Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 895/2023-T
Data da decisão: 2024-08-26  IRC  
Valor do pedido: € 140.127,24
Tema: IRC. RFAI – pesca e aquicultura. Princípio da tipicidade tributária, concretizado no princípio da determinabilidade das leis tributárias. Princípio da legalidade tributária, na vertente da reserva de lei. Artigo 103.º da CRP.
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SUMÁRIO

  1. Uma atividade de transformação de produtos de pesca e da aquicultura encontra-se excluída do âmbito de aplicação do Regulamento (UE) n.º 651/2014 que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (RGIC), por força do seu artigo 1.º, n.º 3, alínea a), encontrando-se, consequentemente, também excluída do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) previsto nos artigos 22.º e seguintes do Código Fiscal do Investimento (CFI), tal como resulta do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia proferido em 15-12-2022, no processo C-23/22 (CAXAMAR).

 

  1. O nosso Tribunal Constitucional interpreta o princípio da tipicidade tributária, na vertente do princípio da determinabilidade das leis tributárias (ínsitos no artigo 103.º, n.º 2, da CRP), como exigindo ao legislador fiscal um mínimo de clareza e de transparência do tipo que permita a calculabilidade e a previsibilidade da obrigação fiscal, reconhecendo ao legislador, simultaneamente, discricionariedade normativo-constitutiva quanto à definição dos elementos que concorrem para se definir a matéria coletável. O artigo 22.º, n.º 1, do CFI, que exclui do âmbito do RFAI as atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR (orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020) e do RGIC, cumpre a exigência de determinabilidade em apreço porquanto permite aos contribuintes, através da interpretação dos preceitos das AOR e do RGIC, determinar o âmbito de aplicação do RFAI e prever a aplicação do benefício fiscal por parte da Administração Fiscal, não havendo uma transferência da criação da obrigação fiscal para a discricionariedade da Administração Fiscal.

 

  1. Quanto à violação do princípio da legalidade tributária, interessa notar que o princípio da reserva legal no âmbito do direito tributário (ínsito no artigo 103.º, n.º 2, da CRP) traduz-se na obrigatoriedade de norma legal para a instituição ou aumento de tributos, mais especificamente de uma norma legal que contenha todos os elementos essenciais da imposição tributária, não sendo permitido ao legislador delegar a regulamentação dos mesmos através de normação secundária. O artigo 22.º, n.º 1, do CFI contém uma remissão legislativa para as OAR e para o RGIT, absorvendo parte do seu conteúdo, sem, no entanto, deixar de ser uma norma separada, distinta, com existência própria, e sem delegar em instituições europeias o poder ou dever de regulamentar normas aprovadas pelo legislador nacional. A remissão em apreço nada mais significa que, por força de normas constantes do CFI, o âmbito do RFAI é definido com referência ao teor de normas contidas nas OAR e no RGIT, não constituindo, por isso, uma violação ao princípio da reserva de lei ínsito no artigo 103.º, n.º 2, da CRP.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Os Árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha, Dr. José Coutinho Pires e Dr. Luís Ricardo Farinha Sequeira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

 

I.  RELATÓRIO

A..., S.A., sociedade anónima, com o NIF..., com sede na Rua ..., n.º ... –..., ...-... ... (“a Requerente”), veio, em 28-11-2023, nos termos e para os efeitos previstos no disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e no artigo 5.º, n.º 3, alínea a), todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), bem como no artigo 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, requerer a constituição de tribunal arbitral coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”), com vista à declaração de ilegalidade e anulação da liquidação adicional de IRC n.º 2023..., de 01-07-2023, referente ao ano de imposto de 2019, e respetivas liquidações de juros compensatórios, bem como à restituição do montante indevidamente pago (€ 140.127,24), acrescido de juros indemnizatórios.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico, designou os signatários como árbitros, que comunicaram a aceitação no prazo aplicável. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 06-02-2024 para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, e automaticamente notificada a AT.

No dia 26-03-2024, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta, tendo junto o processo administrativo no dia seguinte.

Por despacho de 08-04-2024, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião do artigo 18.º do RJAT e notificou as partes para alegações.

A Requerida apresentou alegações escritas em 18-04-2024, reiterando a argumentação contida na resposta.

 

II.  SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.

O PPA é tempestivo porquanto foi apresentado em 28-11-2023, ou seja, no prazo de 90 dias contados do termo do prazo de pagamento voluntário da liquidação de IRC contestada (31-08-2023), conforme resulta dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 102.º, n.º 1, do CPPT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O processo não enferma de nulidades. As partes não invocaram exceções.

 

III.  QUESTÕES DECIDENDAs

As partes contendem sobre se os investimentos realizados pela Requerente em 2019, no montante de € 502.519,68, são elegíveis para efeitos do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (“RFAI”), previsto nos artigos 22.º e seguintes do Código Fiscal do Investimento (“CFI”). Considerando o alegado pelas partes nos respetivos articulados, cumpre ao Tribunal pronunciar-se sobre as seguintes questões (salvo quando o conhecimento das mesmas seja prejudicado):

  1. Se a atividade desenvolvida pela Requerente (conservação de produtos da pesca e da aquicultura em azeite - CAE 10203; e preparação de produtos da pesca e da aquicultura, salga, secagem - CAE 10201) encontra-se excluída do RFAI de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 2.º e n.º 1 do artigo 22.º do CFI, remetendo o n.º 1 do artigo 22.º do CFI para a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, e para as orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (“OAR”), e para o Regulamento Geral de Isenção por Categoria, isto é, o Regulamento (UE) n.º 651/2014 que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“RGIC”), sendo ainda de considerar o Regulamento (UE) 1379/2013 do Parlamento Europeu e do conselho de 11 de dezembro de 2013?
  2. Se o artigo 22.º, n.º 1, do CFI viola o princípio da tipicidade tributária, concretizado no princípio da determinabilidade das leis tributárias (ínsitos no artigo 103.º, n.º 2, da CRP)?
  3. Se o artigo 22.º, n.º 1, do CFI viola o princípio da legalidade tributária, na vertente da reserva de lei (ínsito no artigo 103.º, n.º 2, da CRP)?
  4. Se o investimento realizado pela Requerente em 2019 é elegível para efeitos do RFAI?
  5. Se a Requerente tem direito a juros indemnizatórios?

 

IV.  SUMÁRIO DA POSIÇÃO DAS PARTES

Posição da Requerente no PPA

Da elegibilidade da atividade da Requerente para efeitos do RFAI

Os investimentos realizados em 2019, no montante de € 502.519,68, são elegíveis para efeitos do RFAI (dando origem a um crédito fiscal de € 125.629,92) porquanto, ao contrário do que entende a AT, a atividade objeto dos aludidos investimentos (conservação de produtos da pesca e da aquicultura em azeite; preparação de produtos da pesca e da aquicultura, salga, secagem; e outras atividades de transformação de produtos da pesca e aquicultura), com os Códigos de Atividade Económica (CAEs) 10203 e 10201, enquadra-se nos CAEs elegíveis no âmbito do RFAI (divisões 10 a 33), em concreto, no setor “indústrias transformadoras” prevista no artigo 2.º, n.º 2, alínea a), do CFI. Acresce que a elegibilidade dos projetos fica ainda dependente, em concreto, da especificação dos CAE enunciadas no artigo 1.º da Portaria 282/2014, entre as quais se conta a não elegibilidade dos projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas da produção agrícola primária e da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do TFUE, mas não o sector das “indústrias transformadoras”.

No RIT, a AT enquadrou as atividades da Requerente como atividades abrangidas pelo setor “indústrias transformadoras” e, simultaneamente, aplicou as restrições aplicáveis ao “setor da pesca e da aquicultura”, sem distinguir a atividade primária da pesca e da aquicultura das atividades de transformação e comercialização destes produtos. Ora, ou as atividades da Requerente se inserem no setor das “indústrias transformadoras” ou, alternativamente, se inserem no setor da “pesca e da aquicultura”. A AT não pode, por ser manifestamente contrário à lei, enquadrar as atividades da Requerente no âmbito do setor das “indústrias transformadoras” e concomitantemente, para sua conveniência, reenquadrar aquelas atividades no setor “pesca e da aquicultura” por forma a forçar a aplicação de eventuais restrições resultantes de legislação comunitária de forma cega e sem atender às necessárias especificidades das atividades económicas, em concreto, de transformação de produto, prosseguidas pela Requerente. Conclui-se, assim, que a AT fez uma errada e limitada interpretação das normas aplicáveis ao caso sub judice, ignorando, por completo, a atividade industrial prosseguida pela Requerente, focando-se apenas em situar a atividade da empresa, de forma simplista, no setor da pesca e da aquicultura, para, em resultado disso, defender a não elegibilidade da atividade no âmbito do RFAI.

Relativamente à alegada exclusão da atividade prosseguida pela Requerente do âmbito do RGIC (à luz da respetiva alínea a), n.º 3, do artigo 1.º), importa recordar o seguinte:

- Em conformidade com o artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, este não é aplicável aos «auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas» nos casos especificados por esta disposição.

- A referida exclusão é retomada no ponto 10 das OAR e, em particular, na nota de rodapé 11, para a qual este ponto remete, quando aí se refere que «Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola».

- Na aceção do artigo 2.º, ponto 10, do RGIC, deve entender-se por «transformação de produtos agrícolas», «qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola».

- Por sua vez, o artigo 2.º, ponto 11, do RGIC define o conceito de «produto agrícola» como «um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.o 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013».

- A alínea h) do Anexo I do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013 (“Regulamento 1379/2013”), inclui o código de nomenclatura (“NC”) 1604 respeitante a «Preparações e conservas de peixes; caviar e seus sucedâneos preparados a partir de ovas de peixe».

Por conseguinte, os produtos resultantes das atividades de conserva dos produtos da pesca e aquicultura em azeite, óleos vegetais, entre outros, bem como a atividade de preparação de produtos da pesca e aquicultura, não constituem «produtos agrícolas» na aceção do artigo 2.º, ponto 11, do RGIC. Deste modo, é irrelevante saber se os produtos em causa no processo principal estão abrangidos pelo Anexo I do TFUE, uma vez que o RGIC contém uma definição própria do conceito de «produto agrícola» que exclui expressamente os produtos da pesca e da aquicultura abrangidos pelas OAR.

Em resultado, é questão isenta de dúvidas que as atividades de conserva dos produtos da pesca e aquicultura em azeite, óleos vegetais, entre outros, bem como a atividade de preparação de produtos da pesca e aquicultura, não constituem atividades de «transformação de produtos agrícolas» nos termos do artigo 2.º, ponto 10, do RGIC, lido em conjugação com o artigo 2.º, ponto 11, do RGIC e com o Anexo I do Regulamento 1379/2013, não podendo ser excluídas, a este título, do âmbito de aplicação do RGIC com fundamento no seu artigo 1.º, n.º 3, alínea c). Assim, errou a AT ao sustentar que qualquer auxílio com finalidade regional não poderá (sem exceção) ser aplicável no setor da pesca e da aquicultura por remissão da aludida alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º do RGIC.

Em paralelo, importa, naturalmente, fazer referência às OAR para o período 2014-2020, admitindo-se que a sua redação, à data, remetia para a aplicação das normas especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos (por exemplo, e para o que aqui importa, no setor da pesca e da aquicultura), uma vez que as aludidas normas especiais eram suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as aludidas orientações. Com efeito, suscitavam-se, portanto, dúvidas quanto à exclusão total e absoluta do aludido setor do âmbito das OAR, principalmente, tendo em conta que no RGIC se acautelou a inclusão do setor aqui em discussão, desde que à luz das regras especiais aplicáveis.

Atento o supra exposto, não podia a AT ter negado a concessão de benefícios fiscais aos projetos de investimento que têm por objeto as atividades económicas do setor da transformação de produtos da pesca e da aquicultura, por falta de norma legal que o permita (prevista no ordenamento jurídico Português, ou do que decorre da análise cuidada da regulamentação Europeia).

Da violação do princípio da tipicidade, concretizado no princípio da determinabilidade das leis tributárias

O artigo 103.º, n.º 2, da CRP garante um dos elementos essenciais do Estado de direito constitucional, o qual se traduz na regra da reserva de lei para a criação e definição dos elementos essenciais dos impostos, não podendo estes deixar de constar de diploma legislativo. Considerando que é o artigo 22.º, n.º 1, do CFI que cria o benefício fiscal do RFAI, este deveria conter de forma clara, pormenorizada e precisa todos os elementos essenciais para a sua aplicação. Todavia, esta norma viola o princípio da determinabilidade das leis tributárias que a doutrina reconhece enquanto decorrência do Estado de direito democrático e da legalidade fiscal, porquanto, para delimitar o seu âmbito de aplicação, o legislador limitou-se, na parte final da norma em análise, a remeter para as AOR e para o RGIC de forma imprecisa e generalizada. Nesta perspetiva, deve concluir-se que a norma prevista no artigo 22.º, n.º 1, do CFI não cumpre os requisitos constitucionais, por adotar uma formulação de tal forma ampla, quando aí remete para regulamentação comunitária de âmbito não fiscal, que não assegura aos sujeitos passivos a necessária segurança jurídica constitucionalmente protegida através do princípio da legalidade.

Da violação do princípio da legalidade tributária, na vertente da reserva de lei

Ainda assim, acresce que, quer as AOR, quer o RGIC, não são diretamente fontes de direito e não constituem leis em sentido material. Note-se que o artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP determina que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a criação de impostos e o sistema fiscal. Não pode instrumento normativo que não tenha base em lei ou autorização legislativa limitar o âmbito de aplicação do RFAI. Com efeito, sendo fixado o benefício fiscal pelas normas previstas no artigo 2.º, n.º 2, do CFI e no artigo 22.º, n.º 1 do CFI, as OAR e o RGIC, ao constarem de instrumentos legislativos comunitários, não têm efeito direto no ordenamento jurídico português para efeitos de interpretação e aplicação de normas fiscais por lhes faltar determinabilidade, não sendo suficientemente específicos, claros, precisos, incondicionais e determinados de forma a configurar uma exceção à aplicabilidade do RFAI.

Em consequência do que ficou exposto, é questão isenta de dúvidas que o artigo 22.º, n.º 1, do CFI é violador do princípio da legalidade ínsito no artigo 103.º da CRP, e deve concluir-se que o benefício fiscal previsto no artigo 22.º, n.º 1, e no artigo 2.º, n.º 2, do CFI deve ser aplicado, independentemente das alegadas exclusões previstas nas OAR e no RGIC.

Da elegibilidade do investimento realizado pela Requerente

Sem qualquer prova, a AT alegou no RIT que “os investimentos realizados se tratam de um conjunto de aquisições de bens e serviços “avulso” sem interligação entre si, desde aquisição de equipamentos administrativo, consumíveis, equipamentos sociais e despesas de manutenção e reparação”. Ora, os investimentos considerados pela Requerente como elegíveis para efeitos do RFAI para o exercício de 2019 qualificam-se como “investimento inicial”, na aceção do artigo 2.º, n.º 2, alínea b), da Portaria 297/2015, porquanto respeitam ao aumento da capacidade de um estabelecimento já existente que, in casu, passou pelo investimento em ativos fixos tangíveis que dotaram a Requerente das condições necessárias para dar resposta aos objetivos de aumento da produção, nomeadamente um processo de doseamento mais eficaz.

A informação disponibilizada pela Requerente ao Instituo Nacional de Estatística (INE) demonstra o aumento efetivo da capacidade de produção das linhas / processos de transformação industrial que, maioritariamente, beneficiaram dos investimentos realizados no âmbito do RFAI: em 2018, a Requerente vendeu 1.356.323 kg de conservas de cavala, tendo o respetivo volume aumentado em 2019 para 1.638.937 kg, e em 2020 para 1.726.199 kg; em 2018, a Requerente vendeu 676.785 kg de conservas de salmão, tendo o respetivo volume aumentado em 2019 para 790.096 kg, e em 2020 para 837.535 kg. O aumento da capacidade produtiva, para o qual contribuíram os investimentos realizados pela Requerente, ficou, desde logo, patente na evolução da faturação da Requerente: em 2018, a Requerente faturou € 25.802.326,43; em 2019, € 29.711.605,67; e em 2020, € 29.108.302,88. O aumento da capacidade produtiva resultou, naturalmente, da necessidade de reforçar a força de trabalho diretamente relacionada com processo produtivo da Requerente: em 2019, verificou-se uma criação líquida positiva de 59 postos de trabalho.

Juros indemnizatórios

A Requerente tem direito ao recebimento de juros indemnizatórios, calculados sobre os valores pagos indevidamente no montante de € 140.127,24, computados desde o pagamento indevido até à emissão da nota de crédito.

 

Posição da Requerida

Da elegibilidade da atividade da Requerente para efeitos de RFAI

O artigo 1.º da Portaria nº 282/2014, de 30 de dezembro, determina que, em face do exposto nas OAR e no RGIC, não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimentos que tenham por objeto as atividades económicas dos sectores da pesca e da aquicultura. Relativamente à atividade de “preparação, transformação e conservação de produtos da pesca e da aquicultura”, enquadrável nos códigos CAE 10203 e 10201, embora a alínea b) do artigo 2.º da mesma Portaria refira que as atividades económicas correspondentes a indústrias transformadoras com o código CAE compreendido nas divisões 10 a 33 podem beneficiar do RFAI, o corpo do artigo é bem explícito quando refere “Sem prejuízo das restrições previstas no artigo anterior”. Ora, de entre as atividades excluídas do âmbito sectorial das OAR e do RGIC encontram-se a pesca e a aquicultura, sector que inclui todas as atividades de produção, transformação e comercialização dos produtos da pesca ou da aquicultura, sendo que os mesmos produtos previstos no Anexo I do Regulamento (EU) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013.

Nem a referida portaria, nem a restante legislação mencionada, aplicável ao RFAI, definem o que se deve entender, em concreto, por setor da pesca e da aquicultura. Das alíneas a), b) e d) do artigo 5.º do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013, para o qual remete a alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º do RGIC, resulta que o sector da pesca e da aquicultura é definido como o sector da economia que inclui todas as atividades de produção, transformação e comercialização dos produtos de pesca ou da aquicultura, sendo que os produtos que devam ser classificados como tal se encontram previstos no Anexo I do Regulamento (EU) n.º 1379/2013. In casu, estando em causa investimento relacionados com as atividades de transformação de produtos de pesca, não restam, assim, dúvidas que a atividade da Requerente se encontra excluída do âmbito de aplicação setorial das OAR e do RGIC e, consequentemente, do RFAI.

A remissão legal expressa tanto no CFI como na Portaria n.º 282/2014 para as OAR e o RGIC permite-nos concluir que o legislador quis, acima de tudo, no exercício das suas competências legislativas e regulamentares, cumprir plenamente todas as obrigações resultantes do espírito e da letra das OAR e do RGIC em consonância com os princípios, intimamente relacionados, da primazia de aplicação do direito da União Europeia e da interpretação do direito nacional em conformidade com o direito da União Europeia, sob pena de o Estado incorrer em infração ao direito da União Europeia e em responsabilidade.

Da elegibilidade do investimento realizado pela Requerente

Os serviços de inspeção tributária, após análise detalhada dos investimentos em causa, apuraram um total de € 84.248,45 (do montante total do investimento de € 502.519,68) que configura investimento não elegível para efeitos de RFAI por incumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 22.º do CFI.

Juros indemnizatórios

Não se verificando, nos presentes autos, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido à Requerente qualquer direito a juros indemnizatórios.

 

V.  MATÉRIA DE FACTO

§1. Factos provados

  1. A Requerente é uma empresa, sob a forma jurídica de sociedade anónima, constituída em 10-03-2006, com o objeto social «Representações; importação, exportação, comércio e indústria de produtos alimentares em conserva», encontrando-se registada, para o exercício da sua atividade, com os seguintes CAEs: CAE 10203 – Conservação de produtos da pesca e da aquicultura em azeite (código principal); CAE 10201 – Preparação de produtos da pesca e da aquicultura; e CAE 10204 – Salga, secagem e outras atividades de transformação de produtos da pesca e aquicultura (códigos secundários) (cf. referido nos artigos 10.º e 11.º do PPA e artigo 8.º da Resposta - facto não controvertido).
  2. Em 2019, a Requerente efetuou diversos investimentos no âmbito da sua atividade de conserva dos produtos da pesca e aquicultura em azeite, óleos vegetais e outros (CAE 10203) e na atividade de preparação de produtos da pesca e aquicultura (CAE 10201), no montante de € 502.519,68 (cf. detalhado no Documento 3 junto ao PPA - facto não controvertido).
  3. Na Declaração de Rendimentos Modelo 22 do IRC referente ao exercício de 2019, apresentada em 22-05-2020, a Requerente deduziu um crédito fiscal de RFAI no montante de € 125.629,92 (i.e., € 502.519,68 x 25%) (cf. detalhado no Documento 4 junto ao PPA - facto não controvertido).
  4. Na sequência do procedimento de inspeção tributária credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2023... (iniciado em 21-04-2023), a AT efetuou correções em sede de IRC do ano de 2019, desconsiderando o benefício fiscal RFAI, no montante de € 125.629,92, tendo notificado a Requerente do RIT em 23-06-2023, no qual se pode ler: «(…) existirem um conjunto de investimentos considerados como elegíveis para o cálculo do beneficio fiscal em RFAI, investimentos realizados na atividade de Conserva dos produtos da pesca e aquicultura em azeite, óleos vegetais e outros, CAE 10203 e na atividade de “Preparação de produtos da pesca e aquicultura, CAE 10201”, que não são elegíveis para o calculo do RFAI de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 2.º e n.º 1 do artigo 22.º do CFI (…)» (cf. detalhado no Documento 5 junto ao PPA - facto não controvertido)
  5. A AT emitiu a liquidação adicional IRC n.º 2023..., de 01-07-2023, referente ao ano de imposto de 2019, e respetivas liquidações de juros compensatórios, da qual resultou a demonstração de acerto de contas com o número 2023..., com o valor total a pagar de € 140.127,24 (correspondendo € 125.629,90 a imposto, e € 14.497,34 a juros compensatórios), com data de limite de pagamento de 31-08-2023 (cf. Documento 1 junto ao PPA - facto não controvertido).
  6. Em 28-08-2023, a Requerente procedeu ao pagamento do montante supra referido (cf. Documento 6 junto ao PPA - facto não controvertido).
  7. Em 28-11-2023, a Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos.

 

 

§2. Factos não provados

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

§3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados, e dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados, e a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

VI. MATÉRIA DE DIREITO

§1. Legislação nacional

O CFI, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro (vigente em 2019), na parte relevante, dispõe o seguinte:

 

Artigo 1.º (Objeto), n.º 2:  

 

“O regime de benefícios fiscais contratuais ao investimento produtivo e o RFAI constituem regimes de auxílios com finalidade regional aprovados nos termos do Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 16 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, n.º L 187, de 26 de junho de 2014 (adiante Regulamento Geral de Isenção por Categoria ou RGIC)”

 

Artigo 2.º (Âmbito objetivo):

 

“1 - Até 31 de dezembro de 2020, podem ser concedidos benefícios fiscais, em regime contratual, com um período de vigência até 10 anos a contar da conclusão do projeto de investimento, aos projetos de investimento, tal como são caracterizados no presente capítulo, cujas aplicações relevantes sejam de montante igual ou superior a (euro) 3 000 000,00.

2 - Os projetos de investimento referidos no número anterior devem ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas seguintes atividades económicas, respeitando o âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC:

a) Indústria extrativa e indústria transformadora;

(...)

d) Atividades agrícolas, aquícolas, piscícolas, agropecuárias e florestais;

3 - Por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia são definidos os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior.”

 

Artigo 22.º (Âmbito de aplicação e definições):

 

“1 - O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.

(...)

5 - Considera-se investimento realizado o correspondente às adições, verificadas em cada período de tributação, de ativos fixos tangíveis e ativos intangíveis e bem assim o que, tendo a natureza de ativo fixo tangível e não dizendo respeito a adiantamentos, se traduza em adições aos investimentos em curso.

6 - Para efeitos do disposto no número anterior, não se consideram as adições de ativos que resultem de transferências de investimentos em curso transitado de períodos anteriores, exceto se forem adiantamentos.

7 - Nas regiões elegíveis para auxílios nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 107.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia constantes da tabela do artigo 43.º, no caso de empresas que não se enquadrem na categoria das micro, pequenas e médias empresas, tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, apenas podem beneficiar do RFAI os investimentos que respeitem a uma nova atividade económica, ou seja, a um investimento em ativos fixos tangíveis e intangíveis relacionados com a criação de um novo estabelecimento, ou com a diversificação da atividade de um estabelecimento, na condição de a nova atividade não ser a mesma ou uma atividade semelhante à anteriormente exercida no estabelecimento”.

 

A Portaria para a qual remete o n.º 3 do artigo 2.º do CFI veio a ser a Portaria n.º 282/2014, de 30 setembro, a qual refere no seu Preâmbulo:

 

“Atendendo à necessidade de observar as normas e demais atos emanados das instituições, órgãos e organismos da União Europeia em matéria de auxílios estatais, nomeadamente as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209/1, de 27 de julho de 2013 e o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, que aprovou o Regulamento Geral de Isenção por Categoria, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187/1, de 26 de junho de 2014, são também definidos na presente portaria os setores de atividade excluídos da concessão de benefícios fiscais.”

 

E quanto ao enquadramento comunitário e âmbito setorial, estabelecem os artigos 1.º e 2.º o seguinte:

 

Artigo 1.º (Enquadramento comunitário):

 

“Em conformidade com as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 27 de julho de 2013 e com o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria), não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores siderúrgico, do carvão, da pesca e da aquicultura, da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo i do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, da silvicultura, da construção naval, das fibras sintéticas, dos transportes e das infraestruturas conexas e da produção, distribuição e infraestruturas energéticas.”

 

Artigo 2.º (Âmbito setorial):

 

“Sem prejuízo das restrições previstas no artigo anterior, as atividades económicas previstas no n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, correspondem aos seguintes códigos da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE-Rev.3), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro:

(...)

b) Indústrias transformadoras - divisões 10 a 33”

 

 

 

§2. Legislação da União Europeia

 

O RGIC, no Considerando (10) dispõe:

 

“O presente regulamento deve aplicar-se, em princípio, à maioria dos setores económicos. No entanto, em alguns setores, como a pesca e a aquicultura e a produção agrícola primária, o âmbito de aplicação deve ser limitado à luz das regras especiais aplicáveis.”

 

O artigo 1.º, n.º 3, alínea a), determina:

 

“O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios:

Auxílios concedidos no setor da pesca e da aquicultura, nos termos do Regulamento (UE) n.o1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013, que estabelece a organização comum de mercado no setor dos produtos da pesca e da aquicultura, altera os Regulamentos (CE) n.º 1184/2006 e (CE) n.º 1224/2009 do Conselho e revoga o Regulamento (CE) n.º104/2000 do Conselho, com exceção dos auxílios à formação, dos auxílios ao acesso das PME ao financiamento, dos auxílios à investigação e desenvolvimento, dos auxílios à inovação a favor das PME e dos auxílios a trabalhadores desfavorecidos e trabalhadores com deficiência.”

 

E este artigo 1.º estabelece a final:

 

“Sempre que uma empresa exercer atividades nos setores excluídos, referidos nas alíneas a), b) ou c) do primeiro parágrafo, bem como em setores abrangidos pelo âmbito de aplicação do presente regulamento, este apenas se aplica aos auxílios concedidos a esses últimos setores ou atividades, desde que os Estados-Membros assegurem, através de meios adequados como a separação das atividades ou a distinção dos custos, que as atividades nos setores excluídos não beneficiam dos auxílios concedidos em conformidade com o presente regulamento”.

 

As OAR 2014-2020, que foram adotadas pela Comissão em 19 de junho de 2013, tendo entrado em vigor a 1 de julho de 2014, mencionam no paragrafo 1:

 

“Com base no artigo 107.º, n.º 3, alíneas a) e c), do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), a Comissão pode considerar compatíveis com o mercado interno os auxílios estatais destinados a facilitar o desenvolvimento económico de certas regiões desfavorecidas da União Europeia. Este tipo de auxílios estatais é designado por auxílios com finalidade regional”.

 

“1. ÂMBITO DE APLICAÇÃO E DEFINIÇÕES

1.1. Âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional

(...)

10. A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica (9), com exceção da pesca e da aquicultura (10), da agricultura (11) e dos transportes (12), que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações. A Comissão aplicará estas orientações à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas. As presentes orientações aplicam-se a medidas de auxílio em apoio de atividades fora do âmbito do artigo 42.º do Tratado, mas abrangidas pelo regulamento relativo ao desenvolvimento rural, e cofinanciadas pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural ou concedidas como um financiamento nacional em suplemento dessas medidas cofinanciadas, salvo previsão em contrário das regras setoriais.”

 

As OAR 2014-2020 densificam quais os auxílios em matéria de pesca e aquicultura excluídos do seu âmbito de aplicação, limitando-os aos auxílios abrangidos pelo Regulamento (CE) n.º 104/2000 do Conselho, de 17 de dezembro de 1999, que foi revogado e substituído pelo Regulamento (UE) n.º 1379/2013, que estabelece a organização comum de mercado no setor dos produtos da pesca e da aquicultura (JO L 17 de 21.1.2000, p. 22).

 

O regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do conselho de 11 de dezembro de 2013 que estabeleceu a organização comum dos mercados dos produtos da pesca e da aquicultura, altera os Regulamentos (CE) n.º 1184/2006 e (CE) n.º 1224/2009 do Conselho e revoga o Regulamento (CE) n.º 104/2000 do Conselho, no artigo 5.º elenca algumas definições de que destacamos:

 

“Para efeitos de aplicação do presente regulamento, são aplicáveis as definições referidas no artigo 4.o do Regulamento (UE) n.o1380/2013, bem como as referidas no artigo 4.o do Regulamento (CE) n.o 1224/2009 do Conselho (10), no artigo 2.o do Regulamento (UE) n.o 1169/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho (11), nos artigos 2.o e 3.o do Regulamento (CE) n.o 178/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho e no artigo 3.o do Regulamento (CE) n.o 1333/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho (13). São igualmente aplicáveis as seguintes definições:

a) "Produtos da pesca", os organismos aquáticos resultantes de qualquer atividade de pesca ou os produtos deles derivados, indicados no Anexo I;

b) Produtos da aquicultura", os organismos aquáticos resultantes de qualquer atividade de aquicultura, em qualquer estádio do seu ciclo de vida, ou os produtos deles derivados, indicados no Anexo I;

(...)

d) Setor da pesca ou da aquicultura", o setor da economia que inclui todas as atividades de produção, transformação e comercialização dos produtos da pesca ou da aquicultura

(...)”

 

O Regulamento (UE) n.º 508/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, no Considerando 12 afirma:

 

“É conveniente que as despesas da PCP e da PMI sejam financiadas pelo orçamento da União mediante um único fundo, o FEAMP, quer diretamente, quer em gestão partilhada com os Estados-Membros. Esta última deverá aplicar- -se não só às medidas de apoio à pesca, à aquicultura e ao desenvolvimento local de base comunitária, mas também à transformação e comercialização, à compensação para as regiões ultraperiféricas e às atividades de controlo e de recolha de dados, bem como à PMI. A gestão direta deverá aplicar-se aos pareceres científicos, às medidas específicas de controlo e execução, às contribuições voluntárias para as organizações regionais de gestão das pescas, aos conselhos consultivos, à informação sobre o mercado, às operações de execução da PMI e às atividades de comunicação. É conveniente especificar os tipos de operação que se qualificam para financiamento ao abrigo do FEAMP”.

 

E refere no Considerando (20):

 

“A fim de melhorar a coordenação e a harmonização da execução dos Fundos que prestam apoio no âmbito da política de coesão, a saber, o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), o Fundo Social Europeu (FSE) e o Fundo de Coesão (FC), com os fundos para o desenvolvimento rural e para o setor marítimo e das pescas, a saber, o Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) e o FEAMP, respetivamente, foram estabelecidas disposições comuns para todos estes Fundos («Fundos FEEI») no Regulamento (UE) n.º 1303/2013. Além do Regulamento (UE) n.º 1303/2013, o presente regulamento contém disposições específicas e complementares, dadas as particularidades dos setores da PCP e da PMI.”

 

De mencionar ainda o disposto no considerando (61):

 

“A fim de garantir a viabilidade das pescas e da aquicultura num mercado altamente competitivo, é necessário estabelecer disposições que concedam apoio à execução do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho (1) e às atividades de comercialização e transformação realizadas pelos operadores para maximizar o valor dos produtos da pesca e da aquicultura. Convém dar especial atenção à promoção de operações que integrem as atividades de produção, transformação e comercialização na cadeia de abastecimento ou que representem processos ou métodos inovadores. Convém apoiar em prioridade as organizações de produtores e as associações de organizações de produtores aquando da concessão de apoio. No caso dos planos de produção e comercialização, apenas serão elegíveis para apoio essas organizações. Com vista à adaptação à nova política de proibição das devoluções, o FEAMP deverá igualmente apoiar a transformação das capturas indesejadas.”

 

Relativamente às indústrias de transformação de produtos de pesca, o Regulamento (UE) n.º 508/2014, o artigo 6.º, n.º 5 determina:

 

“Promover a comercialização e a transformação, através dos seguintes objetivos específicos:

a) Melhoria da organização do mercado dos produtos da pesca e da aquicultura,

b) Incentivo ao investimento nos setores da transformação e da comercialização.”

 

§3. Da ilegibilidade da atividade da Requerente para efeitos do RFAI

A Requerente é uma empresa que exerce atividades qualificadas como de indústria de transformação e comercialização de produtos da pesca e aquicultura. Como esclarece o artigo n.º 22, n.º 1, do CFI, “o RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC”. Como o direito nacional nesta matéria dos auxílios estatais às indústrias transformadoras de produtos provenientes da pesca e da aquicultura está submetido à legislação da União Europeia, impõe-se que este Tribunal Arbitral analise essa legislação para determinar se as atividades da Requerente em que foram realizados os investimentos estão ou não excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC. O artigo 1.º, n.º 3, alínea a), do RGIC determina: “O presente regulamento não é aplicável aos (...) Auxílios concedidos no setor da pesca e da aquicultura, nos termos do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013”. Com referência a este preceito veio o Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão proferido em 15-12-2022, processo C-23/22 (CAXAMAR), dizer o seguinte:

“A este respeito, importa recordar que, em conformidade com o seu artigo 1.º, n.º 3, alínea c), o Regulamento n.º 651/2014 não é aplicável aos “auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas” nos casos especificados por esta disposição. Esta exclusão é retomada no ponto 10 das Orientações 2014-2020 e, em particular, na nota de rodapé 11, para a qual este ponto remete.

Por conseguinte, há que responder à questão prejudicial que o artigo 1.º e o artigo 2.º, pontos 10 e 11, do Regulamento n.º 651/2014, bem como as Orientações 2014-2020, lidos em conjugação com o artigo 2.º e com o artigo 5.º, alíneas a) e d), bem como com o anexo I do Regulamento n.º 1379/2013, devem ser interpretados no sentido de que uma atividade de transformação de produtos da pesca e da aquicultura, como a produção de bacalhau salgado, de bacalhau congelado e de bacalhau demolhado, não constitui uma atividade de transformação de produtos agrícolas, que está excluída do âmbito de aplicação do Regulamento n.º 651/2014 por força do artigo 1.º, n.º 3, alínea c), deste regulamento, mas sim uma atividade pertencente ao setor da pesca e da aquicultura, que está excluída do âmbito de aplicação do referido regulamento por força do seu artigo 1.º, n.º 3, alínea a).”

Importa aqui recordar o Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, bem como o relevo que assume a jurisprudência do TJUE na garantia de uma aplicação uniforme do direito da União Europeia nos diversos Estados-Membros, por via do mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do TFUE. O Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, em que se estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. Estando em causa questões de direito da União Europeia, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais (neste sentido, por todos, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26-03-2003, proferido no âmbito do processo n.º 01716/02).

Pelo exposto, decide este Tribunal Arbitral que a Requerente não pode beneficiar da dedução no IRC do exercício de 2019 dos investimentos realizados na atividade de conserva dos produtos da pesca e aquicultura em azeite, óleos vegetais e outros (CAE 10203) e na atividade de preparação de produtos da pesca e aquicultura (CAE 10201), ao abrigo do RFAI, em razão da exclusão setorial das atividades exercidas, enquadradas no setor da transformação e comercialização de produtos de pesca e aquicultura. No mesmo sentido, veja-se a Decisão Arbitral proferida em 06-05-2024, processo n.º 334/2023-T.

 

§4. Da violação do princípio da tipicidade (artigo 103.º, n.º 2, da CRP)

Quanto à violação do princípio da tipicidade tributária, concretizada no princípio da determinabilidade das leis tributárias (ínsitos no artigo 103.º, n.º 2, da CRP), alegada pela Requerente por o artigo 22.º, n.º 1, do CFI, que cria o benefício fiscal do RFAI, remeter para as AOR e para o RGIC de forma imprecisa e generalizada, ao invés de estabelecer de forma clara, pormenorizada e precisa todos os elementos essenciais para a sua aplicação, interessa atentar ao conteúdo e significado atribuído a tais princípios pelo nosso Tribunal Constitucional. No Acórdão n.º 756/199 (parcialmente transcrito no Acórdão n.º 475/2020), pode ler-se:

“A resposta a esta interrogação pressupõe o caracterizar da articulação   — constitucionalmente viável — entre o emprego, neste tipo de normas, de conceitos indeterminados e aquilo que a jurisprudência constitucional alemã definiu como «princípio da determinabilidade» (Bestimmenheitsgrundsatz), referindo-se à exigência destas normas construírem a respectiva previsão «assegurando um mínimo de clareza e de transparência do tipo» e que «permita a calculabilidade e a previsibilidade da obrigação fiscal» (J. L. Saldanha Sanches, A Segurança Jurídica no Estado Social de Direito, Ciência e Técnica Fiscal, n.os 310/312, p. 299).

A justificação de qualquer destas realidades (conceitos amplos/exigências de determinabilidade) não deixa de ser possível face a regras ou princípios constitucionalmente relevantes: se a determinabilidade se acolhe na defesa dos contribuintes contra o arbítrio da Administração Fiscal, que subjaz aos artigos n.os 2 e 3 do artigo 106.º, o emprego de conceitos amplos e por vezes indeterminados — os únicos que garantem a plasticidade que possibilite a adaptação ao constante aparecimento de novas situações que, substancialmente iguais a outras já tributadas, não estejam ainda formalmente descritas com precisão — não deixa, o emprego desse tipo de conceitos, de se poder louvar no cumprimento do mandato de igualdade em sentido material, não permitindo o aparecimento constante de refúgios de evitação fiscal.

Só a harmonização entre estas duas realidades, potencialmente conflituantes, é susceptível de fornecer soluções equilibradas que, sacrificando o menos possível dos valores subjacentes a cada uma, garanta o essencial desses valores.

Esta harmonização vem sendo prosseguida, nomeadamente no plano das jurisdições constitucionais, excluindo as cláusulas gerais que operem como que uma transferência da «criação da obrigação fiscal» para a «discricionariedade da administração», mas não inviabilizando liminarmente certas «cláusulas gerais», «conceitos jurídicos indeterminados», «conceitos tipológicos» (Typusbegriffe), «tipos discricionários» (Ermessentatbestände), e certos conceitos que atribuem à administração uma margem de valoração, os chamados «preceitos poder» (Kaan-Vorschrift).

Todas estas figuras, guardadas certas margens de segurança, flexibilizam o sistema tornando-o apto a abranger, através da interpretação, «circunstâncias novas, porventura imprevisíveis ao tempo da formulação da lei» (J. L. Saldanha Sanches, ob. cit., pp. 297 e 299-300).”

Em sentido idêntico pode ler-se no Acórdão n.º 127/2004:

“Por natureza, atenta a sua função constitucionalmente definida, o legislador tributário goza, em princípio, de discricionariedade normativo-constitutiva quanto à eleição dos factos reveladores de capacidade contributiva que podem ser elevados à categoria de factos tributários, bem como à definição dos elementos que concorrem para se definir a matéria coletável. Mas, como não poderá deixar de ser, com obediência aos parâmetros constitucionais, já acima apontados.

Um destes parâmetros, que é postulado pelos princípios do Estado de Direito e da segurança jurídica que lhe é inerente, é o princípio da determinabilidade. Ao hipotisar os pressupostos de facto/jurídicos da tributação –ao desenhar o tipo ou o Tatbestand tributário - depara-se, na verdade, o legislador com o problema da previsibilidade dos efeitos jurídicos amputadores da riqueza ou do rendimento dos contribuintes. É neste terreno que se põe, então, a questão da amplitude constitucionalmente admissível dos conceitos usados na definição dos elementos essenciais dos impostos, confrontando-se aqui duas pretensões de sentido oposto.

De um lado, a exigência de que a previsão dos factos tributários seja feita de forma «suficientemente pormenorizada», de modo que os contribuintes possam ter algumas certezas quanto à extensão da sua riqueza ou rendimento que sairá afetada pela tributação (cfr. J. M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª edição, Coimbra, 1972, pp. 309 e segs.) ou que a lei «leve a disciplina dos referidos elementos essenciais, ou seja, a disciplina essencial de cada imposto, tão longe quanto lhe seja possível» (cfr. José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2ª ed., Coimbra, 2003, pp. 138), de modo que a obrigação de imposto seja o mais certa possível por parte dos contribuintes. É a solução que é reclamada pelo princípio da segurança jurídica dos contribuintes. Segundo esta perspetiva, a incidência (como os demais elementos essenciais) deve ser definida por conceitos cujo sentido seja o mais unívoco possível.

Mas, do outro lado, o princípio da igualdade tributária reclama que os conceitos tenham a abertura ou plasticidade semântica suficiente para poder abarcar as realidades que expressam a capacidade tributária elegida, os níveis de riqueza ou de rendimento tributando, e que esse objetivo possa ser realizado não só no plano abstrato da previsão dos tipos tributários, mas também no plano da sua aplicação concreta, em que se situam o combate à evasão fiscal e a praticabilidade do sistema. (…)

Se não será sempre indispensável que a norma legal fiscal forneça ao contribuinte a possibilidade de cálculo exato, sem margem para quaisquer dúvidas ou flutuações, do seu encargo fiscal, é, porém, de exigir que “a norma que constitui a base do dever de imposto seja suficientemente determinada no seu conteúdo, objeto, sentido e extensão de modo que o encargo fiscal seja medível e, em certa medida, previsível e calculável para o cidadão” (cfr. J. Casalta Nabais, O dever fundamental…, cit., p. 356, citando esta fórmula do Tribunal Constitucional Federal alemão, embora criticando ainda a sua insuficiência, e salientando que o princípio da determinabilidade deve “ser entendido com alguma moderação e realismo de modo a compatibilizá-lo com o princípio da praticabilidade”)”.

No Acórdão n.º 475/2020, veio recentemente o Tribunal Constitucional reforçar o mesmo entendimento:

Este Tribunal tem, com efeito, constantemente entendido que a garantia de tipicidade que emana do princípio da legalidade fiscal é compatível com o recurso, pelo legislador, ao uso de conceitos indeterminados, de técnicas de tipificação, ou à configuração de tipos abertos, sobretudo quando motivados por razões de igualdade e praticabilidade, «desde que os dados legais contenham uma densificação tal que possam ser tidos pelos destinatários da norma como elementos suficientes para determinar os pressupostos de actuação da Administração e que simultaneamente habilitem os tribunais a proceder ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade administrativa assim desenvolvida.» (v. o Acórdão n.º 233/1994 e, entre muitos outros, os Acórdãos n.º 756/95, 127/2004, 252/2005, 500/2009, 753/2014 ou 211/2017)”.

Daqui se retira que o nosso Tribunal Constitucional interpreta o princípio da tipicidade tributária, na vertente do princípio da determinabilidade das leis tributárias (ínsitos no artigo 103.º, n.º 2, da CRP), como exigindo ao legislador fiscal um mínimo de clareza e de transparência do tipo que permita a calculabilidade e a previsibilidade da obrigação fiscal, reconhecendo-lhe também discricionariedade normativo-constitutiva quanto à definição dos elementos que concorrem para se definir a matéria coletável.

Relativamente ao artigo 22.º, n.º 1, do CFI, o que está em causa é a utilização de uma remissão legislativa pelo legislador nacional (in casu, o Governo Português, que aprovou o Código Fiscal do Investimento através do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro), que optou por não emitir uma norma própria em sua totalidade, antes se apropriando de parte de normas existentes em outros instrumentos legais autónomos (as OAR e o RGIC). Ao contrário do que argumenta a Requerente, temos que o artigo 22.º, n.º 1, do CFI cumpre a exigência de determinabilidade porquanto permite aos contribuintes determinar o respetivo âmbito de aplicação e prever a respetiva aplicação pela Administração Fiscal, através da interpretação dos preceitos das AOR e do RGIC relevantes, não havendo uma transferência da criação da obrigação fiscal para a discricionariedade da Administração Fiscal.

A verdade é que, tal como determinado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, o artigo 1.º, n.º 3, alínea a), do RGIC excluí do seu âmbito de aplicação (e, consequentemente, do âmbito de aplicação do RFAI), atividades pertencentes ao setor da pesca e da aquicultura. Não há assim qualquer margem de manobra para qualquer arbítrio por parte da Administração Fiscal. Temos também que a formulação adotada pelo legislador fiscal (i.e., a remissão para as OAR e o RGIC) não suscita especiais dificuldades quanto à exclusão do setor da pesca e da aquicultura do âmbito do RFAI.

Assim sendo, não se mostra possível concluir que a norma em apreço – o artigo 22.º, n.º 1, do CFI, quando aí remete para regulamentação comunitária de âmbito não fiscal – não garante o grau de calculabilidade e determinabilidade que o princípio da tipicidade fiscal impõe. Não procede, portanto, a violação do princípio da tipicidade, concretizada no princípio da determinabilidade das leis tributárias, invocada pela Requerente.

§5. Da violação do princípio da legalidade (artigo 103.º, n.º 2, da CRP)

Quanto à violação do princípio da legalidade tributária, na vertente da reserva de lei (ínsito no artigo 103.º, n.º 2, da CRP), alega a Requerente, em suma, que nem as AOR, nem o RGIC, são diretamente fontes de direito e não constituem leis em sentido material, não podendo limitar o âmbito de aplicação do RFAI. Isto porque o artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP determina que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a criação de impostos e o sistema fiscal, sem prejuízo de autorização ao Governo (reserva de lei relativa).

A este propósito, interessa notar que não são as OAR ou o RGIC que limitam o âmbito de aplicação do RFAI, e que não está em causa uma tentativa de instituições europeias derrogarem legislação fiscal aprovada pela Assembleia da República ou pelo Governo Português. Não há qualquer invasão da competência legislativa das instituições nacionais por parte de instituições europeias. Relativamente ao artigo 22.º, n.º 1, do CFI, o que está em causa é a utilização de uma remissão legislativa pelo legislador nacional, que optou por não emitir uma norma própria na sua totalidade, antes se apropriando de parte de normas existentes em outros instrumentos legais autónomos (as OAR e o RGIC).

Ora, uma remissão legislativa é a que ocorre quanto um texto legal incorpora parte do conteúdo de outras normas (sejam conceitos definidos em outras normas, sejam outras normas, sejam outros regimes jurídicos contidos em instrumentos legais autónomos), sendo que, não obstante as normas de remissão e remitidas serem detentoras de elementos comuns, ambas mantém a sua autonomia. De facto, não obstante uma remissão legislativa consubstanciar a absorção de parte do conteúdo de outra norma ou de outras normas, a verdade é que a norma de remissão é sempre diferente das normas remitidas, tem fim próprio, passando a existir de per si, e não como tendo um cordão umbilical, permanente e indestrutível, com as normas remitidas. Não há dúvida que as normas que dão corpo ao RFAI são normas separadas, distintas, com existência própria, relativamente às normas contidas no RGIC e nas OAR. É, assim, irrelevante a questão de saber se as AOR ou o RGIC são diretamente fontes de direito e ou se constituem leis em sentido material. O que está em causa é, e seria sempre, a aplicação das normas relevantes do CFI.

A questão que se poderia levantar é a de saber se o legislador fiscal pode, em face do disposto no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, definir o âmbito de aplicação de um benefício fiscal por remissão para o disposto em instrumentos de direito da União Europeia? Ou por outras palavras: se uma remissão legislativa é compatível com a reserva de lei em matéria fiscal (legalidade estrita)?

Aqui chegados, interessa sublinhar que o princípio da reserva legal no âmbito do direito tributário traduz-se na obrigatoriedade de norma legal para a instituição ou aumento de tributos, de uma norma legal que contenha todos os seus elementos essenciais da imposição tributária, não sendo permitido ao legislador delegar a regulamentação dos mesmos através de normação secundária (como seja o regulamento ou o decreto-lei não autorizado).

Ora, no caso do artigo 22.º, n.º 1, do CFI, quando aí remete para regulamentação comunitária de âmbito não fiscal (OAR e RGIT), não há qualquer delegação em instituições europeias do poder ou dever de regulamentar normas aprovadas pelo legislador nacional. O dito preceito apenas incorpora ou absorve parcialmente o conteúdo de normas contidas nas OAR e no RGIT, sem nunca deixar, no entanto, de ter uma existência separada, distinta, própria. A remissão em apreço nada mais significa que, por força de normas constantes do CFI, o âmbito do RFAI é definido com referência ao teor de algumas normas das OAR e RGIT. Nada mais. Não procede, portanto, a violação do princípio da legalidade tributária, na vertente da reserva de lei, invocada pela Requerente.

Por último, cabe referir que, tal como observado pela Requerida, a remissão legal expressa tanto no CFI como na Portaria n.º 282/2014 para as OAR e o RGIC permite concluir que o legislador pretendeu, no exercício das suas competências legislativas e regulamentares, cumprir plenamente todas as obrigações resultantes do espírito e da letra das OAR e do RGIC, em consonância com os princípios da primazia de aplicação do direito da União Europeia e da interpretação do direito nacional em conformidade com o direito da União Europeia.

 

 

 

§6. Questões de conhecimento prejudicado

O Tribunal Arbitral não se encontra obrigado a apreciar as questões suscitadas pela Requerente ou pela Requerida que fiquem prejudicadas pela solução já proferida (cf. os artigos 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2, e 679.º do Código de Processo Civil, por aplicação do artigo 29.º do RJAT), como sucede no caso dos autos relativamente à questão da elegibilidade do investimento realizado pela Requerente e dos juros indemnizatórios, sendo este o motivo pelo qual estas questões não são apreciadas na presente decisão arbitral.

 

VII. DECISÃO

Face a todo o exposto, o presente Tribunal Arbitral decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e absolver a Requerida do pedido.

 

VIII. VALOR DO PROCESSO

Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 140.127,24.

 

IX. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente, por ter sido total o seu decaimento.

 

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CAAD, 26 de agosto de 2024

 

O Tribunal Arbitral,

 

 

Rita Correia da Cunha

 

José Coutinho Pires

 

 

Luís Ricardo Farinha Sequeira