SUMÁRIO:
I – Nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, a derrama municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, que corresponda à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município por sujeitos passivos residentes em território português.
II – Não sendo os rendimentos provenientes de fonte estrangeira obtidos na área geográfica de qualquer município português, ficam os mesmos excluídos de tributação a título de derrama municipal.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Dr.ª Mariana Vargas e Dr.ª Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, acordam no seguinte:
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RELATÓRIO
A..., S.A., com o NIPC ... e sede na ..., n.º ..., ...‐... Lisboa (doravante designada por “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida2), não tendo utilizado a faculdade de designar árbitro.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 11 de dezembro de 2023 e automaticamente comunicado à AT, na mesma data.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou as signatárias como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, tendo estas comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável, sem oposição das Partes.
Objeto do pedido
A Requerente pretende a apreciação da legalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada para correção dos atos de autoliquidação de IRC, na parte referente à derrama municipal suportada sobre rendimentos de fonte estrangeira, relativos aos períodos de tributação de 2020 e de 2021, bem como dos mesmos atos de autoliquidação, no montante total de € 211.210,80 (€ 201.152,86 e de € 10.057,94, respetivamente).
Mais pretende a Requerente a restituição da referida quantia de € 211.210,80, relativa à derrama municipal indevidamente suportada nos mencionados períodos de tributação, acrescida de juros indemnizatórios.
Síntese da posição das Partes
A. Da Requerente
A Requerente fundamenta o pedido nos seguintes termos:
Em 5 de julho de 2021, a Requerente procedeu à entrega da declaração periódica de rendimentos Modelo 22 referente ao período de tributação de 2020, na qual apurou um resultado fiscal positivo no montante de € 13.659.958,34 e uma derrama municipal no montante de € 201.152,86.
Em 2 de maio de 2022, a Requerente submeteu a declaração Modelo 22 referente ao exercício de 2021, em que apurou um resultado fiscal positivo no montante de € 686.370,97 e uma derrama municipal no montante de € 10.057,94.
Conforme resulta do disposto do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, a derrama municipal prevista no âmbito do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais (“Regime Financeiro das Autarquias Locais”) incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, é apurada na medida da proporção do rendimento gerado na área geográfica de um determinado município acrescendo ao IRC de cuja existência prévia depende, sendo cobrada pela AT e transferida para o município titular da respetiva receita.
Contudo, embora o lucro tributável apurado se encontre influenciado por rendimentos obtidos no estrangeiro, a Requerente liquidou derrama municipal sobre a totalidade dos respetivos lucros tributáveis apurados com referência aos exercícios de 2020 e 2021, não podendo apurar este tributo de forma distinta, atentas as limitações inerentes ao sistema informático da AT, uma vez que o modelo oficial da Declaração Modelo 22, constante do site da AT, para efeitos de apuramento da derrama municipal nos termos do Anexo A, impõe a consideração do lucro tributável total apresentado no campo 302 do quadro 09.
Pretendendo ver a sua situação tributária corrigida, a Requerente deduziu reclamação graciosa contra as autoliquidações de IRC dos períodos de tributação de 2020 e de 2021, tendo sido notificada, em 12 de setembro de 2023, da decisão final de indeferimento da mesma, com os fundamentos de que na legislação em vigor que disciplina a figura da derrama municipal não existe qualquer norma que exclua da base tributável rendimentos provenientes do estrangeiro, e que do Regime Financeiro das Autarquias Locais não consta qualquer exclusão de tributação relativamente à parte do lucro tributável obtido fora do território nacional.
Entende a Requerente que, constituindo a derrama municipal uma receita dos municípios (nos termos do artigo 14.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais), tem como base relevante para o seu apuramento o lucro tributável sujeito e não isento de IRC que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica e que, a contrario, não deverá incidir derrama municipal sobre a parcela do lucro tributável sujeito e não isento de IRC que corresponda à proporção do rendimento gerado fora da circunscrição daquele município, pelo que a proporção do rendimento que não seja gerado na circunscrição de nenhum dos municípios existentes em território português deverá ficar fora do âmbito de incidência da derrama municipal.
Conclui, assim, que as autoliquidações referentes aos períodos de tributação de 2020 e de 2021 enfermam de ilegalidade por incluírem derrama municipal em excesso, devendo ser parcialmente anuladas pelas respetivas quantias, no montante global de € 211.210,80.
B. Da Requerida
Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º do RJAT, a Requerida apresentou Resposta em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral. Começa a Requerida por impugnar todos os factos invocados pela Requerente que estejam em oposição com a defesa, considerada no seu conjunto, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 574.º do CPC, ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Mais entende a Requerida que não assiste razão à Requerente na tese defendida de que a derrama municipal não pode incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento que inclua rendimentos gerados fora do território nacional, sustentado, em síntese o seguinte:
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Nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 73/2023, de 3 de setembro, a derrama municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, remetendo quanto ao apuramento do lucro tributável para o estipulado no artigo 17.º, n.º 1, do Código do IRC;
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Deverá, assim, entender-se que a tributação em sede de IRC abrange a totalidade dos rendimentos, a qual resulta da soma dos obtidos em território português e fora desse território, em consonância com o princípio da universalidade dos rendimentos, tal como se prevê no artigo 4.º, n.º 1, do Código do IRC;
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Deste modo, o cálculo do lucro tributável, quer relativamente ao imposto principal quer à derrama, comungam das mesmas regras de incidência objetiva plasmadas no Código do IRC, nele estando incluídos encargos subjacentes aos rendimentos obtidos no estrangeiro, o que, no caso concreto, conduziria à dedução de gastos em montante superior ao devido, caso não houvesse lugar à correspondente tributação da derrama municipal;
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Cabe ao contribuinte, nos termos do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos que invoque, pelo que a Requerente deveria ter comprovado documentalmente que o lucro tributável apurado inclui rendimentos obtidos de fonte estrangeira.
Conclui a Requerida que o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023... e bem assim os atos de autoliquidação de IRC consubstanciados nas liquidações de IRC n.º 2021... e n.º 2022..., com referência aos períodos tributários de 2020 e 2021, se devem manter na ordem jurídica.
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Pelo Despacho Arbitral de 21 de março de 2024, foi a Requerente notificada para, no prazo de dez dias, se pronunciar, querendo, sobre o alegado na resposta da Requerida, juntando documentos se assim o entendesse, notificando-se a AT para, querendo, exercer o contraditório relativamente ao requerimento e documentos a apresentar pela Requerente, devendo fazê-lo no prazo de 10 dias a contar da data em que os mesmos forem apresentados.
Em 5 de abril de 2024, deu entrada no CAAD o requerimento em que a Requerente exerceu contraditório, no qual sustentou a posição assumida no PPA, alegando terem sido já submetidos à apreciação da AT meios de prova, em fase de processo administrativo, e juntando elementos adicionais que, em seu entender, comprovam, ainda que a título de amostra, os montantes com origem em fonte estrangeira, que pretende ver excluídos da incidência de derrama municipal.
Por sua vez, a Requerida fez juntar aos autos, em 17 de abril de 2024, a Informação n.º I2024..., da Direção de Serviços do IRC, com Despacho de concordância da Senhora Subdiretora Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento, de 14 de abril de 2024, nos termos da qual defendeu a posição já assumida em sede de resposta, concluindo que “(…) perante a improficuidade dos elementos carreados aos autos para a questão controvertida, reitera-se que devem manter-se as autoliquidações de IRC referentes aos períodos tributários de 2020 e 2021, ora parcialmente impugnadas, porquanto nenhuma ilegalidade lhes pode ser assacada relativamente ao segmento contestado”.
Nos termos do Despacho Arbitral de 2 de junho de 2024, não havendo lugar à produção de prova adicional, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, convidando-se as Partes à produção de alegações escritas simultâneas no prazo de 10 dias, e notificando-se a Requerente para proceder ao pagamento do remanescente da taxa de arbitragem no mesmo prazo, com indicação de que a decisão arbitral seria proferida dentro do prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 21.º do RJAT.
A Requerente comunicou ao Tribunal Arbitral, por requerimento com entrada nos autos em 19 de junho de 2024, não pretender apresentar alegações escritas, “por se encontrar já exposta e definida” a sua posição no respetivo pedido de pronúncia arbitral.
A Requerida também não apresentou alegações escritas.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 20 de fevereiro de 2024, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não padece de vícios que o invalidem. Não foram invocadas exceções que cumpra apreciar e decidir.
III. MATÉRIA DE FACTO
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao PPA, fixa-se como segue:
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Factos Provados
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Em 5 de julho de 2021, a Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 (declaração n.º ...‐... ‐...) referente ao período de tributação de 2020, na qual apurou um resultado fiscal positivo no montante de € 13.659.958,34 e uma derrama municipal no montante de € 201.152,86, que produziu reembolso da quantia de € 6.376.774,95, conforme nota de liquidação n.º 2021... (cf. Docs. 1 e 2 juntos ao PPA).
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O montante de € 13.659.958,34 referido no ponto anterior inclui os seguintes rendimentos obtidos no estrangeiro: (i) rendimentos de investimentos, nomeadamente, juros de obrigações, no montante total de € 11.483.456,43, pagos por sociedades estrangeiras (Doc. 8 junto ao PPA); (ii) ganhos e perdas em investimentos reconhecidos em contas de resultados, designadamente mais‐valias e menos‐valias de títulos, emitidos por entidades não residentes, no montante de € 4.215.255,01 e (€ 410.466,21), respetivamente, de que resultou o saldo líquido de € 3.804.788,80 (Doc. 9 junto ao PPA) e, (iii) ganhos e perdas em investimentos reconhecidos em contas de reservas, designadamente mais e menos‐valias de títulos emitidos por entidades não residentes em Portugal que concorreram para a formação do lucro tributável, no montante líquido de € 2.764.869,02 (Doc. 10 junto ao PPA).
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Em 2 de maio de 2022, a Requerente submeteu a Declaração Modelo 22 (declaração n.º ...‐...‐...) com referência ao período de tributação de 2021, em que apurou um resultado fiscal positivo no montante de € 686.370,97 e uma derrama municipal no montante de € 10.057,94, que produziu reembolso da quantia de € 9.724.294,94, conforme nota de liquidação n.º 2022... (cf. Docs. 3 e 4 juntos ao PPA).
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O montante de € 686.370,97 referido no ponto anterior inclui os seguintes rendimentos obtidos no estrangeiro: (i) rendimentos de investimentos, nomeadamente juros de obrigações, no montante total de € 11.330.804,61 pagos por sociedades estrangeiras (Doc. n.º junto ao PPA); (ii) ganhos e perdas em investimentos reconhecidos em contas de resultados, designadamente mais‐valias e menos‐valias de títulos, emitidos por entidades não residentes, no montante de € 30.249.136,51 e (€ 29.562.974,44), respetivamente, o que resultou num saldo líquido de € 686.162,07 (Doc. 13 junto ao PPA) e, (iii) ganhos e perdas em investimentos reconhecidos em contas de reservas, designadamente mais e menos‐valias de títulos, emitidos por entidades não residentes, que concorreram para a formação do lucro tributável, no montante líquido de (€ 9.894.904,80) (Doc. 14 juto ao PPA).
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A Requerente liquidou derrama municipal sobre a totalidade dos lucros tributáveis apurados com referência aos períodos de tributação de 2020 e 2021, incluindo os rendimentos obtidos no estrangeiro, não tendo podido apurar este tributo de outra forma, uma vez que o modelo oficial da Declaração Modelo 22, para efeitos de apuramento da derrama municipal nos termos do Anexo A, impõe a consideração do lucro tributável total apresentado no campo 302 do quadro 09 (cf. Docs. 1 e 3 juntos ao PPA).
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Em 5 de julho de 2023, a Requerente deduziu reclamação graciosa contra as autoliquidações de IRC referentes aos períodos de tributação de 2020 e de 2021, por considerar ter suportado derrama municipal em excesso, de € 201.152,86 e de € 10.057,94, respetivamente, sobre rendimentos obtidos no estrangeiro (cf. Doc. 5 junto ao PPA e informação contida no processo administrativo).
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Em 1 de outubro de 2023, a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023..., conforme o Despacho do Senhor Chefe de Divisão de Serviço Central da Unidade de Grandes Contribuintes, de 12 de setembro de 2023, foi notificada à Requerente por ofício daquela Unidade Orgânica da AT, da mesma data (cf. Doc. 6 junto ao PPA).
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A referida decisão de indeferimento tem subjacente a informação n.º 166-AIR2/2023, que parcialmente se transcreve (Doc. 6 junto ao PPA):
“§ IV. DA ANÁLISE DO PEDIDO
7.A questão a apreciar na presente reclamação prende-se com a (des)consideração dos rendimentos de fonte estrangeira no apuramento da derrama municipal devida pela reclamante, nos exercícios de 2020 e 2021.
8.Na Informação n.º 853/2022, elaborada pela Direção de Serviços do IRC e sancionada com despacho de concordância da Sra. Subdiretora Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento, datado de 4/11/2022, defendeu-se, quanto à aludida questão, o seguinte:
“A – Da Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA)
(…)
B – Entendimento da DSIRC
2. A figura jurídico-tributária da derrama municipal tem um passado longínquo no sistema fiscal português, pese embora as diversas alterações introduzidas ao longo do tempo.
Visa financiar os municípios pelos custos que estes têm de assumir face à presença, nos respetivos municípios, de sociedades comerciais (infraestruturas públicas, e manutenção destas, prestação de serviços públicos, etc.).
Com efeito, um dos seus elementos propulsionadores é o reforço do sistema de financiamento autárquico, assente na diminuição da dependência financeira dos municípios em relação às receitas provenientes do Estado e algumas entidades privadas.
A derrama assume-se atualmente como um imposto municipal, expressão, portanto, da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e, concretamente, os municípios, nos termos dos artigos 238.º, n.º 4 e 254.º da CRP.
A autonomia financeira das autarquias locais é uma faculdade concretizadora do princípio da autonomia local (cfr. artigo 6.º, n.º 1, da CRP), de acordo com a qual aquelas devem possuir “receitas suficientes para a realização das tarefas correspondentes à prossecução das suas atribuições e competências” (Casalta Nabais, “A autonomia financeira das autarquias locais”, BFDUC, vol. 82, 2006, p. 29).
3. Importa assim conhecer três marcos na sua evolução, que, enquanto contributos do elemento histórico de interpretação das normas, permitem analisar o seu posicionamento em sede de IRC.
Desde logo, cumpre referir que a primeira Lei das Finanças Locais – Lei n.º 1/79, de 2 de janeiro – previa a possibilidade de os municípios poderem aplicar, a título de derrama, uma taxa até 10%, que incidia sobre a coleta da contribuição predial rústica e urbana, da contribuição industrial e do imposto de turismo, cobrados na área do respetivo município.
Tendo uma base de incidência bastante diferente da atual (circunscrita naturalmente pelo sistema fiscal à data em vigor), uma das caraterísticas da derrama era o seu caráter de exceção, na medida em que a respetiva receita deveria ser aplicada em melhoramentos urgentes a realizar no município.
4. A primeira alteração da base de incidência da derrama municipal e a sua aproximação ao IRC ocorreu com o Decreto-Lei 470-B/88, de 19 de dezembro (que alterou algumas disposições da Lei 1/87, de 6 de janeiro), o qual estipulava, no art.º 5.º, que a base de incidência da derrama passava a ser a coleta do IRC, relativa ao rendimento gerado na sua área geográfica.
Apesar das alterações, a derrama manteve o seu caráter, que inclusive ficou reforçado com a definição de um requisito para o lançamento da derrama (só podia ser lançada para acorrer ao financiamento de investimentos ou no quadro de contratos de reequilíbrio financeiro.
5. Alteração de fundo relativamente à incidência ocorreu com a Lei 2/2007, de 15 de janeiro (nova Lei das Finanças Locais), em que a derrama municipal passou a incidir, até ao limite máximo de 1,5%, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, ou seja, deixou de ser um adicional ao IRC para passar a ser um adicionamento (Ver neste sentido Rui Duarte Morais, Passado, Presente e Futuro da Derrama, na revista Fiscalidade, n.º 38, pag. 109 e segs., e Sérgio Vasques, O Sistema de Tributação Local e a Derrama, Fiscalidade, pág. 121.).
6. Atualmente a derrama municipal encontra-se prevista na Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro (Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais – RFALEI), o qual revogou a anterior Lei das Finanças Locais, introduzida pela Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro.
Este regime veio estabelecer a possibilidade de os municípios deliberarem lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o IRC, que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território (art.º 18.º .º 1 do RFALEI).
7. A base de incidência da derrama coincide, assim, com a do IRC, no que respeita aos sujeitos passivos que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e aos não residentes que possuam estabelecimento estável situado em território português (n.º 1 do RFALEI e art.º 3.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código do IRC).
Esta coincidência entre bases de incidência apenas foi afastada quanto aos lucros sujeitos mas isentos de IRC, os quais ficaram expressamente excluídos da base de incidência da derrama.
8. Verifica-se, assim, que, para além de remeter expressamente para o IRC na definição da sua base de incidência e dos seus sujeitos passivos, o regime da derrama é omisso quanto a regras próprias de determinação do lucro tributável sujeito a derrama, bem como quanto à respetiva liquidação, pagamento, obrigações acessórias e garantias.
9. No que diz respeito à derrama municipal, a AT tem entendido que aquela se classifica como um imposto dependente.
Na realidade, não obstante constituir uma receita dos municípios (art.º 14.º do RFALEI), a mesma tem em consideração o rendimento gerado na área geográfica de cada município, incidindo sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, das entidades que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e ainda sobre o lucro tributável das entidades não residentes com estabelecimento estável em Portugal, pelo que a formação da Derrama possui a mesma origem que o IRC, apresentando, assim, a natureza de imposto dependente deste imposto principal.
Contudo, nesta relação de mera dependência, a derrama enquanto imposto cuja liquidação é paralela ao IRC, tem vida própria e pode ser liquidada e exigida mesmo que o imposto principal não atinja o estádio pleno.
Assim, como o apuramento da derrama acolhe alguns dos elementos do IRC, ao nível de incidência e determinação do lucro tributável, teremos de fazer apelo às normas daquele em todos os campos que definem a sua relação jurídica tributária.
Logo, quanto aos rendimentos sujeitos e na quantificação do lucro tributável, terão que se considerar as disposições contidas o Código do IRC, nomeadamente o disposto os art.ºs 3.º e 4.º e 17.º e seguintes.
10. Nos termos do disposto na alínea c) do art.º 14.º do RFALEI, constituem receitas dos municípios o produto da cobrança de derramas lançadas nos termos do art.º 18.º.
Quer das diversas alíneas do art.º 14.º do RFALEI, quer do disposto no art.º 18.º da mesma Lei não costa qualquer exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional.
Sendo certo que o Código do IRC estabelece que a extensão da incidência da obrigação de imposto é a seguinte:
“Relativamente às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, o IRC incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território (n.º 1 do art.º 4.º do Código do IRC).
Quanto aos rendimentos obtidos por não residentes com estabelecimento estável em território português, apenas estão sujeitos a IRC os rendimentos obtidos através desse estabelecimento estável, por aplicação do princípio da tributação na fonte, vertido no n.º 2, do art.º 4.º do Código do IRC.
E, nos termos do n.º 3 do art.º 4.º do Código do IRC, consideram-se obtidos em território português os rendimentos imputáveis a estabelecimento estável aí situado.
Em conformidade com o disposto no n.º 5 do art.º 4.º do Código do IRC, o território português compreende também as zonas onde, em conformidade com a legislação portuguesa e o direito internacional, a República Portuguesa tem direitos soberanos relativamente à prospeção, pesquisa e exploração dos recursos naturais do leiro do mar, do seu subsolo e das águas sobrejacentes.
11. Nos termos do Código do IRC, o lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do art.º 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos do CIRC.
O resultado líquido do exercício, evidenciado na demonstração de resultados, é uma rubrica do capital próprio, apurada nos termos do SNC, segundo a NCRF 25, de acordo com a terminologia contabilística.
Trata-se de um resultado de natureza financeira, que traduz a performance económico-financeira de uma determinada empresa ou entidade durante um determinado período de tempo, que corresponde normalmente a um ano.
Esse cálculo é a consequência de um processo multifaseado que se inicia com a identificação de todos os rendimentos (art.º 20.º do CIRC) e de todos os gastos (art.º 23 do CIRC) imputáveis à empresa no período em causa.
Ao valor assim extraído da contabilidade, são efetuados ajustamentos relativos a variações patrimoniais positivas e negativas não refletidos no resultado líquido e ainda outros ajustamentos previstos no CIRC, nos termos do n.º 1 do art.º 17.º.
E, é o balanceamento entre rendimentos e gastos que permite apurar o resultado líquido, que, uma vez ajustado pelas variações patrimoniais e outros ajustamentos previstos no Código do IRC, nos possibilita aferir o lucro tributável (Quadro 07 – Mod 22).
Acresce dizer que, relativamente às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, a tributação em sede de IRC abrange a totalidade dos rendimentos, como atrás se referiu, a qual resulta da soma dos obtidos em território português e os obtidos fora desse território, em consonância com princípio da universalidade dos rendimentos, tal como previsto no art.º 4.º, n.º 1 daquele diploma legal.
12. Já quanto ao estabelecido no RFALEI, prevê o n.º 1 do art.º 18.º do RFALEI uma regra, de caráter geral, relativa à sujeição de derrama municipal na área da sede do sujeito passivo ou do estabelecimento estável.
Prevendo-se, no n.º 2 do mesmo preceito legal, uma regra especial, nos termos da qual, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a € 50 000, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos em território nacional.
Ou seja, esta regra de repartição da derrama municipal por diversos municípios apenas ocorre nos casos em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e apurem uma matéria coletável superior a € 50 000.
Podendo, assim, verificar-se que, caso não se encontrem reunidos os pressupostos para a repartição de derrama pelos diferentes municípios em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais, aquela apenas é devida na área da sede do sujeito passivo.
13. Acresce que, nos termos do art.º 2.º da maioria das Convenções para Evitar a Dupla Tributação em matéria de Impostos sobre o Rendimento (CDT) celebradas por Portugal, a sua aplicação abrange também os impostos cujos sujeitos ativos são as autarquias locais, o que é o caso da derrama municipal. Ou seja, para efeitos das CDT a derrama consubstancia um imposto sobre o rendimento.
14. Finalmente, importa fazer referência ao Acórdão n.º 603/2020, proferido no Recurso n.º 172/20, 2.ª Secção do Tribunal Constitucional, em que foi Relator o Conselheiro Pedro Machete.
Ainda que existam divergências na posição assumida neste Acórdão e a assumida pela AT na questão ali em apreço – o que devemos entender por fração do IRC a que alude o art.º 91.º, n.º 1, alínea b), do CIRC – existe, à partida, uma linha orientadora comum na sua génese da solução encontrada, em abono da tese que temos vindo a defender.
O Acórdão pretende averiguar, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, o entendimento segundo o qual na expressão “fração do IRC” se inclui, ao lado da coleta de IRC, enquanto imposto principal, também as coletas da derrama estadual e da derrama municipal, infringe alguma regra ou princípio constitucional.
Vejamos o que diz com relevância para o caso em apreço:
«A verdade, porém, é que na ótica do critério normativo ora sindicado, nem a consideração da derrama municipal para efeitos de determinação do crédito de imposto, ao abrigo do n.º 1, alínea b), do Código do IRC se encontra associada à existência de qualquer CDT, nem a existência de uma CDT deixa de constituir fator de diferenciação relativamente à tributação dos sujeitos passivos que se encontrem nas mesmas circunstâncias, isto é, que percebam rendimentos do estrangeiro (n.º 2 do mesmo preceito).
Quanto ao primeiro aspeto, o ponto decisivo é o de que, para efeitos da norma sindicada, a derrama municipal, quando lançada pelo município (cfr. o artigo 18.º, do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro), é entendida como um adicionamento ao IRC, razão por que a sua coleta, tal como a da derrama estadual prevista no artigo 87.º-A do Código do IRC, se soma necessariamente à coleta daquele imposto. Consequentemente, em termos de capacidade contributiva e de tributação em sede de IRC, a situação dos sujeitos passivos deste imposto é, à partida, constante, independentemente do local de origem do respetivo lucro tributável.
(…)
In casu, e conforme referido, o objetivo prosseguido pelo artigo 91.º, n.º 1, do Código do IRC, é igualizar, segundo a lógica do princípio da neutralidade na exportação, e por via da atribuição de um crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, o imposto a pagar pelos sujeitos passivos de IRC cujos rendimentos têm a sua fonte localizada apenas em Portugal e aqueles contribuintes de IRC que também percebem rendimentos com origem num país terceiro.
(…)
O pagamento deste tributo (leia-se derrama) deve ser “eliminado” por dedução de créditos de dupla tributação internacional, sempre que a coleta de IRC, stricto sensu, não se mostre suficiente para os absorver na totalidade, como acontece no presente caso. Assim é que, na expressão “fração do IRC” constante da então al. b) do n.º 1 do art.º 41.º (hoje, art.º 91.º), se deve incluir a coleta da derrama municipal. O mesmo é dizer que o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta do imposto (entenda-se derrama) originado por rendimentos obtidos no estrangeiro.»
(…)
Ora, daqui se retira facilmente que se o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta originada por rendimentos obtidos no estrangeiro, é porque a derrama incide, não só sobre rendimentos provenientes do território português, mas também sobre os com origem no estrangeiro.
15. Resulta, assim, do exposto que, quanto à incidência da derrama, o entendimento da AT diverge da visão plasmada no Acórdão do STA no âmbito do Proc.º n.º 03652/15.3 BESNT de 2021/01/12, que sustenta que ao lucro tributável apurado deveriam ser expurgados os rendimentos obtidos no estrangeiro, porquanto tais rendimentos não possuem qualquer ligação ao município em causa naquele processo.
16. Salvo o devido respeito, tal decisão olvidou dois aspetos fundamentais no que concerne ao cálculo do lucro tributável, porquanto quer o imposto principal quer a derrama comungam das mesmas normas sobre a incidência plasmadas no CIRC, as quais têm necessariamente de ser acatadas.
Por um lado, e como já foi referido, quanto às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, o lucro tributável obedece ao princípio da universalidade (art.º 4.º, n.º 1 do CIRC), isto é, releva no seu cômputo todo e qualquer rendimento recebido pelo sujeito passivo, independentemente da sua proveniência.
Por outro lado, esse mesmo lucro integra componentes de várias naturezas e resulta de uma complexidade de operações/balanceamentos entre rendimentos e gastos relevados na contabilidade e os devidos ajustamentos positivos e/ou negativos, efetuados nos termos do Código do IRC.
17. Em face do exposto, parece-nos que o lançamento da derrama municipal, por regra, imperativa, deve incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, recaindo, assim, também sobre rendimentos de fonte estrangeira.
Desde logo, analisada a legislação em vigor que disciplina a figura da derrama, verificamos a inexistência de qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do exterior estão excluídos de tributação.
Assim, não podemos inferir um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
É que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º do CC).
18. Só assim não será nos casos em que os sujeitos passivos residentes com estabelecimentos estáveis fora do território nacional optem pelo regime de isenção previsto no art.º 54.º-A do Código do IRC.
Ou seja, caso o sujeito passivo português opte pela não concorrência para a determinação do seu lucro tributável dos lucros e dos prejuízos imputáveis a estabelecimento estável situado fora do território português, desde que se verifiquem os requisitos previstos no art.º 54.º-A do Código do IRC, o Estado da residência (Portugal) abster-se-á de tributar os lucros imputáveis ao estabelecimento estável e, consequentemente, o lançamento de derrama municipal não pode incidir sobre o lucro tributável desse estabelecimento estável.
19. Em conclusão, é nosso entendimento, salvo o devido respeito por melhor opinião, que a derrama municipal incide sobre todos os rendimentos obtidos pelo contribuinte, incluindo os obtidos no estrangeiro, mantendo-se, assim, a posição até agora seguida pela AT.
20. Quanto à recente posição do STA nesta matéria, que decidiu em sentido contrário, no Acórdão n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, de 13 de janeiro de 2021, assumindo a desconsideração dos rendimentos de fonte estrangeira na base de incidência para cálculo da derrama municipal devida por sociedades residentes, acresce dizer que a decisão do STA produz apenas efeitos o caso ali apreciado e decidido, razão pela qual se mantém o entendimento da AT nesta matéria (art.º 68.º-A, n.º 4 da LGT)”.
9. Com base na fundamentação acima transcrita, a qual merece a nossa adesão, passando, por isso, a fazer parte integrante desta nossa Informação, não se afigura de acolher as alegações suscitadas pela reclamante, no sentido de defender que na base de cálculo da derrama municipal são considerados apenas os rendimentos obtidos em território nacional.
10. Consequentemente, a sua pretensão, descrita no ponto n.º 2, não obterá provimento, sendo de manter as liquidações de derrama municipal, respeitantes aos exercícios de 2020 e 2021, nos termos em que foram emitidas, com as consequências jurídicas daí resultantes.(…)”.
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A Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos em 10 de dezembro de 2023.
B. Factos não provados
Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.
C. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. o artigo 596.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos ao PPA e dos documentos supervenientemente apresentados pela Requerente e pela Requerida, bem como das posições assumidas por ambas as Partes nos respetivos articulados.
IV. DO DIREITO
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A questão decidenda: Âmbito de incidência da derrama municipal
Não tendo a Requerida colocado em causa os meios de prova juntos ao pedido de pronúncia arbitral nem os supervenientemente apresentados pela Requerente, os quais, nos termos do respetivo contraditório, julgou improfícuos para a decisão do litígio, a única questão jurídica relevante para a decisão consiste em saber se a derrama municipal, prevista no artigo 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais (RFALEI), aprovado pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, incide sobre o lucro tributável das pessoas coletivas em sede de IRC, gerado na área geográfica do(s) município(s) em que exerçam a sua atividade em território português ou se, também, sobre o lucro tributável que resulte do exercício dessa atividade no estrangeiro.
A Requerente defende que o âmbito de incidência da derrama municipal se limita ao lucro tributável imputável a rendimentos gerados em cada um dos municípios do território nacional, nos quais o sujeito passivo exerça a sua atividade. Por seu turno, a Requerida entende que a tributação em sede de IRC abrange a totalidade dos rendimentos, incluindo os rendimentos obtidos no estrangeiro, de acordo com princípio da universalidade previsto no artigo 4.º, n.º 1, do Código do IRC.
Em termos de evolução histórica, a figura da derrama tem vindo a ser regulada pelas diversas leis das finanças locais aprovadas desde a Lei n.º 1/79, de 2 de janeiro, que consagrou a autonomia financeira das autarquias locais e cujo artigo 12.º conferia aos municípios a faculdade de lançar derramas sobre a coleta da contribuição predial rústica e urbana, da contribuição industrial e do imposto de turismo cobrados na área de cada município, com uma taxa não superior a 10% da coleta liquidada, destinando-se o seu produto à realização de melhoramentos urgentes a efetuar na área da respetiva autarquia.
Este regime foi essencialmente mantido pelo artigo 5.º, da Lei n.º 1/87, de 6 de janeiro, em que se estabelecia que a derrama incidia sobre “as coletas liquidadas na respetiva área em contribuição predial rústica e urbana e em contribuição industrial” (n.º 1) e tinha caráter excecional, só podendo ser aprovada “para ocorrer ao financiamento de investimentos urgentes e ou no quadro de contratos de reequilíbrio financeiro” (n.º 2).
O artigo 18.º, da Lei n.º 42/98, de 6 de agosto, veio alterar o âmbito de incidência objetiva da derrama municipal, consignando que esta incidiria “sobre a coleta do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) que proporcionalmente corresponda ao rendimento gerado na sua área geográfica (do município) por sujeitos passivos que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola” (n.º 1), mantendo a sua ligação ao financiamento dos municípios, por estabelecer, no seu n.º 2, que “[A] derrama pode ser lançada para reforçar a capacidade financeira ou no âmbito da celebração de contratos de reequilíbrio financeiro”.
O n.º 4 desse artigo 18.º estabelecia que “sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a 10 000 contos (€ 50 000), o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional”, entendendo-se por massa salarial o “valor das despesas efetuadas com o pessoal e escrituradas no exercício a título de remunerações, ordenados ou salários” (n.º 6).
O n.º 5 do mesmo artigo esclarecia que, nos casos não abrangidos pelo n.º 4, isto é, nos casos em que a atividade do sujeito passivo se não desenvolva em mais do que um município, o rendimento considerar-se-ia gerado no município em que se situasse a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situasse o estabelecimento estável.
Assim, nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 4, da Lei n.º 42/98, o lançamento da derrama deixou de caber em exclusivo ao município em que se verificasse a liquidação do IRC ou se encontrasse localizada a sede da empresa, para passar a caber a todos os municípios em que uma empresa possuísse estabelecimento estável ou representação local.
Outras alterações significativas ao regime jurídico da derrama municipal foram introduzidas pelo artigo 14.º, da Lei das Finanças Locais aprovada pela Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro. Embora tenha mantido a partilha da respetiva receita quando uma empresa tenha a sua atividade localizada em diferentes municípios (artigo 14.º, n.º 2),[1] a derrama passou a incidir, já não sobre a coleta, mas antes sobre o “lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português”, alargou-se o campo da sua aplicação a “não residentes com estabelecimento estável nesse território” (n.º 1, in fine).
A Lei de Finanças Locais atualmente em vigor, aprovada pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, e aplicável à situação dos autos, manteve o regime definido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 14.º da Lei n.º 2/2007, limitando-se a definir uma nova fórmula de repartição da derrama nos casos de plurilocalização da atividade empresarial, com base na ponderação de diversos fatores, com vista a assegurar uma mais justa imputação territorial dos lucros (n.º 7).
Também, neste novo quadro legal, a derrama incide sobre o “lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português e não residentes com estabelecimento estável nesse território” (n.º 1), mantendo-se a tributação proporcional, relativamente a sujeitos passivos com estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais do que um município (n.º 2), assim como o princípio, que já constava do artigo 18.º, n.º 5, da Lei n.º 42/98 e do artigo 14.º, n.º 5, da Lei n.º 2/2007, segundo o qual, não havendo desconcentração da atividade económica, o rendimento se considera gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo, ou no município em que se situa o estabelecimento estável de sujeitos passivos não residentes (n.º 5).
A partir de Lei das Finanças Locais de 2007, deixou de se fazer referência ao caráter excecional e à finalidade específica da derrama municipal, relacionada com a necessidade de reforço da capacidade financeira das autarquias, o que revela que a derrama passou a ser considerada como um imposto autónomo dos municípios, que apenas se encontra condicionado, na sua incidência, pelo lucro tributável apurado pelos sujeitos passivos em sede de IRC.
No entanto, deverá continuar a entender-se que a delimitação da derrama municipal, por referência à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município, tem em vista assegurar que a autarquia possa dispor dos meios financeiros suficientes para o desempenho das suas atribuições, para o que concorre a receita fiscal proveniente dos operadores económicos que atuam na área da respetiva circunscrição.
Deste modo, ao considerar que, se a derrama tem por base o lucro tributável que corresponda à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município ou, no caso de partilha de receita, o lucro tributável que seja imputável à circunscrição de cada município, o legislador teve presente que o município apenas beneficia da derrama incidente sobre a parte do rendimento gerado na sua própria área geográfica.
Por isso, não pode ser alocada a um município a derrama proveniente de rendimentos realizados numa outra área territorial e, por maioria de razão, relativamente a rendimentos que o sujeito passivo aufira em resultado da atividade desenvolvida em país estrangeiro.
A contrariar esta interpretação, já sufragada pelo Acórdão do STA de 13 de janeiro de 2021, no Processo n.º 03652/15[2], vem a Requerida, na informação sobre que incidiu a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente contra as autoliquidações de IRC dos exercícios de 2020 e de 2021, socorrer-se de um excerto do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 603/2020 - Processo n.º 172/20, segundo o qual «o pagamento deste tributo deve ser “eliminado” por dedução de créditos por dupla tributação internacional sempre que a coleta de IRC, stritcto sensu, não se mostre suficiente para os absorver na totalidade, como acontece no presente caso. Assim é que, na expressão “fração do IRC” constante da então al. b) do n.º 1 do art.º 41.º (hoje, art.º 91.º), se deve incluir a coleta da derrama municipal. O mesmo é dizer que o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta do imposto (entenda-se derrama) originado por rendimentos obtidos no estrangeiro».
Porém, o que estava em causa no referido Acórdão do Tribunal Constitucional era uma realidade diversa da que se discute nos presentes autos, não podendo aproveitar à Requerida uma citação descontextualizada daquele aresto. Efetivamente, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 603/2020, de 11 de novembro de 2020, no Processo n.º 172/20, decidiu um recurso interposto pela AT da Decisão Arbitral proferida no processo n.º 42/2018-T, sob o tema “IRC – crédito por dupla tributação internacional: dedução à coleta da derrama municipal”.
Nesta Decisão Arbitral n.º 42/2018-T, citando a Decisão Arbitral n.º 340/2017-T, escreveu-se, designadamente, o seguinte: “Na realidade, a derrama municipal visa dotar as autarquias de recursos financeiros próprios, obtidos através de impostos incidentes sobre aqueles que realizam atividades lucrativas na área de determinado município. Assim sendo, indo além da questão concreta em análise, parece destituído de fundamento razoável exigir o pagamento de um tal imposto relativamente a atividades exercidas fora do território nacional”.
Assim se conclui que o decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 603/2020, de 11 de novembro de 2020, no Processo n.º 172/20, não é aplicável à situação dos autos.
Tomando como parâmetro decisório, em conformidade com ao disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, os Acórdãos do STA de 13 de janeiro de 2021, no processo n.º 03652/15, bem como, entre outros, os Acórdãos Arbitrais proferidos nos processos n.ºs 720/2021-T, 211/2023-T e 948/2023-T, julga-se o PPA procedente.
-
Dos pedidos de restituição do indevido e juros indemnizatórios
Em consequência da procedência do pedido de anulação parcial das autoliquidações impugnadas, na parte referente à derrama municipal, nos termos acima descritos, fica a AT vinculada, por força da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, a “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui, para além da restituição do indevido, “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributári.”.
De igual modo, o n.º 1 do artigo 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável ao
processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do
RJAT, estabelece que “1 - A administração tributária está obrigada, em caso de
procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo
judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não
tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros
indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.
O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º da LGT, que fixa o
momento a partir do qual os mesmos são devidos, por erro imputável aos serviços (n.ºs 1
e 2) ou por “outras circunstâncias” (n.º 3).
Nos casos de autoliquidação, em que a liquidação está legalmente cometida ao contribuinte, em princípio, os erros de que essa autoliquidação enferme são imputáveis ao sujeito passivo e não à AT, que nela não teve intervenção.
Porém, havendo lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa) da autoliquidação, a decisão do indeferimento, expresso ou tácito, daquele meio gracioso, faz transferir o erro para os serviços, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data da decisão de indeferimento.[3]
No caso dos autos, tendo a reclamação graciosa sido indeferida por Despacho de 12 de setembro de 2023, são devidos juros indemnizatórios sobre o valor da derrama municipal paga em excesso e a restituir, computados desde 13 de setembro de 2023 até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos (cf. artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT).
V. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados, decide o Tribunal Arbitral:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular os atos autoliquidação de derrama municipal referentes aos exercícios de 2020 e 2021, no montante global de € 211.210,80 (€ 201.152,86 e € 10.057,94, respetivamente), bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida;
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Condenar a AT na restituição das quantias indevidamente pagas, acrescidas de juros indemnizatórios, a calcular nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, desde 13 de setembro de 2023 até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 211.210,80 (duzentos e onze mil, duzentos e dez euros e oitenta cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 4.284,00 (quatro mil, duzentos e oitenta e quatro euros), a cargo da AT, em razão do decaimento.
Notifique-se.
CAAD, 20 de agosto de 2024.
Os Árbitros,
Rita Correia da Cunha
(Presidente)
Mariana Vargas
(Vogal/Relatora)
Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho
(Vogal)
[1] Cfr. SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2014, págs. 162-163) “A massa salarial associada pela empresa ao estabelecimento estável existente em cada concelho é tomada pela LFL como um indicador aproximado do lucro que por este é gerado, presumindo-se assim que o lucro tributável originado por um estabelecimento estável é tanto maior quanto maior o gasto com a mão-de-obra que lhe esteja afecta. Trata-se, com certeza, de uma solução mais justa que a de reservar ao município da sede a tributação de todo o lucro tributável (…)”.
[2] Nos termos do sumário do Acórdão do STA citado: “I - O reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar que o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada. II - As derramas municipais têm, para legitimação, de se ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo… III - Em situações de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo. IV - O lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do território nacional (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).
[3] Cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do Pleno da Secção do CT do STA, de 22/11/2023, no processo 0125/23.4BALSB e jurisprudência nele citada.