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Sumário
A expressão “fração do IRC” constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 91.º do CIRC deve incluir a coleta da derrama municipal e, em consequência o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta de tal imposto originado por rendimentos obtidos no estrangeiro.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins (presidente), Sofia Quental e Sónia Martins Reis, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 1 de abril de 2024, acordam no seguinte:
I. Relatório
A..., S.A. (adiante abreviadamente designada por “A...” ou “Requerente”), titular do número de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na ..., n.º ..., ...-..., ..., concelho da..., na qualidade de sociedade dominante do Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (“RETGS”) do Grupo B..., veio requerer a V. Exa. a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL E PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL, tendo por objeto a decisão final de indeferimento da Reclamação Graciosa que correu termos sob o processo n.º ...2023... (que ora se junta como Documento n.º 1), apresentada contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2021 ..., emitida em 3 de agosto de 2021, referente ao período de tributação de 2020 (que ora se junta como Documento n.º 2), o que faz ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), no artigo 5.º, n.º 1 e n.º 3, alínea a), no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) e seguintes, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAMT”) e nos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, conjugado com o disposto no artigo 99.º, alínea a) e artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), aplicável ex vi artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do aludido RJAMT.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Em 22 de janeiro de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD, do que foi notificada a AT.
De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os ora árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 1 de abril de 2024.
Em 8 de maio de 2024, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por impugnação, e juntou aos autos o processo administrativo (“PA”).
Por despacho deste Tribunal, de 14 de junho de 2024, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito e a prova produzida é meramente documental. Por outro lado, também foi decidida, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, a dispensa da produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença.
Posição do Requerente
A Requerente é uma sociedade de direito português que integra e lidera o Grupo B..., o qual dedica a sua atividade principal ao sector da produção, comercialização e promoção de medicamentos de patente própria e sob licença de empresas farmacêuticas multinacionais.
Para efeitos fiscais, a Requerente encontra-se sujeita ao regime geral de tributação, em sede de IRC, cujo período de tributação coincide com o ano civil.
A este respeito, cumpre destacar a atuação modelar da Requerente na sua relação com a AT, a qual sempre foi procedida com boa-fé, encontrando-se a mesma com a sua situação tributária e contributiva devidamente regularizada.
A Requerente era, a 31 de dezembro de 2020 (continuando a sê-lo atualmente), a sociedade dominante do Grupo B..., sujeito ao Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (“RETGS”), o qual incluía no exercício de 2020, as seguintes sociedades dominadas:
NIF
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Denominação
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...
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C..., S.A.
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D..., S.A.
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E..., S.A.
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F..., S.A.
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G…, S.A.
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Na qualidade de sociedade dominante do Grupo B..., recai sobre a Requerente a responsabilidade pela liquidação do IRC, sendo as demais entidades do grupo solidariamente responsáveis pelo pagamento do imposto, nos termos do atual artigo 115.º do Código do IRC.
A sociedade dominante atua, pois, como efetiva representante do Grupo sendo, por via disso, e no conjunto das sociedades em causa, o sujeito passivo de imposto.
Em cumprimento da aludida obrigação fiscal, por referência ao período de tributação de 2020, a Requerente procedeu, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 e na alínea a) do n.º 6 do artigo 120.º e do artigo 70.º do Código do IRC, à entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC, com o número de identificação..., conforme cópia que se junta como Documento n.º 4.
A este respeito, importa recordar que o prazo para dar cumprimento à obrigação de entrega da declaração periódica de rendimentos de IRC (declaração Modelo 22) relativa ao período de tributação de 2020 e respetivo pagamento, previstos no n.º 1 do artigo 120.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 104.º do Código do IRC, foi alargado até 19 de julho de 2021, por via do Despacho n.º 240/2021-XXII, de 14 de julho de 2021 (sublinhado nosso).
Neste sentido, a Requerente procedeu à entrega tempestiva da referida Declaração, o que fez a 15 de julho de 2021.
Conforme se pode constatar pela análise da aludida Declaração, a Requerente apurou uma coleta total de IRC, no valor de Euro 8.309.241,24 (oito milhões, trezentos e nove mil, duzentos e quarenta e um euros e vinte e quatro cêntimos), incluindo derrama estadual no valor de Euro 1.411.089,09 (um milhão, quatrocentos e onze mil, oitenta e nove euros e nove cêntimos) e derrama municipal no valor de Euro 272.031,44 (duzentos e setenta e dois mil, trinta e um euros e quarenta e quatro cêntimos).
Para além dos referidos valores, no exercício de 2020, foi apurado e pago pela Requerente, a título de tributação autónoma, o montante de Euro 551.964,32 (quinhentos e cinquenta e um mil, novecentos e sessenta e quatro euros e trinta e dois cêntimos).
Resulta do Quadro 07 do Anexo D da Declaração de Rendimentos Modelo 22 submetida pela Requerente (relativo a benefícios fiscais que operam por dedução à coleta), que esta possuía um saldo de benefícios fiscais passíveis de dedução, no período de tributação de 2020, no valor total de Euro 45.727.969,37 (quarenta e cinco milhões, setecentos e vinte e sete mil, novecentos e sessenta e nove euros e trinta e sete cêntimos), tendo deduzido no campo 355 da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC um montante de Euro 4.637.054,09 (quatro milhões, seiscentos e trinta e sete mil, e cinquenta e quatro euros e nove cêntimos), a título de SIFIDE, reportando para os períodos de tributação seguintes um valor de SIFIDE de Euro 41.090.915,28 (quarenta e um milhões, noventa mil, novecentos e quinze euros e vinte e oito cêntimos), conforme se detalha na seguinte tabela:
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Detalhe Anexo D
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Saldo que transita para 2020
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Dedução do período 2020
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Saldo que transita para período(s) seguinte(s)
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SIFIDE
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45.727.969,37
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4.637.054,09
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41.090.915,28
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Total
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45.727.969,37
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4.637.054,09
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41.090.915,28
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Valores em euros
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Paralelamente, por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC, a Requerente deduziu à coleta total de IRC um montante de Euro 3.672.187,15 (três milhões, seiscentos e setenta e dois mil, cento e oitenta e sete euros e quinze cêntimos), a título de Crédito de Imposto por Dupla Tributação Jurídica Internacional (“CIDTJI”) (campo 353 da Modelo 22), conforme detalhe incluído no quadro 14 da Declaração de Rendimentos Modelo 22 e que se apresenta conforme a seguinte tabela:
CRÉDITO DE IMPOSTO POR DUPLA TRIBUTAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL (CIDTJI)
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Código do país
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Tipo de rendimentos
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Saldo não deduzido
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Apuramento no período
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Dedução efetuada no período
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Saldo que transita
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Imposto pago no estrangeiro
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Fração do imposto relativa a rendimentos obtidos no estrangeiro
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Crédito de imposto do período
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TOTAL do CIDTJI com CDT
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1.789.208,89
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1.882.978,26
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4.236.701,07
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1.882.978,26
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3.672.187,15
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0,00
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TOTAL do CIDTJI sem CDT
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0,00
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-
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0,00
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0,00
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0,00
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TOTAL do CIDTJI
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1.789.208,89
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1.882.978,26
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4.236.701,07
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1.882.978,26
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3.672.187,15
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0,00
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Valores em euros
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A este respeito, importa referir que a Requerente deduziu o montante total de CIDTJI apenas à coleta total de IRC por imposição do sistema informático de submissão da Declaração Modelo 22, e não por concordar com tal procedimento.
Uma vez que não existe norma legal que obrigue a dedução do CIDTJI, em primeiro lugar, à coleta total de IRC e, em segunda linha, à derrama municipal, não pode a Requerente concordar com esta imposição do sistema informático do Portal da AT.
De acordo com as instruções de preenchimento da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC, aprovadas por Despacho do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Fiscais, n.º 314/2021, de 11 de janeiro de 2021, “Quando o sujeito passivo tenha obtido rendimentos em país com o qual tenha sido celebrada Convenção para evitar a dupla tributação (CDT) e que sejam tributados nos dois Estados, a dedução do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional pode ser efetuada até à concorrência do somatório da coleta total (campo 378) e da derrama municipal (campo 364)”.
Assim, não restam dúvidas à Requerente de que o montante declarado a título de CIDTJI, inerente aos rendimentos obtidos em países com os quais Portugal celebrou Convenções para Evitar a Dupla Tributação (“CDT”), pode ser deduzido ao montante apurado a título de derrama municipal, no exercício de 2020, pelas razões que infra melhor se passarão a expor.
A legalidade do procedimento descrito foi, aliás, verificada e confirmada pela decisão arbitral proferida no Processo n.º 114/2020-T de 30 de outubro de 2020 (cuja cópia se junta sob o Documento n.º 5), no âmbito do qual a aqui Requerente impugnou a liquidação de IRC n.º 2018..., emitida em 15 de outubro de 2018, por referência ao período de tributação de 2017, no seguimento da submissão da Declaração de Rendimentos Modelo 22 entregue quanto a esse período, nos termos do qual foi determinada a anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa proferida no âmbito do processo n.º ...2019... e anular parcialmente o ato de liquidação supra identificado na parte correspondente ao valor da derrama municipal e consequente restituição à Requerente.
Face ao erro na autoliquidação de imposto referente ao período de tributação de 2020 acima descrito, não pode a Requerente deixar de recorrer aos expedientes que legalmente lhe permitem corrigir a situação em apreço,
Seja, numa primeira fase, através do recurso à apresentação da competente Reclamação Graciosa, - o que fez no passado dia 12 de julho de 2023, conforme supra já referido -, a qual foi, contudo, indeferida,
Seja através da apresentação do presente pedido de constituição e pronúncia do tribunal arbitral, passando a explanar as razões que fundamentam o seu entendimento e a pretensão reclamada.
Por essa razão, e tal como já avançado, no passado dia 12 de julho de 2023, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa, com vista à anulação de parte da liquidação de IRC supra melhor identificada e, por via disso, ao reembolso do montante de Euro 272.031,44 (duzentos e setenta e dois mil, trinta e um euros e quarenta e quatro cêntimos).
Em traços gerais, baseou-se o pedido da Requerente na possibilidade de dedução do montante apurado a título de CIDTJI, referente a países com os quais Portugal celebrou CDT, em primeira linha, à derrama municipal e, posteriormente, à coleta total de IRC, com fundamento na ausência de base legal que obrigue a que a dedução seja efetuada em ordem inversa.
Após análise da Reclamação Graciosa apresentada, foi a Requerente notificada, no dia 19 de setembro de 2023, do projeto de decisão de indeferimento proferido pela AT, bem como para, querendo, exercer direito de audição relativamente ao sentido de decisão aí vertido – cfr. cópia já junta sob o Documento n.º 3.
Tal como já referido, uma vez que foi opção da Requerente não exercer direito de audição, foi proferida decisão final de indeferimento da Reclamação Graciosa, em 25 de outubro de 2023 – cfr. Documento adjunto sob o n.º 1.
Para o efeito ressalvou a AT que “em causa não está a possibilidade em abstrato de dedução de CDTJI à derrama municipal, mas sim do uso do crédito de imposto disponível, discricionariamente, ao IRC, derrama estadual e derrama municipal, alegando que não existe nenhuma norma legal que imponha uma hierarquia na dedução à coleta de crédito de imposto.”
Assim, por referência à pretensão deduzida pela Requerente, destacou a AT que nada há “a apontar às considerações da Reclamante [ora Requerente] quanto à natureza da derrama municipal”, assim como “[q]uanto à possibilidade da derrama municipal beneficiar da CDTJI”.
Entendeu a AT que, apesar de a aqui Requerente “pugnar pela inexistência de regras legais de hierarquia que imponham a dedução de CDTJI primeiramente ao IRC e derrama estadual e posteriormente, em caso de insuficiente coleta, à derrama municipal”, as instruções de preenchimento da declaração de rendimentos Modelo 22 “estabelecem expressamente essa hierarquia.” (sublinhado nosso).
Pelo que, ao encontrar-se vinculada à legalidade, a AT, enquanto órgão da Administração Publica, deve “atuar dentro dos parâmetros que a mesma define, e nesse contexto cabe o cumprimento das instruções do membro do Governo competente, quando exerçam competências administrativas no domínio tributário.”
Pese embora o despacho do Gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (“SEAF”) que aprova as alterações da declaração periódica de rendimentos Modelo 22, respetivos anexos e instruções de preenchimento configurar-se “no direito nacional não como lei mas como uma expressão do poder regulamentar e administrativo do Governo”, concluiu a AT que, “independentemente da forma do ato”, “existe uma regra expressa que determina que a dedução da CDTJI ocorra primeiramente na coleta de IRC e derrama estadual e só depois, após insuficiência desta, poderá ser deduzida à derrama municipal.” (sublinhado nosso).
Acrescentou ainda a AT, “poder o contribuinte deduzir CDTJI primeiro à derrama municipal, (…) e só depois ao IRC e derrama estadual, violaria frontalmente o n.º 2 do artigo 90.º do CIRC”, “pois daria ao contribuinte o poder de dispor a afetação da CDTJI aos impostos pretendidos, distintos entre si, sem cumprir a sua ordem sequencial”.
Sucede que, logo após elucidar a Requerente, vem a AT dizer, de forma pouco clara, que impondo a referida norma, “que as deduções à coleta sejam sequenciais, não se reputará de contra legem que essas mesmas operem nos diferentes impostos sobre o rendimento das pessoas coletivas previstos no sistema fiscal nacional, onde são admissíveis, consoante a sua hierarquia ou ordem de grandeza (diga-se de volume de receita fiscal). Nesse sentido, será o IRC e a derrama estadual, seguida da derrama municipal”.
Tendo por base os argumentos acima invocados, decidiu a AT pelo indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada.
Por não concordar com a fundamentação esgrimida pela AT, vem agora a Requerente apresentar o presente pedido de constituição e pronúncia arbitral, por forma a demonstrar as razões pelas quais considera não assistir razão à AT, quanto aos argumentos invocados para a impossibilidade de dedução do CIDTJI, em primeiro lugar, à coleta da derrama municipal e, posteriormente, à coleta total, e, por via disso, pedir a anulação parcial da liquidação de IRC, referente ao período de tributação de 2020, subjacente aos presentes autos.
Posição da Requerida
Quanto aos factos com interesse para a boa decisão da causa, atento o alegado pelas partes e a prova documental junta, máxime o processo administrativo, o qual se dá como integralmente reproduzido nos presentes autos arbitrais, será de considerar assente no probatório o seguinte:
A Requerente é a sociedade dominante do grupo B... que é tributado, em sede de IRC, pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), consagrado nos artigos 69.º a 71.º do CIRC.
Pretendendo a dedução parte do saldo de crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional (CDTJI) disponível ao produto da derrama municipal, em vez de imputar inteiramente esse à coleta de IRC e de derrama estadual, no montante 272.031,44, ou seja, e coincidência e até à concorrência da derrama municipal apurada, apresentou reclamação graciosa a qual foi indeferida.
Não concordando com a decisão, a Requerente apresentou os presentes autos arbitrais.
Todavia, e com o devido respeito, a Requerente não tem razão decaindo in totum os argumentos expendidos, como se irá demonstrar.
A derrama municipal é considerada um imposto autónomo, adicional mas dependente do IRC, na parte em que partilha com este ultimo a base de incidência e o apuramento de imposto.
A derrama municipal não se encontra prevista no CIRC, ao contrário da derrama estadual, mas sim na usualmente referida Lei das Finanças Locais, introduzida originariamente art.º 5. da Lei n.º 1/87de 6 de janeiro, e prevista atualmente no art.º 18.º da Lei n.º 73/2013, de 03 de setembro.
O regime da derrama municipal sempre foi ligeiro, não indicando conceitos, base tributável, nem regras de liquidação, remetendo essa disciplina sempre para o IRC.
Cabe à Autarquia Local definir, dentro dos parâmetros que o regime da derrama municipal permite, a taxa, taxas reduzidas ou isenções, possuindo assim uma ampla gestão do tributo.
Quanto à possibilidade da derrama municipal beneficiar da CDTJI, é esta também, hoje, uma questão pacifica para a AT, sendo a maior evidencia dessa aceitação a introdução do campo 379 do Quadro 10 da declaração modelo 22 destinado à inscrição do montante de CDTJI a deduzir ao produto da derrama municipal.
Conforme detalhe das instruções de preenchimento da declaração modelo 22 previstas no Despacho n.º 10551/2019, de 18 de novembro, do Gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais(SEAF), a respeito do Campo 379 esclarece-se o seguinte:
Campo 379 Dupla tributação jurídica internacional Países com CDT
• Quando o sujeito passivo tenha obtido rendimentos em país com o qual tenha sido celebrada Convenção para evitar a dupla tributação (CDT) e que sejam tributados nos dois Estados, dedução do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional pode ser efetuada até à concorrência do somatório da coleta total (campo 378) e da derrama municipal (campo 364).
• Este campo só deve ser preenchido quando o crédito de imposto relativo à dupla tributação jurídica internacional não pôde ser integralmente deduzido no campo 353, por ser superior à coleta total (campo 378).
O valor excedente, se respeitar a países com CDT, pode ser deduzido neste campo até à concorrência do valor da derrama municipal inscrito no campo 364.
Assim, se por um lado é inteiramente aceite a dedução à derrama municipal de CDTJI desde que haja celebrado entre Portugal o país da fonte dos rendimentos Convenção para evitar a dupla tributação (CDT) e que haja tributação nos dois Estados, também é indicado nas instruções uma hierarquia a seguir na dedução do crédito de imposto, que deverá primeiro atuar sobre a coleta de IRC e derrama estadual e após a sua insuficiência deverá ser deduzido à derrama municipal.
Tal só será possível se a CDT previr nos impostos abrangidos (usualmente no seu art.º 2.º), impostos locais, impostos municipais ou derramas municipais a atuar sobre o rendimento.
Só com esta paridade de tratamento fiscal com o Estado contraente será possível reconhecer a existência de tributação equiparada à da derrama municipal em Portugal, para haver de facto lugar a uma situação de dupla tributação.
Ora, apesar da Requerente pugnar pela inexistência de regras legais de hierarquia que imponham a dedução de CDTJI primeiramente ao IRC e derrama estadual e posteriormente, em caso de insuficiente coleta, à derrama municipal, a verdade é que as instruções de preenchimento identificadas estabelecem expressamente essa hierarquia.
O despacho do SEAF configura-se no direito nacional não como lei mas como uma expressão do poder regulamentar e administrativo do Governo, exercido através dos seus membros, possuindo com destinatários os órgãos da Administração Publica que tutelam.
A AT, enquanto órgão da Administração Publica, encontra-se vinculada à legalidade, devendo atuar dentro dos parâmetros que a mesma define, e nesse contexto cabe o cumprimento das instruções do membro do Governo competente, quando exerçam competências administrativas no domínio tributário.
Encontra-se também vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias.
Ou seja, no que a AT respeita, existe uma regra expressa que determina que a dedução da CDTJI ocorra primeiramente na coleta de IRC e derrama estadual e só depois, após insuficiência desta, poderá ser deduzida à derrama municipal.
Independentemente da forma do ato, facto é que existe uma instrução que a AT encontra-se vinculada ao seu cumprimento, pelo que não poderá ir de encontro à pretensão da Requerente.
Sem prejuízo do exposto, julga-se, não obstante, que a pretensão da Requerente se opõe a lógica do sistema de tributação do rendimento das pessoas coletivas que se encontra desenhado e em vigor.
Cumpre esclarecer que o CDTJI tem origem em imposto suportado na República da Coreia e nos Estados Unidos da América, países com os quais Portugal tem celebrado CDT, abarcando ambas as convenções expressamente a derrama.
Neste sentido, e a CDTJI apurada no período de tributação cumpria os pressupostos qualitativos para ser dedutível à derrama municipal.
A CDTJI disponível no período de tributação acabou, porém, por ser inteiramente consumida pela tendo ainda sido deduzido benefícios fiscais, até à integralidade da coleta disponível.
As deduções à coleta, previstas no n.º 2 do art.º 90.º do CIRC, seguem de facto uma hierarquia imposta pela norma que se transcreve: «2 Ao montante apurado nos termos do número anterior [liquidação de IRC] são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:
a*) A correspondente à dupla tributação jurídica internacional; b*) A correspondente à dupla tributação económica internacional; c) A relativa a benefícios fiscais; d) (Revogada.) e) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.».
Não se encontra assim na disponibilidade dos sujeitos passivos imputar livremente as deduções à coleta de IRC apurada, devendo a mesma seguir a ordem desenhada e constante das alíneas previstas.
Destaca-se, porém, que a norma, ou o seu texto, é completamente omisso em relação às deduções à coleta da derrama estadual, indicando apenas que estas são efetuadas à liquidação de IRC.
A aceitação jurídica das deduções previstas no n.º 2 do art.º 90.º do CIRC ao produto da derrama estadual são uma construção doutrinal e jurisprudencial adotada, igualmente, pela AT, assente no pressuposto que esta figura tributária é parte integrante e estrutural do IRC, não se dissociando deste.
Ou seja, apesar de prima facie a derrama estadual aparentar ser um tributo distinto do IRC apesar de consagrado no CIRC, leia-se, no art.º 87.º-A, formulou-se a conceção de que não o é, traduzindo-se esta apenas numa taxa adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas sujeitas.
Partindo deste pressuposto, a derrama estadual é considerada IRC para efeitos de apuramento do imposto nos termos definidos no art.º 90.º do CIRC, abrangendo e beneficiando das deduções à coleta legalmente previstas nos mesmos termos que o IRC propriamente dito.
Ora, incidentalmente, também não existe norma no sistema tributário nacional que preveja que a derrama municipal beneficie das deduções à coleta previstas no n.º 2 do art.º 90.º do CIRC ou qualquer outra de facto.
No entanto, a possibilidade de deduzir CDTJI à derrama municipal existe e encontra-se expressamente prevista na declaração modelo 22 como oportunamente já referimos.
Também esta possibilidade é uma construção doutrinal e jurisprudencial, resultante da articulação do sistema de tributação do rendimento das pessoas coletivas com as obrigações assumidas pelo Estado português com outros países através das CDT.
Diverge, porém, da derrama estadual ao apenas ser admitida a dedução de CDTJI e não as relativas a benefícios fiscais.
A razão prende-se com a natureza das figuras tributárias em causa.
Enquanto a derrama estadual é considerada uma taxa adicional de IRC e parte estruturante deste imposto, já a derrama municipal é um imposto autónomo do IRC, distinto deste.
Por ser considerada uma taxa adicional e atendendo à possibilidade de dedução à coleta quer de CDTJI quer de benefícios fiscais, ou mesmo de retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso, a questão da hierarquia de dedução entre o IRC e a derrama estadual não se coloca.
Mas a verdade é que a norma do n.º 2, conjugada com o n.º 1, do art.º 90.º do CIRC apenas refere liquidação de IRC que se refere o art.º 87.º do CIRC.
Ou seja, não abrange quer a derrama estadual prevista no art.º 87.º-A do CIRC nem a derrama municipal prevista no art.º 18.º da Lei n.º 73/2013, de 03 de setembro (Lei das Finanças Locais).
Impondo a referida norma, por outro lado, que as deduções à coleta sejam sequenciais, não se reputará de contra legem que essas mesmas operem nos diferentes impostos sobre o rendimento das pessoas coletivas previstos no sistema fiscal nacional, onde são admissíveis, consoante a sua hierarquia ou ordem de grandeza (diga-se de volume, de receita fiscal).
Nesse sentido, será o IRC e a derrama estadual, seguida da derrama municipal.
A tese defendida pela Requerente a qual pretende imputar, em primeiro lugar, o imposto pago no estrangeiro, tem como único intento a maximização das deduções à coleta do IRC, a título de benefícios fiscais, fazendo tábua rasa das diferenças entre os impostos envolvidos (imposto principal e imposto dependente) e das suas consequências jurídico-tributárias, bem como dos efeitos desproporcionados e imprevisíveis na observância do princípio da autonomia financeira instituído no artigo 238.º da CRP.
Ou seja, se o contribuinte pudesse deduzir CDTJI primeiro à derrama municipal, porque é isso que aqui se trata, e só depois ao IRC e derrama estadual, violaria frontalmente o n.º 2 do art.º 90.º do CIRC nos termos já indicados.
Assim, a regra contida nas instruções de preenchimento da declaração modelo 22, que impõe que as deduções à coleta sejam primeiro ao IRC e derrama estadual e o remanescente do CDTJI seja dedutível à derrama municipal havendo-a, não padece, com o devido respeito de nenhuma ilegalidade.
Tanto mais que a interpretação sufragada pelo Requerente levaria a uma violação frontal quer da CRP, quer do CIRC, pois daria ao contribuinte a poder de dispor a afetação da CDTJI aos impostos pretendidos, distintos entre si, sem cumprir a sua ordem sequencial.
A Administração Tributária está adstrita ao cumprimento do princípio da legalidade enunciado no artigo 266.º n.º 2 da CRP e concretizado nos artigos 55.º da LGT e no artigo 3.º do CPA.
Como tal, haverá que concluir que o ato de autoliquidação de IRC, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, não padecem de qualquer vício, devendo a sua conformidade com a lei ser reconhecida pelo douto tribunal arbitral.
II. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do CPPT, contado da formação da presunção de indeferimento da reclamação deduzida contra os atos tributários impugnados.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas, assistindo ao substituído o direito de ação, nos termos do disposto nos artigos 20.º e 65.º da LGT e 9.º e 132.º do CPPT, e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
Não foram identificadas nulidades ou outras questões que obstem ao conhecimento do mérito.
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Fundamentação de Facto
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Factos Provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
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A Requerente é uma sociedade de direito português que integra e lidera o Grupo B..., o qual dedica a sua atividade principal ao sector da produção, comercialização e promoção de medicamentos de patente própria e sob licença de empresas farmacêuticas multinacionais.
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Para efeitos fiscais, a Requerente encontra-se sujeita ao regime geral de tributação, em sede de IRC, cujo período de tributação coincide com o ano civil.
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A este respeito, cumpre destacar a atuação modelar da Requerente na sua relação com a AT, a qual sempre foi procedida com boa-fé, encontrando-se a mesma com a sua situação tributária e contributiva devidamente regularizada.
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A Requerente era, a 31 de dezembro de 2020 (continuando a sê-lo atualmente), a sociedade dominante do Grupo B..., sujeito ao Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (“RETGS”), o qual incluía no exercício de 2020, as seguintes sociedades dominadas:
NIF
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Denominação
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...
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C..., S.A.
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D..., S.A.
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E..., S.A.
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F..., S.A.
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G…, S.A.
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Na qualidade de sociedade dominante do Grupo B..., recai sobre a Requerente a responsabilidade pela liquidação do IRC, sendo as demais entidades do grupo solidariamente responsáveis pelo pagamento do imposto, nos termos do atual artigo 115.º do Código do IRC.
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A sociedade dominante atua, pois, como efetiva representante do Grupo sendo, por via disso, e no conjunto das sociedades em causa, o sujeito passivo de imposto.
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Em cumprimento da aludida obrigação fiscal, por referência ao período de tributação de 2020, a Requerente procedeu, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 e na alínea a) do n.º 6 do artigo 120.º e do artigo 70.º do Código do IRC, à entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC, com o número de identificação ..., conforme cópia que se junta como Documento n.º 4.
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A este respeito, importa recordar que o prazo para dar cumprimento à obrigação de entrega da declaração periódica de rendimentos de IRC (declaração Modelo 22) relativa ao período de tributação de 2020 e respetivo pagamento, previstos no n.º 1 do artigo 120.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 104.º do Código do IRC, foi alargado até 19 de julho de 2021, por via do Despacho n.º 240/2021-XXII, de 14 de julho de 2021 (sublinhado nosso).
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Neste sentido, a Requerente procedeu à entrega tempestiva da referida Declaração, o que fez a 15 de julho de 2021.
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Conforme se pode constatar pela análise da aludida Declaração, a Requerente apurou uma coleta total de IRC, no valor de Euro 8.309.241,24 (oito milhões, trezentos e nove mil, duzentos e quarenta e um euros e vinte e quatro cêntimos), incluindo derrama estadual no valor de Euro 1.411.089,09 (um milhão, quatrocentos e onze mil, oitenta e nove euros e nove cêntimos) e derrama municipal no valor de Euro 272.031,44 (duzentos e setenta e dois mil, trinta e um euros e quarenta e quatro cêntimos).
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Para além dos referidos valores, no exercício de 2020, foi apurado e pago pela Requerente, a título de tributação autónoma, o montante de Euro 551.964,32 (quinhentos e cinquenta e um mil, novecentos e sessenta e quatro euros e trinta e dois cêntimos).
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Resulta do Quadro 07 do Anexo D da Declaração de Rendimentos Modelo 22 submetida pela Requerente (relativo a benefícios fiscais que operam por dedução à coleta), que esta possuía um saldo de benefícios fiscais passíveis de dedução, no período de tributação de 2020, no valor total de Euro 45.727.969,37 (quarenta e cinco milhões, setecentos e vinte e sete mil, novecentos e sessenta e nove euros e trinta e sete cêntimos), tendo deduzido no campo 355 da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC um montante de Euro 4.637.054,09 (quatro milhões, seiscentos e trinta e sete mil, e cinquenta e quatro euros e nove cêntimos), a título de SIFIDE, reportando para os períodos de tributação seguintes um valor de SIFIDE de Euro 41.090.915,28 (quarenta e um milhões, noventa mil, novecentos e quinze euros e vinte e oito cêntimos), conforme se detalha na seguinte tabela:
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Detalhe Anexo D
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Saldo que transita para 2020
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Dedução do período 2020
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Saldo que transita para período(s) seguinte(s)
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SIFIDE
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45.727.969,37
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4.637.054,09
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41.090.915,28
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Total
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45.727.969,37
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4.637.054,09
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41.090.915,28
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Valores em euros
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Paralelamente, por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC, a Requerente deduziu à coleta total de IRC um montante de Euro 3.672.187,15 (três milhões, seiscentos e setenta e dois mil, cento e oitenta e sete euros e quinze cêntimos), a título de Crédito de Imposto por Dupla Tributação Jurídica Internacional (“CIDTJI”) (campo 353 da Modelo 22), conforme detalhe incluído no quadro 14 da Declaração de Rendimentos Modelo 22 e que se apresenta conforme a seguinte tabela:
CRÉDITO DE IMPOSTO POR DUPLA TRIBUTAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL (CIDTJI)
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Código do país
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Tipo de rendimentos
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Saldo não deduzido
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Apuramento no período
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Dedução efetuada no período
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Saldo que transita
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Imposto pago no estrangeiro
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Fração do imposto relativa a rendimentos obtidos no estrangeiro
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Crédito de imposto do período
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TOTAL do CIDTJI com CDT
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1.789.208,89
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1.882.978,26
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4.236.701,07
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1.882.978,26
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3.672.187,15
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0,00
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TOTAL do CIDTJI sem CDT
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0,00
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0,00
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0,00
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0,00
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TOTAL do CIDTJI
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1.789.208,89
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1.882.978,26
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4.236.701,07
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1.882.978,26
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3.672.187,15
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0,00
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Valores em euros
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A este respeito, importa referir que a Requerente deduziu o montante total de CIDTJI apenas à coleta total de IRC por imposição do sistema informático de submissão da Declaração Modelo 22, e não por concordar com tal procedimento.
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Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do Código de Processo e Procedimento Tributário (“CPPT”), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos.
Não existem factos alegados com relevância para a apreciação da causa que devam considerar-se não provados.
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Do Mérito
IV.A. Quanto à questão de fundo
A questão decidenda prende-se com a possibilidade de ser efetuada a dedução do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional referente a países com CDT esgotando primeiramente a coleta da derrama municipal e deduzindo o remanescente à coleta total de IRC.
No que diz respeito à dedução relativa ao CDTJI, o Código do IRC apenas a permite quando na matéria coletável do sujeito passivo tenham sido incluídos rendimentos obtidos no estrangeiro, e limita-a ao menor dos seguintes montantes:
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Imposto pago no estrangeiro;
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Fração do IRC devido em Portugal pelos resultados tributados no estrangeiro.
No âmbito da Ficha Doutrinária emitida no Processo 2264/10 – Despacho de 16-07- 2010, do Director-Geral, a AT refere, a propósito da “fração do IRC” acima identificada, que “(…) para efeitos de determinação do crédito de imposto por dupla tributação internacional previsto naquela alínea, a derrama proporcional ao lucro imputável ao estabelecimento estável situado fora do território nacional deverá ser adicionada à respetiva fração de IRC”.
Ademais, as instruções de preenchimento da Declaração de Rendimentos do IRC - Modelo 22, aprovadas para o exercício de 2016 pelo Despacho nº 2608/2017 do Gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, referem que “Quando o sujeito passivo tenha obtido rendimentos em países com o qual tenha sido celebrada Convenção para evitar a dupla tributação (CDT) e que sejam tributados nos dois Estados, a dedução do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional pode ser efetuada até à concorrência do somatório da coleta total (campo 378) e da derrama municipal (campo 364).”
Através da conjugação do exposto nos parágrafos anteriores com o referido no Capítulo VIII acima apresentado, poderá concluir-se que não restam dúvidas de que a CDTJI é dedutível à derrama municipal.
A questão que se coloca a este respeito, prende-se com a estrutura adotada pela AT na Declaração de Rendimentos do IRC – Modelo 22 e respetivas instruções de preenchimento, na medida em que estabelecem uma ordem de prioridade de dedução do CDTJI em primeiro lugar à coleta do IRC, e apenas depois à derrama municipal, referindo a propósito do preenchimento do Campo 379 que “Este campo só deve ser preenchido quando o crédito de imposto relativo à dupla tributação jurídica internacional não pôde ser integralmente deduzido no campo 353, por ser superior à coleta total (campo 378). O valor excedente, se respeitar a países com CDT, pode ser deduzido neste campo até à concorrência do valor da derrama municipal inscrito no campo 364.”
Contudo, esta ordem de prioridade não se encontra estabelecida em qualquer normativo legal, encontrando-se os sujeitos passivos desprotegidos face às imposições realizadas pela AT na estruturação e nas instruções de preenchimento da Declaração de Rendimentos do IRC – Modelo 22.
De facto, esta ordem de prioridade estabelecida pela AT pode ser prejudicial para os sujeitos passivos, nomeadamente quando conjuntamente com o CDTJI, estes sujeitos passivos disponham de outras deduções à coleta, como por exemplo benefícios fiscais ou PEC.
Assim, e no caso concreto, como já vimos, a questão prende-se com a inclusão da derrama municipal na expressão constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 91.º do CIRC para efeitos de CIDTJI, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 90 do CIRC.
Este Tribunal considera que a derrama municipal é um imposto acessório do IRC, atualmente configura-se como um adicionamento, incidindo sobre o lucro dos sujeitos passivos deste imposto. Assim, o texto da lei ao referir-se a “fração” do IRC é suscetível de abranger a derrama municipal.
Quanto a esta questão o Tribunal partilha, o entendimento constante da Decisão Arbitral n.º 340/2017-T, de 10 de janeiro de 2018, que afirma: “Há que começar por assinalar que esta expressão permanece inalterada no texto legal desde a primitiva redação do CIRC. O que assume particular relevo interpretativo porquanto, inicialmente, o crédito de imposto por dupla tributação internacional apenas era conferido aos rendimentos oriundos de países com os quais Portugal tivesse em vigor uma CDT.
Ou seja, na redação inicial da norma, a expressão “fração de imposto” tinha, necessariamente e em todos os casos, que ser interpretada em conformidade com os textos convencionais, os quais, no seu n.º 2 (impostos visados), independentemente da formulação em concreto utilizada, abrangem a derrama municipal.
Quando, mais tarde, o legislador decidiu que Portugal, enquanto país da residência, passaria a atribuir, unilateralmente (ou seja, independentemente da existência de uma CDT) um crédito de imposto por dupla tributação internacional, não alterou a expressão “fração do IRC”. Ou seja, a análise da evolução do elemento literal não permite, em momento algum, surpreender uma vontade legislativa de distinguir entre a efetivação (as coletas às quais pode ser deduzido) do crédito de imposto nas situações em que existe uma CDT e aquelas em que não existe (em que a concessão de tal crédito é unilateral, resultante da lei interna).
O elemento teleológico da interpretação também não aponta no sentido defendido pela Requerida. A decisão de Portugal passar a conceder, unilateralmente (i. e., na ausência de uma CDT que o imponha), aos seus residentes com rendimentos oriundos do estrangeiro, um crédito em razão do imposto pago nos países da fonte dá expressão ao chamado princípio da neutralidade na exportação: “os sujeitos passivos que obtenham rendimentos noutros estados devem ficar abrangidos por um tratamento fiscal similar ao aplicável àqueles cujos rendimentos sejam obtidos exclusivamente no estado de residência”. Está, pois, em causa uma igualdade entre residentes, que não deve resultar limitada por interpretações restritivas da lei, por interpretações que restrinjam a possibilidade efetiva de dedução de um tal crédito.
Por último, haverá que considerar o elemento sistemático da interpretação que se traduz em apurar qual a interpretação que se afigura mais coerente com o sistema jurídico em que a norma se insere, considerado no seu todo
Ou seja, mesmo que se possa entender que tais compromissos internacionais não vinculam diretamente o legislador fiscal, o intérprete não poderá deixar de os ter presentes, em nome da unidade do sistema jurídico, considerado no seu todo. A interpretação que assegura a coerência do sistema jurídico é, certamente, a que corresponde “à solução legal mais acertada” que é suposto ter sido acolhida pelo legislador (n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil)
Finalmente, e ainda no quadro do elemento racional/teleológico da interpretação, não se poderá deixar de se ponderar o absurdo que consiste em pretender manter intacta a coleta da derrama municipal em situações em que tal conduziria a uma dupla tributação internacional do rendimento. Diríamos mesmo que, racionalmente, seria esta a coleta relativamente à qual deveria ser efetivada, em primeiro lugar, a dedução correspondente ao crédito por dupla tributação internacional. Na realidade, a derrama municipal visa dotar as autarquias de recursos financeiros próprios, obtidos através de impostos incidentes sobre aqueles que realizam atividades lucrativas na área de determinado município. Assim sendo, indo além da questão concreta em análise, parece destituído de fundamento razoável exigir o pagamento de um tal imposto relativamente a atividades exercidas fora do território nacional. O que, por maioria de razão, reforça o entendimento de que o pagamento deste tributo deve ser “eliminado” por dedução de créditos por dupla tributação internacional sempre que a coleta de IRC, stritcto sensu, não se mostre suficiente para os absorver na totalidade, como acontece no presente caso.”
Atendendo ao exposto a expressão “fração do IRC” constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 91.º do CIRC deve incluir a coleta da derrama municipal e, em consequência o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta de tal imposto originado por rendimentos obtidos no estrangeiro.
Pelo que procede o presente pedido arbitral, declarando-se, conforme peticionado, a ilegalidade da liquidação em crise, com as demais consequências legais.
IV.B. Quanto aos juros indemnizatórios
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe "restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito". O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT "é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário", o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRC, ao reembolso da importância indevidamente liquidada, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT). Assim, são devidos juros indemnizatórios à taxa legal sobre a quantia indevidamente paga de Euro 272.031,44 (duzentos e setenta e dois mil, trinta e um euros e quarenta e quatro cêntimos).
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Decisão
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
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Julgar o pedido totalmente procedente, com as legais consequências;
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Condenar a Requerida ao pagamento das custas arbitrais.
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Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 272.031,44, indicado pelo Requerente e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
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Custas
Custas no montante de € 4.896,00 (quatro mil oitocentos e noventa e seis euros), a suportar integralmente pela Requerida, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.
Lisboa, 8 de agosto de 2024
Os árbitros,
Guilherme W. d'Oliveira Martins
Sofia Quental
Sónia Martins Reis