SUMÁRIO
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A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.
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A legislação portuguesa de IRC, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado, ao mesmo tempo que permite aos OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, (acórdão de 17.03.2022).
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A liberdade de circulação de capitais refere-se quer a Estados Membros, quer a países terceiros.
DECISÃO ARBITRAL
A..., com sede em ..., ... ..., Estados Unidos da América, NIPC ..., representado pela sua entidade gestora B..., sociedade de direito americano, com sede em ..., ..., ..., Estados Unidos da América, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
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O pedido
O Requerente peticiona a anulação dos atos tributários (liquidações por retenção na fonte liberatória) relativos a IRC que incidiram sobre rendimentos auferidos em Portugal em 2020 (consubstanciados nas guias n.º..., n.º ... e n.º ..., referentes aos período de maio, julho e dezembro) e em 2021 (consubstanciados nas guias n.º..., n.º ..., n.º..., dos períodos de abril, maio, e setembro).
Pede ainda a anulação das decisões de indeferimento das reclamações graciosas relativas a tais liquidações.
Pede ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
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O litígio
A questão a decidir é saber se viola a liberdade de circulação de capitais, consagrada no artigo 63.º do TFUE, o facto de os dividendos distribuídos a organismos de investimento coletivo (OIC) não residentes (no caso, a um residente em país terceiro) por entidades com sede ou com estabelecimento estável em Portugal estarem aqui sujeitos a tributação por retenção na fonte, enquanto idêntico tipo de rendimentos, quando distribuídos a fundos de investimento constituídos e operando de acordo com a legislação nacional, estão isentos de tributação por força do disposto no nº 3 do art. 22 do EBF.
O Requerente conclui, obviamente, pela positiva.
A Requerida defende a posição contrária, entendendo, nomeadamente, que os regimes fiscais em IRC aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional (residentes) e aos OIC constituídos noutros países (não residentes) não são diretamente comparáveis, pois que a tributação dos primeiros repousa sobretudo no Imposto do Selo; e que nada permite concluir que, no conjunto dos impostos suportados em Portugal e nos EUA, a situação dos Requerentes resulte mais gravosa.
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Tramitação processual
O pedido foi aceite em 06/03/2024.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 15/05/2024.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Por despacho de 24/06/2024, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.
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Saneamento
Não foram alegadas nem detetadas questões suscetíveis de impedir o conhecimento do mérito.
II.1 – Factos Provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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O Requerente é um fundo de investimento constituído ao abrigo da lei dos Estados Unidos da América e residente para efeitos fiscais neste país.
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O Requerente reúne capital de investidores que investe em ações de empresas de pequena, média e grande capitalização em mercados desenvolvidos (excluindo EUA e Canadá).
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O Requerente é tributado nos Estados Unidos por aplicação das disposições legais relativas às Regulated Investment Companies.
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Em 2020, o Requerente auferiu dividendos da sua participação no capital social de sociedades com sede em Portugal, os quais foram objeto de retenção na fonte no montante total de 411.000,45 €.
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Em 2021, o Requerente auferiu dividendos da sua participação no capital social de sociedades com sede em Portugal, os quais foram objeto de retenção na fonte no montante total de € 448.868,43
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Os valores retidos foram entregues ao Estado através das guias de pagamento nº ..., n.º ..., nº..., nº ..., nº ... e nº ... .
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O Requerente apresentou reclamações graciosas necessárias relativamente às liquidações (retenções na fonte) que ora impugna, as quais foram indeferidas em 04/1/2023 (a relativa a 2020) e em 28/12/ 2023 (a relativa a 2021)
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Na fundamentação dos despachos de indeferimento de tais reclamações graciosas lê-se:
6.Tal regime não é aplicável ao Reclamante - pessoa coletiva constituída de acordo com a legislação dos Estados Unidos da América por falta de enquadramento com o disposto no n.º 1 do art.º 22.º do EBF, conforme entendimento sancionado superiormente.
7.A consagração da liberdade de circulação dos capitais e, consequentemente, a proibição de adoção de medidas restritivas da mesma, encontra-se consagrada nos art.ºs 63.º e seguintes do TFUE , concretização do art.º 18.º do TFUE, e é aplicável tanto entre Estados-membros como entre Estados-membros e Estados-terceiros, ou seja, que não integram a UE.
8.Efetivamente, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou-se sobre tal exclusão, através do acórdão proferido no processo n.º C – 545/19 de 17 de março de 2022, do qual resulta que « O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.»
10.Todavia, não cabe à AT. invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável. 11.Evidenciando-se que, a interpretação do direito europeu constante das decisões jurisprudenciais é vinculativa para os órgãos jurisdicionais, mas não afastam a vigência legal das normas consideradas pelo TJUE como contrárias ao direito europeu.
13.Na esteira do Acórdão do TJUE, no âmbito do n.º 10 do art.º 22.º do EBF, estão incluídos OIC constituídos nos demais Estados-membros e, por maioria de razão, os OIC constituídos nos demais Estados-Membros da EU e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado. 14.Pelo que, nos parece viável uma interpretação jurídica conforme ao direito europeu, segundo a qual no âmbito da dispensa de retenção, estarão incluídos os OIC constituídos nos demais Estados-Membros da EU e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado.
15. Ora, no caso em apreço, conforme informado, o Reclamante é não residente fiscal (EUA) e não dispõe de estabelecimento estável em Portugal, pelo que, não se encontra enquadrado no n.º 1 do art.º 22.º do EBF. 16.Pelo exposto, é de indeferir o pedido.
A convicção do tribunal fundou-se na análise dos documentos juntos aos autos.
Contrariamente ao que entende a Requerida, a Requerente fez prova de que é considerada, nos Estados Unidos, uma Regulated Investment Companies , sendo como tal tributada(doc. 3 junto à p.i.) e da sua atividade como fundo imobiliário (doc. 1 junto à reclamação graciosa).
Algumas observações quanto ao argumentário invocado na defesa por impugnação deduzida pela Requerida na sua resposta:
- há que não esquecer que as liquidações ora impugnadas foram, antes, objeto de reclamação necessária. Na decisão de tal reclamação, a qual constitui o objeto imediato deste processo arbitral, a AT apresentou os fundamentos que a levaram a recusar o pretendido pelo ora Requerente. Não é aceitável que a AT venha, em sede de resposta neste processo, colocar em causa a verdade de factos alegados na reclamação graciosa que não foram objeto de apreciação (impugnação) na respetiva decisão. Sirvam de exemplos a qualidade de OIC, constituído e funcionando ao abrigo da legislação dos Estados Unidos, do Requerente. Aceitar estes (novos) argumentos da AT, formulados no sentido de lograr a improcedência do pedido, equivaleria a aceitar uma fundamentação a posteriori da recusa administrativa de satisfazer o que lhe foi solicitado pelo Requerente.
- em processo tributário podem ser utilizados todos os meios de prova admissíveis em direito. Neste processo não estão em causa factos que tenham que ser provados por documento autêntico, como parece pretender a Requerida, p. ex., no nª 14 da sua resposta: Não constituindo, por conseguinte, documentos emitidos pela Autoridade Fiscal dos EUA, ou por esta devidamente certificados, que comprovem a situação fiscal efectiva da ora Requerente.
Vale o princípio da livre convicção do tribunal, o valor probatório por este atribuído aos documentos particulares juntos aos autos
- A tradução de documentos escritos em língua estrangeira deve corresponder a uma necessidade, não é um ritual.
Relativamente a documentos escritos em língua inglesa, há que assumir que a AT (que não se confunde com a pessoa das suas mandatárias neste processo) os compreende, desde logo porquanto é diariamente confrontada com escritos neste idioma (hoje, língua franca internacional) no âmbito das mais variadas relações fiscais internacionais.
A exigência tradução dos documentos juntos ao processo, os quais são também perfeitamente inteligíveis por todos os membros deste tribunal, corresponderia à prática de um ato objetivamente inútil, para mais moroso e dispendioso, em clara violação dos princípios da economia e celeridade que presidem ao processo tributário.
Por último: o tribunal considera irrelevante a questão de saber se os rendimentos em causa foram ou não tributados nos Estados Unidos porquanto o que está em causa no presente processo não é uma qualquer questão de dupla tributação internacional, mas sim saber da legitimidade de Portugal para tributar tais rendimentos, atentas as normas de direito europeu a que se encontra vinculado.
Cumpre aferir se assiste razão ao Requerente quando alega a existência de uma discriminação, violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, dados os regimes de tributação diferenciados que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC’s constituídos e residindo noutro Estado.
Esta questão foi objeto de pronúncia pelo Tribunal de Justiça, em 17 de março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o qual versou sobre uma situação factual idêntica às dos presentes autos, suscitada por Tribunal constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T), no mesmo enquadramento legislativo.
Tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da União tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, apenas há que tomar em consideração o constante de tal decisão do TJUE, a qual é (o último) exemplo de uma jurisprudência, versando sobre diferentes aspetos do tema em questão, desde há muito afirmada[1].
Citamos:
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).
Nos números seguintes de tal acórdão, o TJUE responde especificadamente às objeções do governo português, as quais, no essencial, coincidem com o argumentário vertido pela AT na sua resposta. Muito embora este tribunal não esteja obrigado a considerar todos e cada um dos argumentos expendidos pelas partes, mas apenas a apreciar os vícios invocados, remete-se para a decisão do TJUE também enquanto “contraponto” à resposta da AT.
Pelo que a este tribunal arbitral nada mais resta que cumprir com o ditame do TJUE.
Por último, há que frisar ser irrelevante o facto de o acórdão do TJUE no qual, desde logo por obrigação legal, nos louvamos, ter versado sobre uma situação de um OIC de direito luxemburguês, com residência fiscal nesse país e, no caso sub judice, estar em causa um OIC de direito americano, com residência nos EUA. Como consta do excerto atrás transcrito, o TJUE foi claro em afirmar estar em causa uma ofensa à liberdade de circulação de capitais. Ora o artigo 63.º, n.º 1 do TFUE é claro em proibir “todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros”.
IV- JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf. neste sentido, entre outros, a decisão arbitral proferida no processo n.º 114/2022-T e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, proferido no processo n.º 01273/08.6BELRS).
Só que, porque num primeiro momento o erro apenas pode ser imputável ao substituto (e não à AT), há que observar o decidido pelo STA no acórdão de uniformização de jurisprudência de 29.06.2022, proferido no processo n.º 093/21.7BALSB: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os árbitros em:
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Anular as retenções na fonte de IRC, liberatórias, no montante de acima identificadas, que incidiram sobre juros pagos ao Requerente em 2020 e 2021, num total de € 859.868,88 e, consequentemente, anular as decisões que versaram sobre as reclamações graciosas.
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Condenar a Requerida, para além da devolução do imposto indevidamente pago, a pagar ao Requerente juros indemnizatórios, a liquidar nos termos legais, contados desde o dia seguinte ao indeferimento de cada uma das reclamações graciosas.
Valor do processo – Fixa-se em € 859.868,88, correspondente ao montante total das liquidações impugnadas.
Custas, no montante de € 12.240,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.
18 de julho de 2024
Rui Duarte Morais (relator)
Nina Aguiar
Rui Miguel Zeferino Ferreira
[1] Uma referência ao facto de o STA – como era seu dever – ter uniformizado a jurisprudência em obediência ao decidido pelo TJUE (ac. 093/19, de 28/09/2023).