SUMÁRIO
A impugnação da liquidação de IRS por desconsideração do estatuto de residente não habitual, tendo aquela gerado um “excesso” no imposto a pagar, não se apresenta como a via processual idónea à obtenção do reconhecimento jurisdicional dessa condição jurídico-fiscal de benefício pessoal nos termos do antigo art. 72.º, n.º 12, do CIRS, não estando abrangida pela justiça tributária fiscal delimitada pelo RJAT, nem sequer tal reconhecimento sendo legalmente viável em razão do caráter perentório do prazo que estava previsto no art. 16.º, n.º 10, do CIRS.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 6 de fevereiro de 2024, decide o seguinte:
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RELATÓRIO
1. A..., contribuinte n.º ..., e B..., contribuinte n.º..., residentes na Rua do ..., ..., n.º ..., ...-... ..., tendo sido notificados da demonstração de liquidação de IRS n.º 2023..., no valor de €11.967,50, relativa ao ano de 2022, vieram, nos termos do art. 2.º, n.º 1, al. a), do art. 5.º, n.º 2, e do art. 10.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, solicitar a constituição de tribunal arbitral com vista à declaração da ilegalidade daquele ato.
2. Os Requerentes pretendem a declaração da ilegalidade de tal ato de liquidação por a mesma não ter considerado a condição de residente não habitual do requerente, que passou a residir em Portugal a partir de 1 de julho 2020, tendo feito a sua inscrição em 13 de julho de 2021, sendo de aplicar, por isso, a taxa reduzida de IRS, nos termos do antigo art. 72.º, nº 12.º, do CIRS.
Concluindo, portanto, haver lugar não só ao reembolso do imposto pago a título de IRS, no valor de €11.967,50, bem como ao pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmº Senhor Presidente do CAAD, em 30 de novembro de 2023, em conformidade com o preceituado no art. 11.º, n.º 1, al. c), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66º-B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificado, nessa data, à Autoridade Tributária (AT), ora Requerida.
4. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no art. 6.º, n.º 1, e no art. 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, o Conselho Deontológico, em 18 de janeiro de 2024, designou o árbitro signatário, que comunicou, no prazo legalmente estipulado, a aceitação do respetivo encargo.
5. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do art. 11.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT e dos arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico.
6. Deste jeito, o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 6 de fevereiro de 2024, com base no preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a AT para, querendo, apresentar resposta, o que veio a fazer na sua qualidade de Requerida.
7. A Requerida, chamada a pronunciar-se, sustentou, em 15 de abril de 2024, que os Requerentes não tinham razão, defendendo-se por exceção e por impugnação:
- por exceção, alegando que o Tribunal Arbitral não teria competência sobre o pedido e a causa do pedido, excluídos que estariam do âmbito da sua jurisdição, além de entenderem esta como uma via inadequada para a impugnação do ato de liquidação controvertido, que seria, neste sede, inatacável;
- por impugnação, considerando que a obtenção do estatuto de residente não habitual por parte do Requerente se fez tarde de mais, ultrapassando o prazo limite fixado no antigo art. 16.º, n.º 10, do CIRS, ou seja, até 31 de março do ano seguinte àquele em que o beneficiário passou a residir em Portugal, pois só o fez em 13 de julho de 2021, além de entender que a liquidação não seria ilegal por falta de fundamentação.
8. Em 29 de abril de 2024, os Requerentes responderam às exceções invocadas pela Requerida, entendendo que as mesmas não seriam procedentes, além de juntarem alguns outros documentos.
9. Em 8 de julho de 2024, foi dado conhecimento ao Tribunal Arbitral de um pedido de habilitação de herdeiros na sequência do falecimento, em 30 de maio de 2024, de A..., o que profundamente se lamenta, apresentando-se como novos sujeitos processuais, conforme devida comprovação da escritura de habilitação, a sua viúva, B..., e as suas únicas filhas, C... e D... .
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SANEAMENTO
10. O Tribunal Arbitral foi devidamente constituído em 6 de fevereiro de 2024, em conformidade com o estabelecido na al. c) do n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
11. Em relação ao incidente de habilitação de herdeiros apresentado, o Tribunal Arbitral considera-o provado e por isso procedente, verificando-se os seus pressupostos legais, pelo que a posição processual do Requerente falecido passa a ser ocupada pela sua viúva, B..., e pelas as suas únicas filhas, C... e D..., nos termos do art. 127.º, nº 1, al. b), e art. 130.º do CPPT, bem como dos arts. 351.º e 353.º do CPC, aplicáveis ex vi do art. 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT.
12. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos arts. 4.º e 10.º do RJAT e do art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
13. O processo não padece de vícios que o invalidem.
Cumpre apreciar e decidir.
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DOS FACTOS
14. A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral e dos elementos remetidos aos autos, fixa-se como segue:
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Factos Provados
15. Os requerentes A..., contribuinte n.º ..., e B..., contribuinte n.º..., são residentes na Rua ..., ..., n.º ..., ...-... ... .
16. Antes disso, porém, o Requerente A..., contribuinte n.º..., foi residente fiscal no Cantão de Schwiz – Suíça, no período de 01-01-2015 a 30-06-2020, conforme resulta do certificado de residência fiscal na Suíça, emitido pela Administração Fiscal do Cantão de Schwyz – Suíça.
17. Desde o seu regresso a Portugal, em 01-07-2020, o Requerente reside na Rua ... - ..., n.º ..., ...-... ... .
18. Tendo logrado registar no sítio eletrónico da AT a sua residência a partir de 1 de julho de 2020, o Requerente A... apenas o fez, quanto ao estatuto de residente não habitual, em 13 de julho de 2021, tendo o seu pedido de reportar os efeitos do mesmo ao ano de 2020 sido indeferido pela AT, conforme comunicado pelo ofício n.º ... de 05-08-2022.
19. Inconformado com tal recusa, os Requerentes apresentaram uma ação administrativa da decisão de indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual naqueles exatos contornos para um deles, encontrando-se a mesma a correr termos sob o processo n.º 2060/22.4BEBRG, junto da Unidade Orgânica 2, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
20. Entretanto, a Requerida notificou os Requerentes da demonstração de liquidação de IRS n.º 2023..., no valor de €11.967,50, relativa ao ano de 2022, na qual não se considera relevante a invocada condição de residente não habitual do requerente.
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Factos não provados
21. Não se considera provado que os Requerentes tivessem tentado inscrever- a condição de residente não habitual até 31 de março de 2021 e que tal não sucedeu por impossibilidade técnica no Portal Eletrónico da Requerida.
22. Cabia aos Requerentes fazer a devida prova de tal tentativa não sucedida, atentando que, no tempo da pandemia, as circunstâncias invocadas, foi possível o registo do requerente marido como cidadão residente em Portugal, do mesmo modo por via eletrónica.
23. Estando o direito ao reconhecimento de tal posição dependente da iniciativa dos Requerentes, não sendo algo que pudesse ser feito automaticamente, impunha-se-lhe que demonstrassem a impossibilidade de o terem feito, sendo certo que, nos termos do art. 74.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, se prescreve que “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”, o que não se logrou fazer.
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Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
24. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
25. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cfr. o art. 596.º, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT].
26. Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos aos autos, bem como das posições assumidas pelas Partes nos respetivos articulados e alegações.
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DO DIREITO
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A exceção da incompetência absoluta do Tribunal Arbitral por o pedido estar excluído do âmbito dos tribunais arbitrais tributários previstos no RJAT
27. A apreciação em sede de Direito nos presentes autos deve começar por analisar as exceções que foram invocadas pela Requerida, a primeira delas atinente à exclusão do pedido do âmbito das matérias arbitráveis, considerando que se estaria a discutir o reconhecimento ou não do estatuto de residente não habitual, não a liquidação que foi feita, ato posterior que, perante aquele não reconhecimento, aplicou a taxa normal prevista, e não a taxa que resultaria do reconhecimento prévio daquele benefício fiscal.
28. Os Requerentes tiveram ocasião de responder a esta exceção, afirmando que a mesma não teria ocorrido porque se pretendia impugnar uma liquidação que padeceria de um vício de violação de lei por não considerar o benefício fiscal de que seria titular o requerente e que à mesma seria inerente.
29. É certo que a intervenção arbitral tributária, prevista no art. 2.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, a realizar no seio do CAAD, não abrange a totalidade do contencioso tributário, sendo de recordar o que diz tal regime:
Artigo 2.º
Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
1 – A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais; (…)
30. A Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 287/2019, de 13 de setembro, “Vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa” e vem nesta mesma linha, ainda que se apresente um pouco mais específica, sendo de transcrever o seu art. 2º:
Artigo 2.º
Objeto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo”.
31. A comparação desta delimitação dos processos tributários que são aceites no âmbito da justiça arbitral tributários segundo o RJAT com a pluralidade de espécies processuais previstas no CPPT mostra que se pretendeu limitar o acesso ao contencioso tributário só a uma parte do universo deste.
32. Ora, não se inscreve no âmbito da jurisdição arbitral tributária a discussão da legalidade de algumas relações jurídicas fiscais administrativas, associadas a comportamentos declarativos que se consubstanciam em deveres autónomos do contribuinte perante a Administração Tributária, dos quais ficam depois dependentes as operações de lançamento e da liquidação de certos impostos.
É o que sucede com a determinação do VPT e com outras situações, sendo a definição do estatuto de residente não habitual uma situação equiparável, a qual não se confunde com a liquidação em si, esta obviamente impugnável.
33. O Tribunal Arbitral crê ser fácil demonstrar que a pretensão processual deduzida nos autos visa atingir o ato antecedente de não reconhecimento do estatuto de residente não habitual, e não propriamente o ato de liquidação em si, ao invés do afirmado pelos Requerentes.
Isso transparece logo na terminologia usada pelos Requerentes, quando se referem ao “excesso de quantificação” no ato de liquidação, percebendo-se que o problema não estava no ato de liquidação, que estaria certo, mas na taxa que o ato de liquidação aplicou.
Como também transparece na nomenclatura que se assinala na ação intentada no Tribunal de Braga, na qual se alude, na espécie processual em causa, “a impugnação de atos relativos a isenções ou benefícios fiscais ou outros atos”
34. Só que no caso a taxa escolhida, para satisfazer a pretensão dos Requerentes, dependia de uma condição prévia que não estava preenchida e que, por isso, não poderia ser aplicada: a taxa de residente não habitual não podia ser ponderada porque a situação jurídica de residente não habitual não havia sido reconhecida, e tal operação está excluída do ato de liquidação.
Tal entende-se bem lendo a disposição que antes consagrava esse benefício fiscal, tal como figurava do art. 72º, nº 12, do CIRS: “Os residentes não habituais em território português são ainda tributados à taxa de 10% relativamente aos rendimentos líquidos de pensões, incluindo os da categoria H e os previstos na alínea d) do n.º 1 e subalíneas 3) e 11) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2º, quando, pelos critérios previstos no n.º 1 do artigo 18.º, não sejam de considerar obtidos em território português, na parte em que os mesmos, quando tenham origem em contribuições, não tenham gerado uma dedução para efeitos do n.º 2 do artigo 25.º”.
35. De resto, ainda que se perceba numa lógica de “jurisprudência das cautelas”, não se pode olvidar que os Requerentes logo lançaram mão de uma ação especial com vista ao reconhecimento do estatuto de residente não habitual junto da justiça tributária estadual de Braga.
Com isto se comprova que os Requerentes tinham a presciência de que tal estatuto, a obter em procedimento tributário autónomo, não havia sido obtido, contra o qual não tendo reagido administrativamente, mas só depois judicialmente.
36. Eis um entendimento que, contudo, tem as suas limitações, como bem refere Lopes de Sousa, ao admitir a arbitrabilidade de atos secundários de impugnação administrativa, mas dele excluindo o conhecimento autónomo de atos com a natureza do reconhecimento de um benefício fiscal pessoal.
Registemos as palavras de Jorge Lopes de Sousa, no “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária”, Almedina, 2013, p. 105: «Mas, mesmo relativamente à impugnação de atos praticados no âmbito de procedimentos tributários, a competência destes tribunais arbitrais restringe-se à atividade conexionada com atos de liquidação de tributos, ficando de fora da sua competência a apreciação da legalidade de atos administrativos de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da Administração Tributária, bem como de outros atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação, a que se refere a alínea p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT…»
37. Vai também nesse sentido diversas decisões do CAAD, cabendo referir esta a decisão do Processo n.º 796/2022-T, que se transcreve na parte pertinente: “Seguimos na nossa análise a douta jurisprudência do Tribunal Constitucional, e dos tribunais superiores, designadamente, do Supremo Tribunal Administrativo que entendem que o ato que indefira o reconhecimento como RNH é atacável contenciosamente através de Ação Administrativa, não sendo uma faculdade, mas um ónus do contribuinte fazê-lo, não podendo efetuá-lo no âmbito da liquidação do tributo”.
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As exceções processuais da inimpugnabilidade específica do ato de liquidação sub iudice e da litispendência
38. A Requerida igualmente invoca como exceções processuais a inimpugnabilidade do ato de liquidação controvertido e a litispendência, neste caso por se encontrar a decorrer ação judicial com o mesmo objeto processual dos presentes autos.
39. A resposta a esta primeira exceção é positiva, mas a sua fundamenta-se identifica-se com a fundamentação já dada, uma vez que, não havendo arbitrabilidade, tal impugnação é inviável na justiça arbitral.
40. Quanto à exceção de litispendência, se não há arbitrabilidade, não havendo consequentemente jurisdição arbitral possível quanto ao objeto processual, nem sequer se pode falar em litispendência porque esta supõe a competência concorrente de uma pluralidade de jurisdições, o que não se verifica.
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O prazo perentório do antigo art. 16.º, n.º 10, do CIRS e a perda do direito ao reconhecimento do estatuto de residente não habitual se solicitado fora desse prazo
41. A Requerida, quanto ao fundo, refere que os Requerentes não têm razão porque, mesmo não havendo objeções sob a vertente das exceções, o pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual havia sido feito tarde demais, já depois de 31 de março de 2021, ano seguinte àquele em que o seu beneficiário teria adquirido o estatuto de residente em Portugal, 1 de julho de 2020.
Recorde-se que esse estatuto só foi obtido em 13 de julho de 2021, não obstante os Requerentes terem invocado que o tentaram em vão e que tal impossibilidade se ficou a dever a dificuldades tecnológicas por causa da pandemia.
Dispunha o art. 16.º, nº 10, do CIRS o seguinte: “O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato de inscrição como residente no território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território”.
42. Na verdade, sufraga-se a argumentação da Requerida quanto ao caráter perentório do mencionado prazo, sob pena de uma sucessiva e indesejável “derrapagem” na concessão de tal benefício fiscal, cujo lógica económica implica que tenha de ser concedido logo após o início do período de residência em Portugal.
De resto, os prazos, salvo razão específica em contrário, são perentórios, não são indicativos, mesmo no caso considerando que o sucessivo adiamento de tal pedido se consumasse na desvantagem da redução dos anos em que vigoraria o benefício fiscal inerente ao estatuto de residente não habitual.
43. Note-se que, mesmo que o pareça, esta é uma situação muito distinta da simples preterição de uma obrigação administrativa declarativa que se “soluciona” com a aplicação de sanções previstas no RGIT.
É bem mais do que isso porque, por detrás do cumprimento de um dever de declaração, está verdadeiramente a atribuição de um benefício fiscal que, não sendo automático, está dependente da iniciativa do contribuinte.
A iniciativa deste tem um inerente efeito constitutivo do mesmo, ato que, praticado, potestativamente cria, na sua esfera jurídica, essa posição de benefício fiscal para efeito de liquidação de IRS a uma taxa mais favorável.
A este propósito, o Tribunal Arbitral considera muito pertinentes as diversas decisões jurisdicionais citadas pela Requerida.
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Vício de falta de fundamentação da liquidação controvertida e inconstitucionalidade da interpretação do prazo do antigo art. 16.º, n.º 10, do CIRS como perentório
44. É ainda de sumariamente refutar a violação do dever de fundamentação no ato de liquidação em crise e a verificação de uma inconstitucionalidade caso o prazo do antigo art. 16.º, n.º 10, do CIRS fosse interpretado como prazo perentório.
45. Como foi explicitado pela Requerida na sua resposta, em atos de liquidação em massa, o dever geral de fundamentação não tem as mesmas exigências, e o que se fez foi suficiente para permitir a cognoscibilidade do assunto, tanto no plano dos factos como do Direito.
46. Em relação ao tema da inconstitucionalidade, tal conclusão não é de aceitar porque o legislador fiscal tem o direito de fixar um prazo perentório no caso em apreço, tratando-se da atribuição de um benefício fiscal em relação ao qual pretendeu reunir-se de maiores cautelas de zelo no sentido de poder calcular, em cada momento, a sua concessão, até porque os benefícios fiscais devem ser vistos, do lado do Estado, como uma despesa fiscal com repercussão orçamental anual.
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Juros indemnizatórios
47. A Requerente pede ainda a condenação da Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
Nos termos do art. 24.º, n.º 5, do RJAT, “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, implicando o pagamento de juros indemnizatórios nos termos dos arts. 43.º, n.º 1, da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT.
48. Julgando-se totalmente improcedente o pedido, não há lugar ao pagamento correspetivo de juros indemnizatórios a cargo da Requerida.
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DECISÃO
49. Termos em que o Tribunal Arbitral decide:
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Aceitar como procedente o incidente de habilitação processual, considerando como sujeitos processuais Requerentes os herdeiros de A..., na sequência do seu falecimento em 30 de maio de 2024, a viúva B..., e as suas únicas filhas, C... e D...;
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Absolver a Requerida da instância, dando por verificada a exceção de incompetência absoluta do Tribunal Arbitral, de tal entendimento decorrendo a inimpugnabilidade específica do ato de liquidação impugnado nesta sede;
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Absolver a Requerida do pedido, considerando que, perante a falta de prova da entrega do pedido do estatuto de residente não habitual até 31 de março de 2021, ónus probatório que competia aos Requerentes, deixaram após essa data de poder solicitar com êxito tal estatuto, prazo que se deve considerar perentório.
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Condenar os Requerentes no pagamento das custas.
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VALOR DO PROCESSO
50. De harmonia com o disposto nos arts. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €11.967,50 (onze mil, novecentos e sessenta e sete euros e cinquenta cêntimos), correspondente ao valor da liquidação impugnada e que é o valor do pedido de pronúncia arbitral, o qual não foi objeto de contestação nesses termos.
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CUSTAS
51. Calculadas de acordo com o art. 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, fixa-se o valor de €918,00 (novecentos e dezoito euros), a cargo dos Requerentes.
Notifique-se.
Lisboa, 5 de agosto de 2024.
O Árbitro
Jorge Bacelar Gouveia
[Texto elaborado em computador, nos termos do art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e). do RJAT].