Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 36/2024-T
Data da decisão: 2024-09-03  IRC  
Valor do pedido: € 34.500,00
Tema: IRC – Organismos de Investimento Coletivo não Residentes – Retenções na Fonte – Discriminação e Violação da Livre Circulação de Capitais – Arts. 22.º n.ºs 1 a 3 e 10 EBF e 63.º do TFUE
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DECISÃO ARBITRAL

SUMÁRIO
I.
A jurisprudência do TJUE sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP.

II. A disparidade do regime de tributação dos dividendos auferidos por organismos de investimento coletivo residentes e não residentes, consagrada nos n.ºs 1 e 10 do artigo 22.º do EBF, é incompatível com a liberdade de circulação de capitais que decorre do artigo 63.º do TFUE.

III. Em caso de retenção na fonte, havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário, o erro passa a ser imputável à Administração Fiscal no caso de indeferimento tácito ou presumido, contando-se o termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios do indeferimento, efetivo ou presumido, do procedimento gracioso.

 

  1. Relatório

 

A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de contribuinte português..., com sede em ... Frankfurt am Main, Alemanha, (doravante designado de “Requerente”), nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º do RJAT, deduziu Pedido de Pronuncia Arbitral (PPA) no qual peticionou:

  1. A apreciação da legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das a Pessoas Coletivas (“IRC”) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos ao ano de 2021,
  2. A apreciação da legalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa previamente apresentada para o efeito;
  3. a condenação da AT na restituição do imposto indevidamente suportado pela Requerente, acrescido de juros indemnizatórios

 

O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, a qual comunicou a aceitação da designação do encargo no competente prazo.

Em 26.02.2024, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Em conformidade com a al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o tribunal arbitral ficou constituído em 15.03.2024.

Notificada para o efeito por despacho de 15.03.2024, a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada de Requerida ou AT, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação pugnando pela improcedência do pedido.

Por despacho de 02.07.2024 foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, notificadas as Partes para, querendo, apresentarem alegações simultâneas no prazo de 15 dias e notificado o Requerente para proceder ao pagamento da taxa de arbitragem.

            Ambas as Partes apresentaram alegações. A AT reiterou a sua posição expressa na Resposta já o Requerente reiterou e desenvolveu a sua posição quanto à matéria de facto e de direito.

 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

ii.a Posição do Requerente

 

O Requerente é um OIC de direito alemão, constituído sob a forma contratual e não societária, comumente designada de fundo de investimento, sendo um sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável no país, detentor de participações sociais numa sociedade residente em Portugal.

No ano de 2021 o Requerente recebeu dividendos sujeitos a tributação em Portugal, por retenção na fonte à taxa liberatória de 25% ao abrigo do previsto no n.º 4 do artigo 87.º do CIRC, não tendo o Requerente obtido qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência.

Não se conformando com a liquidação de IRC o Requerente apresentou reclamação graciosa e, na ausência de uma decisão da AT volvidos mais de quatro meses sobre a data da apresentação, deduziu a presente impugnação.

Entende o Requerente que o regime interno consagrado no artigo 22.º do EBF que impõe a aplicação de retenção na fonte a dividendos distribuídos a um OIC não residente – como o Requerente –– (enquanto prevê que os dividendos distribuídos a OIC residentes estejam isentos dessa retenção) é claramente incompatível com o Direito da EU, em particular com o artigo 63.º do TFUE, constituindo uma restrição à liberdade de circulação de capitais proibida por este artigo.

Sustenta o Requerente que o regime de tributação dos dividendos confere um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes ao proceder a uma retenção na fonte sobre estes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção de retenção na fonte.  Esta diferença de tratamento consubstancia um tratamento discriminatório dos Organismos de Investimento Coletivo não residentes com fundamento exclusivo no lugar da sua residência, e face à inexistência de quaisquer argumentos que possam justificar o tratamento discriminatório ao abrigo do artigo 65.º n.º 1 alínea a) do TFUE, o artigo 22.º n.ºs 1, 3 e 10 do EBF comporta uma restrição injustificada à livre circulação de capitais violando o artigo 63.º do TFUE e, bem assim, o artigo 8.º, n.º 4 da CRP, concluindo o Requerente que esta diferença de tratamento é suscetível de dissuadir entidades residentes noutro EM de realizar investimentos em Portugal.

Em defesa da sua tese invoca inúmera jurisprudência nacional e do TJUE, nomeadamente, o acórdão proferido no caso AllianzGI-Fonds AEVN, processo n.º C-545/19.

Argui ainda o primado do direito da UE que encontra respaldo no artigo 8.º n.º 4 da CRP e cuja consequência é a não aplicação, em caso de conflito de leis, das disposições internas contrárias às disposições de direito comunitário bem como a proibição da introdução de disposições de direito interno contrárias à legislação comunitária.

 Por último, refere o Requerente que a AT tem o dever de emitir pronuncia sobre o pedido de reclamação graciosa no prazo de 4 meses, e o não cumprimento do prazo faz presumir, para efeitos de impugnação, o indeferimento do pedido, pelo que se encontram reunidos os pressupostos para a apresentação do pedido de pronúncia arbitral para apreciação da legalidade das liquidações de IRC.

Termina pugnando pela procedência do(s) pedido(s).

 

II.b Posição da Requerida

 

A Requerida sustenta a legalidade dos atos de retenção na fonte sindicados defendendo em síntese, que o direito internacional admite não serem comparáveis as relações entre residentes e não residentes, pois apresentam diferenças objetivas do ponto de vista do rendimento, da capacidade contributiva e da situação familiar, e a discriminação só acontece quando estamos perante a aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou de uma mesma regra a situações distintas. Invocou, em defesa da sua tese, jurisprudência do TJUE, que admite um tratamento diferenciado desde que seja objetivamente justificado, nomeadamente em razão do lugar de residência dos contribuintes, e que as alegadas diferenças de tratamento se encontram plenamente justificadas dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português.

Acrescenta a AT que as alegadas diferenças de tratamento se encontram justificadas dentro da sistematização e coerência do direito português, uma vez que o diploma que aliviou a tributação dos rendimentos de capitais destes sujeitos passivos de IRC criou uma tributação na esfera do imposto de selo, quando os rendimentos de capitais integrem o valor líquido destes organismos.

Nesta senda, refere ainda a AT a tributação autónoma, à taxa de 23%, prevista no n.º 11 do artigo 88.º a que podem estar sujeitos as entidades residentes em Portugal, bem como o n.º 8 do artigo 22.º do EBF que sujeita a tributação os dividendos pagos a OIC com sede em Portugal quando as partes sociais que respeitam a lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição.

Por último, acrescenta a AT, que mesmo que o Fundo não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu estado de residência, não está demonstrado que o imposto não possa ser recuperado pelos investidores.

Transpondo para o caso concreto, conclui a AT que (i) não estamos na presença de situações objetivamente comparáveis porque a tributação de OIC residentes e não residentes opera segundo modalidades diferentes, e que (ii) a aparente discriminação na forma de tributar dividendos distribuídos por sociedades a OIC não residentes, não conduz, necessariamente, à conclusão de que os OIC residentes estão sujeitos a uma menor carga fiscal.

A Requerida argumenta ainda não ter o Requerente feito prova dos factos constitutivos e legitimadores da sua pretensão, estribando a sua tese no voto de vencido proferido no âmbito do processo 619/2023-T, concluindo que face à ausência da demonstração dos factos alegados pelo Requerente, o Tribunal não pode atender as suas pretensões processuais.

            Termina pedindo pela improcedência do(s) pedido(s).

           

  1. Saneamento

 

O Tribunal foi regularmente constituído face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro, e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.

As Partes estão devidamente representadas e gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.

Não foram invocadas exceções ao conhecimento de mérito, nem o Tribunal as divisou.

O processo não enferma de nulidades.        

 

  1. Decisão da matéria de facto

IV.1 Factos provados

  1. O Requerente é um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal na Alemanha, constituído sob a forma contratual e não societária, comumente designado de fundo de investimento, sendo um sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável no país (cfr. documento n.º 1 junto e artigo 1.º da Resposta).
  2. No ano de 2021, o Requerente era detentor de um lote de participações sociais na B... SGPS S.A., sociedade residente para efeitos fiscais em Portugal.(cfr. Documentos n.ºs 2 e 4)
  3. A entidade responsável pela custódia dos títulos detidos em Portugal era o C... (cfr. documento n.º 2 junto ao PPA).
  4. No ano de 2021 o Requerente recebeu, na qualidade de acionista da sociedade residente em Portugal, dividendos. (facto não controvertido)
  5. Os dividendos recebidos pelo Requerente no ano de 2021 foram sujeitos a tributação em IRC em Portugal, à taxa de 25% por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos mesmos. (facto não controvertido e documento n.º 3.)
  6. O Requerente suportou, em Portugal, no ano em causa, a quantia total de imposto de
    € 34.500,00:

Ano da Retenção

Valor Bruto do Dividendo

Data de Pagamento

Taxa de Retenção na Fonte

Guia de pagamento

Valor da retenção (€)

2021

80 500,00

20.05.2021

25%

[…]

20 125,00

2021

57 500,00

16.09.2021

25%

[…]

14 375,00

TOTAL

34 500,00

 

 

 

 

 

(cfr. documentos n.ºs 2 e 3 juntos à p.i.)

 

  1. Em 7 de junho de 2023 o Requerente apresentou reclamação graciosa para apreciação da legalidade dos atos de retenção na fonte de IRC relativos ao ano de 2021, não tendo a AT proferido decisão decorrido o prazo legal para o efeito. (Cfr. documento n.º 4)
  2. Em 01/04/2024, decorridos 4 meses da data da apresentação da Reclamação Graciosa, o Requerente apresentou o Pedido de Pronuncia arbitral.

IV.2 Factos não provados

 

Não existem factos essenciais não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação da competência material do Tribunal foram considerados provados.

 

IV.3 Motivação da Matéria de Facto

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal e a sua convicção relativamente à matéria de facto resultou da análise crítica dos documentos e informações constantes dos autos, assim como nos elementos factuais carreados para o processo pelas Partes, considerando o Tribunal ter o Requerente feito prova dos factos constitutivos e legitimadores da sua pretensão.

Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

  1. Do Mérito

V.1 Objeto dos autos

 

A questão de direito a decidir respeita à compatibilidade com o direito da União Europeia, especificamente com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, do regime de tributação diferenciado instituído pelo artigo 22.º do EBF, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, que isenta de IRC os rendimentos de fonte portuguesa auferidos por um OIC constituído e a operar de acordo com a legislação nacional, e sujeita a retenção na fonte à taxa de 25% os mesmos rendimentos quando recebidos por OIC constituído noutro Estado-Membro.

 

V.2  – Do Direito

V.2 A – Enquadramento legal da tributação dos dividendos distribuídos a OIC 

 

O artigo 22.º do EBF à data dos factos, na parte que releva, dispunha o seguinte:

 1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os organismos de investimento coletivo que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
       2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
       3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.

Por força do artigo 22.º n.º 3 do EBF, na redação à data dos factos, os OIC constituídos de acordo com a legislação nacional estavam isentos de IRC sobre os dividendos obtidos.

Já a distribuição de dividendos por parte de sociedades residentes em Portugal a OIC não constituídos ao abrigo da lei portuguesa estão sujeitos a retenção na fonte à taxa liberatória de 25%, conforme resulta dos artigos 94.º n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3 alínea b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º 4 também do CIRC, não beneficiando do regime previsto no artigo 22.º do EBF.

V.2 B – Decisão do TJUE no processo de reenvio prejudicial C-545/19, acórdão AllianzGI-Fouds AEVN, em 17 de março de 2022

 

A matéria da tributação, em sede de IRC, dos OIC constituídos e a operar noutro Estado Membro foi objeto de pronúncia pelo Tribunal de Justiça, em 17 de março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19, acórdão AllianzGI-Fouds AEVN[1], o qual versou situação factual com características essenciais idênticas às dos presentes autos, suscitada por Tribunal Arbitral Tributário constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T), que no âmbito do mesmo enquadramento legislativo, decidiu pela ilegalidade das liquidações com fundamento na desconformidade com o Direito da União Europeia[2] e, dada a sua similitude com o objeto dos presentes autos, seguir-se-á de muito perto, reproduzindo-se algumas conclusões do aludido acórdão 

O processo de reenvio com o n.º C-545/19 surgiu na sequência de uma ação intentada junto no CAAD pelo OIC AllianzGI-Fouds AEVN constituído ao abrigo da legislação alemã e com sede na Alemanha, igualmente gerido por uma entidade com sede na Alemanha não sendo esta entidade residente em Portugal.

A AllianzGI-Fouds AEVN era detentora de participações sociais em diversas sociedades residentes em Portugal, tendo recebido dividendos que foram tributados mediante retenção na fonte à taxa liberatória de 25%, e uma vez que tem residência fiscal na Alemanha, a AllianzGI‑Fonds AEVN está isenta do imposto sobre o rendimento das sociedades nesse Estado‑Membro ao abrigo da regulamentação alemã. Este estatuto fiscal impede‑a de recuperar os impostos pagos no estrangeiro sob a forma de crédito fiscal por dupla tributação internacional, ou de formular um pedido de reembolso desses impostos.

Por considerar que a tributação dos dividendos distribuídos a OIC não residentes era discriminatória e violava o artigo 18.º do TFUE, e que consistia numa restrição à liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.º do TFUE, a AllianzGI-Fouds AEVN, recorreu ao órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) (Portugal), pedindo a anulação dos atos de retenção na fonte.

A AT, por sua vez, defendeu que o regime fiscal português aplicável aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação nacional e o regime aplicável aos OIC constituídos e estabelecidos na Alemanha não são, por natureza, comparáveis, uma vez que o primeiro destes regimes também não exclui a tributação dos dividendos a cargo dos organismos que abrange, seja através do imposto do selo ou do imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas. Tendo em conta que a tributação dos dividendos é feita segundo modalidades diferentes, nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa seja mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal por um organismo como a AllianzGI‑Fonds AEVN. A Autoridade Tributária e Aduaneira acrescenta que também não está demonstrado que a parte do imposto não recuperada pela AllianzGI‑Fonds AEVN não possa ser recuperada pelos investidores desta última.

No âmbito do acórdão prolatado no processo n.º C-549/19 o TJUE, determinou que as questões submetidas à sua apreciação, nomeadamente a apreciação da legislação nacional, teriam de ser examinadas exclusivamente à luz do artigo 63.º do TFUE e decidiu o seguinte Quanto à existência de uma restrição à livre circulação de capitais:

(…)

37.  No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.

38     Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

39     Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).

40     Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.

41     Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 29 e jurisprudência referida].

42     O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 30 e jurisprudência referida].

 

Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis pode ler-se no Acórdão em análise:

49     Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.° 47 e jurisprudência referida).

50     Quanto ao argumento do Governo português que figura no n.° 44 do presente acórdão, há que recordar que, nas circunstâncias que deram origem ao Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Truck Center (C‑282/07, EU:C:2008:762), o Tribunal de Justiça admitiu a aplicação, aos beneficiários de rendimentos de capitais, de técnicas de tributação diferentes consoante esses beneficiários sejam residentes ou não residentes, uma vez que esta diferença de tratamento diz respeito a situações que não são objetivamente comparáveis (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Truck Center, C‑282/07, EU:C:2008:762, n.° 41).

(…)

52     No entanto, sob reserva da verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, a legislação nacional em causa no processo principal não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes (v., por analogia, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.° 44 e jurisprudência referida).

53     A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.

(…)

57     Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.

(…)

61     No caso em apreço, no que diz respeito, em primeiro lugar, ao objeto, ao conteúdo e ao objetivo do regime português em matéria de tributação dos dividendos, seja ao nível dos próprios OIC ou dos seus detentores de participações sociais, resulta tanto da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informação do Tribunal de Justiça como da resposta do Governo português às perguntas escritas que lhe foram dirigidas no âmbito do presente processo que o referido regime foi concebido numa lógica de «tributação à saída», ou seja, os OIC que são constituídos e operam de acordo com a legislação portuguesa estão isentos do imposto sobre o rendimento, sendo o encargo que este último representa transferido para os detentores de participações sociais que têm a qualidade de residentes, estando os detentores de participações sociais não residentes dele isentos.

62     Com efeito, o Governo português precisou que o regime nacional em matéria de tributação dos dividendos visava alcançar objetivos como, nomeadamente, evitar a dupla tributação económica internacional e transferir a tributação na esfera dos OIC para a esfera dos respetivos participantes, procurando assim que a tributação incidente sobre estes rendimentos seja aproximadamente equivalente à que ocorreria caso esses rendimentos tivessem sido obtidos diretamente pelos participantes nesses mesmos OIC.

(…)

67     Tendo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram‑se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o.,  C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 56 e jurisprudência referida).

68    (…)

71     No que respeita, em segundo lugar, aos critérios de distinção pertinentes, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.° 60 do presente acórdão, há que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.

72     Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.° 58 e jurisprudência referida).

73     Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.

74     Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.

 

Em sede de conclusão, respondendo às questões de saber se o artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção, o Tribunal de Justiça declarou:

O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

Tendo em conta que a jurisprudência do TJUE sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, e atenta a inequívoca semelhança da situação sob escrutínio com a objeto do processo n.º C-545/19, impõe-se a aplicação do entendimento sufragado pelo TJUE no âmbito daquele aresto, concluindo-se que a disparidade do regime de tributação dos dividendos auferidos por organismos de investimento coletivo residentes e não residentes, consagrada nos n.ºs 1 e 10 do artigo 22.º do EBF, é desconforme ao Direito da União[3] e, em consequência, considerar procedente o pedido arbitral determinando-se a ilegalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa e a consequente anulação do atos tributários impugnados.

 

  1. Direito aos juros indemnizatórios

 

O Requerente formula o pedido de restituição do imposto indevidamente suportado, acrescido dos juros indemnizatórios computados sobre este montante.

A AT sustenta não serem devidos juros porque não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente por estar sujeita ao princípio da legalidade, inexistindo qualquer erro imputável à AT que tenha determinado o pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.

Determina o n.º 1 do artigo 43.º da LGT que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

Nos termos desta do artigo 43.º da LGT, quando se determine que houve erro imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira que determinou o pagamento de imposto em montante superior ao devido, há direito da Requerente a juros, em caso de procedência do pedido que determine a ilegalidade da liquidação.

Segundo jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal Administrativo, considera-se verificada a existência de erro imputável aos serviços, sempre que se verificar a procedência da reclamação graciosa ou impugnação judicial do ato de liquidação.

Ademais, a liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf., entre outros o acórdão do STA de 14.10.2020 no processo n.º 01273/08).

Dispõe também a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, que a AT fica vinculada a, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”

O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, que impõe a plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, no caso de procedência de reclamação graciosa ou impugnação judicial.

Por Acórdão de 29-06-2022 proferido no Processo n.º 93/21.7BALSB, o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo procedeu à harmonização de jurisprudência, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, nos seguintes termos:

Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs.1 e 3, da L.G.T.”

Tratando-se de jurisprudência uniformizada, deve ser acatada pelo que se decide que o Requerente tem direito a juros indemnizatórios desde a data em que terminou o prazo para ser apreciada a reclamação graciosa nos termos do n.º 1 do artigo 57.º da LGT, até integral reembolso ao Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

  1. Decisão

 

Nestes termos, em conformidade com o acima exposto, decide-se:

  1. Julgar procedente o pedido de anulação da liquidação de IRC, realizada por retenção na fonte;
  2. Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia de € 34.500,00, e condenar a Administração Tributária a pagar este montante ao Requerente;
  3. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar ao Requerente esses juros, contados desde a data a data em que terminou o prazo para ser apreciada a reclamação graciosa, até integral reembolso ao Requerente,
  4. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

  1. Valor do processo

 

Fixa-se, em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 3 do Código de Procedimento e Processo Tributário, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o valor do processo em € 34.500,00 (trinta e quatro mil e quinhentos euros) que constitui a importância do imposto objeto de impugnação nas liquidações sindicadas.

 

  1. Custas

 

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida.

Lisboa, 3 de setembro de 2024

Notifique-se.

 

O Árbitro

 

Cristina Coisinha

 

 



 

[3] Quanto a esta matéria também o Supremo Tribunal Administrativo também fixou jurisprudência no acórdão n.º 7/2024, de 26 de fevereiro (…)“2 - O art.º 63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado -Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção. 3 — A interpretação do art.º 63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o art.º 22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia”