Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 962/2023-T
Data da decisão: 2024-08-13  IRC  
Valor do pedido: € 198.057,72
Tema: Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas – Tributação dos juros dos Organismos de Investimento Colectivo não residentes.
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SUMÁRIO: 

 

  1. O regime acolhido no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, ao restringir a dispensa de retenção na fonte e a exclusão de tributação em sede de IRC aos dividendos auferidos por OIC residentes em Portugal, discrimina os OIC não residentes, residentes noutro Estado membro da União Europeia, não obstante tais entidades não residentes serem constituídas e operarem em condições equivalentes às previstas na legislação portuguesa, ao abrigo da Directiva 2009/65/CE.

 

  1. Como o TJUE já aclarou, o Direito da União Europeia opõe-se a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal.

 

  1. Em particular, o artigo 63.° do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um organismo de investimento colectivo residente estão isentos dessa retenção.

 

 

  1. Relatório

 

  1. A..., organismo de investimento colectivo ("OIC") constituído e a operar no Reino da Bélgica sob supervisão da Autorité des Services et Marchés Financiers, contribuinte fiscal português n.º ... e contribuinte fiscal belga n.º..., com sede na Rue ...– ... Bruxelas, na Bélgica, representada pela sua entidade gestora B..., com sede na Rue...– ... Bruxelas, na Bélgica (doravante "Requerente"), na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa por si apresentado junto da Administração Tributária, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 57.º, n.ºs 1 e 5, e 95.º, n.º 2, alínea d), da Lei Geral Tributária ("LGT"), 97.º, n.º 1, alínea a), 99.º, alínea a), e 102.º, n.º 1, alínea d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário ("CPPT"), 137.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas ("CIRC"), 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ("RJAT"), requerer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa em referência e, bem assim, das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas ("IRC") por retenção na fonte ocorridas nos anos de 2019, 2020 e 2021, aquando da colocação à disposição do Requerente de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português.

 

  1.  O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Requerida.

 

  1. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que os ora signatários foram nomeados pelo CAAD em 2 de Fevereiro de 2024, e as partes, devidamente notificadas, não manifestaram intenção de o recusar, tendo o Tribunal ficado constituído em 20 de Fevereiro de 2024.

 

  1. O Requerente não arrolou testemunhas e juntou à petição diversos documentos.

 

  1. Tendo este Tribunal exarado Despacho a 21 de Fevereiro de 2024 para no prazo de 30 se notificar o dirigente máximo do Serviço da Autoridade Tributária e Aduaneira para apresentar Resposta, a 5 de Abril de 2024 veio a AT apresentar a sua Resposta.

 

  1. Resumidamente, o Requerente sustentou em sede do pedido de revisão oficiosa que os dividendos de fonte portuguesa por si auferidos não devem ser tributados em sede de IRC, ao abrigo do disposto no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do Estatuto dos Benefícios Fiscais ("EBF"), sob pena de tal consubstanciar uma discriminação injustificada entre OIC residentes e não residentes em Portugal, contrária ao princípio da livre circulação de capitais ínsito no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia ("TFUE") e, consequentemente, ao princípio do primado do Direito da União Europeia consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa ("CRP").

Termos em que terá sido alvo de um tratamento discriminatório relativamente às entidades residentes em território português.

Neste contexto, entende que, enquanto os residentes são tributados com base no seu lucro tributável, isto é, com base no montante líquido do rendimento, os não residentes – como é o seu caso -, são tributados sobre o montante brutos dos rendimentos auferidos em território português, o que, no seu entender, configura uma forma de discriminação. Destarte, citando abundante jurisprudência do TJUE, do STA e arbitral, solicita a declaração de ilegalidade do indeferimento da revisão oficiosa e, bem assim, a da ilegalidade dos referidos actos de retenção na fonte referentes aos exercícios de 2019, 2020 e 2021, com a sua consequente anulação, com todas as consequências legais, designadamente o reembolso à Requerente do montante de imposto, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal contados.

Tal como salienta, “94.º Em síntese, na medida em que o artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, faz depender a dispensa de retenção na fonte e tributação em sede de IRC dos dividendos de fonte portuguesa auferidos por um OIC da respectiva residência em território português, os OIC não residentes constituídos e a operar em condições equivalentes, ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, encontram-se numa situação objectivamente comparável à dos OIC residentes em território português, podendo em ambos os casos os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal ser objecto de uma dupla tributação económica ou de uma tributação em cadeia. 95.º Neste contexto, constata-se que as liquidações de IRC objecto dos presentes autos assentam numa situação de discriminação que viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE.

96.º Efectivamente, de acordo com as regras e princípios de Direito da União Europeia que prevalecem sobre a legislação nacional, nas situações como a ora em análise, impende sobre o Estado Português a obrigação de, no âmbito do exercício da sua soberania tributária sobre os dividendos auferidos pelo Requerente, tratar os mesmos de modo equiparável aos dividendos auferidos por um OIC accionista residente em situação análoga – ou seja, de não discriminar entre OIC accionistas residentes e não residentes.

(…)

98.º Essa obrigação de não discriminar implica, necessariamente, que também os benefícios ou vantagens de natureza fiscal atribuídos a residentes devam ser concedidos, nas mesmas condições, a não residentes.

(…)

103.º Contra tal conclusão não se argumente no sentido de a referida restrição poder eventualmente ser neutralizada pelo Estado da residência do Requerente, através do mecanismo de crédito de imposto previsto no artigo 24.º, n.º 2, da CEDT Portugal/Bélgica. 104.º Efectivamente, estando o Requerente isento de tributação em sede de imposto belga sobre os rendimentos das pessoas colectivas, não poderá reclamar tal crédito de imposto no Estado da sua residência.

(…)

130.º Tal como o AllianzGI-Fonds AEVN, o Requerente: i) É um OIC constituído e a operar ao abrigo das Directivas 2009/65/CE e 2011/61/EU, com sede noutro Estado-Membro da União Europeia; ii) Auferiu rendimentos de capitais de fonte portuguesa sujeitos a tributação em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória, nos termos dos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.º 1, alínea c), 3, alínea B), e 87.º, n.º 4, do CIRC, não tendo beneficiado do regime previsto no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF; iii) Não logrou obter um crédito de imposto relativo ao imposto suportado em Portugal, na medida em que se encontra isento de imposto sobre as sociedades no seu Estado de residência.

(…)

135.ºTudo ponderado, as liquidações de IRC por retenção na fonte acima identificadas enfermam de vício de violação de lei consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, na violação do princípio do primado do Direito da União Europeia ínsito no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o qual deverá, nos termos do artigo 163.º do CPA, determinar a respectiva anulação, com a consequente restituição do imposto indevidamente retido na fonte, no montante total de EUR 198.057,72, ao abrigo do artigo 100.º da LGT.”

 

  1. Invoca desde logo a AT na sua Resposta uma excepção de incompetência do Tribunal, na medida em que: i.) O recurso a arbitragem tributária seria admissível se (e apenas se) precedido de um procedimento de reclamação graciosa, cujo pedido deveria ser apresentado no prazo de dois anos contados do termo do prazo para entrega do imposto retido na fonte, o que a contrario significa que o recurso a arbitragem tributária jamais seria admissível se precedido de um pedido de revisão oficiosa; ii.) Do pedido de pronúncia arbitral resulta que a Administração Tributária nem sequer se pronunciou expressamente sobre os actos tributários impugnados, tendo-se verificado um indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, e que não efectuou directamente a retenção na fonte do imposto, inexistindo nessa medida, por impossibilidade lógica, manifestada aliás na ausência de identificação e comprovação do mesmo, erro de Direito imputável aos Serviços da Administração Tributária, passível de controlo em sede de arbitragem tributária.

Mais, veio defender que, “Refira-se ainda que mesmo que o tribunal arbitral decida em sentido favorável ao Requerente, somos de opinião de que, no caso concreto, não haverá lugar ao pagamento de juros indemnizatórios conforme tem sido a posição doutrinal uniforme e constante do STA. Sobre este assunto, transcreve-se o resumo do acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, de 30 de janeiro 2019, proferido no âmbito de recurso para Uniformização de Jurisprudência (Proc. 0564/18.2BALSB): “Para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP)”.»

a existência de uma excepção dilatória, consubstanciada na incompetência material do tribunal arbitral, a qual obsta ao conhecimento do pedido, devendo determinar a absolvição da entidade Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT. Ora constata-se que a requerente – na qualidade de substituído tributário, pede que o Tribunal Arbitral aprecie, pela primeira vez, as retenções na fonte efetuadas pelo substituto tributário sem que tenha desencadeado procedimento de reclamação graciosa nos termos do art. 132º do CPPT. 5. Situação esta que está fora da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.”

Invoca ainda a AT na sua Resposta, em suma, que, “…no presente caso, não parece estarmos em presença de situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela requerente.

(…)

para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e se tal diferenciação é suscetível de afetar o investimento em ações emitidas por sociedades residentes, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos – IRC e Imposto do Selo - que incidem sobre os segundos, e que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos.

79. Além do mais, o imposto retido à Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera da Requerente, bem como na esfera dos investidores, sendo que esta última questão a Requerente não esclareceu.

80. A verdade é que a Requerente não esclareceu/provou (apenas alegou) se, no caso concreto, existiu ou não um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera da própria Requerente ou dos investidores.

81. Assim, contrariamente ao afirmado pela Requerente, não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente, antes, pelo contrário.

(…)

113. Na verdade, seguindo-se o entendimento expresso no Acórdão do STA, proc.19/10.3BELRS, de 07-05, “Para que se pudesse concluir, in casu, no sentido do carácter discriminatório do regime que sujeita a retenção na fonte as entidades financeiras não residentes, a recorrida teria que demonstrar que suportara uma tributação mais elevada no seu conjunto, o que não se verificou. Neste sentido, vide o Acórdão Gerritse, de 12 de Junho de 2003 (Processo C- 234/01).”

Invoca ainda a AT que “57. Conforme antedito, não compete à Administração Tributária avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, não podendo aceitar de forma direta e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu.”

 

  1. Em 9 de Abril de 2024, foi o Requerente notificada do seguinte Despacho “Uma vez que não foi requerida a audição de testemunhas e a pronúncia da Requerente sobre as excepções suscitadas pela Requerida poderá melhor fazer-se por escrito, para o que se fixa um prazo de 15 dias, dispensa-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo (artigo 19.º do RJAT), e da celeridade, da simplificação e da informalidade processuais (artigo 29.º, n.º 2, do RJAT).”

 

  1. Em 24 de Abril de 2024, veio o Requerente juntar réplica sobre as excepções de incompetência invocadas pela AT, citando abundante jurisprudência arbitral, salientando que, “ contrariamente ao que pretendem fazer crer as Ilustres Juristas da Administração Tributária, as Decisões proferidas nos processos de arbitragem tributária n.ºs 382/2019-T e 51/2012-T contrariam a jurisprudência arbitral dominante, reflectindo antes uma posição há muito ultrapassada e residual em matéria de competência dos tribunais arbitrais para apreciação da legalidade de actos de liquidação que tenham sido precedidos de revisão oficiosa tacitamente indeferida pela Administração Tributária.

Sustenta, para o efeito, que o pedido de revisão oficiosa é um meio de tutela dos direitos dos contribuintes análogo à reclamação graciosa.

Tal como alega, a falta de decisão dos pedidos de revisão oficiosa evidencia, para efeitos de tutela dos direitos do contribuinte, a posição silente da Administração Tributária sobre a (i)legalidade da retenção na fonte; iv.) Os erros praticados no acto de retenção são imputáveis à Administração Tributária, para efeitos do disposto no artigo 78º, n.º 1, da LGT; v.) Apesar de não ter sido deduzida reclamação graciosa, nos termos do artigo 132.º do CPPT, o contribuinte pode pedir a revisão oficiosa de actos de retenção na fonte, dentro do prazo legal em que a Administração Tributária a podia efectuar – i.e. 4 anos – e pode impugnar contenciosamente, em sede de arbitragem tributária, a decisão expressa ou tácita de indeferimento.

 

 

  1. Em 13 de Maio de 2024, foram as partes notificadas para, se assim o entenderem, apresentar alegações, em simultâneo, no prazo de 15 dias, sendo em qualquer caso proferida a decisão até ao dia 20 de Agosto.

 

  1. Em 23 de Maio de 2024, veio o Requerente apresentar alegações, reproduzindo, no essencial, o invocado na PA.

 

  1. Em 4 de Junho de 2024, veio a Requerida apresentar alegações, reproduzindo, no essencial, o invocado na sua Resposta e salientando que a prova testemunhal vai no sentido das suas conclusões.

 

 

II - Saneamento do Processo

 

1. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.

 

2. O objecto principal do processo reporta-se, razão pela qual se verifica a competência deste tribunal arbitral, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

3. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

4. O processo não enferma de nulidades e não foram identificadas questões prévias relativas ao pedido principal, pelo que se impõe, agora, conhecer do mérito do pedido.

 

III – Fundamentação

 

  1. Questões decidendas

 

Conforme vimos, a questão decidenda consiste essencialmente em determinar se, como pretende a Requerente, se verificam os pressupostos necessários para que seja declarada(i)legalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa por si apresentado a 9 de Maio de 2023, com vista a obter a declaração de ilegalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte ocorridas entre 2019 e 2021, o qual correu os seus termos sob o n.º ...2023... .

Importa assim aferir:

- Se, como invoca a AT, se verifica excepção de incompetência material deste Tribunal, nos termos invocados pela AT.

- Se no caso concreto existe uma violação do princípio da não discriminação, nos termos invocados pela Requerente.

Vejamos.

 

  1. Factos

 

  1. Factos provados

Em face das posições das partes expressas nos articulados, bem como dos documentos integrantes do processo administrativo, julgam-se como provados os seguintes factos pertinentes para a decisão da causa:

 

  1. O Requerente é um OIC, com sede e direcção efectiva no Reino da Bélgica, constituído e a operar ao abrigo da Loi du 3 août 2012 relative à certaines formes de gestion collective de portefeuilles d’investissement e do Arrêté royal du 7 décembre 2007 relatif aux organismes de placement collectif à nombre variable de parts institutionnels, que transpõem para a ordem jurídica belga a Directiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC – cfr. cópias de certidão emitida pela Autorité des Services et Marchés Financiers ao abrigo do artigo 2.º do Regulamento UE n.º 584/2010, da Comissão, de 1 de Julho de 2010, junta como documento n.º 2 ao PPA, do prospecto do Requerente, junta como documento n.º 3 do PPA, e publicação os referidos actos legislativos belgas, disponível no sítio oficial na internet do Le Moniteur Belge, em http://www.ejustice.just.fgov.be/eli/loi/2012/08/03/2012003296/justel e em http://www.ejustice.just.fgov.be/eli/arrete/2007/12/07/2007003552/justel.

 

  1. O Requerente é um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável no país.

 

  1. O Requerente é administrado pela sociedade pela B..., entidade igualmente com residência no Reino da Bélgica, na Rue...– ... Bruxelas, na Bélgica, nos termos e para os efeitos do artigo 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Capital entre a República Portuguesa e o Reino da Bélgica ("CEDT Portugal/Bélgica") – cfr. documento n.º 2 e cópias de certificados de residência da entidade gestora, juntas como documento n.º 4.

 

  1. Em 2019, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de EUR 529.711,46, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, nos seguintes termos (cfr. cópia das liquidações de IRC por retenção na fonte, juntas como documento n.º 5 ao PPA):

 

 

 

  1. Em 2020, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de EUR 129.366,59, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, nos seguintes termos (cfr. cópia das liquidações de IRC por retenção na fonte, juntas como documento n.º 6 ao PPA):

 

 

 

  1. Em 2021, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de EUR 133.152,77, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, nos seguintes termos (cfr. cópia da liquidação de IRC por retenção na fonte, juntas como documento n.º 7 ao PPA):

 

 

 

  1. As retenções na fonte de IRC em referência – no montante de EUR 198.057,72 – foram efectuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública, através das guias de retenção na fonte n.os ... e ..., de 21 de Junho e 20 de Outubro de 2019, ..., de 20 de Agosto de 2020, ... e ..., de 20 de Janeiro de 2021 e 18 de Junho de 2021, pelo C..., pessoa colectiva com o número de identificação fiscal..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo do artigo 94.º, n.º 7, do CIRC – cfr. documentos n.os 5, 6 e 7 juntos ao PPA.

 

  1. O Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo às retenções na fonte objecto do pedido de revisão oficiosa em referência, seja ao abrigo da CEDT Portugal/Bélgica, seja ao abrigo da lei interna belga – cfr. cópia de declaração da entidade gestora do Requerente, junta como documento n.º 8  junto ao PPA.

 

  1. O Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das liquidações de IRC acima identificadas, referentes aos anos de 2019, 2020 e 2021, abrigo do disposto nos artigos 78.º, n.º 1, e 137.º do CIRC – cfr. documento n.º 1 junto ao PPA

 

  1. O referido procedimento de revisão oficiosa encontra-se pendente junto da Administração Tributária, correndo os seus termos sob o n.º ...2023... .

 

2.2 Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão que se considerem como não provados.

 

2.3 Fundamentação da matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º7, do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

3. Questões de direito

 

Encontrando-se a aludida matéria de facto dada como provada, importa seguidamente determinar o direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões supra, sendo que, essencialmente, a questão decidenda nos presentes autos reconduz-se à apreciação da legalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa em referência e, nessa medida, da legalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte acima identificadas, que incidiram sobre os dividendos de fonte portuguesa auferidos pelo Requerente em 2019, 2020 e 2021.

 

3.1 Da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria

 

Como salienta Jorge Lopes de Sousa, in "Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária", Guia da Arbitragem Tributária, Coimbra, 2013, Almedina, p. 122, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, os tribunais arbitrais têm competência para apreciar a legalidade de actos tributários previamente contestados perante a Administração Tributária em sede de revisão oficiosa tacitamente indeferida – “Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta de ilegalidade de um ato de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o ato de segundo grau é o indeferimento de pedido de revisão do ato tributário¸ pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efetuado no prazo de reclamação administrativa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa [em nota de rodapé: Como se entendeu no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-06-2006, proferido no processo n.º 402/06]”.

Por sua vez, Carla Castelo Trindade, no mesmo sentido, in Regime Jurídico da Arbitragem Tributária: Anotado, Coimbra, 2016, Almedina, pp. 96 e 97, faz notar que “…o STA pronunciou-se, repetidamente, no sentido da equiparação do pedido de revisão do acto tributário à reclamação graciosa sobre actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta. Veja-se, por todos, o Acórdão do STA de 12 de Julho de 2006, proferido no âmbito do processo n.º 0402/06 (as mais das vezes citado pelos tribunais arbitrais) […]. […] É de acompanhar esta jurisprudência corrente do STA que vê no pedido de revisão do acto tributário — meio impugnatório administrativo com prazo mais alargado que os restantes — um mecanismo de abertura da via contenciosa, perfeitamente equiparável à reclamação graciosa necessária. Com efeito, e no seguimento do que se disse, as reclamações graciosas necessárias, previstas nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, justificam-se pela necessária de uma filtragem administrativa, prévia à via judicial, por estarem em causa actos que não são da autoria da Administração Tributária mas do próprio sujeito passivo e nos quais esta não teve, ainda, qualquer intervenção. Nesse sentido, o pedido de revisão oficiosa serve o propósito dessa filtragem administrativa, porque aí a Administração já terá possibilidade de se pronunciar sobre o acto de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta. Excluir a jurisdição arbitral apenas porque o meio utilizado não foi efectivamente uma reclamação graciosa seria violar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, tal como consagrado no artigo 20.º da CRP. E esta admissibilidade vale, por maioria de razão, tanto para o pedido de revisão oficiosa apresentado fora do prazo previsto para a reclamação graciosa necessária (que é de 2 anos nos termos daqueles artigos do CPPT), como para o pedido que é realizado quando ainda era possível a apresentação de reclamação graciosa.

No tocante ao invocado pela AT no que se reporta à incompetência deste Tribunal para conhecer o pedido na origem dos presentes autos, na medida em que a Requerente não terá, alegadamente, invocado e demonstrado a existência de erro imputável à AT, importa sublinhar que, em conformidade com o entendimento predominante da doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores, desde que o erro não seja imputável a conduta negligente do sujeito passivo, será imputável à Administração Tributária.

Neste contexto, a jurisprudência dominante vai no sentido de que, desde que o erro não seja imputável a conduta negligente do sujeito passivo, será imputável à Administração Tributária, como se conclui no Acórdão do TCA Sul de 23 de Março de 2017, proferido no Processo 1349/10.0BELRS, “O conceito de erro imputável aos serviços a que alude o artº.78, nº.1, 2ª. parte, da L.G.T., embora não compreenda todo e qualquer vício (designadamente vícios de forma ou procedimentais) mas tão só erros, estes abrangem o erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo essa imputabilidade aos serviços independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectada pelo erro. Por outras palavras, o dito erro imputável aos serviços concretiza qualquer ilegalidade não imputável ao contribuinte por conduta negligente, mas à A. Fiscal, mais devendo tal erro revestir carácter relevante, gerando um prejuízo efectivo, em virtude do errado apuramento da situação tributária do contribuinte, daí derivando o seu carácter essencial. (…).”

Note-se que, como defende o Requerente, o acto de indeferimento tácito é, para efeitos de impugnação contenciosa, um verdadeiro e pleno acto tributário, nos termos e para os efeitos do artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, reflectindo, nessa medida, a posição da Administração Tributária sobre a pretensão do contribuinte.

Tendo o Requerente apresentado o pedido de revisão oficiosa que antecedeu os presentes autos a 8 de Maio de 2023, conclui-se pela sua tempestividade, incumbindo à Administração Tributária o dever de proceder a essa revisão, nos termos dos artigos 56.º e 78.º, n.º 1, da LGT.

Ora, conforme o previsto no artigo 57.º, n.º 1, da LGT, “O procedimento tributário deve ser concluído no prazo de quatro meses, devendo a administração tributária e os contribuintes abster-se da prática de actos inúteis ou dilatórios.”. Por sua vez, de acordo com o previsto no do n.º 5 do mesmo artigo. “O incumprimento do prazo referido no n.º 1 [prazo de quatro meses], contado a partir da entrada da petição do contribuinte no serviço competente da administração tributária, faz presumir o seu indeferimento […]”.

Ou seja, tendo em consideração o aludido enquadramento legal e as datas de apresentação do referido pedido de revisão oficiosa, não tendo ainda o Requerente sido ainda notificado pela Administração Tributária da decisão final em sede do correspondente procedimento, assiste razão ao Requerente quando alega que se verifica o indeferimento tácito do mesmo.

Termos em que se conclui que não colhem as pretensões de incompetência do Tribunal Arbitral invocadas pela Requerida.

 

3.2  Da violação do Direito da União Europeia

 

Conforme supra exposto, o Requerente considera ilegal a tributação em sede de IRC por si suportada, efectuada por retenção na fonte liberatória sobre os dividendos de fonte portuguesa acima referidos, auferidos em 2019, 2020 e 2021. Neste contexto, invoca que apenas  suportou a referida tributação em sede de IRC por se tratar de um OIC não residente em Portugal, não obstante ter sido constituído e operar no Reino da Bélgica em condições equivalentes aos OIC residentes em Portugal, cumprindo as exigências da Directiva 2009/65/CE. Como invoca, um OIC residente em Portugal, constituído e a operar em condições equivalentes ao Requerente, estaria isento de tributação em sede de IRC sobre tais rendimentos, de acordo com o artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF.

Em conformidade com o disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o Direito da União Europeia é aplicável na ordem interna nos termos do Direito da União, vigorando o princípio do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito interno, conforme se infere igualmente do disposto no artigo 8.º, n.º 2, da CRP e do artigo 1.º, n.º 1, da LGT.

Como vimos, no caso em apreço os dividendos auferidos pelo Requerente em Portugal em 2019, 2020 e 2021 foram sujeitos a tributação em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória, nos termos dos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, e 87.º, n.º 4, do CIRC, distintamente do que se verificaria nas mesmas circunstâncias se tais facturações pertencessem a uma sociedade residente em Portugal, caso em que a tributação em IRC incidiria apenas sobre o rendimento líquido de encargos.

Com efeito, face ao disposto no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, o regime em referência não é aplicável aos dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC não residentes em Portugal, ainda que constituídos e a operar noutro Estado membro de acordo com a Directiva 2009/65/CE, isto é, em condições equivalentes às aplicáveis aos OIC residentes em Portugal.

A Requerente, como entidade não residente fiscal em Portugal e sem estabelecimento estável, está sujeita a IRC em Portugal, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do CIRC, incidindo o imposto apenas sobre os rendimentos obtidos em território nacional (país da fonte), nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 3 e n.º 2 do artigo 4.º, ambos do CIRC, à taxa de 25% nos termos do n.º 4 do artigo 87.º do CIRC, sendo objecto de retenção na fonte a título definitivo ou liberatório, na data da verificação do facto tributário (pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos), cujas importâncias retidas devem ser entregues nos cofres do Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que forem deduzidas, nos termos da alínea c) do n.º 1, alínea b) do n.º 3, n.º 5 e n.º 6, todos do artigo 94.º do CIRC.

O artigo 18.º do TFUE consagra uma proibição genérica de discriminações baseadas na nacionalidade, princípio esse concretizado, no que diz respeito à livre circulação de capitais, no artigo 63.º, o qual proíbe todas as formas de discriminação baseadas na nacionalidade ou no local de investimento entre entidades/pessoas residentes em Estados membros da UE.

De acordo com as normas do Direito da União Europeia actualmente acolhidas no artigo 56.º do TFUE, ex-artigo 49.º do TCE: “1. No âmbito das disposições seguintes, as restrições à livre prestação de serviços na União serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados-Membros estabelecidos num Estado-Membro que não seja o do destinatário da prestação.

Por sua vez, o artigo 63.º do TFUE, ex-artigo 56.º do TCE, determina o seguinte: “1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

 O Anexo I da Directiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de Junho de 1988, estabelece uma nomenclatura de movimentos de capitais, a qual conservou o valor indicativo que tinha para a definição do conceito de movimento de capitais (ver Acórdão de 16 de Março de 1999, Caso Trummer e Mayer, Proc. C-222/97, n.º 21), precisando que este conceito inclui as operações de distribuição de dividendos.

Ora, a distribuição de dividendos efectuada por sociedades residentes em Portugal ao ora Requerente é passível de ser qualificada como movimento de capital na acepção do artigo 63.º do TFUE e da própria Directiva 88/361/CEE.

Neste contexto, como faz notar o Requerente, no referente à prestação de serviços a partir de outro Estado membro, o TJUE produziu jurisprudência clara a concluir pela ilegalidade das diferenças desfavoráveis de tratamento, fiscais ou outras, comparativamente com o tratamento de prestadores de serviços residentes.

Resulta da jurisprudência do TJUE que a proibição geral de discriminação, como restrição injustificada à liberdade de estabelecimento prevista no artigo 63.º do Tratado, cobre quer as restrições directas, quer as restrições indirectas, incluindo as medidas administrativas e orientações administrativas em relação a qualquer tipo de investimento.

Assim, de acordo com a jurisprudência do TJUE (nomeadamente, nos Processos C-493/09, Caso Commission v. Portugal, de 6 de Novembro de 2011, C-338/11  a C-347/11, Caso Santander Asset Management SGIIC, S.A, de 10 de Maio de 2012, C-480/16, Caso Fidelity Funds, de 21 de Junho de 2018), é clara a comparabilidade da situação dos OIC residentes em Portugal ou noutro Estado membro, sendo igualmente notório, que a legislação portuguesa em análise não visa estabelecer qualquer medida anti-abuso ou evitar práticas abusivas em matéria fiscal, pelo que o tratamento discriminatório conferido ao Requerente não pode aqui encontrar qualquer justificação.

Existe no caso concreto um tratamento discriminatório e uma clara restrição da liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.º do TFUE e pelo artigo 1.º da Directiva 88/361, uma vez que o ora Requerente está sujeito a tributação em Portugal sobre os dividendos aqui obtidos, ao passo que os OIC constituídos ao abrigo da lei portuguesa estão isentos sobre os mesmos rendimentos.

No Acórdão de 21 de Junho de 2018, Caso Fidelity Funds, proferido no Processo C-480/16, o TJUE pronunciou-se sobre uma situação idêntica à do Requerente, tendo concluído que, “Resulta de jurisprudência constante que as medidas proibidas pelo artigo 63..º , n.º 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado-Membro ou de dissuadir os residentes desse Estado-Membro de investir noutros Estados (Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C-338/11 a C-347/11, EU:C:2012:286, n..º 15 e jurisprudência referida).

Assim, por força da regulamentação em causa nos processos principais, os OIC residentes na Dinamarca e os residentes noutro Estado-Membro estão sujeitos, no que se refere aos dividendos que lhes são distribuídos por sociedades residentes na Dinamarca, a um tratamento diferenciado. Com efeito, os dividendos distribuídos pelas sociedades residentes na Dinamarca aos OIC não residentes estão sujeitos a uma retenção na fonte. Em contrapartida, os OIC residentes na Dinamarca podem beneficiar da isenção da retenção na fonte para esses dividendos, desde que cumpram os requisitos do § 16 C da ligningslov. Ao fazer uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção de tal retenção na fonte, a regulamentação nacional em causa nos processos principais procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes. Tal tratamento desfavorável é suscetível de dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investir em sociedades com sede na Dinamarca e, por outro, os investidores que residem na Dinamarca de adquirir participações em OIC não residentes (Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C-338/11 a C-347/11, EU:C:2012:286, n.º 17). Por conseguinte, a regulamentação em causa nos processos principais constitui uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE.”

Igualmente o Tribunal de Justiça da União Europeia no seu Acórdão de 17 de Março de 2022 proferido no Proc. C-545/19, Caso AllianzGI-Fonds AEVN, veio especificamente concluir que, “O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

Acresce que, tal como concluiu o TJUE, “a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas [tributações autónomas] não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.” (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, n.º57).

A jurisprudência nacional tem seguido esta jurisprudência em diversas situações de discriminação de OIC, como é o caso do Acórdão do STA de 8 de Março de 2017 proferido no Processo n.º 0298/13, na sequência de um pedido reenvio prejudicial que originou o Acórdão do TJUE de 13 de Julho de 2016 (Processo n.º C-18/15),

Os Acórdãos seguintes reafirmam esta jurisprudência do TJUE e do STA, nomeadamente o Acórdão do STA de 22 de Março de 2017, proferido no Processo n.º 0165/13, o Acórdão arbitral de 27 de Dezembro de 2019, proferido no Processo n.º 528/2019-T, o Acórdão arbitral de 23 de Julho de 2019, proferido no Processo n.º 90/2019-T, o Acórdão arbitral de 6 de Novembro de 2020 (Processo n.º 11/2020-T), o Acórdão arbitral de 16 de Abril de 2020, proferido no Processo n.º 535/2019-T, o Acórdão Arbitral de 10 de Julho de 2020, proferido no Processo n.º 952/2019-T, o Acórdão arbitral de 18 de Setembro de 2020, proferido no Processo n.º 951/2019-T, o Acórdão arbitral de 9 de Dezembro de 2020, proferido no Processo n.º 744/2019-T, o Acórdão arbitral de 10 de Abril de 2023, proferido no Processo n.º 580/2022-T, e o Acórdão do STA de 29 de Junho de 2022, proferido no Processo n.º 08/21.2BALSB.

Tal como se salienta no Processo n.º 20/2029-T, no qual esteve em análise uma situação em que uma sociedade portuguesa paga dividendos a um OIC residente em Portugal comparável à situação que está na origem dos presentes autos, a cujos fundamentos aderimos, “35. Consagrada no artigo 63.º do TFUE, a liberdade de circulação de capitais estabelece uma íntima relação com as demais liberdades fundamentais, a saber, de circulação de pessoas, de estabelecimento e de prestação de serviços, diferenciando-se delas na medida em que sem estende a terceiros Estados. A liberdade de circulação de capitais implica a proibição de discriminação entre capitais do Estado-Membro e capitais provenientes de fora. Os Estados-Membros podem regular em alguma medida a circulação de capitais, mas não podem discriminar.  Quando se trata de densificar conceitualmente o âmbito normativo da liberdade de circulação de capitais observa-se a inexistência de uma definição deste conceito. Por este motivo, o TJUE tem sucessivamente acolhido e sublinhado o valor enumerativo e indicativo, mas não exaustivo, da Diretiva n.º 88/361/CEE, incluindo o respetivo Anexo I, nomeadamente o número IV, onde se subsumem ao conceito uma vasta constelação de operações e transações transfronteiriças sobre certificados de participação em organismos de investimento coletivo, em que se incluem as relevantes in caso  .  Com efeito, a distribuição de dividendos efetuada por sociedades residentes em Portugal ao ora Requerente é passível de ser qualificada como movimento de capital na aceção do artigo 63.º do TFUE e da própria Diretiva 88/361/CEE, de 24 de junho de 1988.

36. Devem ser salientados, porque se revestem de grande relevância hermenêutica e metódica, pelo menos quatro aspetos fundamentais de regime jurídico. O primeiro diz respeito à aplicabilidade direta do artigo 63.º TFUE e da inerente proibição de restrições injustificadas da liberdade de circulação de capitais. O segundo refere-se ao facto de as liberdades fundamentais do mercado interno terem como principais destinatários os Estados-Membros, que devem abster-se de adotar medidas legislativas, administrativas e jurisdicionais de restrição das mesmas. O terceiro aspeto prende-se com a relação de complementaridade – e por vezes de sobreposição – que a liberdade de circulação de capitais estabelece com as liberdades de circulação de mercadorias e de pessoas, a liberdade de estabelecimento e a liberdade de prestação de serviços. O quarto aspeto tem que ver com o reforço progressivo da importância da liberdade de circulação de capitais no mercado interno, especialmente a partir da criação da União Económica e Monetária (UEM) . Um dos principais objetivos da UEM consiste, precisamente, em facilitar a livre transferência de capital entre os Estados-Membros no quadro do mercado interno e das relações económicas e financeiras com Estados terceiros. A criação de um mercado interno supõe, por definição, a gradual e efetiva abolição dos diferentes mercados nacionais, em favor de um único mercado interno, de forma a potenciar o crescimento económico à escala europeia através da mais fácil disponibilização de capital. 

Âmbito normativo e tributação

37. O âmbito normativo da liberdade de circulação de capitais do artigo 63.º do TFUE abrange vários domínios (v.g. movimento físico da moeda; investimento em propriedade imobiliária e títulos de crédito), sendo um deles, justamente, o do tratamento fiscal dos movimentos de capitais, que cai sob alçada da respetiva aplicabilidade direta . Embora a fiscalidade direta seja da competência dos Estados Membros, a mesma deve ser exercida no respeito do direito da União Europeia, sem de qualquer discriminação em razão da nacionalidade ou da residência.

38. O problema específico do tratamento fiscal da distribuição de dividendos tem ocupado um lugar central na jurisprudência europeia, incluindo não apenas o TJUE, mas também o Tribunal EFTA . Tanto este último órgão, no caso Focus Bank , como o TJUE, em casos como ACT GLO , Denkavit , Amurta , Truck Center , Aberdeen Property , Comissão v. Países Baixos , Comissão v. Portugal , Santander Asset Management  e Sofina SA , para citar apenas alguns dos mais relevantes exemplos, pese embora algumas diferenças factuais e jurídicas nas respetivas decisões, apontam globalmente no sentido de dever considerar-se que o tratamento fiscal diferenciado de residentes e não residentes – v.g. imputando aos investidores residentes um crédito de imposto e sujeitando as entidades não residentes a retenção de imposto sem imputação; retendo imposto sobre dividendos pagos a não residentes e não retendo no caso de dividendos pagos a residentes – configurar, em princípio, uma violação da liberdade de circulação de capitais e nalguns casos também da liberdade de estabelecimento, pondo em causa o funcionamento do mercado interno.

39. Embora não estejam sempre numa situação comparável, residentes e não residentes são colocados nessa posição a partir do momento em que o Estado-Membro que se considere, unilateralmente ou por convenção, opte por tributar os acionistas não residentes de maneira menos favorável que os residentes, relativamente aos dividendos que uns e outros recebam de sociedades residentes. Especialmente relevante, em sede das liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais, é o facto de o tratamento fiscal menos favorável dos não residentes os dissuadir, na qualidade de acionistas, de investirem no Estado da residência das empresas distribuidoras de dividendos, e constituir, igualmente, um obstáculo à obtenção de capital no exterior por parte dessas empresas.

40. Por outro lado, a jurisprudência europeia tem insistido na noção de que um Estado-Membro não pode deixar de cumprir as suas obrigações jurídicas decorrentes das liberdades fundamentais do mercado interno por considerar que outro Estado-Membro se encarregará de compensar de alguma maneira o tratamento desfavorável gerado pela sua própria legislação.  Neste domínio vale o princípio geral de que as liberdades de circulação de capitais e de estabelecimento requerem a igualdade de tratamento fiscal dos dividendos pagos a residentes e não residentes pelo Estado-Membro anfitrião, no caso de ambos estarem sujeitos a tributação de dividendos .

41. Quando se trata de interpretar e aplicar as liberdades fundamentais do mercado interno, prevalece o entendimento, amplamente sufragado pelo TJUE, segundo o qual a liberdade é a regra e as restrições à liberdade são a exceção. Estas últimas compreendem, quer as limitações ao exercício da liberdade, quer as discriminações no exercício da liberdade. Atento o caráter excecional das restrições, devem as mesmas ser devidamente fundamentadas e objeto de interpretação restritiva. A admissibilidade de restrições à liberdade de circulação de capitais por parte dos Estados-Membros encontra-se prevista no artigo 65.º do TFUE, na senda das derrogações à liberdade de circulação de capitais já previstas na Diretiva n.º 88/361/CEE.  A análise do caso concreto deve ser levada a cabo com base nas premissas normativas acima sintetizadas.

(…)

45. Porém, em causa está saber se a determinação da comparabilidade da situação dos fundos residentes e não residentes em Portugal deve entrar em linha de conta com a situação fiscal em que se encontram os fundos de investimento não residentes em Portugal no respetivo Estado de residência – tendo em conta pertinente regime jurídico e as CDT’s entre Portugal e esses Estados – especialmente no caso dos Estados-Membros da União Europeia ou integrantes do Espaço Económico Europeu, ou ainda levar em conta a situação concreta dos respetivos investidores . Soluções normativas que obrigassem a ter em conta, para efeitos de comparação, a situação concreta dos fundos de investimento dos 28 Estados-Membros, a partir das relevantes CDT’s, se os houver, ou a indagar do impacto fiscal da retenção e das medidas de mitigação da dupla tributação económica na situação fiscal de cada investidor individualmente considerado seriam extremamente complexas, mesmo numa situação em que os acionistas fossem, eles próprios, pessoas coletivas, cada qual residente numa jurisdição diferente.

46. Por outras palavras, se se quiser fazer uma determinação caso a caso para cada fundo de investimento não residente ou investidor individual, o trabalho administrativo envolvido, embora possa compensar os Estados-Membros por via de um aumento das receitas, acaba por ser, tendo em conta o grande número de investidores de alguns fundos, administrativamente impraticável. Tanto os fundos residentes em Portugal como os não residentes podem ter acionistas institucionais e individuais de todos os Estados da União Europeia e de terceiros Estados. Em causa estão, na prática, diferenças significativas de facilidade e praticabilidade administrativa. Diferentemente, se se circunscrever a análise ao nível da situação fiscal dos fundos residentes e não residentes a quem são distribuídos dividendos, uma única determinação será suficiente.

47. Neste contexto, o que deve relevar é o impacto direto que as normas tributárias têm na atividade dos fundos e não na situação fiscal dos investidores individualmente considerados. Estes não têm necessariamente a mesma nacionalidade dos fundos, já que hoje é extremamente fácil levar a cabo investimentos transfronteiriços, sendo que esse mesmo é um dos objetivos do mercado interno e da liberdade de circulação de capitais. O rastreamento de investidores individuais espalhados por todo o mundo e a aplicação de um conjunto diferente de regras a cada um deles, dependendo de seu país de domicílio, apresentaria uma situação impraticável para os tribunais que, no futuro, fossem chamados a analisar a conformidade da legislação fiscal nacional em causa com as liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais.

(…)

49. Deve, por conseguinte, considerar-se decisivo, para efeitos de comparabilidade, o facto de a lei portuguesa diferenciar expressamente, para efeitos de retenção na fonte, entre fundos de investimento residentes e não residentes – e não a situação fiscal, mais ou menos vantajosa, que os fundos não residentes possam gozar nos respetivos Estados da residência ou ainda a situação fiscal individual dos respetivos investidores. Do ponto de vista do Estado-Membro que se considere, fundos residentes e não residentes estão numa situação comparável se ambos estão sujeitos à respetiva tributação . Como sublinhou o TJUE no caso Santander Asset Management , quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos OIC beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do caráter discriminatório ou não da referida regulamentação. Também não parece a este Tribunal Arbitral ser relevante aferir do impacto fiscal que, nas mais variadas situações individuais e concretas, a sujeição da Imposto de Selo dos OIC residentes em Portugal possa produzir neste ou naquele fundo de investimento, visto tratar-se aí de um imposto sujeito a uma lógica patrimonial totalmente distinta da tributação do rendimento. O critério a ter em conta é, em primeira linha, o da letra do artigo 22.º do EBF, só depois havendo que tomar em consideração outros fatores.

50. Como se sublinhou acima, os fundos residentes e não residentes são colocados numa posição comparável a partir do momento em Portugal opta por tributar os não residentes de maneira menos favorável do que os residentes, dissuadindo aqueles, na qualidade de acionistas, de investirem das empresas residentes distribuidoras de dividendos e dificultando a obtenção de capital no exterior por parte destas mesmas empresas. Por outro lado, Portugal não pode deixar de cumprir as obrigações jurídicas decorrentes das liberdades fundamentais do mercado interno por considerar que os outros Estados-Membros se encarregarão, de alguma forma, de compensar de tratamento desfavorável gerado pela sua própria legislação.

Justificação da diferenciação

51. No âmbito das liberdades fundamentais do mercado interno assume a maior importância a problemática dos chamados limites dos limites. Importa, assim, indagar sobre se a diferenciação entre fundos residentes e não residentes, nos termos do artigo 22.º do EBF na redação relevante à data dos factos, pode ser justificada, à luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 65.º do TFUE, nomeadamente por se tratar de uma medida indispensável para impedir infrações às leis e regulamentos nacionais, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras. Sublinhe-se que a própria derrogação prevista nesse preceito é ulteriormente limitada pelo disposto n.º 3, do mesmo artigo – uma norma especial de limite dos limites – que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 “não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.°” .

52. No entender do presente Tribunal Arbitral, dificilmente se poderia argumentar de forma convincente no sentido da indispensabilidade da medida diferenciadora em apreciação. Em primeiro lugar, é o Estado português que, no exercício da sua jurisdição fiscal, opta deliberadamente por diferenciar entre fundos residentes e fundos não residentes, isentando os primeiros da retenção de imposto sobre a distribuição de dividendos e sujeitando à mesma os segundos, colocando-os numa situação comparável, e em seguida tratando-os de forma diferente. Ora, não se vê em que medida é que essa diferenciação é indispensável à prevenção de infrações fiscais. Com efeito, não se percebe que a diferenciação em causa possa prevenir a evasão fiscal, nada existindo na mesma que se refira à prevenção de montagens ou construções meramente artificiais, desprovidas de genuína substância económica. Recorde-se que o critério da indispensabilidade aponta para a justificação da diferenciação fiscal em causa apenas quando não existam meios alternativos menos restritivos – de limitação e diferenciação – à disposição do Estado-Membro em presença , adequados à salvaguarda do sistema fiscal ou de supervisão.

53. Em segundo lugar, e na linha do que acaba de ser dito, sempre seria possível isentar de retenção (ou diminuir o respetivo montante) tanto os fundos residentes em Portugal como os fundos residentes noutros Estados-Membros e, simultaneamente, dar um tratamento fiscal em geral idêntico aos investidores residentes em Portugal pelos dividendos recebidos de sociedades residentes em Portugal ou noutros Estados-Membros, seguindo as orientações definidas pela jurisprudência do TJUE em sede de dupla tributação económica . A existência de alternativas menos restritivas de relativamente fácil concretização legislativa constitui evidência de que se está, no caso, perante uma diferenciação desproporcional e, portanto, ilegítima  . Por outro lado, o TJUE tem sustentado que um tratamento fiscal desfavorável contrário a uma liberdade fundamental não pode ser considerado compatível com o direito da União devido à eventual existência de outros benefícios . Nas suas palavras, se os Estados Membros utilizarem a liberdade de sujeitar a imposto os rendimentos gerados no seu território, são obrigados a respeitar o princípio da igualdade de tratamento e as liberdades de circulação garantidas pelo direito primário da União .

54. Acresce que, e este é um terceiro aspeto relevante em sede do artigo 65.º n.º1 e 3 do TFUE, a garantia da coerência do sistema fiscal português também não pode ser invocada para justificar a diferenciação de regime da retenção, na medida em que a jurisprudência do TJUE exige uma ligação direta entre a vantagem fiscal em causa e a compensação dessa vantagem através de uma imposição específica, situação que não se verifica necessariamente através da eventual sujeição dos OIC’s às taxas de tributação autónoma de IRC e da Verba 29 da Tabela Geral do Imposto Selo, sendo este um tributo de natureza e lógica patrimonial. 

55. A aplicação trimestral do Imposto de Selo a fundos em diferentes condições (v.g. fundos com valorização súbita de ativos, seguida de alienação e distribuição de dividendos; fundos com perfil conservador de investimento e valor da carteira de investimentos relativamente constante), estando dependente da eventual capitalização dos rendimentos provenientes dos dividendos, pode gerar, dentro de cada um dos sucessivos exercícios, consideráveis disparidades arbitrárias de tratamento fiscal entre os vários fundos de investimento residentes e entre estes e os não residentes, com impacto evidente nos respetivos fundos de caixa . Esta realidade é tanto mais significativa quanto é certo que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, a apreciação da existência de um eventual tratamento desvantajoso dos dividendos pagos a não residentes deve ser efetuada em relação a cada ano fiscal individualmente considerado .

56. Por outro lado, a aplicação da taxa de tributação autónoma de 23% prevista no artigo 88.º n.º 11 do CIRC – por força do artigo 22.º do EBF – está dependente do facto eventual da não permanência, de modo ininterrupto, das partes sociais a que correspondem os lucros na titularidade dos sujeitos passivos aí previstos durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição, e da sua não manutenção durante o tempo necessário para completar esse período, situações de ocorrência eventual e incerta. Ora, as disparidades de tratamento fiscal assim geradas não asseguram necessariamente a neutralização da desvantagem fiscal em que ficaram colocados os fundos não residentes, sujeitos a uma retenção de imposto suscetível de os dissuadir de investirem em Portugal e de dissuadir os residentes em Portugal de investirem em fundos de investimento de outros Estados-Membros .

57. Também não colhe o argumento do interesse geral na garantia de uma repartição e equilibrada do pode de tributar, devendo entender-se, com o TJUE, que quando um Estado Membro tenha optado por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários de tais rendimentos . Ou seja, em caso algum se poderá entender que se trata aqui de restrições justificadas por razões de segurança pública ou ordem pública .

58. Do mesmo modo, em quarto lugar, a garantia da efetividade da supervisão financeira não justifica, por si só, a diferenciação de tratamento entre fundos residentes e fundos não residentes em Portugal. Como efeito, se é certo que um OIC constituído ao abrigo de legislação estrangeira (em concreto, ao abrigo da legislação de um outro Estado-Membro da UE) e aí sujeito aos poderes de supervisão da respetiva entidade reguladora não cumpre os pressupostos previstos na legislação portuguesa e certamente não estará sujeito à supervisão da CMVM, também o é que o TJUE já sustentou, num caso envolvendo o nosso país, a inadmissibilidade de uma regulamentação nacional que impeça de forma absoluta um determinado fundo de fazer prova de que satisfaz as exigências que lhe permitiriam beneficiar da isenção, nomeadamente fornecendo os documentos comprovativos pertinentes que permitam às autoridades fiscais nacionais verificar, de forma clara e precisa, que esses fundos preenchem, no seu Estado de residência, exigências equivalentes às previstas pela legislação nacional .

59. Como tem sido sucessivamente afirmado pelo TJUE, a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE deve ser interpretada em sentido amplo e as possibilidades de restrição à mesma, previstas e limitadas no artigo 65.º do mesmo Tratado devem ser indispensáveis à prossecução de interesses públicos ponderosos, devidamente fundamentadas e interpretadas de maneira restritiva . É sobre o Estado português que recai o ónus de provar que os seus objetivos fiscais e financeiros não poderiam ser prosseguidos por meios alternativos menos restritivos do que a diferença de tratamento fiscal em causa , ónus esse que manifestamente não foi cumprido pela argumentação expendida pela AT, sem prejuízo de se reconhecer o empenhado e competente esforço nesse sentido. A orientação de fundo seguida pela jurisprudência do TJUE sobre o âmbito normativo da liberdade de circulação de capitais, os seus limites e os limites dos limites, torna inviável essa missão probatória no caso concreto.  

60. O presente Tribunal Arbitral aceita como boa a noção, várias vezes sustentada pelo TJUE, de que o reconhecimento de uma ampla margem de conformação dos Estados-Membros em sede de regulação dos capitais tornaria a respetiva liberdade de circulação ilusória.  Dada a linguagem prudente nelas incorporada, resulta claro que as exceções do artigo 65.º, nº 1, alínea a) e do n.º 3 do TFUE devem ser aplicadas somente em circunstâncias raras e especiais. Esta é uma barreira significativa de difícil superação por parte do Estado português.

61. A jurisprudência do TJUE acima referida permite que o presente Tribunal Arbitral sustente que o artigo 63.º do TFUE consubstancia, para o caso sub judice, uma situação de ato esclarecido (acte éclairé) . A mesma, suportada em múltiplos casos, fornece parâmetros suficientemente seguros sobre a interpretação e aplicação que deve ser feita do preceito em causa relativamente às circunstâncias fácticas e normativas do caso concreto. Tendo o TJUE proferido diversas decisões no sentido de julgar incompatíveis com a liberdade de estabelecimento e de circulação de capitais múltiplas diferenciações em matéria de retenção na fonte por dividendos distribuídos a residentes e não residentes em casos com contornos substancialmente semelhantes ao aqui presente – independentemente da natureza dos processos que levaram a essas decisões e mesmo que os factos não fossem estritamente idênticos  – o presente Tribunal, no exercício dos deveres que lhe incumbem, de afirmar a primazia do Direito da União Europeia sobre o direito interno e de seguir a orientação interpretativa acolhida pelo TJUE, e na qualidade que lhe é reconhecida de órgão jurisdicional de reenvio , conclui pela inexistência, em concreto,  do dever de reenvio prejudicial de interpretação previsto no artigo 267.º § 1 alínea a) e § 3 do TFUE , entendendo que se está claramente diante de uma restrição não indispensável nem justificada da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE.”

Como vimos, o Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo às retenções na fonte objecto do pedido de revisão oficiosa em referência, seja ao abrigo da CEDT Portugal/Bélgica, seja ao abrigo da lei interna belga

Como nota o Requerente, o Estado português não pode justificar a discriminação em referência com a necessidade de garantir a eficácia de controlos administrativos na medida em que nem sequer concede aos OIC não residentes a possibilidade de comprovarem que cumprem, no seu Estado membro de residência, exigências equivalentes às previstas na legislação portuguesa. Também a doutrina tem igualmente rejeitado a possibilidade de justificar medidas discriminatórias com fundamento na necessidade de prevenção da fraude e evasão fiscal.

Nestes termos, decorre do exposto que quer o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, quer os actos de retenção na fonte controvertidos, padecem de vício material de violação de lei, assim sendo de proceder o pedido de anulação integral dos aludidos actos, com as devidas consequências legais.

 

3.3 Do pagamento de juros indemnizatórios

 

Nestas circunstâncias, preconiza a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que deve encontrar-se preenchido o pressuposto do “erro imputável aos serviços” que o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, reclama para o nascimento da obrigação de juros indemnizatórios. Como se refere no Acórdão do STA, no Processo n.º 049/16, de 10 de Maio, que acompanhamos: “Foi esta a solução sustentada pelo citado acórdão de 02-12-2015, do Pleno desta Seção, Proc. 01524. Como se escreveu no acórdão deste STA, de 30-05-2012, proc. 410: “Diz o n.º 1 do art. 43.º da LGT, ao abrigo da qual foi proferida a condenação ora recorrida: «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido». Ou seja, quando um acto de liquidação de um tributo for declarado em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial viciado por erro imputável aos serviços e do qual tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, há direito a juros indemnizatórios, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT. Como salienta JORGE LOPES DE SOUSA, «[a] utilização da expressão «erro» e não «vício» ou «ilegalidade» para aludir aos factos que podem servir de base à atribuição de juros, revela que se teve em mente apenas os vícios do acto anulado a que é adequada essa designação, que são o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito.

Com efeito, há vícios dos actos administrativos e tributários a que não é adequada tal designação, nomeadamente os vícios de forma e a incompetência, pelo que a utilização daquela expressão «erro» tem um âmbito mais restrito do que a expressão «vício». Por outro lado, é usual utilizar-se a expressão «vícios» quando se pretende aludir genericamente a todas as ilegalidades susceptíveis de conduzirem à anulação dos actos, como é o caso dos arts. 101.º (arguição subsidiária de vícios) e 124.º (ordem de conhecimento dos vícios na sentença) ambos do CPTT. Por isso, é de concluir que o uso daquela expressão «erro» tem um alcance restritivo do tipo de vícios que podem servir de base ao direito a juros indemnizatórios» (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume I, anotação 5 ao art. 61.º, pág. 531..) O mesmo Autor explica as razões por que a LGT restringiu o direito a juros indemnizatórios aos casos de anulação por vício substancial e já não o reconheceu relativamente aos vícios de forma ou incompetência que determinem a anulação do acto: o reconhecimento de um vício destes últimos tipos «não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, qualquer juízo sobre o carácter indevido da prestação pecuniária cobrada pela Administração Tributária com base no acto anulado, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou cobrar ou a falta de competência da autoridade que a exigiu. Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito. Por isso, se pode justificar que, nestas situações, não havendo dúvidas em que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada através da fixação de juros indemnizatórios a favor daquele.”

Na situação controvertida, está em causa a aplicação, pela AT, da isenção e das retenções resultantes, respectivamente, dos artigos 22.º do EBF e 94.º n.º 1 alínea c), n.º 3 alínea b), e n.º 4 e 87.º, n.º 4, do CIRC, criando uma diferenciação entre fundos de investimento residentes e não residentes, com potencial impacto dentro de cada um de sucessivos exercícios fiscais, em violação da liberdade de circulação de capitais acolhida no artigo 63.º do TFUE, que, em conformidade com a jurisprudência Francovich, dariam lugar a responsabilidade por parte do Estado português. Com efeito, na sua actuação, a AT aplicou as normas jurídicas nacionais em vigor, não obstante as mesmas violarem o Direito da União Europeia tal como vem sido a ser interpretado de forma clara e, consequentemente, vinculativa, pelo TJUE, não podendo, obviamente, acolher o invocado pela AT na sua Resposta de que “57. Conforme antedito, não compete à Administração Tributária avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, não podendo aceitar de forma direta e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu.”

Sendo a primazia do Direito da União Europeia relativamente ao direito nacional uma primazia de aplicação e não uma primazia de validade, cabe ao presente Tribunal arbitral desaplicar o direito nacional contrário ao Direito da União Europeia, declarando a respectiva ilegalidade. Caso em que, nos termos do artigo 43.º n.º 3 da LGT, são devidos juros indemnizatórios, a partir do trânsito em julgado da sentença.    Neste contexto, entendemos igualmente que deve proceder o pedido de pagamento de juros indemnizatórios por se encontrarem verificados os respectivos requisitos

 

IV. Dispositivo

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

 a) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos actos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos aos anos de 2019, 2020 e 2021, acima identificados e dados como provados, no montante total de €198.057,72 (cento e noventa e oito mil, cinquenta e sete euros e setenta e dois cêntimos), declarando ilegal a decisão de indeferimento expresso da revisão do acto de liquidação n.º ...2023..., e, em consequência, anular os actos tributários impugnados; 

b) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente juros indemnizatórios desde o trânsito em julgado da presente Decisão Arbitral[1];

c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira nas custas do processo.

 

V- Valor da causa

 

Fixa-se o valor do processo em € 198.057,72 (cento e noventa e oito mil e cinquenta e sete euros e setenta e dois cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

 

VI- Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 24.º, n.º 4 do RJAT e 4.º, n.º 5, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em 3.672,00 €, que fica a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, do CPC).

 

Notifique -se

 

* * *

Centro de Arbitragem Administrativa,

Lisboa, 13 de Agosto de 2024

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT. A redacção do presente acórdão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

 

 

O Árbitro Presidente (com declaração de voto de vencido)

 

 

Victor Calvete

 

 

As Árbitras Vogais

 

Clotilde Celorico Palma

(Relatora)

 

 

Sofia Quental

 

Duplamente vencido.

Em primeiro lugar, entendi que o pressuposto de ter existido um “erro imputável aos serviços” de que a lei interna (generosa e provavelmente sem equivalência em outros ordenamentos da União) faz depender um “pedido de revisão oficiosa” com efeitos retroactivos (mesmo que feito por um “contribuinte” e não por um sujeito passivo – o que nem é o caso dos autos) não estava preenchido, uma vez que – como já estabeleceu o STA, num caso paralelo, no Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário de 30 de Janeiro 2019, proferido no âmbito de recurso para Uniformização de Jurisprudência (Proc. 0564/18.2BALSB), “não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT)”. Para as razões pormenorizadas dessa convicção remeto para M. Porto/V. Calvete, “Sobre a revisão oficiosa dos actos tributários”, in Estudos em Homenagem à Prof.ª Doutora Maria da Glória Garcia, Vol. II, UCP Editora, Lisboa, 2023, pp. 1635 e ss..

Entendi, portanto, que – não se verificando os pressupostos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT – não se verificavam os pressupostos para o conhecimento do pedido arbitral.

 

Em segundo lugar, e – lamento dizê-lo, só à última hora – entendi que a entidade que requereu a pronúncia arbitral (a A...) sendo, como confessadamente é, um “fundo comum” (como atestado pela FSMA, doc. 2 junto com o PPA), destituído de personalidade e capacidade jurídica – e, por isso, necessariamente administrado pela sociedade B... (artigo 5.º do PPA), que não teve qualquer intervenção nos autos –, não poderia ter emitido a procuração para se fazer representar perante o CAAD, razão pela qual discordei do que a maioria estabeleceu no n.º 3 da Secção II da Decisão.

 

 

 

Victor Calvete, 13 de Agosto de 2024

 

 

 



[1] De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-08-22