SUMÁRIO
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A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.
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A legislação portuguesa de IRC, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado, ao mesmo tempo que permite aos OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, (acórdão de 17.03.2022).
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Quando a ilegalidade deriva de um acto legislativo sem intervenção dos serviços da administração fiscal, nem a existência de orientações genéricas, ou de prova do sujeito passivo face ao seu ónus, não está preenchido o requisito do erro imputável aos serviços previsto no art.º 78.º, n.º 1 da LGT.
DECISÃO ARBITRAL
A... SAS, sociedade de Direito francês, com sede em ..., ..., Paris, França, titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva francês ... (“Requerente”), na qualidade de entidade gestora do Fundo de Investimento B... (“Fundo”), anteriormente designado por C..., titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva francês FR..., veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
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O pedido
O Requerente peticiona a anulação dos atos tributários referentes ao período compreendido entre 23 de maio de 2019 e 25 de maio de 2020, no montante total de 90.754,41 EUR, e, bem assim, da decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado contra aqueles atos tributários.
Pede ainda na medida da procedência do pedido principal, que se condene a Entidade Requerida na restituição à Requerente do montante de imposto indevidamente suportado, acrescido de juros indemnizatórios vencidos e vincendos, computados a partir do dia 23 de maio de 2024 até à emissão da respetiva nota de crédito, nos termos dos artigos 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT; e
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O litígio
A questão a decidir é saber se viola a liberdade de circulação de capitais, consagrada no artigo 63.º do TFUE, o facto de os dividendos distribuídos a organismos de investimento coletivo (OIC) não residentes por entidades com sede ou com estabelecimento estável em Portugal estarem aqui sujeitos a tributação por retenção na fonte, enquanto idêntico tipo de rendimentos, quando distribuídos a fundos de investimento constituídos e operando de acordo com a legislação nacional, estão isentos de tributação por força do disposto no nº 3 do art. 22 do EBF.
O Requerente conclui, obviamente, pela positiva.
A Requerida defende a posição contrária, entendendo, nomeadamente, que os regimes fiscais em IRC aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional (residentes) e aos OIC constituídos noutros países (não residentes) não são diretamente comparáveis, pois que a tributação dos primeiros repousa sobretudo no Imposto do Selo; e que nada permite concluir que, no conjunto dos impostos suportados em Portugal e na França, a situação dos Requerentes resulte mais gravosa.
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Tramitação processual
O pedido deu entrada no dia 26/12/2023 e foi aceite em 28/12/2023.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 05/03/2024.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Tendo a Requerida deduzido uma excepção foi a Requerente notificada para se pronunciar o que veio a fazer por requerimento impetrado em 6/5/2024, tendo a Requerida exercido réplica por requerimento impetrado em 8/5/2024. Sobre a mencionada réplica veio a ser proferido despacho arbitral que considerou : “Nos termos do disposto no artigo 573.°, n.°2, do CPC, Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou que se deva conhecer oficiosamente.
Veio a Requerida, por requerimento de 8 de maio de 2024 (já depois do SP ter exercido contraditório e de ter sido emitido despacho a dispensar a produção de alegações), suscitar alegadas exceções de incompetência e de impugnabilidade, que, a verificarem-se, são de facto exceções dilatórias e de conhecimento oficioso (cfr. artigo 578.° do CPC e artigo 89.°, n.°4, alínea i), do CPTA).
Relega-se a análise destas questões (constantes do ponto 1 do Requerimento) para a sentença.
Quanto ao demais alegado no pontos seguintes, por não se verificam os requisitos do artigo 573.° do CPC nem tao pouco a Requerida apresentar qualquer justificação para o efeito, devem considerar-se como não escritos.”
Por despacho de 7/05/2024, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.
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Saneamento
A Requerida na sua Resposta veio a deduzir a exceção de ilegitimidade da Requerente, que afirma, constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.
Conforme também ficou supra mencionado, a Requerida no seu requerimento de 8/5/2024, veio invocar a incompetência do Tribunal Arbitral, que considera, não pode ser dissociada da questão da impugnabilidade contenciosa dos atos de primeiro grau impugnados nesta arbitragem.
Dependendo a apreciação de todas estas questões de factos em concreto, é “mister” começarmos por fixar a matéria de facto.
II.1 – Factos Provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade de Direito francês, que na qualidade de entidade gestora gere o Fundo de Investimento B... (“Fundo”), anteriormente designado por C... .
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O Fundo não dispõe de sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território Português, sendo residente para efeitos fiscais em França, aí se encontrando sujeito à lei fiscal francesa, não estando sujeito a tributação em sede de “imposto sobre o rendimento das sociedades” no Estado da residência:
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A entidade responsável pela custódia dos valores mobiliários é a instituição de crédito D..., sociedade de Direito francês, com sede em ..., ..., ..., Paris, França, titular dos Números únicos de Identificação de Pessoa Coletiva português ... e francês ...
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Nos anos de 2019 e 2020, o Fundo manteve investimentos em diversos países, entre os quais Portugal, detendo participações diretas na seguinte sociedade comercial portuguesa:
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Os actos objecto do presente pedido arbitral são os seguintes:
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Os rendimentos de capitais auferidos pelo Fundo foram sujeitos a retenção na fonte em sede de IRC em Portugal, tendo o E..., titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva português..., atuado na qualidade de substituto tributário, entregando o imposto em Portugal, pelas seguintes guias e prazos:
Ano de 2019:
Ano de 2020:
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As retenções na fonte relativas aos dividendos de fonte portuguesa percecionados não deram lugar a qualquer crédito de imposto, parcial ou total, no Estado de residência do Fundo.
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A 22 de maio de 2023, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa ao abrigo do art.º 78.º, n.º 1 da L.G.T., em sede do qual peticionou a anulação de tais atos tributários e, bem assim, a restituição do imposto ilegalmente retido na fonte, nunca tendo a Requerida se pronunciado sobre a mesma.
A convicção do tribunal fundou-se na análise dos documentos juntos aos autos, sendo que estes factos não suscitaram qualquer divergência entre as partes
I.2 - Factos não provados
Não existem factos dados como “não provados” relevantes para a decisão da causa.
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Ilegitimidade da Requerente
Em síntese, refere a Requerida que a entidade beneficiária dos dividendos não é a Requerente, mas sim D... . Em consequência, conclui que a Requerente não é a beneficiária efetiva dos rendimentos objeto de tributação, não sendo, em consequência, titular do direito de anulação dos atos que aqui peticiona. Traz à colacção o voto de vencido proferido na Decisão Arbitral n.º 619/2023.
Diga-se, desde já, com o devido respeito, que a Requerida labora em erro interpretativo.
Conforme alínea c) do probatório, a entidade responsável pela custódia dos valores mobiliários é a instituição de crédito D..., sociedade de Direito francês que possui número de pessoa colectiva Portuguès.[1]
O custodiante é uma instituição que intermedeia operações de compra e venda de ativos, procedendo à guarda dos ativos, e movimentando os recursos dos clientes na central depositária.
Possui uma competência de intermediação na relação entre investidores e central depositária.
O depositário está sujeito a vários deveres nomeadamente o de guarda de todos os instrumentos financeiros que possam ser registados numa conta de instrumentos financeiros aberta nos seus livros e todos os instrumentos financeiros que possam ser fisicamente entregues ao depositário, registando-os, nos termos dos n.ºs 5 a 7 do art.º 306.º do Código dos Valores Mobiliários, em nome do organismo de investimento coletivo ou da sociedade gestora agindo em nome deste, para que possam a todo o tempo ser claramente identificados como pertencentes ao organismo de investimento coletivo, nos termos da lei aplicável.
Além disso a matéria vertida no voto de vencido proferido na Decisão Arbitral n.º 619/2023, que a Requerida indica, reporta-se antes à relação da conta bancária com o seu titular e não com qualquer empresa de custódia de títulos.
Tanto é o suficiente para se considerar improcedente a excepção invocada pela Requerida.
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Incompetência do Tribunal Arbitral, impugnabilidade contenciosa dos atos de primeiro (segundo) grau e atos de retenção na fonte
Alega a Requerida, abrigando-se num voto de vencido proferido no âmbito do processo 928/2023, que. «Com efeito, o contencioso tributário, à semelhança de resto do que sucede no contencioso de atos administrativos, não é um processo de tutela da legalidade objetiva, mas antes um processo dirigido à tutela de posições jurídicas subjetivas: não basta, assim, a verificação de uma qualquer ilegalidade para determinar a anulação de um ato tributário. No caso em espécie, cuida-se da impugnação de atos de liquidação mediante retenção na fonte a título definitivo proferidos por entidades bancárias. Trata-se de atos tributários que não são proferidos pelos serviços da administração fiscal e que, como revelam as regras da experiência, são habitualmente praticados sem que a AT tenha conhecimento do seu teor exato ou sequer da sua fundamentação (é-lhe remetida apenas uma guia de pagamento), inviabilizando de todo que esta possa, nessa fase de primeiro grau de decisão administrativa, escrutinar a legalidade ou validade de tais atos de substituição tributária ou, mesmo, agir contra eventuais irregularidades cometidas pelo substituto tributário. Ciente dessa realidade o legislador gizou um mecanismo procedimental — a reclamação graciosa em termos, aliás, bastante generosos (o prazo é de 2 anos) — que permite ao sujeito passivo suscitar a intervenção da administração fiscal para que esta possa reparar eventuais ilegalidades que não foram por si cometidas, mas sim por terceiros agindo no seu interesse e por sua conta. É absolutamente consensual que a reclamação administrativa prevista para os atos de substituição tributária tem natureza necessária e que a falta da sua interposição tempestiva torna o ato de primeiro grau contenciosamente inimpugnável. A questão, pois, é a de saber se essa inimpugnabilidade pode por um mero bizantino formalismo ritual, ser sanada se, depois de decorrido o prazo perentório de 2 anos, o contribuinte em vez de deduzir uma reclamação graciosa vier apresentar pedido de instauração oficiosa de um procedimento de revisão. Aceitar que assim possa ser significaria fazer tábua rasa do requisito de prévia reclamação graciosa necessária legislativamente erigido como critério de impugnabilidade contenciosa, tornando-o num requisito legal completamente excrescente, inútil e ineficaz, já que o efeito claramente visado e desejado pelo legislador (estabelecer a inimpugnabilidade contenciosa de atos que não sejam objeto de reclamação administrativa no prazo de 2 anos) seria completamente frustrado se o contribuinte, numa soidisant ‘burla de etiquetas’, alterasse a denominação por si atribuída ao procedimento administrativo cujo desencadeamento se apresentava a suscitar. Ora, não é razoável, nem compreensível, que a efetividade de requisitos de impugnabilidade contenciosa de atos tributários — que são, note-se bem, erigidos em ordem à prossecução de finalidades de ordem pública ligadas aos interesses da segurança e da certeza jurídicas — ficassem inteiramente na disponibilidade da vontade dos particulares e subordinados aos caprichos do critério que seguissem na denominação atribuída aos requerimentos procedimentais por si apresentados.
Conforme é entendimento dominante na jurisprudência, o pedido de revisão oficiosa deduzido dentro do prazo para a interposição de reclamação graciosa pode fazer as vezes desta e produzir os mesmos efeitos que teriam resultado da interposição deste meio procedimental. A meu ver, o que já não se afigura possível será reconhecer-se à dedução de pedido de revisão oficiosa a aptidão de suprir a omissão de tempestiva interposição da reclamação graciosa que o legislador qualificou de necessária e erigiu em requisito de impugnabilidade contenciosa: admiti-lo implicaria que a reclamação graciosa, afinal de contas, não seria nunca nem necessária nem condição de procedibilidade do subsequente processo jurisdicional. A natureza reconhecidamente complementar do procedimento de revisão oficiosa face aos demais meios de impugnação administrativa não pode ter um alcance tão vasto e tão extenso a ponto de derrogar in totum qualquer efeito útil ou eficácia ao regime procedimental (e às suas projeções processuais) que resulta do art. 132.º, n.º 4, do CPPT. Só não será assim — e a reclamação graciosa não terá então natureza necessária e, portanto, o pedido de revisão poderá livremente ser deduzido no seu prazo normal de 4 anos — se estiver exclusivamente em causa matéria de direito e o ato de liquidação por retenção na fonte tiver sido efetuado de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária (arts. 131.º, n.º 3, e 132.º, n.º 6, do CPPT). Salvo melhor opinião, o ónus da prova da existência de tais orientações genéricas recai sobre o impugnante e não me parece que, nesta arbitragem, tenha sido satisfeito. O que acima fica dito vale, mutatis mutandis, para a questão da competência do CAAD para conhecer da impugnação de atos de liquidação mediante retenção na fonte a título definitivo. Nos termos do art. 2.º, al. a), da Portaria de Vinculação, a AT excetuou da sua vinculação à jurisdição arbitral do CAAD a impugnação de atos tributários que não tenha sido precedida do recurso às vias administrativas previstas nos arts. 131.º a 133.º do CPPT. Pese embora seja de se reconhecer, para efeitos do preenchimento deste requisito estabelecido pela Portaria de Vinculação, uma equiparação entre as reclamações graciosas e os pedidos de instauração oficiosa de procedimento de revisão (quando apresentados dentro do prazo de 2 anos referido naqueles dois preceitos do CPPT) não creio que a dedução de pedido de desencadeamento de revisão oficiosa, depois de ultrapassado o prazo de 2 anos em referência, possa neste contexto fazer as vezes da reclamação graciosa. Assim, a meu ver, no caso desta arbitragem está preenchida a previsão da cláusula negativa da declaração de adesão(16) da AT à jurisdição arbitral voluntária do CAAD, obstando assim a que esta entidade jurisdicional possa conhecer do objeto da causa.
Não ignoro os acórdãos citados na Decisão Arbitral acerca dessa mesma questão, mas creio que, na sua esmagadora maioria se não mesmo todos, tais arestos assentam a sua ratio decidendi em situações fácticas distintas daquela que se verifica na presente arbitragem, na medida em que dizem respeito a processos em que as instâncias concluíram que a omitida reclamação graciosa não tinha natureza necessária por estar em causa a aplicação exclusiva de matéria de direito de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária. Teria, portanto, julgado a exceção procedente e, em consequência, absolvido a requerida da presente instância arbitral»
Apreciemos.
De uma forma pouco explícita, a Requerida acaba por sobrepor situações distintas, porquanto remete para uma declaração de voto mas intitula “não pode ser dissociada da questão da impugnabilidade contenciosa dos atos de primeiro grau impugnados nesta arbitragem”
Tentando conciliar a “nomenclatura” com o voto de vencido não se verifica uma sobre posição, o que só por si levaria a uma eventual ineptidão.
No entanto, efectuando um esforço de hipotéticas relações, prevenindo alguma omissão de pronúncia implícita, julga-se que quererá a Requerida dizer e invocar:
- Incompetência do Tribuna Arbitral para apreciar actos de 1º grau;
- Incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar pedidos de legalidade de retenções na fonte quando não foi cumprido o “ónus” da reclamação necessária;
- Incompetência para o Tribunal Arbitral apreciar actos de retenção na fonte;
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Podemos abordar em conjunto a eventual (in)competência do Tribuna Arbitral para apreciar actos de 1º grau (2ª) e a eventual (in)competência para o Tribunal Arbitral apreciar actos de retenção na fonte;
Alicercemo-nos na posição maioritária do Acórdão 928/2023 invocado pela Requerida.[2]
A tese da Autoridade Tributária e Aduaneira, parece ser que os Tribunais Arbitrais que funcionam junto do CAAD, são incompetentes para conhecer das matérias referidas.
A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).
Há restrições à competência dos tribunais arbitrais derivadas das excepções que constam da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, operada pelo artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, mas não têm aplicação no caso em apreço, em que está em causa a apreciação da legalidade de actos de retenção na fonte que foram objecto de pedido de revisão oficiosa.
Dispõe o artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, na parte relevante, que:
Artigo 2.º
Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;[3]
Por aqui verificamos que a natureza de actos de autoliquidação ao que se acrescenta a retenção na fonte, são da competência dos tribunais arbitrais.
Para além da apreciação directa dessa legalidade de actos deste tipo, o facto de a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT fazer referência aos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT, em que se indicam os vários tipos de actos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, inclusivamente a reclamação graciosa e o recurso hierárquico, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de actos passíveis de serem impugnados através do processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.ºs 1 e 2, desde que tenham por objecto um acto de um dos tipos indicados naquele artigo 2.º do RJAT.
Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a referida autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).
A necessidade que existiu de não se abrangerem acções para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo ou de acção administrativa, nasce da própria redacção do artigo 2.º do RJAT que a arbitragem tributária não foi implementada quanto a essas matérias.
De qualquer forma, extrai-se também da referida autorização legislativa, designadamente da alínea a) do n.º 4 do referido artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, ao fazer referência aos «actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação», que não se pretendeu estender o âmbito da arbitragem tributária à apreciação de actos que, nos termos do CPPT, não podem ser objecto de impugnação judicial, mas para que é adequada a acção administrativa.
Aquela expressão, tem ínsita a exclusão dos «actos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação» e das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de actos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou da acção administrativa (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do artigo 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) conforme esses actos comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de actos administrativos de liquidação.[4]
É este o único critério de distinção dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa, não havendo suporte legal para sustentar que, relativamente à impugnação de actos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação se possa utilizar a acção administrativa, designadamente para apreciar questões relativas à verificação dos pressupostos de pedido de revisão oficiosa.
Nos casos de indeferimento tácito não há, obviamente, apreciação expressa da legalidade de acto de liquidação (neste caso, através de retenção na fonte), mas, tratando-se de uma ficção de acto destinada a assegurar a impugnação contenciosa em meio processual que tem por objecto um acto de liquidação, o meio de impugnação adequado depende do conteúdo ficcionado.
No caso de impugnação administrativa directa de um acto de liquidação (através de reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa), com fundamento na sua ilegalidade, o conteúdo ficcionado é de indeferimento do pedido que foi formulado, de anulação do acto de liquidação. Isto é, ficciona-se que o pedido foi indeferido por ter sido dada resposta negativa a todas as questões de legalidade colocadas pelo Sujeito Passivo. Por isso, presume-se o indeferimento tácito do meio de impugnação administrativa utilizado (reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa) que tem por objecto directo acto de liquidação baseando-se em razões substantivas e não em razões formais.
De harmonia com o exposto, no caso em apreço, estando-se perante indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa, que tem por objecto directo actos de retenção na fonte, é de considerar que o acto ficcionado conhece da legalidade desses actos e, por isso, o meio processual adequado para a sua impugnação contenciosa, nos tribunais estaduais, é o processo de impugnação judicial, nos termos das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, de que é meio alternativo ao processo arbitral.
Neste sentido, tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se pelos seguintes acórdãos:
– de 6-10-2005, processo n.º 01166/04: «o indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação, baseado na sua ilegalidade, deve considerar-se, para efeito das alíneas d) e p) do n.º 1 do art. 97.º do CPPT, como um acto que comporta a apreciação da legalidade de acto de liquidação»;
– de 02-02-2005, processo n.º 01171/04, de 08-07-2009, processo n.º 0306/09, de 23-09-2009, processo n.º 0420/09, de 12-11-2009, processo n.º 0681/09: «o meio processual adequado para reagir contenciosamente contra o acto silente atribuído a director-geral que não decidiu o pedido de revisão oficiosa de um acto de liquidação de um tributo é a impugnação judicial».
Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender que o acto ficcionado quando ocorre indeferimento tácito de pedido de revisão oficiosa é um acto que comporta a apreciação da legalidade do acto de liquidação cuja revisão foi pedida, dando resposta negativa aos fundamentos invocados, pelo que o meio contencioso adequado para o impugnar é o processo de impugnação judicial e, consequentemente, também o meio alternativo que é o processo arbitral.
É assim competente o Tribunal arbitral para apreciar actos de 1º grau (2º),(revisão oficiosa) sobre a liquidação e apreciar actos de retenção na fonte.[5]
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(In)competência do Tribunal Arbitral para apreciar pedidos de legalidade de retenções na fonte quando não foi cumprido o “ónus” da reclamação necessária;
Dispõe o art.º 132.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT):
Artigo 132.º
Impugnação em caso de retenção na fonte
1 - A retenção na fonte é susceptível de impugnação por parte do substituto em caso de erro na entrega de imposto superior ao retido.
2 - O imposto entregue a mais será descontado nas entregas seguintes da mesma natureza a efectuar no ano do pagamento indevido.
3 - Caso não seja possível a correcção referida no número anterior, o substituto que quiser impugnar reclamará graciosamente para o órgão periférico regional da administração tributária competente no prazo de 2 anos a contar do termo do prazo nele referido.
4 - O disposto no número anterior aplica-se à impugnação pelo substituído da retenção que lhe tiver sido efectuada, salvo quando a retenção tiver a mera natureza de pagamento por conta do imposto devido a final.
5 - (Revogado pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro)
6 - À impugnação em caso de retenção na fonte aplica-se o disposto no n.º 3 do artigo anterior.
E vejamos o disposto no art.º 131.º, n.º 3:
“3 - Quando estiver exclusivamente em causa matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, não há lugar à reclamação necessária prevista no n.º 1 (Redação da Lei n.º 82-E/2014, de 31/12).”
Salvo o devido respeito, cremos que a Requerida confunde duas realidades distintas. A primeira é a obrigatoriedade de deduzir reclamação graciosa “necessária” no prazo de 2 anos, para poder exercer o direito à impugnação. Mas outra diferente é interpor-se um pedido de revisão oficiosa, cujo regime prevê fundamentos muito específicos e prazo também especiais para a sua dedução e com base na decisão que aí for proferida se impugnar a “liquidação” realizada por retenção na fonte.[6]
É exactamente este entendimento que se extrai do sumário de um Acórdão do Colendo Supremo Tribunal Administrativo:
“IV - O indeferimento, expresso ou tácito, do pedido de revisão, mesmo nos casos em que não é formulado dentro do prazo da reclamação administrativa mas dentro dos limites temporais em que a Administração tributária pode rever o acto com fundamento em erro imputável aos serviços, pode ser impugnado contenciosamente pelo contribuinte [art. 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), da L.G.T.].[7]
O mesmo se retira da Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo 830/2023-T (Carla Castelo Trindade), onde se exarou que, “I. A circunstância de ter decorrido o prazo de reclamação graciosa quanto a actos de retenção na fonte previsto no artigo 132.º do CPPT não impede o sujeito passivo de apresentar pedido de revisão dos mesmos com fundamento em erro imputável aos serviços nos termos do artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte da LGT e de impugnar contenciosamente o eventual acto de indeferimento.”[8]
É este também o entendimento generalizado dos nossos Tribunais superiores, como é exemplo, o entendimento do Supremo Tribunal Administrativo, que no acórdão proferido em 12 de Abril de 2023, no processo n.º 01257/17.3BELRS, deixou claro:
“não relevar o decurso do prazo de reclamação graciosa de dois anos previsto no artº.132, nºs.3 e 4, do C.P.P.T., quanto ao substituído e em caso de retenção na fonte a título definitivo. Por outras palavras, a circunstância de ter decorrido o prazo de reclamação graciosa e de impugnação do acto de retenção na fonte, não impede o sujeito passivo de pedir a respectiva revisão oficiosa e impugnar, contenciosamente, o eventual acto de indeferimento desta (cfr.v.g.), ac.S.T.A.-2ª.Secção, 12/07/2006, rec.402/06; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 14/05/2014, rec.1458/13; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 8/02/2017, rec.678/16; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6ª. Edição, 2011, II volume, págs.422).”.[9]
Tanto basta para considerar improcedente a mencionada incompetência.
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Aqui chegados, deveríamos passar a conhecer do mérito principal da causa. No entanto, na esteira do que no nosso entendimento consideramos como a eventual existência de uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea i), do CPTA).
Na elaboração da decisão arbitral deve dar-se prioridade ao conhecimento “das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica” (artigo 608.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
No caso concreto, existe, contudo, uma questão prévia, que se prende com o princípio da aquisição processual, segundo o qual “o material necessário à decisão e levado ao processo por uma das partes – sejam alegações, sejam motivos de prova – pode ser tomado em conta para todos os efeitos processuais, mesmo a favor da parte contrária àquela que o aduziu.”
Apreciemos os factos.
De acordo com a alínea f) da matéria de facto dada como provada, referente ao ano de 2019, foi entregue nos cofres do Estado – liquidado, imposto de IRC no montante de 31.194,68€, no dia 23/5/2019. E com referência ao ano de 2020, foi entregue nos cofres do Estado – liquidado, imposto de IRC no montante de 59.559,73€, no dia 25/5/2020.
Por sua vez e de acordo com a alínea h) do probatório, a 22 de maio de 2023, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa ao abrigo do art.º 78.º, n.º 1 da L.G.T
Dispõe o art. 78.º, n.º da LGT:
“Artigo 78.º
Revisão dos actos tributários
1 - A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.”
Releva para a tempestividade da interposição da revisão oficiosa, existir o fundamento de erro imputável aos serviços.
Apreciemos:
Como ficou provado nos presentes autos, o Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado, sem reclamar nem impugnar, razão pela qual o seu pedido de revisão oficiosa apenas poderia colher abrigo na última parte do supra transcrito n.º 1 do art.º 78º da LGT. O mesmo é dizer-se, que o Requerente teria de invocar e imputar um erro aos serviços da Requerida.[10]
Interessa-nos somente, a matéria constante da alínea f) da matéria de facto dada como provada, referente ao ano de 2019, cujo imposto foi entregue nos cofres do Estado – liquidado, imposto de IRC no montante de 31.194,68€, no dia 23/5/2019.
Como escreveu o Requerente no art.º 28.º do seu pedido de revisão tributária, a Requerida tendo tomado conhecimento da prática de acto tributário ilegal, com fundamento em erro imputável aos serviços ou em injustiça grave ou notória, desde que se verifiquem os pressupostos legais estipulados, tem o “poder-dever” de proceder à sua revisão, o que acaba por constituir a destrinça entre o art.º 78.º, n.º 1 e 4 da LGT.
Apenas a imputação e demonstração de um erro dos serviços da AT poderia constituir fundamento para a revisão oficiosa. Porém, não foi isso que se verificou, uma vez que o Requerente na sua petição de revisão limitou-se à invocação da existência de um erro na liquidação, feita de acordo com os elementos declarados pelo sujeito passivo, sem o imputar aos serviços da Requerida.
No presente processo, no enquadramento da figura do erro imputável aos serviços, o que está em causa conforme escreve o Requerente no art.º 35.º do pedido de revisão é:
“Relativamente ao requisito (ii), uma vez que os actos de retenção na fonte foram praticados em clara violação do Direito da União Europeia (…), o erro (de direito) sempre será imputável aos serviços tributários.
Na Decisão do CAAD com o n.º 14/2022-T acerca do erro imputável aos serviços, refere-se a orientação seguida pela jurisprudência do CAAD na matéria. Apontam-se aí decisões que vão nesse mesmo sentido:
1.Decisão do CAAD proferida em 12/10/2021, no âmbito do processo 617/2020-T: “Foram os elementos que o Requerente fez constar – e, também, aqueles que não fez constar – na declaração modelo 1 de IMT, que determinaram a AT à prática do acto controvertido nos termos em que este foi praticado. (…) Não poderia a AT proceder por forma diversa daquela por que actuou, em face dos elementos declarados pelo sujeito passivo, assim praticando o acto tributário controvertido. (…) Razão pela qual, não se encontra preenchido um dos requisitos da instauração do procedimento de revisão oficiosa: a existência de erro imputável aos serviços.”
2.Decisão do CAAD proferida em 31/12/2021, no âmbito do processo n.º 444/2021-T: “O erro imputável aos serviços” concretiza qualquer ilegalidade desde que relevante, mas não imputável ao contribuinte por conduta negligente (…).
A petição de revisão oficiosa apresentada pelo Requerente não conseguiu identificar a existência de um erro imputável aos serviços, mas antes ao legislador.
Tiveram à disposição meios de impugnação, se efectivamente utilizados, e utilizados de forma tempestiva, para corrigir os actos de retenção na fonte, mas não o fizeram.
Deve, pois, imputar-se apenas ao Requerente o facto de a liquidação sub judice padecer de erro, exactamente pela singela razão de que para a dedução e sucesso da denominada “reclamação necessária”, não ser “necessário” o preenchimento do erro imputável aos serviços.
A AT aceitou a liquidação com base nos elementos fornecidos pelo Requerente, que nos termos do artº. 75.º, n.º 1, da LGT gozam da presunção de veracidade.
Termos em que, tendo sido apresentado o pedido de revisão oficiosa invocando o n.º 1 do art.º 78º da LGT, sem a prova ou sequer a alegação da responsabilidade pela existência de erro na liquidação imputável à AT, tem o pedido de pronúncia arbitral ora em análise de considerar-se extemporâneo, por violação do artigo 10º, n.º 1 do RJAT., na parte em apreciação.
Como se afirma no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 21-3-2019, proferido no âmbito do proc. n.º 132/14.8BEALM: “I- O prazo fixado para a dedução da ação, porque aparece como extintivo do respectivo direito (subjectivo) potestativo de pedir judicialmente o reconhecimento de um certo direito, é um prazo de caducidade. II- E a caducidade do direito de ação é de conhecimento oficioso, porque estabelecida em matéria (prazos para o exercício do direito de sindicar judicialmente a legalidade do acto administrativo) que se encontra excluída da disponibilidade das partes (art. 333º do CC) e determina o indeferimento liminar da petição. É, pois, um pressuposto processual negativo, em rigor, uma exceção peremptória que, nos termos dos art.ºs 576º n.º 3 e 579º do CPC, consistindo na ocorrência de factos que impedem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, o não conhecimento de meritis pela existência de obstáculos que o impeçam na disponibilidade do recorrente, importando a absolvição oficiosa do pedido”. (disponível em www.dgsi.pt).
Em conclusão, tendo presente que para a aplicação do artigo 78.º, n.º 1, in fine da LGT não basta que se verifique a existência de um erro, mas deve esse erro ser imputável à AT, imputabilidade essa que não se verifica no caso em concreto pois, o erro existente resultou, como vimos, da atuação do Requerente, tem de concluir-se pela legalidade do indeferimento tácito da petição de revisão oficiosa, no que respeita ao ano de 2019, imposto de IRC a título de retenção na fonte liberatória no montante de 31.194,68€, no dia 23/5/2019..[11]
Uma última nota para o facto dos Acórdãos que são mencionados pelo Requerente o foram exarados ao abrigo de disposição que já foi revogada. Na verdade, a norma do art.º 78.º, n.º 2 da LGT que dispunha “2 - Sem prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, considera-se imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação.”, norma que entretanto foi revogada pela alínea h) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016 de 30 de março)
Cumpre aferir se assiste razão ao Requerente quando alega a existência de uma discriminação, violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, dados os regimes de tributação diferenciados que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC’s constituídos e residindo noutro Estado, quanto à parte considerada tempestiva, referente ao ano de 2020, que foi entregue nos cofres do Estado – liquidado, imposto de IRC no montante de 59.559,73€, no dia 25/5/2020
Esta questão foi objeto de pronúncia pelo Tribunal de Justiça, em 17 de março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o qual versou sobre uma situação factual idêntica às dos presentes autos, suscitada por Tribunal constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T), no mesmo enquadramento legislativo.
Tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da União tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, apenas há que tomar em consideração o constante de tal decisão do TJUE, a qual é (o último) exemplo de uma jurisprudência, versando sobre diferentes aspetos do tema em questão, desde há muito afirmada[12].
Citamos:
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).
Nos números seguintes de tal acórdão, o TJUE responde especificadamente às objeções do governo português, as quais, no essencial, coincidem com o argumentário vertido pela AT na sua resposta. Muito embora este tribunal não esteja obrigado a considerar todos e cada um dos argumentos expendidos pelas partes, mas apenas a apreciar os vícios invocados, remete-se para a decisão do TJUE também enquanto “contraponto” à resposta da AT.
Pelo que a este tribunal arbitral nada mais resta que cumprir com o ditame do TJUE.
IV- JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf. neste sentido, entre outros, a decisão arbitral proferida no processo n.º 114/2022-T e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, proferido no processo n.º 01273/08.6BELRS).
Só que, porque num primeiro momento o erro apenas pode ser imputável ao substituto (e não à AT), há que observar o decidido pelo STA no acórdão de uniformização de jurisprudência de 29.06.2022, proferido no processo n.º 093/21.7BALSB: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.
Tem de proceder assim o pedido de pronuncia arbitral quanto ao ano de 2020, que foi entregue nos cofres do Estado – liquidado, imposto de IRC no montante de 59.559,73€, no dia 25/5/2020, cujos juros indemnizatórios deverão ser pagos a partir de 23 de maio de 2024, artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os árbitros em:
-
Julgar procedente a excepção peremptória da intempestividade, quanto ao pedido de anulação do imposto de IRC a título de retenção na fonte liberatória no montante de 31.194,68€, liquidado/pago no dia 23/5/2019, com a consequente absolvição da instância, por parte da Requerida;
-
Julgar procedente o pedido e anular as retenções na fonte de IRC, liberatórias, no montante de 59.559,73€, com referência ao ano de 2020, liquidado/pago no dia 25/5/2020.€ e, consequentemente, anular a decisão que versou sobre a revisão oficiosa.
-
Condenar a Requerida, para além da devolução do imposto indevidamente pago, a pagar ao Requerente juros indemnizatórios, a liquidar nos termos legais, contados desde 23 de maio de 2024.
Valor do processo – Fixa-se em 90.754,41 euros, correspondente ao montante total das liquidações impugnadas.
Custas, no montante de € 2.754,00, sendo 1.807,38 euros a cargo da Requerida e 946,62 a cargo da Requerente na proporção dos seus decaimentos.
2 de Agosto de 2024
Fernanda Maçãs (Presidente), com a seguinte declaração- concordo com a procedência da excepção mencionada atentas as circunstâncias do caso e a fundamentação desta decisão arbitral.
António Pragal Colaço (relator)
Martins Alfaro (com declaração de voto de vencido),
Declaração de voto
Concordando com o sentido da decisão quanto ao ano de 2020, votei vencido quanto à verificação da excepção peremptória quanto ao ano de 2019.
Sigo o entendimento que resulta do douto Acórdão do STA, de 03-06-2020, processo n.º 018/10.5BELRS 095/18 [13] que, remetendo, entre outros, para o acórdão do STA, de 12-12-2001, rec. n.º 26.233,[14] afirma que «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte»
E, como decorre da Decisão arbitral proferida em 05-03-2024, processo n.º 491/2023-T:[15]
E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, acesso direto à Constituição - não tem a Administração Tributária o poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e, por maioria de razão, normas contrárias ao direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado - e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto - estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto (acórdão Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, § 31).
Por fim, é sabido que o Estado português tem funções administrativas e funções legislativas. E, em casos como o dos autos, o Estado legislador errou e o Estado administração Pública apenas cumpriu a lei. Mas a lei que o Estado português administração Pública cumpriu é a lei do Estado português legislador. Não me parece defensável que o Estado português possa emitir uma norma ilegal, nas vestes de legislador, e vir, de seguida, nas vestes de administração, afirmar que apenas cumpriu essa norma, pelo que não ocorreu nenhum erro. No mínimo seria vir contra facto próprio e violaria princípios como o da boa-fé.
Acresce que a lei não exige a culpa dos serviços para a imputabilidade do erro; pressupondo a culpa a exigibilidade de comportamento diferente, não me parece, em consequência, relevante discutir-se se ao Estado português/AT seria ou não exigível comportamento diferente - no caso, adequar ou não a sua conduta à norma incompatível com o Direito da União. A discussão tem, por isso, de ser exclusivamente objectiva e resultar na conformidade objectiva do acto tributário em causa com o direito declarado/reconhecido pelo Tribunal.
Com estes fundamentos, teria concluído que, discutindo-se a legalidade da retenção na fonte, com base na violação do Direito da União Europeia, o meio procedimental utilizado - pedido de revisão oficiosa - é, não só adequado, como o único meio à disposição da Requerente para contestar aquele acto.
Martins Alfaro
[1] Cfr. p.ex:, Documento n.º 4 junto com o ppa;
[2] Seguiremos muito de perto o vertido no mencionado Acórdão, que pode ser consultado in:www.caad.org.pt;
[3] É indiferente laborar sobre o conceito de retenção na fonte, porquanto o elemento literal é evidente;
[4] Ampliando mesmo o conceito de liquidação a “questão fiscal”, alargando o âmbito da competência dos Tribunais Tributários, cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, Processo 00319/22.0BEAVR, de 07-12-2022, Antero Pires Salvador,
Sumário: Estando em causa uma questão fiscal, entendida esta como como abrangendo “ … todas as questões cuja resolução exige a interpretação e a aplicação de "questão fiscal" a que exija a interpretação e aplicação de quaisquer normas de direito fiscal, substantivo ou adjectivo, para resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública” (Cfr. Acórdão do Plenário do STA, datado de 21/3/2012, in Proc. 0189/11), é competente o tribunal tributário, independentemente de estar em causa um acto administrativo e a apreciação das respectivas invalidades – ou seja, no caso, uma relação jurídica tributária que tem como objeto as contribuições para a segurança social em regularização no âmbito do pedido de adesão do Dec. Lei n.º 124/96, de 10/8 - Plano Mateus. Na mesma linha o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo exarado no Processo 0366/09, de 12-11-2009, JORGE DE SOUSA
Sumário: I – A competência para o conhecimento da globalidade das acções de impugnação de actos administrativos respeitantes a questões fiscais é atribuída aos tribunais tributários e às Secções do contencioso tributário do Supremo Tribunal Administrativo e dos tribunais centrais administrativos.
II – São questões fiscais as que exijam a interpretação e aplicação de quaisquer normas de direito fiscal substantivo ou adjectivo, para resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública.
III – A actividade tributária é uma parcela da actividade financeira global, que tem por fim a aquisição de meios financeiros por entidades públicas, e tem em vista a definição dos direitos e deveres dos cidadãos e da Administração no âmbito da actividade destinada à obtenção daquelas prestações patrimoniais.
IV – Está-se perante um acto administrativo em matéria fiscal quando a Administração visar com ele regular uma relação jurídica gerada no exercício da sua actividade aquisição de meios financeiros.
V – Assim, cabe aos tribunais tributários conhecer de uma acção administrativa especial em que é impugnado um acto administrativo que repartiu entre vários interessados quotas de biodiesel isentas de Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (ISP)., todos consultáveis in.www.dgsi.pt;
[5] Entre outros, os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-04-2017, processo n.º 8599/15; de 25-06-2019, processo n.º 44/18.6BCLSB; de 11-07-2019, processo 147/17.4BCLSB; e de 13-12-2019, processo n.º 111/18.6BCLSB, in.www.dgsi.pt;
[6] Em sede ampla administrativa, perdurou imenso “tempo” em termos meramente normativos, a aplicação do princípio da lesividade dos actos administrativos como permitindo a sua imediata impugnação administrativa, em virtude da alteração introduzida pela Lei Constitucional nº 1/89 na redacção do art. 268º da CRP, onde o legislador constitucional consagrou a lesividade como critério de selecção dos actos contenciosamente recorríveis, deixando a recorribilidade de ser determinada por um critério formal radicado na posição procedimental do acto (definitivo e executório). Passou a estar centrada na idoneidade para lesar direitos e interesses legalmente protegidos, cfr. entre muitos o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, processo 046262, de 03-05-2007, PLENO DA SECÇÃO DO CA, POLÍBIO HENRIQUES. No entanto, na área tributária, ainda “vivem” imensos fenómenos de reclamações necessárias que acabam por limitar o acesso contencioso imediato – num género de conservação da definitividade e executoriedade;
[7] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Processo 087/22.5BEAVR, de 09-11-2022, José Gomes Correia, in.www.dgsi.pt;
[9] Acórdão mencionado na Decisão Arbitral, processo 830/2023-T (Carla Castelo Trindade);
[10] Seguimos de perto o desenvolvimento vertido na Decisão Arbitral n.º 430/2022-T, de 2023-03-10, Manuel Luís Macaísta Malheiros, com voto de vencido de Fernando Marques Simões, in.www.caad.org.pt;
[11] Consultar também a Decisão Arbitral exarada no processo n.º nº 629/2021-T, de 2022-08-03, (Victor Calvete), com voto de vencido de (Magda Feliciano), cujo sumário foi:
I – Ainda que indiferente para estabelecer a sua conformidade com o Direito da União, a natureza da Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) como contribuição financeira ou imposto é decisiva para determinar a vinculação da Autoridade Tributária (AT) à jurisdição dos Tribunais Arbitrais do CAAD.
II – …
III – …
IV – Quando um tribunal tem tantas dúvidas sobre a solução conforme ao Direito da União que suscita uma questão de reenvio prejudicial (ou suspende a instância na sua pendência, ou pondera fazê-lo), é contraditório concluir que a AT (que não tem ao seu dispor essas faculdades) cometeu um erro que lhe é imputável se a solução que deu antes não corresponde à que o TJUE fixou depois.
V – Nem por alegado desrespeito do Direito da União, nem por alegado desrespeito da Constituição, pode a AT estar investida na possibilidade de recusar a aplicação de normas legais. O Direito que cabe à AT aplicar é diferente (tanto para mais como para menos) do Direito que cabe aos Tribunais aplicar.
VI – No caso dos autos, a Requerente não imputou um erro à AT – imputou um erro ao legislador. Ora, como o processo de revisão oficiosa dos actos tributários por parte de quem está vinculado à lei, com fundamento no erro de assim se considerar, não pode permitir ultrapassar erros dessa lei, esse pedido (fora do prazo previsto na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT) foi intempestivo. Assim, sendo insusceptíveis de modificação os actos de liquidação pretendidos rever, caducou o direito de acção.
[12] Uma referência ao facto de o STA – como era seu dever – ter uniformizado a jurisprudência em obediência ao decidido pelo TJUE (ac. 093/19, de 28/09/2023).