|
|
Versão em PDF |
SUMÁRIO:
I. Não é violado o princípio da irrepetibilidade do procedimento inspetivo externo previsto no artigo 63.º, n.º 4 da LGT, na redação conferida pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, se o primeiro procedimento de inspeção tributária se tiver limitado à consulta, recolha de documentos ou elementos, ainda que os serviços de inspeção tenham detetado nessa sede irregularidades que são posteriormente objeto de correção num segundo procedimento inspetivo, agora de caráter externo.
II. O direito à dedução e ao reembolso de imposto são mecanismos fundamentais do IVA que concretizam o princípio da neutralidade e que apenas podem ser limitados nos termos previstos e admitidos pela Diretiva IVA.
III. É dedutível o IVA suportado pelos sujeitos passivos com a realização de atividades preparatórias se existirem elementos objetivos que demonstrem uma intenção efetiva e genuína de exercício futuro de atividades económicas correspondentes a operações tributáveis e não isentas.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Fernando Araújo (Árbitro Presidente), Francisco Nicolau Domingos e João Taborda da Gama (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 2 de janeiro de 2024, acordam no seguinte:
I- RELATÓRIO
-
A..., S.A., titular do NIPC..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa (doravante, a “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, 6.º, n.º 2 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral coletivo, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação do Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante, “IVA”) com os n.ºs 2023..., 2023..., 2023... e 2023..., relativos ao ano de 2019, da qual resulta um montante a pagar de € 234.882,29, com os respetivos efeitos legais.
-
De acordo com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a) e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
-
O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 2 de janeiro de 2024, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
-
Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta a 7 de fevereiro de 2024, tendo, na mesma data, junto aos autos o processo administrativo (o qual, em virtude de diversas deficiências, incluindo documentos em branco, foi novamente junto aos autos em 28 de maio de 2024).
-
A 29 de fevereiro de 2024, o Tribunal arbitral proferiu despacho a dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a notificar as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas, direito que a Requerente exerceu no dia 12 de março de 2024 e a Requerida no dia 2 de abril de 2024.
II- SANEAMENTO
-
O Tribunal Arbitral coletivo foi regularmente constituído e é materialmente competente para apreciar o pedido, que foi tempestivamente apresentado nos termos do previsto nos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. O processo arbitral não enferma de nulidades, nem existem outras exceções ou questões prévias que devam ser conhecidas pelo Tribunal Arbitral e que obstem à apreciação do mérito da causa.
III- MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
-
Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
-
A Requerente é uma sociedade anónima, constituída em 14.12.2006, cujo objeto social consiste na compra e venda de imóveis para revenda e bens mobiliários, arrendamento de imóveis e aluguer de móveis, realização, organização e gestão de eventos culturais conexos com o património e exploração económica dos recursos cinegéticos – cfr. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) junto aos autos pela Requerida;
-
A Requerente encontrava-se registada com o CAE principal 68100-Compra e Venda de bens Imobiliários tendo, em 22.11.2013, adicionado os seguintes CAE secundários: 82300-Organização de feiras, congressos e outros eventos similares; 1702-Atividades de serviços relacionados com caça e repovoamento cinegético - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Mais recentemente, em 15.10.2021, a Requerente adicionou os seguintes CAE secundários: 93293-Organização de atividades de animação turística; 55202-Turismo no Espaço Rural e 55111-Hotéis com restaurante - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Para efeitos de IVA, desde 07.11.2013, que a Requerente está enquadrada no regime normal trimestral, por opção - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Desde 07.11.2023, a Requerente passou a ser um sujeito passivo misto com afetação real de todos os bens - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
De acordo com a informação constante da aplicação de património da AT, no exercício de 2019, a Requerente procedeu: (i) à alienação de um prédio misto adquirido em 22.09.2016, e que tinha como destino a revenda, e (ii) à aquisição do imóvel designado por Herdade …, sito no distrito de Setúbal pelo valor de € 16.000.000,00, o qual a Requerente declarou destinar-se a revenda - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
A Requerente tem, ainda, como atividade o arrendamento de imóveis. Para efeitos de IVA, os serviços de arrendamento são faturados com isenção de IVA, enquanto que as prestações de serviços (acessórias) são faturadas com IVA à taxa normal - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
A Requerente adquiriu, em 15.07.2011, pelo montante de € 2.050.000,00, prédios (urbano e rústico) que se encontravam integrados em área protegida classificada nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 142/2008, de 24 de julho - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Em maio de 2013, deu entrada no Município de ... um pedido de licenciamento de arquitetura de um Hotel, com a classificação de Hotel Rural de 5 estrelas, para o local dos referidos prédios – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
No exercício de 2019, ora em apreço, a Requerente encontrava-se na fase final de construção do referido Hotel rural na Herdade ...- cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Em 17.05.2019 foi emitido, pelo Município de ..., o alvará de autorização de utilização com o n.º .../2019, destinado ao Hotel rural, do qual foi dado conhecimento ao serviço de finanças respetivo em 18.06.2019 e ao Instituto de Turismo de Portugal em 02.08.2019 - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Nos anos de 2019 e 2020 a Requerente ainda suportou 10% do preço de custo de construção do Hotel - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Em 27.10.2020, a Direção de Serviços de Investigação da Fraude e de Ações Especiais (“DSIFAE”) deu início a uma ação externa de consulta, recolha e cruzamento de elementos junto da Requerente, que abrangeu os exercícios de 2017, 2018, 2019 e 2020 - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Em novembro de 2020, a DSIFAE deslocou-se à Herdade ... com vista a aferir/confirmar a ordem de grandeza dos montantes investidos na construção do Hotel rural - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Em virtude de a propriedade, com dimensão de cerca de 500 hectares, se encontrar completamente murada/cercada e sem campainha que permitisse solicitar a entrada, a visita à Herdade teve de ser agendada pelos inspetores da DSIFAE e os responsáveis da Requerente - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Em 04.12.2020, realizou-se a visita à Herdade ... na companhia da diretora de serviços da Requerente, tendo os inspetores da DSIFAE constatado a existência de um edifício de grande dimensão e estruturas adjacentes, composto por 11 suites, biblioteca, lavandaria, várias salas de jantar e de convívio, um lago artificial, SPA, piscina de 400m2 - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
A Herdade é servida por um heliporto, possui um hangar, uma garagem, zonas de vinha e outras dedicadas à agricultura - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Em 10.12.2020 a Requerente submeteu o pedido de licenciamento do heliporto, junto do Município de ...- cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Verificou-se ainda a presença de funcionários/colaboradores afetos a atividades como limpeza, preparação das instalações, cavalariças e agricultura - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Em 24.05.2021, o Hotel foi licenciado para Hotel Rural de 5 estrelas e efetuado e registado na Plataforma de Dados Abertos Georreferenciados do Turismo de Portugal, como Hotel rural de 5 estrelas, através do registo ... - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Já no final de 2021 foram emitidas faturas pela Requerente relativas a reservas e estadias efetuadas no Hotel B..., nas quais figuravam como adquirentes dos serviços a sociedade C..., S.A. e o cidadão do Reino Unido, D..., ambos com relações à Requerente - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
No decurso do procedimento de consulta, recolha e cruzamento de elementos, foram solicitados pela DSIFAE vários elementos de contabilidade da Requerente, nomeadamente balancetes, declarações fiscais e documentos de suporte da contabilidade, abrangendo os períodos de 2017 a 2020 - cfr. Documento n.º 1 junto aos autos pela Requerente;
-
A DSIFAE concluiu que o IVA relacionado com a construção do Hotel rural tinha sido indevidamente deduzido e que deveria ser regularizado, notando que “é de livre iniciativa da sociedade proceder ou não à regularização do imposto deduzido indevidamente” - cfr. Documento n.º 2 junto aos autos pela Requerente;
-
Não foram emitidos quaisquer atos de liquidação de IVA (ou de outros impostos) na sequência do procedimento realizado pela DSIFAE;
-
As conclusões resultantes da referida ação externa de consulta, recolha e cruzamento de elementos foram vertidas na Informação DSIFAE/71/2021 e enviadas à Direção de Finanças de Lisboa a 01.07.2021 com a comunicação n.º ..., que foi remetida aos Serviços de Inspeção Tributária a 13.08.2021- cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
A Informação enviada pela DSIFAE deu origem à ação inspetiva externa, de âmbito univalente, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPIT”), determinada pela Ordem de Serviço n.º OI2022..., com despacho de 13.09.2022, e que visava a análise da situação tributária da Requerente, em sede de IRC e IVA, no exercício de 2019 - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Os atos de inspeção decorreram, de acordo com solicitação do administrador da Requerente, nas instalações da empresa responsável pela contabilidade da Requerente, tendo sido iniciados em 21.11.2022, com a assinatura da ordem de serviço e concluídos em 20.07.2023 - cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
-
Deste procedimento de inspeção resultaram as liquidações adicionais de IVA com os n.ºs 2023..., 2023..., 2023... e 2023..., com um montante global a pagar de € 234.882,29, as quais constituem o objeto do presente processo arbitral;
-
Em 18 de outubro de 2023 a Requerente apresentou o Pedido de Pronúncia que originou o presente processo arbitral.
A.2. Factos dados como não provados
Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
-
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
-
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
-
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, os quais foram apreciados pelo Tribunal Arbitral ao abrigo do princípio da livre apreciação dos factos.
-
Não se deram como provadas, nem como não provadas, as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
IV- DO DIREITO
-
A Requerente vem contestar a legalidade dos atos de liquidação adicionais de IVA, referentes ao exercício de 2019, com base nos seguintes vícios:
-
violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspetivo, e
-
rejeição (ilegal) do direito à dedução do IVA suportado pela Requerente com a construção do Hotel rural da Herdade ... .
-
Uma vez que os vícios invocados pela Requerente são meramente (potencialmente) geradores da anulabilidade dos atos de liquidação adicional de IVA, o Tribunal Arbitral irá analisar os mesmos seguindo a ordem apresentada pela Requerente.
-
Cumpre, portanto, face aos factos provados, apreciar e decidir a questão quanto ao mérito, o que faremos acompanhando de perto, em especial, a fundamentação da decisão arbitral proferida no processo n.º 225/2023-T, no qual o Tribunal Arbitral já se pronunciou quanto aos vícios ora invocados pela Requerente – violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspetivo e erro de facto e de direito quanto ao direito à dedução do IVA –, igualmente com a construção do Hotel rural da Herdade ..., mas por referência ao período de 2018.
-
Do Princípio da Irrepetibilidade do Procedimento Inspetivo
-
A Requerente invoca a preterição do n.º 4 do artigo 63.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) alegando que foi objeto de dois procedimentos de inspeção externos, incidentes sobre o ano de 2019, ambos com vista a confirmar o direito à dedução do IVA suportado (pela Requerente) com a construção do hotel rural da Herdade ... .
-
Para fundamentar a sua posição, a Requerente invocou os seguintes argumentos:
- A qualificação dada pela Autoridade Tributária a um procedimento de inspeção não tem caráter vinculativo se vier a revelar-se que o conteúdo dos atos praticados é contrário à qualificação dada;
- Em 27.10.2020, a DSIFAE iniciou um procedimento externo apelidado de “consulta, recolha e cruzamento de elementos”;
- No decurso do referido procedimento foram solicitados os elementos da contabilidade da Requerente, nomeadamente balancetes, declarações fiscais, documentos de suporte da contabilidade, abrangendo os períodos de 2017, 2018, 2019 e 2020;
- A DSIFAE deslocou-se às instalações da Requerente, examinou os elementos da contabilidade, fez diligências em entidades públicas tendentes a obter informação sobre o licenciamento de construção do Hotel, visitou as instalações do Hotel, apurou o imposto em dívida e convocou a Requerente para regularizar a sua situação tributária, de acordo com o apuramento efetuado;
- Por despacho de 13.09.2022, a Direção de Finanças de Lisboa deu início a um procedimento externo de inspeção abrangendo o período de 2019;
- É certo que, nos termos do artigo 44.º do RCPITA, o procedimento de inspeção é previamente preparado, não incluindo, todavia, a verificação dos elementos da contabilidade de suporte na posse do sujeito passivo e diligências de investigação como fez a DSIFAE sob a capa de um procedimento de consulta, recolha e cruzamento de dados;
- O procedimento efetuado pela DSIFAE não foi de mera consulta, recolha e cruzamento de dados, traduzindo-se antes num efetivo procedimento externo de inspeção em que foram identificadas as correções a efetuar para regularização da situação tributária da Requerente;
- Por violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspetivo deve ser considerado nulo o procedimento efetuado pela DF de Lisboa e os contestados atos de liquidação de IVA subsequentes.
-
A Requerida defende-se por impugnação alegando, em suma, o seguinte:
- A DSIFAE, no âmbito das suas competências, apenas levou a cabo uma ação inspetiva de consulta, recolha e cruzamento de elementos, no âmbito da qual foi emitida a competente informação para os serviços de inspeção tributária competentes;
- A DSIFAE não procedeu a quaisquer correções, limitando-se a consultar e recolher elementos que posteriormente transmitiu aos serviços de inspeção tributária competentes para que estes procedessem às correções que se mostrassem devidas;
- Por sua vez a Direção de Finanças de Lisboa levou a cabo uma ação inspetiva que visava a análise da situação tributária do sujeito passivo, em sede de IRC e IVA, no exercício de 2019;
- Após a alteração promovida pela Lei n.º 114/2017, o n.º 4 do artigo 63.º da LGT passou a permitir a realização de mais do que um procedimento externo de inspeção tributária respeitante ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, no caso de um desses procedimentos visar apenas a consulta, recolha e cruzamento de documentos ou elementos;
- Pelo que não se verificou qualquer violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento de inspeção tributária.
-
Sobre este tema importa ter presente o artigo 63.º da LGT, na redação conferida pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, aplicável à data dos factos.
-
Sob a epígrafe “Inspeção”, o referido artigo 63.º da LGT, dispõe o seguinte:
“1 - Os órgãos competentes podem, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nomeadamente:
a) Aceder livremente às instalações ou locais onde possam existir elementos relacionados com a sua actividade ou com a dos demais obrigados fiscais;
b) Examinar e visar os seus livros e registos da contabilidade ou escrituração, bem como todos os elementos susceptíveis de esclarecer a sua situação tributária;
c) Aceder, consultar e testar o seu sistema informático, incluindo a documentação sobre a sua análise, programação e execução;
d) Solicitar a colaboração de quaisquer entidades públicas necessária ao apuramento da sua situação tributária ou de terceiros com quem mantenham relações económicas;
e) Requisitar documentos dos notários, conservadores e outras entidades oficiais;
f) Utilizar as suas instalações quando a utilização for necessária ao exercício da acção inspectiva.
g) Aceder aos dados constantes do Registo Central do Beneficiário Efetivo. (Redação da Lei n.º 24-D/2022 - 30/12)
2 - O acesso à informação protegida pelo segredo profissional ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado depende de autorização judicial, nos termos da legislação aplicável. (Redação da Lei n.º 37/2010 - 02/09)
3 - Sem prejuízo do número anterior, o acesso à informação protegida pelo sigilo bancário e pelo sigilo previsto no Regime Jurídico do Contrato de Seguro faz-se nos termos previstos nos artigos 63.º-A, 63.º-B e 63.º-C. (Redação da Lei n.º 82-B/2014, de 31/12)
4 - O procedimento da inspeção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objetivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se o procedimento visar apenas a consulta, recolha de documentos ou elementos ou a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas. (Redação da Lei n.º 114/2017, de 29/12)” (sublinhado nosso)
-
O n.º 4 deste dispositivo legal consagra o princípio da irrepetibilidade do procedimento de inspeção, isto é, estabelece a proibição da existência de dois procedimentos inspetivos, sucessivos, externos de fiscalização, referentes ao mesmo sujeito passivo e incidentes sobre o mesmo imposto e período de tributação, excecionando dessa proibição as situações em que o procedimento inspetivo visar apenas a consulta ou recolha de documentos ou elementos.
-
Assim, nos casos em que um dos procedimentos inspetivos esteja limitado à consulta ou recolha de documentos ou elementos, a Autoridade Tributária não fica impedida de realizar um segundo procedimento de inspeção externo, do qual poderão resultar atos de liquidação desfavoráveis ao contribuinte.
-
Foi exatamente isto que sucedeu no presente caso em que, efetivamente, ocorreu uma ação de inspeção externa da DSIFAE – que se iniciou com o Despacho assinado em 27.10.2020 -, limitada à mera consulta e análise da situação tributária da Requerente, nomeadamente no que diz respeito ao direito à dedução do IVA suportado com a construção do Hotel rural da Herdade ... . Deste procedimento não resultou a elaboração de relatório de inspeção tributária, nem a emissão de atos tributários.
-
A informação recolhida foi remetida à Direção de Finanças de Lisboa que, posteriormente, a remeteu aos Serviços de Inspeção Tributária, dando origem à ação inspetiva, de âmbito univalente, determinada pela Ordem de Serviço n.º OI2022..., com despacho de 13.09.2022, que visava a análise da situação tributária da Requerente, em sede de IRC e de IVA, no exercício de 2019, a qual originou os atos tributários de IVA controvertidos.
-
Em face do exposto, entende este Tribunal Arbitral que não se verificou a ilegalidade respeitante à violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento de inspeção, à semelhança do decidido na decisão arbitral proferida no processo n.º 225/2023-T, pelo que improcede o primeiro vício invocado pela Requerente.
-
Do Direito à dedução do IVA, no montante de € 178.889,84
-
Adicionalmente, a Requerente invoca a ilegalidade das liquidações adicionais de IVA por erro nos pressupostos de facto e de direito, entendendo que lhe assiste o direto à dedução do IVA suportado com as obras realizadas no Hotel rural da Herdade ... .
-
Para fundamentar a sua posição, a Requerente alega, em síntese, o seguinte:
- O direito à dedução existe ainda quando os encargos tenham sido suportados com intenção confirmada, por via de dados objetivos, de prosseguir uma atividade económica, não obstante não se ter concretizado o início efetivo de transmissão de bens ou prestações de serviços que venham a constituir o objeto social do sujeito passivo, ou mesmo, quando posteriormente decida não passar à fase operacional e liquide a sociedade comercial;
- Em maio de 2019, a Câmara Municipal de ... emitiu o alvará de utilização do imóvel em causa como Hotel;
- Em 24.05.2021, o imóvel foi registado na plataforma de dados abertos georreferenciados do Turismo de Portugal, como Hotel Rural de 5 estrelas;
- As observações da DSIFAE não constituem fundamento para a negação do direito à dedução, em particular, quando invoca a “intenção do sujeito passivo a priori” e o atraso na abertura do Hotel;
- Não só, em 2019, o Hotel não estava em condições de ser aberto – já que as obras de conclusão se prolongaram por 2019 e 2020, em particular o SPA e o heliporto - como o início da pandemia em 2020 fez com que se reequacionasse a data de abertura como aliás, aconteceu com tantos outros empreendimentos turísticos;
- Nos anos de 2019 e 2020 foi suportado mais de 10% do preço de custo do Hotel, pelo que não pode a Autoridade Tributária vir negar o direito à dedução do IVA com fundamento no alegado atraso no início da exploração hoteleira;
- Não corresponde à verdade que tenha havido afetação a uso próprio das instalações em causa, nomeadamente, para residência de qualquer acionista da empresa proprietária e, ainda que tivesse havido, tal não afetaria o direito à dedução, conforme decorre da jurisprudência citada pela Requerente;
- Ainda que tal tivesse acontecido, no limite tal situação determinaria a regularização das deduções relativas a imóveis não utilizados em fins empresariais, nos termos previstos no artigo 26.º do Código do IVA.
-
A Requerida sustenta a improcedência deste vício com base nos seguintes argumentos:
- No ano de 2019, a Requerente deduziu integralmente o IVA das faturas relativas a gastos com imóveis, através das contas de IVA de Imobilizado, tendo registado o restante imposto suportado, nas contas de IVA dedutível de existências e outros bens ou serviços;
- A dedução integral do imposto verificou-se em relação a gastos suportados com um Hotel Rural na Herdade ... e na Herdade ...;
- Apesar de o valor da ação indicado pela Requerente ser de € 234.882,29, a Requerente, no âmbito do presente processo arbitral, contesta apenas as correções referentes ao Hotel rural da Herdade ..., no montante de € 178.889,84, sendo de manter os restantes atos tributários não contestados pela Requerente;
- Conforme foi verificado pela DSIFAE, o Hotel apresentava evidentes sinais de utilização para fins privados, não tendo a Requerente logrado demonstrar o contrário, conforme se lhe impunha ao abrigo do n.º 1 do artigo 74.º da LGT;
- A Requerente não apresentou qualquer documento ou elemento concreto que permita evidenciar que no referido Hotel esteja a ser ou pretenda vir a ser exercida uma atividade económica, nomeadamente não fez prova da data efetiva da abertura do Hotel, nem de qualquer reserva efetuada por entidade independente, ou que a sinalética em falta entretanto tenha sido colocada;
- Quanto ao registo junto do Turismo de Portugal e respetiva classificação que lhe foi atribuída não se pode inferir daí, em mais, que se encontra a ser exercida uma atividade tributada em sede de IVA;
- Consultado o site do “Hotel B...” verifica-se que a informação que aí consta é mínima, omitindo informações que se afiguram essenciais ao desenvolvimento de uma atividade turística;
- A existência do Hotel e respetiva classificação não foram postos em causa pelos serviços de inspeção tributária, o que se verificou foi que o mesmo estaria a ser utilizado para fins alheios à atividade tributada, não se encontrando indícios de estar a ser ou de haver intenção de vir a ser exercida uma atividade tributada, tendo em conta os acessos, a inexistência de sinalética e de informação promocional;
- Sem prejuízo do exposto, sempre se teria de se questionar as deduções efetuadas cujas faturas não continham os elementos essenciais ao controlo do imposto, na medida em que não identificam o tipo de serviço e/ou local onde foi prestado.
-
Cabe ao Tribunal Arbitral apreciar se a Requerente tem direito à dedução do IVA suportado, no exercício de 2019, com as obras realizadas no empreendimento designado por Hotel Rural da Herdade..., o qual – à data da inspeção – ainda não tinha entrado em funcionamento, supondo-se que tal veio a suceder em 2021, data em que foram emitidas as primeiras faturas de reservas no Hotel.
-
O IVA é um imposto que incide sobre todas as fases do processo produtivo, através do chamado método subtrativo indireto. “O método subtractivo indirecto mais não é do que a técnica da liquidação e dedução do imposto, em cada uma das fases do circuito económico, funcionando da forma descrita quando as transacções se processam entre sujeitos passivos do imposto, dado os consumidores finais (particulares) não terem direito à dedução do imposto suportado. (cfr. Clotilde Celorico Palma in Estudos de Imposto Sobre o Valor Acrescentado, Almedina, página 140).
-
Nas palavras de J. L. Saldanha Sanches e João Taborda da Gama[1]: “A neutralidade fiscal do imposto foi conseguida por meio da atribuição às empresas (…) de um crédito fiscal em relação ao IVA que elas próprias vão suportando, i.e, um crédito fiscal em relação ao relativo aos bens e serviços que adquirem e que estão onerados com IVA.”
-
No mesmo sentido, Rui Manuel Pereira da Costa Bastos[2]: “O mecanismo do direito à dedução utilizado pela técnica do IVA, que se pretende harmonizado, permite ao sujeito passivo expurgar do seu encargo o IVA suportado a montante, não o refletindo assim como custo operacional da sua atividade, retirando o efeito cumulativo e a tributação em cascata que caracterizavam os impostos a que o IVA sucedeu, potenciando a neutralidade económica do imposto (…)”.
-
Conforme vem sendo, unanimemente, defendido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”): “O regime das deduções visa libertar inteiramente o empresário do ónus do IVA, devido ou pago, no âmbito das suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas atividades, na condição de, em princípio, as referidas atividades estarem elas próprias sujeitas a IVA” (cfr. Acórdão TJUE C-137/02 e Acórdão do TCA Sul 10/04.9BEBJA de 09.07.2020).
-
E no processo C-438/09 defendeu o TJUE que “o direito à dedução previsto no artigo 17.º n.º 2 da Sexta Diretiva faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado.
-
Do exposto resulta que o direito à dedução do IVA, suportado pelos sujeitos passivos de imposto no âmbito da sua atividade económica, constitui um pilar estruturante do próprio funcionamento deste imposto o qual, apenas no caso de não se verificarem determinadas condições – objetivas e subjetivas - das quais depende o direito à dedução, poderá ser restringido.
-
Isto mesmo resulta das regras previstas nos artigos 168.º a 172.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006 (“Diretiva IVA”), que assumem como princípio orientador do funcionamento deste imposto, o direito de o sujeito passivo deduzir o imposto que suportou na aquisição de bens ou serviços (inputs), desde que esses bens ou serviços venham a ser utilizados no âmbito da atividade tributada do sujeito passivo.
-
Bem como das correspondentes normas domésticas dos artigos 19.º e 20.º do Código do IVA: “Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes: a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas (…)”.
-
Neste contexto, assume particular importância determinar o que se entende por atividade tributada do sujeito passivo e se existe alguma restrição no direito à dedução quanto ao IVA incorrido pelo sujeito passivo com a prossecução de atividades consideradas preparatórias ou instrumentais à atividade tributada que o sujeito passivo se propõe desenvolver.
-
O TJUE já se pronunciou várias vezes sobre as situações em que as entregas de bens e/ou prestação de serviços, que se reconhecem como “atos preparatórios,” são utilizadas para os fins das operações tributáveis, dando origem a um direito à dedução.
-
Neste sentido, “sempre que uma pessoa tenha a intenção, confirmada por elementos objetivos, de iniciar uma atividade económica e, para esse fim, adquirir fornecimentos iniciais que foram tributados, deve ser considerada um sujeito passivo atuando nessa qualidade, com direito a deduzir imediatamente o IVA pago sobre os fornecimentos adquiridos para os fins das suas projetadas operações tributáveis, sem ter de esperar pelo início da exploração efetiva da empresa e mesmo que essa exploração não se concretize[3]”.
-
Efetivamente, por respeito ao princípio da neutralidade, tem entendido o TJUE que o direito à dedução não pode, em princípio, ser limitado, exercendo-se, por isso, em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efetuadas a montante (cfr., entre outros, Acórdão Comissão/França, processo 50/87, de 21 de setembro de 1988).
-
A jurisprudência nacional tem acolhido este entendimento, nomeadamente, no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no âmbito do processo 372/10.9BELLE[4].
-
No domínio da jurisprudência arbitral também tem sido reiterada a mesma posição, destacando-se, pela sua relevância, a decisão proferida no processo n.º 404/2018-T e a decisão arbitral proferida no processo n.º 83/2020-T.
-
Na primeira decisão arbitral mencionada, reconhece-se que «(…) o conceito de bens e serviços utilizados para os fins das operações tributáveis deverá abranger todas as operações que condicionam o exercício da actividade do sujeito passivo, tais como os actos preparatórios, o marketing, as acções promocionais, etc., que se reflectem nos custos e permitem que a empresa se mantenha em posição concorrencial no mercado. Neste contexto, no Caso Intiem o TJUE precisou que o mecanismo da dedução do IVA regulado pela Sexta Diretiva “deve ser aplicado de tal forma que o seu âmbito de aplicação corresponda, na medida do possível, ao âmbito das actividades profissionais do sujeito passivo”.
-
Veja-se ainda, nomeadamente, o Caso Lennartz, em conformidade com o qual se conclui que a utilização imediata dos bens para os fins das operações tributáveis não é um requisito para a aplicação das regras do direito à dedução e o Caso Rompelman, nos termos do qual se determina que o direito à dedução deve ser concedido relativamente a despesas de investimento realizadas antes de se saber se iriam ser exercidas operações tributáveis (no caso concreto tratava-se de um estudo sobre a rentabilidade).
-
Com efeito, tal como iremos verificar infra, o TJUE não exige que a actividade tenha já começado para se poder deduzir o IVA, podendo ser deduzido relativamente a actividades preparatórias. Por outro lado, de acordo com o entendimento do TJUE, posição que já foi, aliás, subscrita pela Administração Tributária, o direito à dedução, uma vez adquirido, subsiste mesmo que a actividade económica projectada não dê origem a operações tributáveis ou o sujeito passivo, por motivos alheios à sua vontade, não tenha podido utilizar os bens ou serviços que deram origem à dedução no âmbito de operações tributáveis.
-
Acresce que, segundo o Acórdão de 8 de Março de 1988, Intiem, o mecanismo da dedução do IVA regulado pela Sexta Directiva “deve ser aplicado de tal forma que o seu âmbito de aplicação corresponda, na medida do possível, ao âmbito das actividades profissionais do sujeito passivo”.
-
É ainda jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia que, sendo o direito à dedução um elemento fundamental do regime de IVA, só é possível limitar este direito nos casos expressamente previstos pela Directiva IVA e, ainda assim, com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade, não se podendo esvaziar o sistema comum do IVA do seu conteúdo.» (negrito nosso).
-
Concluindo-se, no mesmo aresto, que “(…) resulta claro que o direito à dedução do IVA é um direito fundamental que não pode ser limitado senão nos casos expressamente permitidos pelas normas de Direito da União Europeia ou pelos princípios gerais de direito aceites neste domínio, como o princípio do abuso de direito (tal como o TJUE tem vindo a salientar).
-
Sendo acto claro que o direito à dedução do IVA deve ser interpretado de forma lata e concedido desde logo, ainda que a actividade projectada não tenha sido iniciada pelo sujeito passivo, relativamente aos designados actos preparatórios, conclui-se, com o TJUE, que as Administrações Tributárias dos Estados membros deverão agir em conformidade com tal interpretação (princípio da conformidade do direito nacional com o direito europeu)” (negrito e sublinhado nosso).
-
No mesmo sentido, a também mencionada decisão arbitral proferida no processo n.º 83/2020-T, confirma que “(…) as atividades preparatórias desenvolvidas antes do início da realização habitual das operações tributáveis são também elas atividades económicas, sob exigência do princípio da neutralidade, tendo por limite a boa fé do sujeito passivo, podendo ser, desde logo, exercido o direito à dedução, independentemente de não existir nessa fase qualquer faturação.
-
Na jurisprudência do Tribunal de Justiça, o sistema comum do IVA garante a perfeita neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas atividades, na condição de as referidas atividades estarem, elas próprias, sujeitas ao IVA.
-
O princípio da neutralidade impõe que as despesas de investimento efetuadas sejam consideradas atividades económicas, e seria contrário a esse princípio que as referidas atividades só tivessem início no momento em que os resultados são efetivamente explorados, quer dizer, no momento em que surge o rendimento tributável. Qualquer outra interpretação oneraria o operador económico com a despesa do IVA no âmbito da sua atividade económica sem lhe dar a possibilidade de o deduzir, e faria uma distinção arbitrária entre as despesas de investimento efetuadas antes da exploração efetiva de uma empresa e as efetuadas no decurso da referida exploração.
-
Permite-se, desta forma, que os sujeitos passivos agindo como tal deduzam o IVA suportado em relação às aquisições de bens e serviços prestados para efeitos de trabalhos preparatórios e de investimento destinados a serem utilizados no âmbito de operações tributadas. E este direito à dedução subsiste mesmo que, por razões alheias à sua vontade, o sujeito passivo jamais tenha feito uso de tais bens e serviços para realizar operações tributadas” (negrito e sublinhado nosso).
-
Destaque-se que na decisão proferida no processo n.º 225/2023-T, com interesse para o presente litígio, se conclui que “(…) resulta da jurisprudência do TJUE que a dedução do IVA suportado com actividades preparatórias não é deferido para o momento em que se inicia o desenvolvimento da actividade económica e a obtenção de rendimentos tributáveis, bastando para o efeito que o sujeito passivo demonstre uma intenção, confirmada por elementos objectivos, de iniciar de modo independente uma actividade económica que dê origem a operações tributáveis.”
-
Transpondo o enquadramento legal e jurisprudencial mencionado para o presente caso, concluímos que é possível extrair da matéria de facto dada como provada uma série de elementos de natureza objetiva que permitem concluir pela intenção da Requerente em exercer uma atividade tributável, bem como, pela relação entre os atos preparatórios e a atividade tributável a ser desenvolvida.
Senão vejamos,
-
No exercício de 2019, a Requerente encontrava-se a concluir a construção de um Hotel rural sito nas Herdade ... em imóvel adquirido, pela Requerente, em 2011 pelo valor de € 2.050.000,00.
-
Em maio de 2019, a Câmara Municipal de ... emitiu o alvará de autorização de utilização com o n.º .../2019, do qual foi dado conhecimento ao serviço de finanças competente em 18.06.2019. Nessa sequência, a Requerente procedeu às diligências necessárias para assegurar que o Hotel estava em condições (legais) de entrar em funcionamento, não tendo tal sucedido antes do ano de 2021 – data em que com base na informação careada para o processo, a Requerente emitiu as primeiras faturas de prestações de serviços hoteleiros – em virtude dos fortes condicionalismos provocados pela pandemia COVID-19, verificados não só (mas sobretudo) no sector hoteleiro que foi particularmente fustigado.
-
Aliás, a construção do Hotel apenas ficou concluída em 2020, já que, nos anos de 2019 e 2020, a Requerente ainda suportou 10% do custo de construção do Hotel.
-
Resulta igualmente provado que, em 5 de maio de 2021, o Hotel foi licenciado para Hotel rural de 5 estrelas e registado na Plataforma de Dados Abertos Georreferenciados do Turismo de Portugal com o n.º ... .
-
Apesar de, como refere a Autoridade Tributária e Aduaneira, a Requerente não ter apresentado qualquer documento que permitisse evidenciar que o Hotel estava em funcionamento, nem tão pouco ter feito prova da data de abertura do mesmo em virtude de, à data da inspeção tributária, tal não ter ainda sucedido, não se pode concluir, de forma taxativa – ignorando o contexto de saúde pública que se vivia à data –, que a Requerente não pretendia exercer uma atividade tributável no Hotel.
-
Efetivamente, o facto de (i) não haver sinalética que publicitasse o Hotel, (ii) existirem bens de natureza pessoal, tal como carros, no espaço onde o Hotel viria funcionar, (ii) existirem funcionários, nomeadamente de limpeza no espaço em questão, não obsta à possibilidade de o espaço ser utilizado para prosseguir a atividade tributável.
-
Neste ponto, seguimos a decisão arbitral proferida no âmbito do processo 225/2023-T, no qual, recorde-se, o Tribunal Arbitral foi chamado a pronunciar-se exatamente sobre a mesma questão, i.e., quanto ao direito de a Requerente deduzir o IVA suportado com as obras realizadas no Hotel rural, no ano de 2018, a qual concluiu “(…) pela existência de factos objetivos que demonstram uma genuína intenção da Requerente na prossecução de uma atividade económica que, de resto, chegou de facto a ser exercida.” (negrito nosso).
-
Em face de todo o exposto, entendemos que as obras realizadas no Hotel rural devem ser consideradas como atos preparatórios à prossecução de uma atividade económica pela Requerente e, como tal, reconhecido o direito à dedução do IVA suportada com as mesmas, nos termos do disposto nos artigos 19.º e 20.º do Código do IVA.
-
Concluindo-se, assim, pela procedência deste vício invocado pela Requerente quanto à correção ao imobilizado, no montante de € 178.889,84, o que determina a anulação das liquidações adicionais de IVA na parte respetiva, com as demais consequências legais.
V- DA DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
-
julgar parcialmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IVA de 2019 contestados pela Requerente, quanto à correção promovida pela Autoridade Tributária no montante de € 178.889,84, determinando-se a respetiva anulação, com as demais consequências legais; e
-
absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira do pedido na parte restante, em concreto, quanto às correções promovidas pela Autoridade Tributária no montante total de € 103.207,90.
VI- VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 234.882,29 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VII- CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 4.284,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento, pela Requerida na proporção de 63% e pela Requerente na proporção de 37%.
Notifique-se.
Lisboa, 21 de agosto de 2024
Os Árbitros,
O Árbitro Presidente
(Fernando Araújo)
O Árbitro Adjunto
(Francisco Nicolau Domingos)
O Árbitro Adjunto
(João Taborda da Gama)
[1] J. L. Saldanha Sanches e João Taborda da Gama, in Ciência e Técnica Fiscal n.º 417, página 108.
[2] Rui Manuel Pereira da Costa Bastos, in Cadernos IDEFF N.º 15, Almedina, página 58.
[3] Conclusões do Advogado Geral apresentadas no processo C-137/02 e Acórdãos do TJUE n.ºs C-268/83; C-110/94; C-37/95; C-110/98; C-396/98; C-400/98).
[4] No mesmo sentido veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul com o número de processo 5716/12.6BCLSB.
|
|