tivesse vencimento, o Tribunal Arbitral seria competente, mas o ato seria inimpugnável, pelo que do mesmo não poderia conhecer[4].

Em qualquer caso, independentemente da qualificação jurídica como incompetência do Tribunal ou como inimpugnabilidade do ato, a exceção suscitada pela Requerida é improcedente, pois não corresponde à melhor interpretação das normas aplicadas, que é a de que se encontram abrangidas pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria de Vinculação as pretensões que se prendam com a ilegalidade de atos de autoliquidação e/ou de retenção na fonte que sejam precedidos de pedido de revisão oficiosa, pelo que este Tribunal Arbitral é competente em razão da matéria, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e no artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011.”.

 

            12. Regressando ao caso aqui em análise, verifica-se que o pressuposto visado pelo artigo 2.º n.º 1 do RJAT e pelo artigo 2.º alínea a) da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março de impor uma filtragem administrativa prévia à via arbitral foi assegurado, já que a Requerente apresentou um pedido de revisão dos actos de autoliquidação contestados e, desse modo, conferiu à AT a possibilidade de sindicar a respectiva legalidade e de decidir sobre a sua manutenção ou anulação da ordem jurídica. Por conseguinte, resulta incontroverso que o Tribunal Arbitral é materialmente competente para conhecer do pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente, julgando-se improcedente a excepção dilatória suscitada pela Requerida a este respeito.

 

            13. O processo não enferma de nulidades, nem existem outras excepções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

§1 – Factos provados

 

            14. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

  1. Em 27 de Junho de 2019, a Requerente submeteu a declaração periódica de rendimentos de IRC Modelo 22, com referência ao período de tributação de 2018, com o código de identificação n.º...– cfr. doc. n.º 1 junto com o PPA;
  2. Em 3 de Agosto de 2020, a Requerente apresentou uma declaração periódica de rendimentos de IRC Modelo 22 de substituição, com referência ao período de tributação de 2018, com o código de identificação n.º ... – cfr. doc. n.º 2 junto com o PPA;
  3. No período de tributação de 2018 a Requerente apurou um resultado fiscal positivo no montante de € 1.308.883,36, o qual é composto, designadamente, por:
  • Dividendos distribuídos por sociedades estrangeiras, no montante total de € 55.727,94 – cfr. docs. n.ºs 3 e 8 juntos com o PPA;
  • Juros de obrigações pagos por sociedades estrangeiras, no montante total de € 2.281.729,05 – cfr. docs. n.ºs 3 e 9 juntos com o PPA;
  • Mais-valias e menos-valias de títulos emitidos por entidades não residentes em Portugal, respectivamente, no montante de € 6.444.166,97 e € 841.244,59 – cfr. docs. n.ºs 3 e 10 juntos com o PPA;
  1.  No período de tributação de 2018 a Requerente apurou uma Derrama Municipal no montante de € 19.215,83 – cfr. doc. n.º 3 junto com o PPA;
  2. Em 15 de Julho de 2020, a Requerente submeteu a declaração periódica de rendimentos de IRC Modelo 22, com referência ao período de tributação de 2019, com o código de identificação n.º...– cfr. doc. n.º 4 junto com o PPA;
  3. No período de tributação de 2019 a Requerente apurou um resultado fiscal positivo no montante de € 10.949.678,48, o qual é composto, designadamente, por:
  • Dividendos distribuídos por sociedades estrangeiras, no montante total de € 116.074,41 – cfr. docs. n.ºs 5 e 11 juntos com o PPA;
  • Juros de obrigações pagos por sociedades estrangeiras, no montante total de € 4.276.427,59 – cfr. docs. n.ºs 5 e 12 juntos com o PPA;
  • Mais-valias e menos-valias de títulos emitidos por entidades não residentes em Portugal, respectivamente, no montante de € 11.005.706,20 e € 1.070.900,50 – cfr. docs. n.ºs 5 e 13 juntos com o PPA;
  1. No período de tributação de 2019 a Requerente apurou uma Derrama Municipal no montante de € 160.462,77 – cfr. doc. n.º 5 junto com o PPA;
  2. A Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), relativamente aos actos de autoliquidação de IRC referentes aos exercícios de 2018 e 2019, na parte referente à Derrama Municipal que incidiu sobre os rendimentos provenientes de fonte estrangeira – cfr. doc. n.º 6 junto com o PPA;
  3. Em 28 de Setembro de 2023, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento do pedido de revisão oficiosa – cfr. doc. n.º 7 junto com o PPA;
  4. Em 4 de Janeiro de 2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição de arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

 

 

 

 

§2 – Factos não provados

 

            15. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que se tenham considerado não provados.

 

§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

16. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

17. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

18. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pela Requerente e do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, que foram apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

19. Regista-se apenas que apesar de a Requerida colocar em causa na sua resposta a prova do concreto montante dos rendimentos provenientes do estrangeiro referidos nas alíneas c) e f) dos factos assentes, certo é que tais dúvidas não foram suscitadas na decisão de indeferimento do procedimento de revisão oficiosa, pelo que não conformam a fundamentação daquele acto tributário cuja legalidade cumpre aqui sindicar. Acresce que os elementos suscitados pela Requerida não lograram afastar a presunção de veracidade e boa-fé estabelecida no artigo 75.º, n.º 1, da LGT, sendo este um ónus que se impunha à Requerida. Por fim, considerou este o Tribunal Arbitral que a prova documental providenciada pela Requerente comprova de modo suficiente o quantum dos rendimentos auferidos no estrangeiro.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

            20. A questão de fundo no presente processo consiste em determinar se os rendimentos provenientes de fonte estrangeira, auferidos pela Requerente nos exercícios de 2018 e 2019, devem ou não ser integrados na base de incidência da Derrama Municipal, que à data dos factos determinava, ao que importa, o seguinte:

 

Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais

Artigo 18.º

Derrama

1 - Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.

2 - Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.

(…)

13 - Nos casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 125.º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade.

14 - Entende-se por massa salarial o valor dos gastos relativos a despesas efetuadas com o pessoal e reconhecidos no exercício a título de remunerações, ordenados ou salários.

15 - Os sujeitos passivos abrangidos pelo n.º 2 indicam na declaração periódica de rendimentos a massa salarial correspondente a cada município e efetuam o apuramento da derrama que seja devida.”.

 

            21. A Requerente sustentou a procedência do pedido de pronúncia arbitral com base nos seguintes argumentos:

  • Nos termos do artigo 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais (“RFALEI”), consagrado na Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, o valor da Derrama Municipal é apurado na medida da proporção do rendimento gerado na área geográfica de um determinado município, acrescendo ao lucro tributável sujeito e não isento de IRC de cuja existência prévia depende;
  • Desse princípio resulta que a proporção do rendimento que não seja gerado na circunscrição de nenhum dos municípios existentes em território português deverá ficar fora do âmbito de incidência da Derrama Municipal;
  • As sucessivas alterações à Lei das Autarquias Locais, que promoveram algumas modificações aos diversos regimes jurídicos que estabeleceram as regras para o lançamento de Derrama Municipal, mantiveram na sua base o objectivo primordial de financiamento dos municípios onde as empresas operam e desenvolvem a sua actividade, reforçando a conexão e a dependência entre os rendimentos que tenham sido gerados em determinada circunscrição geográfica e a incidência de Derrama Municipal sobre esses rendimentos;
  • Esta conexão torna-se ainda mais evidente se tivermos por referência o facto de o cálculo da Derrama Municipal estar limitado à proporção do lucro tributável que corresponda aos rendimentos gerados na circunscrição de cada município, cujo critério para determinação corresponde à massa salarial alocada a cada município, nos casos em que uma entidade possui estabelecimento em mais do que um município, tornando claro que a Derrama Municipal tem por objecto apenas os rendimentos que foram auferidos em determinado município, em virtude da força laboral que ali se reúna;
  • É também evidente que a Derrama Municipal tem unicamente por referência os rendimentos imputáveis aos municípios situados em território português e não quaisquer rendimentos que sejam imputáveis a outras localizações;
  • O Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), no acórdão proferido no processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, em 13 de Janeiro de 2021, seguido pela jurisprudência arbitral que se pronunciou posteriormente sobre o tema, decidiu que “O lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).”;
  • Neste sentido, tendo presente os rendimentos auferidos provenientes do estrangeiro, foi apurado e liquidado um montante de Derrama Municipal em excesso de € 19.215,83 quanto ao período de tributação de 2018 e de € 160.462,77 quanto ao período de tributação de 2019, sendo assim o montante total de € 179.678,60 que deveria ter sido excluído da base de incidência de Derrama Municipal;
  • Quanto à ausência de erro imputável aos serviços, no contexto das autoliquidações, o actualmente revogado n.º 2 do artigo 78.º da LGT estabelecia uma ficção de que qualquer erro de que enfermassem autoliquidações era imputável aos serviços;
  • A ratio da alteração legislativa não foi a de afastar a imputabilidade aos serviços relativamente a todos os erros praticados nas autoliquidações, mas antes colocar fim a uma presunção de que os contribuintes beneficiavam, ao ser considerado como imputável aos serviços todo e qualquer erro praticado pelos contribuintes, mesmo quando se verificasse que os mesmos actuavam de forma negligente;
  • Nos casos em que o sujeito passivo, no âmbito do exercício de funções que não são sua incumbência, mas antes da própria AT, incorre em erro, quer seja nos pressupostos de facto ou de direito, é evidente que esse erro se deve considerar como um erro da própria AT;
  • Embora se trate de um imposto autoliquidado pela Requerente, esta não tinha forma de indicar na declaração Modelo 22 um lucro tributável excluído dos rendimentos obtidos do estrangeiro que permitisse apurar a Derrama Municipal sobre esse montante;
  • Para além dos constrangimentos provocados pela declaração Modelo 22 em si considerada, resulta das instruções para o seu preenchimento emitidas pela AT que deverá ser utilizado no cálculo da Derrama Municipal a totalidade do lucro tributável apurado, independentemente de ser ou não gerado em território português;
  • Os erros de que padecem as liquidações cuja legalidade agora se discute são erros na aplicação do direito imputáveis aos serviços, não só a partir do momento em que a AT foi confrontada em devido tempo com esses erros, em sede de procedimento de pedido de revisão oficiosa tendo optado por negar o reconhecimento e consequente correcção dos mesmos, mas desde logo a partir do momento da submissão da declaração de rendimentos.

 

            22. A Requerida sustentou a procedência do pedido de pronúncia arbitral com base nos seguintes argumentos:

  • Um dos elementos propulsionadores da Lei das Finanças Locais é o Reforço do Sistema de Financiamento Autárquico, assente na diminuição da dependência financeira dos municípios em relação às receitas provenientes do Estado e algumas entidades privadas;
  • Para o efeito, previu-se no artigo 18.º n.º 1 do RFALEI a possibilidade de os municípios lançarem anualmente uma derrama aplicável aos sujeitos passivos residentes em território nacional, que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e aos não residentes com estabelecimento estável em Portugal, cuja sede ou estabelecimento estável se situem na área geográfica do município;
  • A Derrama Municipal incide, assim, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica de cada município;
  • Por conseguinte, a Derrama Municipal recai também sobre o lucro tributável (diferença entre os rendimentos e gastos) apurado em operações económicas realizadas no estrangeiro;
  • Aliás, analisada a legislação em vigor que disciplina a figura da derrama, verifica-se a inexistência de qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do exterior estão excluídos de tributação;
  • Por outro lado, determina-se no artigo 18.º, n.ºs 2, 3 e 13 do RFALEI quanto ao critério de repartição da derrama que nos casos ali previstos em que não seja possível a sua repartição pelos diferentes municípios, a mesma é devida apenas em função da área da sede do sujeito passivo, critério que a Requerente aplicou nas autoliquidações controvertidas em estrito cumprimento da lei;
  • Relativamente à jurisprudência do STA invocada pela Requerente, é importante ter presente que a mera operação de subtrair do lucro tributável o valor total do rendimento obtido no estrangeiro (e não o lucro tributável decorrente daqueles rendimentos), significaria esquecer que naquele lucro tributável estão incluídos encargos subjacentes aos rendimentos obtidos no estrangeiro, o que conduz, no limite à dedução de gastos em montante superior ao devido e à não tributação de lucro tributável apurado relativamente aos rendimentos obtidos em território nacional, e consequentemente à violação das disposições vertidas na lei;
  • Com efeito, se para determinar a base de cálculo da Derrama Municipal forem excluídos apenas os rendimentos obtidos no estrangeiro, como advoga a Requerente, os gastos suportados para a obtenção de tais rendimentos seriam considerados no cálculo da base de incidência da Derrama Municipal (componente negativa da mesma base de incidência) resultando numa dupla redução do valor da Derrama Municipal calculada naqueles termos, o que constitui uma clara violação da lei.

 

      23. Conforme resulta a posição das partes, o STA já se pronunciou sobre a questão aqui em dissídio no acórdão proferido em 13 de Janeiro de 2021, no processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, que cumpre aqui considerar em cumprimento do disposto no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil:

 

Numa formulação sintética, a discórdia reside na questão de saber se, para efeitos de autoliquidação de derrama municipal, incidente, consensualmente, sobre “o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC)” (Cf. art. 14.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro (Lei da Finanças Locais, em vigor no ano de 2010).), há (ou não) lugar, no respetivo cálculo/apuramento, à destrinça entre rendimentos tributáveis com (e sem) origem em atividades exercidas nos municípios/freguesias portuguesas.

 

Em breve excursão legislativa (pelos tempos mais próximos), o artigo (art.) 18.º n.º 1 da Lei n.º 42/98 de 6 de agosto, que estabeleceu o regime financeiro dos municípios e das freguesias, na sequência de o art. 16.º alínea (al.) b) identificar como receita dos municípios “O produto da cobrança de derrama lançada nos termos do disposto no artigo 18.º;”, permitia-lhes que, anualmente, pudessem lançar uma derrama, até ao limite máximo de 10% sobre a coleta do IRC, que proporcionalmente correspondesse ao rendimento gerado na sua área geográfica … Este diploma foi, expressamente, revogado, pelo art. 64.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro - intitulada Lei das Finanças Locais (LFL) (Presentemente, esta, também, se encontra, já, revogada, vigorando, desde 1 de janeiro de 2014, o Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais (RFALEI), estabelecido pela Lei n.º 73/2013 de 3 de setembro, cujos arts. 14.º al. c) e 18.º n.º 1, no essencial, reproduzem, “ipsis verbis”, os arts. 10.º al. b) e 14.º n.º 1 da LFL.)-, cujos arts. 10.º al. b) e 14.º n.º 1 passaram a estatuir: «

“O produto da cobrança de derramas lançadas nos termos do disposto no artigo 14.º;”

“Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica …”. »

 

Atento a esta evolução legislativa, o STA, com expressão, entre outros, no acórdão de 2 de fevereiro de 2011 (0909/10) (Que se debruçou, nuclearmente, sobre hipótese de anulação de derrama, autoliquidada em declaração de rendimentos de IRC, respeitante ao exercício de 2008, no âmbito do regime especial de tributação dos grupos de sociedades.), desde logo, perfilhou e explicitou, o entendimento de que com a Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro, a partir do início desse ano, a derrama passava a ser calculada por aplicação de uma taxa ao lucro tributável, em vez da coleta, de IRC, perdendo, assim, a natureza de imposto extraordinário e deixando de ser um adicional ao IRC para passar a ser um adicionamento. “A circunstância, porém, de a derrama sempre ter prefigurado um mero imposto adicional, assente sobre as regras de incidência e liquidação dos impostos da administração central, levou a que a sua disciplina legal se mantivesse relativamente ligeira. (…). É certo que, de acordo com a actual redacção da LFL de 2007, se trata claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam da lei (sujeito activo, margem de taxas) ou obedecem à intervenção da autarquia local (tributação ou não, taxas concretas), apenas comungando, para efeitos do seu cálculo e por simplicidade de gestão, de uma incidência objectiva comum (…)”.

 

Posto isto e realçando, sobretudo, este cariz de tributo autónomo relativamente ao IRC, para solucionar a questão que nos ocupa, importa começar por mencionar que a comparação dos quadros legais (sucessivos), enformadores da cobrança de derrama(s) municipal(ais), permite extrair, com objetividade, estas premissas:

- sempre (nas Leis n.ºs 42/98, 2/2007 e (73/2013)) esteve (e está) presente a previsão e exigência, de o IRC sobre que recai a percentagem de derrama seja a proporção correspondente “ao rendimento gerado na sua (do município) área geográfica”; aliás, neste aspeto particular, a Lei n.º 1/87 de 6 de janeiro (Revogada pela Lei n.º 42/98 de 6 de agosto.), ainda, era mais incisiva e precisa, estabelecendo que os municípios podiam lançar uma derrama…, “na parte relativa ao rendimento gerado na respectiva circunscrição”;

- comummente àquelas três leis, por referência à redação da Lei n.º 2/2007 (aqui, aplicável), há de considerar-se: “2 - …, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria colectável superior a (euro) 50000, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado …”. “5 - Nos casos não abrangidos pelo nº 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direcção efectiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 117º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade.”;

- desde a redação inicial, o art. 18.º da Lei n.º 73/2013 de 3 de setembro (RFALEI) estabeleceu a regra, inalterada até hoje, de que “(…) Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 1, quando uma mesma entidade tem sede num município e direção efetiva noutro, a entidade deve ser considerada como residente do município onde estiver localizada a direção efetiva.”.

 

Neste momento, dirigindo, já, atenções para a situação julganda, podemos afirmar, com segurança, que a rte, no exercício de 2010, estando coletada pelo exercício de atividade sujeita e não isenta de IRC, possuindo sede (Nada se provou (ou consta dos autos), quanto a, eventual, direção efetiva noutro local.) no município de Oeiras (………… - Edifício …….., ……….), com um lucro tributável de € 65.181.876,87, tinha, em princípio, de apurar e pagar (o que, efetivamente, fez), derrama municipal, na importância de € 938.619,03 (€ 65.181.876,87 x 1,44%). Assim, legitimava e impunha, o art. 14.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro ao dispor que “Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola …”. A dúvida reside, apenas, em saber se o lucro tributável, a operar como base de incidência da derrama, é o montante mencionado ou, perante a comprovação de que esse valor integra, comporta, a importância (global) de € 52.079.027,80, obtida fora do território português (no estrangeiro), deve ser o de € 13.102.849,07 e, consequentemente, a derrama, devida, fixar-se em € 188.681,03 (€ 13.102.849,07 x 1,44%), portanto, num montante inferior ao autoliquidado (-749.938,00).

 

Antecipando o resultado, entendemos que a razão está do lado da rte.

Como emana do antes exposto e, destacadamente, das premissas acima expressas, o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar “o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município” envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se “o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede …

Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.

 

Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais. Na verdade, embora o legislador não o haja assumido explicitamente, por exemplo, num preâmbulo à Lei n.º 2/2007 (aplicável, neste caso) (No âmbito da Lei n.º 42/98 de 6 de agosto a derrama podia ser lançada “para reforçar a capacidade financeira ou no âmbito da celebração de contratos de reequilíbrio financeiro. A, precedente, Lei n.º 1/87 de 6 de janeiro (art. 5.º n.º 6) só admitia o lançamento de derrama “para acorrer ao financiamento de investimento ou no quadro de contratos de reequilíbrio financeiro”.), certos de que os tributos e em especial os impostos, visam, desde logo, “a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas” e devem respeitar “os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material” (Artigo 5.º da Lei Geral Tributária (LGT).), presente, ainda, a condição de impostos autónomos (do IRC), só podemos assumir que as derramas municipais se têm, para legitimação, de ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo…

Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a “massa salarial”, ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.).

 

Obviamente, não é incorreto afirmar (como na sentença recorrida) que, na LFL, “nada … se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC ao estabelecer, relativamente a tais pessoas colectivas …, a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do nº 1, do artº 4º, do CIRC, …”. Porém, retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta, concreta, figura tributária. Na verdade, consideramos evidente (em sintonia com a doutrina) que a disciplina legal da derrama municipal nasceu e permanece, há mais de 30 anos, pouco incisiva e desenvolvida, “relativamente ligeira”. Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais. Deste modo, assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).”.

 

  24. Este entendimento do STA tem sido adoptado e seguido pela jurisprudência arbitral que até à data se pronunciou sobre o tema, designadamente nos acórdãos arbitrais proferidos no processos n.ºs 720/2021-T e 234/2022-T e 211/2023-T.

 

  25. À semelhança daqueles Tribunais, também o presente Tribunal Arbitral adere à jurisprudência do STA, que com rigor e clareza deixou evidente a necessidade de excluir da base de incidência da Derrama Municipal fixada no artigo 18.º, n.º 1 do RFALEI, isto é, de excluir do lucro tributável sujeito e não isento de IRC, a parcela do lucro tributável obtido fora do território nacional.

 

26. Em face do exposto, julgam-se ilegais os actos de autoliquidação contestados nos presentes autos, na concreta parte em que fizeram incidir a Derrama Municipal dos exercícios de 2018 e 2019 sobre a componente do lucro tributável da Requerente proveniente do estrangeiro.

 

27. Sem prejuízo, é ainda necessário apurar se este erro de direito (ilegalidade) dos actos de primeiro grau é ou não imputável aos serviços nos termos do artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte da LGT, já que esse é um pressuposto da procedência da revisão oficiosa.

 

            28. Tal como referiu a Requerente, o facto de se ter eliminado a presunção que vigorava no n.º 2 do artigo 78.º da LGT não obsta a que os contribuintes possam fazer uso da revisão oficiosa. Necessário é que demonstrem a imputabilidade do erro aos serviços.

 

29. Ora, no presente caso, a Requerente logrou demonstrar que, apesar de a AT não ter tido intervenção na emissão das liquidações contestadas, a verdade é que ainda assim influenciou o seu resultado, dando azo à verificação do erro de direito anteriormente identificado. Por um lado, porque na declaração periódica de rendimentos de IRC Modelo 22 não é possível ao contribuinte, por erro que lhe é inimputável, indicar o lucro tributável expurgado da componente atribuída ao estrangeiro. Por outro lado, porque é a própria AT que nas instruções de preenchimento da Modelo 22 indica que se tem de utilizar como base de cálculo o lucro tributável apurado em sede de IRC, o que implica utilizar no cálculo da Derrama Municipal a totalidade do lucro tributável, independentemente da respectiva proveniência ou afectação geográfica. Por conseguinte, conclui-se pela existência de erro imputável aos serviços, razão pela qual estavam preenchidos todos os pressupostos para que tivesse sido deferido o pedido da Requerente.

 

            30. Por fim, cumpre apreciar o pedido formulado pela Requerente de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento do imposto, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT.

 

            31. Ao contrário do defendido pela Requerente, não é aplicável ao presente caso a regra geral prevista no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, mas sim a regra prevista na alínea c) do n.º 3 daquela norma que versa em específico sobre os casos de revisão oficiosa e que determina que “quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”. Este entendimento é, de resto, conforme com a jurisprudência uniformizada pelo STA, designadamente no acórdão proferido no processo n.º 51/19.1BALSB, em 11 de Dezembro de 2019, que tem o seguinte sumário:

 

Pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação (cfr. art. 78.º, n.º 1, da LGT) e vindo o acto a ser anulado, mesmo que em impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação daquele pedido, e não desde a data do pagamento da quantia liquidada [cfr. art. 43.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), da LGT].

 

            32. Em face do exposto, deve a Requerente ser reembolsada do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, contados apenas a partir do decurso de um ano após a apresentação daquele pedido, o que deverá ser apurado em sede de execução de julgados.

 

V. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

  1. Julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral invocada pela Requerida;
  2. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e anular parcialmente os actos de autoliquidação contestados pela Requerente, na concreta parte referente à Derrama Municipal dos exercícios de 2018 e 2019 que incidiu sobre a componente do lucro tributável da Requerente proveniente do estrangeiro;
  3. Condenar a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, contados apenas a partir do decurso de um ano após a apresentação daquele pedido, a apurar em sede de execução de julgados;
  4. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 179.678,60.

 

VII. CUSTAS

 

            Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 3.672,00, a suportar pela Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 9 de Setembro de 2024

 

Os árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Presidente e Relatora)

 

 

Nuno Miguel Morujão

 

Gonçalo Marquês de Menezes Estanque