Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 677/2023-T
Data da decisão: 2024-08-26  IRC  
Valor do pedido: € 9.974.961,24
Tema: IRC – papel comercial – dedutibilidade de perdas por imparidade em títulos – princípio da especialização dos exercícios.
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SUMÁRIO:

  1. As perdas por imparidade referentes a papel comercial subscrito por uma instituição bancária seguem o regime das perdas por imparidade em títulos e não o regime das perdas por imparidade referentes a risco específico de crédito resultante do desenvolvimento da actividade normal do sujeito passivo.
  2. O princípio da justiça terá de prevalecer sobre o princípio da especialização dos exercícios previsto no artigo 18.º, n.º 1, do Código do IRC, nos casos em que da violação deste último não resulte prejuízo para o erário público e desde que a mesma não seja provocada por comportamentos voluntários e intencionais do sujeito passivo com o objectivo de obter vantagens fiscais.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Sérgio Pontes e Luís Ricardo Farinha Sequeira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

            1. A..., SA, NIPC ..., com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa referente ao processo n.º ...2022... e, bem assim, da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”)

n.º 2022..., de 10 de Janeiro de 2022, referente ao exercício fiscal de 2018.

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral feito em 26 de Setembro de 2023 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

 

            3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 15 de Novembro de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 6 de Dezembro de 2023.

 

            5. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou resposta e juntou o processo administrativo aos autos em 6 de Fevereiro de 2024.

 

            6. Em 16 de Maio de 2024, foi proferido despacho a dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a notificar as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas, o que estas fizeram em 22 de Maio de 2024.

 

            7. Em 24 de Maio de 2024, foi proferido despacho arbitral a prorrogar por dois meses o prazo de arbitragem nos termos e para os efeitos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT. No referido despacho, foi também notificado o Requerente ao abrigo dos princípios da descoberta da verdade material e da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo previsto no artigo 16.º, alínea c), do RJAT para, querendo, produzir prova complementar que permitisse aferir se as perdas por imparidade (alegadamente) acrescidas para determinação da matéria colectável do exercício de 2013 originaram um activo por impostos diferidos e, bem assim, em que medida o eventual activo por impostos diferidos foi transformado em créditos tributários e consequentemente objecto de reembolso. No referido despacho foi ainda a Requerida notificada para, querendo, exercer o contraditório face ao teor e documentos juntos pelo Requerente com as alegações, bem como quanto ao eventual requerimento e documentos apresentados pelo Requerente no seguimento do despacho aqui em questão.

 

            8. O Requerente apresentou requerimento de resposta ao despacho referido no ponto anterior em 3 de Junho de 2024 e a Requerida, após deferimento de pedido de prorrogação de prazo, em 27 de Junho de 2024.

 

            9. Em 4 de Julho de 2024, o Requerente exerceu contraditório face ao teor do requerimento da Requerida referido no ponto anterior, ao qual esta última por sua vez respondeu em requerimento apresentado em 25 de Julho de 2024.

 

            10. Em 5 de Agosto de 2024, foi proferido despacho arbitral a determinar a prorrogação do prazo de arbitragem por dois meses, nos termos e para os efeitos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, designando-se o dia 6 de Outubro de 2024 como data-limite para a prolação da decisão arbitral.

 

II. SANEAMENTO

 

11. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido, que foi tempestivamente apresentado, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades, nem existem outras excepções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

§1 – Factos provados

 

            12. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

  1. O B..., S.A. (“B...”) era uma instituição de crédito sujeita à supervisão do Banco de Portugal;
  2. O B... subscreveu papel comercial das sociedades C..., SGPS, S.A. (“C...”) e D..., SGPS, S.A. (“D...”), que foi contabilizado pelo custo de aquisição total de € 10.281.465,24 – cfr. PA junto pela Requerida com a resposta e doc. n.º 9 junto pelo Requerente com o PPA;
  3. Em 6 de Março de 2013, foi instaurado contra a sociedade C... um processo de insolvência que correu termos no Juízo de Comércio de Lisboa sob o número de processo .../13...TYLSB – cfr. PA junto pela Requerida com a resposta e doc. n.º 9 junto pelo Requerente com o PPA;
  4. Em 12 de Julho de 2013, foi instaurado contra a D... um processo de insolvência que correu termos no Juízo de Comércio de Lisboa sob o número de processo .../13...TYLSB – cfr. PA junto pela Requerida com a resposta e doc. n.º 9 junto pelo Requerente com o PPA;
  5. O B... inscreveu contabilisticamente perdas por imparidade pelo valor integral do custo de aquisição do papel comercial da C... e da D..., que acresceu posteriormente no Quadro 07, da Declaração de Rendimentos Modelo 22 referente ao período de tributação de 2013 – cfr. doc. n.º 7 junto pelo Requerente com o PPA e docs. n.º 1 e 2 juntos pelo Requerente com as alegações;
  6. No período de tributação de 2013 o B... apurou um prejuízo fiscal de € 835.051.778,36 – facto invocado pela AT no artigo 37.º do requerimento de 25.07.2024 e não contestado pelo Requerente que apenas invocou, sem quantificar, o apuramento de prejuízos fiscais;
  7. O Requerente é uma instituição de crédito abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, que tem por objecto o exercício da actividade bancária – cfr. PA junto pela Requerida com a resposta e doc. n.º 9 junto pelo Requerente com o PPA;
  8. O Requerente foi constituído em 3 de Agosto de 2014, por deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, ao abrigo do n.º 5 do artigo 145.º-G do RGICSF, na sequência da aplicação pelo Banco de Portugal de uma medida de resolução ao B..., nos termos dos n.ºs 1 e 3, alínea c), do artigo 145.º-C do RGICSF – cfr. PA junto pela Requerida com a resposta e doc. n.º 9 junto pelo Requerente com o PPA;
  9. Na sequência da aplicação da medida de resolução, foram transferidos para a esfera do Requerente os prejuízos fiscais declarados e ainda não utilizados pelo B..., a deduzir nos termos e condições estabelecidos no artigo 52.º do Código do IRC, na redacção vigente à data, até ao fim do período referido no n.º 1 do mesmo artigo, contado do período de tributação a que os mesmos respeitam – cfr. doc. n.º 1 junto pelo Requerente com o requerimento de 4.7.2024;
  10. Na sequência da aplicação da medida de resolução, foram transferidas do B... para a esfera do Requerente as perdas por imparidade sobre papel comercial emitido pela C... e D...– cfr. PA junto pela Requerida com a resposta, doc. n.º 9 junto pelo Requerente com o PPA e doc. n.º 3 junto pelo Requerente com as alegações;
  11. Em 22 de Dezembro de 2018, no âmbito do Projecto ..., o Requerente procedeu à celebração de um acordo de venda irrevogável do papel comercial referido na alínea anterior, pelo valor total de € 24.039,00 – cfr. PA junto pela Requerida com a resposta e docs. n.ºs 8 e 9 juntos pelo Requerente com o PPA;
  12. Em 28 de Junho de 2019, o Requerente entregou a Declaração de Rendimentos Modelo 22 referente ao período de tributação de 2018, à qual foi atribuído o n.º ...– cfr. doc. n.º 4 junto pelo Requerente com o PPA;
  13. Em 16 de Março de 2021, o Requerente entregou a Declaração de Rendimentos Modelo 22 de substituição, à qual foi atribuído o n.º...– cfr. doc. n.º 5 junto pelo Requerente com o PPA;
  14. No campo 762, do Quadro 07, da Declaração Modelo 22 de substituição de 2018, o Requerente procedeu à dedução fiscal a título de reversão de perdas por imparidade tributadas, do montante de € 748.211.935,48, que incluiu o valor de € 9.974.961,24 referente às perdas por imparidade sobre papel comercial da C... e da D...– cfr. doc. n.º 5 junto pelo Requerente com o PPA;
  15. No período de tributação de 2018 o Requerente apurou um prejuízo fiscal de € 586.306.078,14 – cfr. PA junto pela Requerida com a resposta e docs. n.ºs 5, 6 e 9 juntos pelo Requerente com o PPA;
  16. O activo por impostos diferidos reconhecido no exercício de 2013 pelo B... foi mantido até ao exercício de 2018 pelo Requerente – facto invocado pelo Requerente no artigo 2.º do requerimento de 3.6.2024 e não contestado pela Requerida;
  17. O Requerente não reconheceu activo por impostos diferidos sobre o prejuízo fiscal apurado no exercício de 2018, tendo pelo contrário desreconhecido activos por impostos diferidos de prejuízos fiscais gerados em períodos anteriores – cfr. doc. n.º 1 junto pelo Requerente com o requerimento de 3.6.2024;
  18. No exercício de 2019, o Requerente desreconheceu o activo por impostos diferidos sobre prejuízos fiscais de anos anteriores que haviam ficado reconhecidos a 31 de Dezembro de 2018 – cfr. doc. n.º 2 junto pelo Requerente com o requerimento de 3.6.2024;
  19. Na sequência da emissão da Ordem de Serviço n.º OI2019..., de 20 de Setembro de 2019, o Requerente foi objecto de um procedimento de inspecção externo, referente ao período de tributação de 2018, do qual resultaram diversas correcções à matéria colectável em sede de IRC, no montante total de € 149.504.256,11 – cfr. PA junto pela Requerida com a resposta e doc. n.º 9 junto pelo Requerente com o PPA;
  20. Em 13 de Janeiro de 2022, o Requerente foi notificado do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2022..., de 10 de Janeiro de 2022, referente ao exercício fiscal de 2018 – cfr. doc. n.º 2 junto pelo Requerente com o PPA;
  21. O Requerente apresentou reclamação graciosa contra o acto de liquidação referido na alínea anterior, que tramitou sob o número de processo ...2022... – cfr. doc. n.º 11 junto pelo Requerente com o PPA;
  22. Para além das correcções contestadas no presente processo, o Requerente contestou naquela sede outras correcções feitas pela AT no âmbito do procedimento inspectivo referido na alínea s) – cfr. doc. n.º 11 junto pelo Requerente com o PPA;
  23. Por despacho proferido em 27 de Junho de 2023, foi deferida parcialmente a reclamação graciosa apresentada pelo Requerente mantendo-se, porém, a correcção ao ajustamento promovido pelo Requerente no Campo 762 do Quadro 07 da Declaração de Rendimentos Modelo 22, a título de utilização de perdas por imparidade sobre papel comercial emitido pelas sociedades C... e D...– cfr. doc. n.º 1 junto pelo Requerente com o PPA;
  24. Em 26 de Setembro de 2023, o Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que originou os presentes autos.

 

§2 – Factos não provados

 

            13. Com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que não se tenham considerado provados.

 

§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

14. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

15. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

            16. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pelo Requerente e do PA junto aos autos pela Requerida, que foram apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

§1 – Objecto do processo e questões decidendas

 

17. Discute-se no presente processo a legalidade do indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022..., apresentada contra o acto de liquidação adicional de IRC n.º 2022..., que concretizou correcções feitas pelos serviços de inspecção tributária (“SIT”) relativamente à dedução pelo Requerente no período de tributação de 2018 de perdas por imparidade sobre papel comercial emitido pelas sociedades C... e D... .

 

18. Em concreto, cumpre determinar se as perdas por imparidade seguem o regime das imparidades em créditos ou em títulos, apurando o momento em que deveria ter ocorrido o respectivo reconhecimento contabilístico e fiscal. Em função da resposta à questão anterior, haverá eventualmente que sindicar a prevalência do princípio da justiça sobre o princípio da especialização de exercícios. Porém, antes de se analisar cada uma daquelas questões, haverá que fixar a posição das partes.

 

§2 – Posição das partes

 

19. Na fundamentação do pedido de pronúncia arbitral invocou o Requerente, em síntese, os seguintes argumentos:

  • “quer o artigo 28.º-C, n.º 1, do código do IRC, quer o artigo 37.º, n.º 1, do Código do IRC (redacção do actual artigo 28.º-C, n.º 1, por referência ao exercício de 2013), remetem a aceitabilidade das imparidades sobre risco específico de crédito para os limites mínimos dos avisos e instruções emanados pelo Banco de Portugal”;
  • “quer o artigo 28.º-C, n.º 2, do código do IRC, quer o artigo 37.º , n.º 2, do Código do IRC (redacção do actual artigo 28.º-C, n.º 2, por referência ao exercício de 2013), remetem para a relação directa entre risco específico de crédito e créditos resultantes da actividade normal do sujeito passivo”;
  • “resulta do Decreto-Lei n.º 69/2004, de 25 de Março, que estabelece o regime jurídico do papel comercial, bem como das regras aplicáveis em termos contabilísticos e regulamentares, o papel comercial, nomeadamente por se tratar de crédito titulado, tem características diferentes de um qualquer mútuo “normal” (não titulado)”;
  • “não se tratando de um crédito que se enquadre no conceito de risco específico de crédito, não poderão ser aplicadas as regras do artigo 28.º-B do Código do IRC” que inclusive “não se aplica às empresas do sector bancário, por existência de regras específicas para este sector, previstas no artigo 28.º-C do Código do IRC”;
  • “historicamente, e até à entrada em vigor do Intemational Financial Reporting Standard 9 (IF RS 9) a 1 de Janeiro de 2018, a imparidade em títulos (…) tinha por base, na maioria das vezes, o risco de crédito do grupo económico a que pertencia o emitente, e não uma análise individual da entidade em incumprimento” pelo que “o Requerente optava por não aceitar estas perdas por imparidade, pois entendia não ter forma de comprovar a exigência da lei quanto à demonstração da existência de «prova objectiva de imparidade», aguardando assim pela materialização definitiva da perda”;
  • “ao contrário do que veio a suceder com a republicação do Código do IRC em 2014, e consequente inclusão do artigo 28.º-C, no exercício de 2013 não havia [no artigo 37.º, n.º 3 e n.º 4, do Código do IRC] qualquer referência à questão de se verificar «prova objectiva de imparidade»”;
  • “O mais próximo que se parece estar da determinação de um critério objectivo, ainda que não resulte claro da Lei, seria a aceitação fiscal da perda até ao limite da diferença entre o custo de aquisição ou subscrição do título e o seu valor de mercado à data. Porém, no caso do papel comercial da C... e da D... nem seria possível efectuar tal exercício, uma vez que os referidos títulos não apresentavam um valor de mercado estabelecido”;
  • “o Requerente entendeu que a posição mais prudente (…) seria a não consideração fiscal da perda por imparidade no exercício da sua constituição, mas sim aguardar pela sua efectiva materialização, momento em que, inevitavelmente, a perda ter-se-ia que tornar fiscalmente dedutível, sob pena de violação do artigo 23.º do Código do IRC e do princípio constitucional da tributação das empresas pelo lucro real” o que veio a ocorrer com a venda definitiva do papel comercial em 2018 no âmbito do Projecto ...;
  • “De resto, atendendo à regra da dependência entre a contabilidade e o IRC, estabelecida no artigo 17.º, n.º 1, do Código do IRC, é legítimo concluir que um efectivo custo económico e contabilístico deverá ser também um custo fiscal, naturalmente, desde que se mostre indispensável nos termos do artigo 23.º”;
  • Ora, “a perda decorrente da operação em discussão (venda do papel comercial) se enquadra neste critério [do artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC], uma vez que está indiscutivelmente ligado à actividade do Requerente”;
  • Acresce que “inexiste no Código do IRC qualquer norma tributária específica que impeça ou restrinja o efeito fiscal dos gastos resultantes da venda de uma posição creditícia, como é caso do papel comercial que aqui se discute”;
  • “Pelo contrário, o artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, apenas vem atestar a tese aqui apresentada pelo Requerente”, já que “o papel comercial da C... e da D... representavam instrumentos financeiros não reconhecidos ao justo valor”;
  • Mesmo que “assistisse razão à AT, o que apenas se admite como mera hipótese académica, é total convicção do Requerente que a dedução fiscal da perda no exercício de 2018 não poderia ser negada, sob pena de ser violado o princípio da justiça”;
  • “Por imperativo constitucional, tem a AT de orientar a sua actividade pela prossecução do interesse público, conforme dispõe o artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que se reconduz, em sede de IRC, a que os contribuintes paguem o que devem em função do seu rendimento empresarial real (cfr. artigo 104.º, n.º 2, da CRP), dando forma ao princípio constitucional da tributação pelo lucro real”;
  • “enquanto corolário do princípio da tributação pelo lucro real - que está, também, na base do princípio da dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade - é acolhido no artigo 18.º, n.º 1, do Código do IRC, o princípio da especialização dos exercícios, sob a epígrafe “Periodização do lucro tributável”, do qual resulta uma segmentação da vida das empresas em períodos de certa forma independentes entre si, correspondentes ao ano civil, tendo em vista a tributação da riqueza gerada em cada um desses exercícios”;
  • “A rigidez do princípio retira-se do estatuído no artigo 18.º, n.º 2, do Código do IRC, onde o legislador prevê que as componentes do lucro tributável, positivas ou negativas, consideradas como respeitando a períodos anteriores, só serão imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas do período em que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas”;
  • “é hoje jurisprudencialmente consolidado o entendimento de que a rigidez deste princípio tem de ser temperada, necessariamente, com o princípio da justiça - cfr. artigo 266.º, n.º 2, da CRP, e artigo 55.º da LGT - nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do acto tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado”;
  • “ao considerar que as imparidades em causa verificaram as condições de dedutibilidade no exercício de 2013 (…), a AT entende que só neste exercício poderiam as mesmas ter sido aceites fiscalmente, ao abrigo do princípio da especialização de exercícios”;
  • “se fosse de prevalecer o entendimento da AT, estaríamos perante uma impossibilidade prática de deduzir as perdas realizadas no papel comercial daquelas entidades, acabando na prática por conduzir ao não reconhecimento definitivo da perda, nem no ano fiscal de 2013 (ainda que, como sustenta a AT, se pudessem considerar aí verificados os requisitos fiscais para o efeito), nem no ano fiscal de 2018 (ano da realização da perda por via da venda do papel comercial), o que se reconduziria a uma violação do princípio da justiça”;
  • “independentemente de se concordar, ou não, com a mesma, a interpretação do Requerente tem que se considerar, no mínimo, plausível face à letra e ao espírito das regras aplicáveis em 2013 ao nível da dedutibilidade das imparidades, motivo pelo qual jamais se poderá invocar ter-se tratado de um comportamento “voluntário e intencional” visando a obtenção de uma “vantagem fiscal”;
  • Para além disso, “na situação controvertida não exist[e] qualquer prejuízo para a AT, uma vez que, na prática, a dedução acabaria por não afectar o lucro tributável em qualquer dos exercícios em causa (i.e., 2013 e 2018)”;
  • “De resto, foi a própria AT a reconhecer, há muito, a necessidade de flexibilidade na aplicação do princípio da especialização dos exercícios, no Ofício-Circular n.º C-1/84, de 8 de Junho de 84”;
  • Assim, “conclui-se que no caso em apreço deve a aplicação do princípio da especialização de exercícios invocado pela AT e o seu resultado de não aceitação fiscal da dedução em 2018 ser afastado, por conflito com o princípio da justiça, em consonância com o entendimento que tem sido seguido nesta matéria pelos tribunais, em particular o STA, e uma vez que: (i) não resultou a situação de uma omissão voluntária e intencional; e (ii) não houve qualquer prejuízo para o erário público”;
  • “Em consequência, requer-se a esse douto Tribunal que condene a AT no reembolso do IRC pago indevidamente na parcela correspondente à correcção do montante de 9.974.961,24 Euros, nos termos do artigo 100.º da LGT e, bem assim, no pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, contabilizados desde a prolação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, tudo com as demais consequências legais.”.

 

            20. Na resposta a Requerida defendeu a improcedência do pronúncia arbitral, em suma, com base nos seguintes argumentos:

  • “Em 2013, as regras para constituição de perdas por imparidade resultavam do disposto no Aviso do Banco de Portugal n.º 3/95 e na Instrução n.º 7/2005 do Banco de Portugal”;
  • O n.º 2 da Instrução n.º 7/2005 do Banco de Portugal determinava o seguinte “No que respeita aos activos financeiros, e de acordo com as disposições relevantes da Norma Internacional de Contabilidade 39, existe imparidade ou são incorridas perdas por imparidade (…) num activo financeiro ou num grupo de activos financeiros se, e apenas se, existir prova objectiva de imparidade como resultado de um ou mais acontecimentos que ocorreram após o reconhecimento inicial do activo”, sendo exemplo disso a “Probabilidade significativa de o mutuário entrar em falência ou noutra reorganização financeira”;
  • “Também, no mesmo sentido, o disposto o §59 da IAS39 - Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração, na redacção em vigor àquela data”;
  • “Assim já em 2013, estariam reunidas as condições (constantes da instrução n.º 7/2005), para serem reconhecidas contabilisticamente as perdas por imparidade referentes ao papel comercial em apreço nos presentes autos”;
  • “Discordamos em parte com o entendimento dos SIT, quando entendem existir também a possibilidade de se aceitar a dedutibilidade fiscal, em 2013, das perdas por imparidade para risco específico de crédito constituídas relativamente ao Papel comercial”, já que o regime a aplicar era o das perdas por imparidade em títulos;
  • “Em 2013, fiscalmente, o código do IRC permite a dedução fiscal da constituição de perdas por imparidade de acordo com as regras impostas pelo Banco de Portugal, conforme se retira do disposto no n.º 2 do art.º 35.º do CIRC”;
  • “O papel comercial a tratar-se de “títulos emitidos por empresas representativos de dívida (…) diante da propositura de acções de insolvência, no ano de 2013, referentes às sociedades emitentes daqueles títulos (ou seja, as sociedades devedoras), a Requerente reunia prova objectiva de que aquele activo financeiro estaria em situação de imparidade”;
  • “Daqui resulta, que de acordo com o n.º 2 art.º 35.º e dos n.ºs 3 e 4 do art.º 37.º ambos do CIRC, na redacção em vigor à data de 2013 (correspondendo à redacção em 2018, n.º 2 do art.º 28.º-A e n.º 3 do art.º 28.º-C ambos do CIRC), a Requerente deveria ter considerado as perdas por imparidade constituídas para as menos-valias de títulos como sendo dedutíveis fiscalmente”;
  • “Este entendimento, é também partilhado pelos SIT, numa das suas abordagens” e a “própria Requerente, afirma ter reconhecido aquelas perdas por imparidade, por se tratarem de perdas por imparidade em títulos”;
  • “Todavia, a Requerente refere que, em 2013, não deduziu fiscalmente aquelas perdas por imparidade. Para o efeito, terá supostamente, acrescido ao lucro tributável tal montante. Mas não juntou aos autos qualquer prova do que afirma”;
  • “Esta não dedução resulta, exclusivamente, de uma opção do Requerente”;
  • “No caso em apreço, a Requerente vendeu aqueles títulos - o papel comercial – no âmbito do Projecto ..., operação que decorreu durante o período de tributação de 2018 (cfr. pág.74 do RIT). E é nessa data, de acordo com a IFRS9 que obriga o desconhecimento do respectivo activo financeiro (cfr. §3.2.3.b)).”;
  • “Assim, à data de relato (em 2018-12-31), posteriormente ao desconhecimento daquele activo financeiro, não cabe qualquer avaliação quanto à imparidade. Daqui resulta, a existir um ganho reconhecido em resultados (€9.974.961,24), de acordo com as regras contabilísticas em vigor em 2018 (a IFRS9), não poderá resultar de uma reversão da perda por imparidade constituída em 2013, mas sim o ganho que resulte da venda daqueles títulos”;
  • “Repare-se, no presente caso, de acordo com o disposto na IFRS9, ao estarmos diante de uma venda do papel comercial (activo financeiro) obriga o desreconhecimento daquele activo financeiro (cfr. §3.2.3.b) conjugado com o §3.2.4.a) e §3.2.6.a) da IFRS9) e deverá ser reconhecido o seu efeito em resultados (§5.7.2. da IFRS9)”;
  • “Em suma, a não se poder entender o ganho contabilístico de valor €9.974.961,24, como sendo resultante de uma reversão (porquanto à data de relato, o activo financeiro já não constava do património - do activo - da Requerente) nem como sendo resultante da “utilização de provisão” (procedimento contabilístico que já não é adoptado pela IFRS9) devemos entender que retracta o ganho resultante do desreconhecimento do activo financeiro (como previsto no §5.7.2 da IFRS9).”;
  • “De acordo com o n.º 2 do art.º 28.º-A do CIRC, o modelo fiscal em matéria perdas por imparidades em títulos, para entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal (como é o caso da Requerente), acompanha de perto o modelo que resulta das normas contabilísticas aplicáveis (neste caso, o disposto na IFRS9)”;
  • “Como é sabido a determinação do lucro tributável para efeitos de IRC segue o modelo de dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade (“organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade”) – artigo 17.º do CIRC”;
  • “Diante do enquadramento contabilístico e fiscal anteriormente explanado, não se entende a que título, a Requerente, deduz ao resultado tributável de 2018, o valor correspondente às Perdas por imparidade que constituiu em período de tributação anterior”;
  • “A única explicação plausível resulta do facto de a Requerente não ter, supostamente, deduzido fiscalmente ao lucro tributável, naquele período de tributação, aquela perda por imparidade (embora não conste dos autos prova dessa não dedução) que pretende agora, com um diferimento de 5 anos, vir deduzir ao lucro tributável de 2018”;
  • “por demais evidente, de que estamos perante uma violação do princípio da especialização dos exercícios, conforme dispõe o n.º 1 e 2 do art.º 18.º do CIRC”;
  • “Além do mais, importa aqui ter presente, o processo de criação do Requerente” que apesar de ter “sido constituído pela transferência de activos do B..., não deixou de adquirir a sua personalidade jurídica e tributária distinta”;
  • “em 2013, à data da suposta constituição das perdas por imparidade, a Requerente ainda não havia sido constituída”;
  • “Daqui decorre, pelo que nos é dado a conhecer, que o único impacto nos resultados contabilísticos e fiscais na esfera da Requerente, que o ativo financeiro em causa (o papel comercial) teve ao longo dos vários períodos de tributação (2013-2018), foi em 2018, quando reconheceu em ganhos contabilísticos, o resultado consequente do seu desreconhecimento (em razão da sua transmissão) e quando ao abrigo de um suposto procedimento contabilístico que já não existe – a utilização da provisão anteriormente tributada(que já ficou demonstrada, que a ter havido tributação não terá sido na sua esfera jurídica), deduziu, sem mais, ao lucro tributável o valor reconhecido devidamente como ganho daquele período”;
  • “Dar-se-ia sim, a violação do princípio da justiça, caso se atendesse à pretensão do Requerente, quando pretende ver anulado um ganho cuja tributação é devida por força da transmissão daquele activo financeiro, com o pretexto de ver corrigido os efeitos fiscais de uma provisão supostamente tributada (anteriormente) mas que não foi por si constituída, mas sim por outro sujeito passivo (B...) que lhe transferiu aquele activo financeiro somente em 2014, (sublinhado nosso)”;
  • “Acresce que, o Requerente vem agora (…) referir que tais perdas reconhecidas fiscalmente em 2018, resultavam do cálculo do apuramento de mais ou menos valias em resultado da transmissão do papel comercial”;
  • “ao apresentar esta nova argumentação, não só vem contrariar o por si declarado na Modelo 22 (quando declara ser uma dedução ao lucro tributável em resultado da utilização de provisões anteriormente tributadas – veja-se a pág. 73 do RIT) como também contraria a sua própria argumentação defendida ao longo do seu peticionado”;
  • “desta transmissão do papel comercial resultou (por via do seu desreconhecimento) um ganho contabilístico e não uma perda contabilística como pretende fazer crer o Requerente”;
  • “Acresce referir, que a aplicar-se o disposto no n.º 2 do art.º 46.º do CIRC, no cálculo do apuramento de mais ou menos valias, também são consideradas as perdas por imparidade reconhecidas pelo Requerente”;
  • “Em suma, a correcção em apreço, é devida, devendo ser mantida na ordem jurídica”.

 

            21. Em sede de alegações, para além de reforçar os argumentos já apresentados, veio o Requerente invocar o seguinte:

  • “conforme salienta a AT, em 2014, em resultado da deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, determinou-se a constituição e a transferência para o A..., S.A. (ora Requerente) de activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do B..., S.A. (doravante “B...”), entre os quais se encontrava o activo financeiro sub judice”;
  • “No entanto (…) acaba a AT por induzir o leitor em erro, fazendo crer que tal transmissão foi desprovida do acompanhamento das respectivas bases fiscais atinentes ao activo financeiro em análise”;
  • “decorre da literalidade da resposta ao Pedido de Informação Vinculativa (…) emitida pela AT aquando da resolução do B... (…) que as bases fiscais do papel comercial (…) pertencentes ao B... foram transferidas para a esfera do ora Requerente nos exactos termos em que estavam inscritas no B..., caracterizando-se, assim, como uma operação neutral”;
  • “Daqui resulta, que o impacto contabilístico e fiscal do reconhecimento desta perda por imparidade, bem como a sua respectiva tributação no exercício fiscal de 2013, na esfera do B..., influenciaram, efectivamente, os resultados contabilísticos e fiscais referentes àquele período de tributação respeitantes ao ora Requerente”;
  • “não restam quaisquer dúvidas de que, no exercício de 2018, o Requerente deverá efectuar a dedução da referida perda por imparidade, atendendo a que este será o último momento em que dispõe de tal faculdade (i.e., no momento da alienação)”;
  • A AT afirma que “desta transmissão do papel comercial resultou (por via do seu desreconhecimento) um ganho contabilístico e não uma perda contabilística como pretende fazer crer o Requerente”, contudo, convém “, relembrar que as fórmulas de cálculo das mais ou menos-valias contabilísticas e fiscais são distintas. De facto, enquanto as primeiras resultam da diferença entre o valor de alienação e o valor líquido do activo, as segundas, nos termos do n.º 2, do artigo 46.º , do Código do IRC, apuram‑se pela “diferença entre o valor de realização, líquido dos encargos que lhe sejam inerentes e o valor de aquisição, deduzido das depreciações e amortizações aceites fiscalmente, das perdas por imparidade e outras correcções de valor previstas nos artigos 28.º-A, 31.º-8 e ainda dos valores reconhecidos como gasto fiscal nos termos do artigo 45.º-A (...)” . Daqui resulta, então, uma diferença entre estes dois cálculos, a qual tem impacto no caso concreto”;
  • “A nível contabilístico, o papel comercial foi contabilizado inicialmente ao custo de aquisição de 10.281.465,24 Euros, tendo sido alvo, subsequentemente, do reconhecimento de uma perda por imparidade integral, perdendo, deste modo, a totalidade do seu valor contabilístico (i.e., registado no montante de 0,00 Euros). No entanto, estando em causa uma perda por imparidade potencial e ainda não realizada, a mesma não havia sido ainda deduzida pelo Requerente”;
  • “Posteriormente, no exercício fiscal de 2018, no âmbito do Projecto ..., ocorreu um facto jurídico de realização definitiva da perda naqueles títulos - a alineação desse activo - o que levou o Requerente a registar um ganho contabilístico no montante de 24.039,00 Euros, correspondente ao preço de alienação do papel comercial, o qual, apesar de inferior ao seu custo de aquisição/subscrição, revela o seu justo valor económico â data da transacção, sendo o preço que um terceiro independente se predispôs a pagar por aqueles activos”;
  • “Paralelamente, nesse mesmo exercício, para além de reflectir contabilisticamente tal operação, sob o enfoque fiscal, na decorrência da referida alienação do papel comercial, o Requerente deduziu fiscalmente as perdas daí resultantes”;
  • “Assim, atendendo a que, conforme vimos acima, o papel comercial não foi aceite fiscalmente no passado, ou seja, encontrava-se integralmente tributado a 31 de Dezembro de 2017, o Requerente não vê razões para que a AT negue a dedução do montante de 9.974.961,24 Euros no exercício de 2018 , uma vez que não só i) a dedução da perda efectiva resultante da menos-valia apurada na venda do papel comercial tem enquadramento legal nos artigos 46.º, n.º 1, e 23.º, n.º 1, ambos do Código do IRC, como ii) impedir tal dedução significaria impossibilitar, definitivamente , a recuperação fiscal de uma imparidade anteriormente tributada”;
  • “Em suma, apesar de a nível contabilístico estarmos perante uma mais-valia contabilística, no valor de 24.039,00 Euros, a qual não foi expurgada do lucro tributável referente ao exercício de 2018, por contrapartida , a nível fiscal o Requerente apurou uma menos-valia no montante de 9.974.961,24 Euros (integralmente relativas às perdas por imparidade não aceites no passado)”;
  • “Por fim, aduza-se(…) que a discordância da AT com a referida dedução decorre, simplesmente, do facto de a mesma considerar que os montantes de perda por imparidade não se encontravam tributados no passado. No entanto, atendendo à prova já carreada para o presente processo, da qual se atesta, indubitavelmente, a tributação de tais valores no exercício fiscal de 2013, entende a Requerente que qualquer obstáculo à dedução de tais montantes foi, absoluta e inevitavelmente, ultrapassado.”.

 

            22. Em resposta ao despacho proferido em 24 de Maio de 2024, veio o Requerente sublinhar o seguinte:

  • “o activo por imposto diferido reconhecido no exercício de 2013 foi mantido até ao exercício de 2018, na medida em que, em função da venda do papel comercial ocorrida nesse exercício, a Requerente procedeu à dedução fiscal das imparidades tributadas na sua Declaração Modelo 22 de 2018”;
  • “Em cumprimento do disposto na IAS 12, considerando a incerteza quanto à capacidade de a Requerente apurar resultados fiscais positivos capazes de absorver os prejuízos fiscais em reporte, a 31 de Dezembro de 2018, não foram reconhecidos activos por impostos diferido sobre o prejuízos fiscal gerado no exercício de 2018 (prejuízo fiscal esse para o qual concorreram as deduções fiscais provenientes da dedução das imparidades sobre o papel comercial das entidades C...- SGPS, S.A e D...- SGPS S.A), tendo até ocorrido o desreconhecimento de activos por impostos diferidos de prejuízos fiscal gerado em anos anteriores”;
  • “já no decorrer do exercício de 2019 (…) a Requerente veio a desreconhecer o activo por imposto diferido sobre prejuízos fiscais que ainda havia ficado reconhecido a 31 de Dezembro de 2018”;
  • “o activo por imposto diferido reconhecido em 2013 sobre as imparidades em papel comercial das sociedades C...-SGPS, S.A e D...- SGPS S.A. não foi nem poderia ser considerado elegível para efeitos da aplicação do” “Regime Especial aplicável aos Activos por Impostos Diferidos (“REAID”)” “e, consequentemente, passível de conversão em crédito tributário e reembolsado à Requerente”;
  • É que “para efeitos do REAID, apenas poderiam ser considerados os activos por impostos diferidos que resultassem directamente da imparidade sobre créditos (contratos de mútuo)” e “a imparidade sobre papel comercial trata-se de imparidade em títulos e não como imparidade em créditos”.

 

            23. Em resposta ao despacho proferido em 24 de Maio de 2024 e ao requerimento do Requerente referido no ponto anterior, veio a Requerida invocar o seguinte:

  • “De facto, e nos termos da já referida análise efectuada pela DSIRC, pelos elementos agora juntos, verificamos que o montante em causa terá sido acrescido (campo 721 do quadro 07 da declaração modelo 22 em 2014-05-30 – autoliquidação de IRC) ao resultado líquido para efeitos de apuramento do resultado Tributável do B... em 2013, tendo este apurado um prejuízo fiscal de € 835.051,778,36”;
  • “No entanto, voltamos a salientar que, este papel comercial, havia sido subscrito pelo B... em 2013 com referência a duas empresas (C...- SGPS, S.A e D... SGPS SA), que em 2013, estavam em processo de insolvência”;
  • “em cumprimento, tanto dos normativos contabilísticos como fiscais em vigor à data, estas perdas por imparidade reuniam, em 2013, os pressupostos legais para a sua aceitação como gasto contabilístico e fiscal”;
  • “erroneamente e contra todas as normas fiscais, aquele montante não afectou o prejuízo fiscal elevado que o B... apurou em 2013 e que, salientamos, não foi transmitido para a Requerente, em razão de ausência de base legal para tal transmissão de prejuízos (vide informação vinculativa anexada pela Requerente em Doc. 3”;
  • “vem agora o Requerente pretender corrigir esse erro com outro erro, porquanto entende poder deduzir ao resultado líquido para efeitos de apuramento do resultado tributável de 2018 (prejuízo fiscal) aquela perda por imparidade erroneamente “tributada” em 2013 na esfera do B... (e colocamos entre aspas pois como referido o resultado tributável do B... traduziu-se num elevado prejuízo fiscal)”;
  • “O que não podemos conceder, tanto mais que tal “erro” não é de todo inócuo como argumenta a Requerente pois, os prejuízos fiscais originados no B..., não foram transmitidos para o A..., pelo que não é indiferente o período de tributação em que tal montante deva afectar o resultado fiscal”;
  • “Assim sendo, reiteramos a legalidade da desconsideração do valor daquela perda por imparidade para efeitos de apuramento do resultado tributável do A... em 2018, porquanto, que de acordo com do n.º 2 art.º 35.º e dos n.ºs 3 e 4 do art.º 37.º ambos do CIRC, na redacção em vigor à data de 2013 (correspondendo à redacção em 2018, n.º 2 do art.º 28.º-A e n.º 3 do art.º 28.º-C ambos do CIRC), o B... deveria ter considerado as perdas por imparidade constituídas para menos-valias de títulos como sendo dedutíveis fiscalmente, uma vez que existia prova objectiva daquela imparidade (as sociedades emitentes daqueles títulos de crédito encontravam-se em processo de insolvência), seguindo de perto também as normas emanadas pelo Banco de Portugal, o Aviso n.º 3/95 e a Instrução n.º 7/2005”;
  • “somos a concluir que as perdas por imparidade em apreço não se encontram abrangidas pelo REAID”.

 

            24. Pelo último requerimento que apresentou veio o Requerente referir que o alegado pela Requerida quanto à não transmissibilidade dos prejuízos fiscais “contrari[a] claramente o despacho do Ministro das Finanças, de 2017.04.20 (…) do qual resulta claro que os prejuízos apurados nos B... são susceptíveis de ser deduzidos no A...”.

 

            25. No último requerimento da Requerida, veio esta afirmar o seguinte:

  • “confirmamos a alegação do Requerente quanto à transmissibilidade dos prejuízos fiscais declarados pelo B..., aos seus lucros tributáveis do Requerente, nos prazos e condições estabelecidos no referido Despacho n.º 554/17/MF, de 2017.04.20”;
  • “Não obstante e para além do já invocado pela AT nas informações anteriores para as quais se remete, sempre se reitera que, contrariamente ao que o Requerente vem defender, continua a não ser indiferente, afectar negativamente o resultado tributável do Requerente em 2018 com este valor de perdas por imparidade (€9.974.961,24), em detrimento de afectar negativamente o resultado tributável do período de tributação a que legalmente respeitavam essas perdas por imparidade, 2013, considerando as regras de dedutibilidade de prejuízos fiscais previstas no n.º 1 do art.º 52.º do CIRC e suas alterações legais”;
  • “Enquanto que o prejuízo fiscal de 2013 (com ou sem as referidas imparidades) apenas seria fiscalmente dedutível aos lucros tributáveis, havendo-os, até ao período de tributação de 2018, e não podendo essa dedução exceder o montante correspondente a 75% do respectivo lucro. Ou seja, in casu, os prejuízos fiscais de 2013 já não podem ser deduzidos a partir de 2019 inclusive”;
  • “Já o prejuízo fiscal de 2018, será fiscalmente dedutível aos lucros tributáveis, havendo‑os, até 2025, atendendo ao n.º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 27-A/2020 de 24 de Julho (Orçamento Suplementar para 2020), não podendo exceder o montante correspondente a 70% do respectivo lucro”;
  • “Ou seja, a ter-se dado o reconhecimento (devido) das perdas por imparidade, no período de tributação a que respeitavam, 2013, tal resultaria no apuramento de prejuízos fiscais mais elevados, mas apenas reportáveis até 2018 (inclusive). Este procedimento mostra-se menos vantajoso do que reconhecer (indevidamente) as perdas por imparidade, como pretende a Requerente, totalmente no período de tributação de 2018, atendendo ao alargamento do prazo de dedução e da limitação percentual prevista no n.º 2 do art.º 52.º do CIRC, nos termos suprarreferidos”.

 

            Cumpre apreciar e decidir.

 

§3 – Perdas por imparidade sobre papel comercial: regime aplicável

 

            26. O papel comercial consiste num tipo de valores mobiliários de natureza monetária, cujo regime jurídico está previsto Decreto-Lei n.º 69/2004, de 25 de Março. De acordo com o disposto no n.º 2, do artigo 1.º e no artigo 2.º do referido diploma, na redacção vigente à data da subscrição pelo B..., entendia-se por papel comercial os valores mobiliários representativos de dívida, emitidos por prazo inferior a um ano, por sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial, cooperativas, empresas públicas e demais pessoas colectivas de direito público ou privado.

 

            27. De acordo com José Engrácia Antunes, Os Instrumentos Financeiros, 3ª ed., Almedina, 2017, pp. 264 e ss, o papel comercial caracteriza-se por corresponder ao tipo de “instrumentos financeiros que, revestindo a natureza de valor mobiliário (dotados de representabilidade, homogeneidade, fungibilidade, e negociabilidade organizada)”, são “dotados das características típicas dos instrumentos monetários (emissão de prazo curto, elevada liquidez, e baixo risco) e são negociáveis no mercado monetário (como tal sujeitos à supervisão do Banco de Portugal”.

 

            28. Ao representar títulos de dívida de curto prazo, o papel comercial traduz na perspectiva do emitente uma forma de financiamento com recurso a capitais alheios, que visa essencialmente suprir necessidades de liquidez imediatas e/ou défices de tesouraria.

                                                                                   

            29. Já na perspectiva do subscritor, o papel comercial opera numa lógica de certo modo similar à da subscrição de obrigações, representando títulos de crédito sobre as entidades emitentes, cuja remuneração resulta do reembolso do capital acrescido do juro aplicável à emissão. Sem prejuízo da existência de eventuais garantias, o risco do investimento na subscrição de papel comercial corresponde sobretudo ao risco da solvabilidade do próprio emitente, que terá de dispor dos fundos necessários para a satisfação das suas obrigações de crédito.

 

            30. No Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”), a AT fundamentou as correcções à dedução das perdas por imparidade sobre o papel comercial emitido pela C... e pela D... apelando, simultaneamente, ao risco específico de crédito, i.e., ao regime das perdas por imparidade referentes à cobrança duvidosa do crédito subjacente aos títulos emitidos (artigos 36.º, n.º 1, alínea a) e 28.º-B, n.º 1, alínea a) do Código do IRC nas redacções, respectivamente, de 2013 e 2018) e, bem assim, ao risco dos títulos em si considerados, i.e., ao regime das perdas por imparidade em títulos (artigos 37.º, n.ºs 3 e 4 e 28.º-C, n.º 3 do Código do IRC nas redacções, respectivamente, de 2013 e 2018).

 

            31. Para que fosse aplicável o regime das perdas por imparidade sobre risco específico de crédito era necessário que os créditos resultassem do desenvolvimento da actividade normal do sujeito passivo. Seria esse o caso se estivéssemos perante a concessão de crédito habitação, crédito pessoal, crédito ao consumo, leasingfactoring, entre outras operações de crédito especificamente praticadas ao abrigo do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92 de 31 de Dezembro.

 

            32. No presente caso, os créditos titulados pelo papel comercial subscrito pelo B... não correspondem a operações de crédito realizadas no exercício da sua actividade normal, mas sim a operações financiamento que, na perspectiva do subscritor, correspondem a uma aplicação financeira, actuando o banco como se de qualquer outro investidor/operador no mercado financeiro se tratasse.

 

            33. Por conseguinte, não era aplicável o regime das imparidades sobre risco específico de crédito mas sim o regime das perdas por imparidade em títulos. Este é, de resto, um ponto consensual entre as partes, evidenciado nos articulados apresentados perante este Tribunal. Assim sendo, é com base neste regime que deverá ser apreciada a legalidade dos actos contestados, já que é esse concreto segmento da fundamentação do acto que poderá ou não determinar a sua manutenção/anulação da ordem jurídica.

 

§4 – Perdas por imparidade sobre papel comercial: reconhecimento contabilístico e fiscal

 

            34. A determinação do lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades residentes que exerçam a título principal uma actividade comercial, industrial ou agrícola, é feita com base no modelo da dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade, nos termos do qual se adopta o resultado contabilístico como base ou ponto de partida para o apuramento do resultado fiscal.

 

            35. Este relação entre a contabilidade e a fiscalidade ficou desde logo evidenciada no preâmbulo do Código do IRC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, no qual se mencionou o seguinte:

 

Considerando que a estrutura actual do Código do IRC se mostra, em geral, adequada ao acolhimento do novo referencial contabilístico, manteve-se a estreita ligação entre contabilidade e fiscalidade, que se afigura como um elemento essencial para a minimização dos custos de contexto que impendem sobre os agentes económicos, procedendo-se apenas às alterações necessárias à adaptação do Código do IRC às regras emergentes do novo enquadramento contabilístico, bem como à terminologia que dele decorre.

A manutenção do modelo de dependência parcial determina, desde logo, que, sempre que não estejam estabelecidas regras fiscais próprias, se verifica o acolhimento do tratamento contabilístico decorrente das novas normas.”.

 

            36. Tendo-se previsto no artigo 17.º, n.º 1 do Código do IRC, cuja redacção não se alterou entre 2013 e 2018, que “O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.”.

 

            37. Significa isto que com excepção do que se encontre expressamente derrogado no Código do IRC, valem para efeitos fiscais as normas contabilísticas de reconhecimento das perdas por imparidade, pelo que são estas que cumpre analisar em primeiro lugar.

 

            38. O Decreto-Lei n.º 35/2005, de 17 de Fevereiro, fez a transposição para a ordem jurídica interna da Directiva n.º 2003/51/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Junho, que alterou as Directivas n.ºs 78/660/CEE, 83/349/CEE, 86/635/CEE e 91/674/CEE, do Conselho, relativas às contas anuais e às contas consolidadas de certas formas de sociedades, bancos e outras instituições financeiras e empresas de seguros, com o objectivo de assegurar a coerência entre a legislação contabilística comunitária e as Normas Internacionais de Contabilidade (NIC), em vigor desde 1 de Maio de 2002.

 

            39. Nos termos do referido Decreto-Lei n.º 35/2005, de 17 de Fevereiro, era competência do Banco de Portugal a “definição do âmbito subjectivo de aplicação das Normas Internacionais de Contabilidade, bem como a definição das normas contabilísticas aplicáveis às contas consolidadas, relativamente às entidades sujeitas à respectiva supervisão” (alínea a), do n.º 1, do artigo 13.º), bem como a definição das “normas contabilísticas aplicáveis às contas individuais das entidades sujeitas à respectiva supervisão” (na alínea a), do n.º 2, do artigo 13.º).

 

            40. Com base nesta norma de atribuição de competência, o Banco de Portugal emitiu o Aviso n.º 1/2005, publicado no Diário da República n.º 41/2005, Série I-B de 28 de Fevereiro, e o Aviso n.º 3/95 posteriormente consolidado no Aviso n.º 3/2005, publicado no Diário da República, I Série-B, n.º 4, de 28 de Fevereiro de 2005, com o intuito de definir o âmbito de aplicação das Normas Internacionais de Contabilidade (“NIC”) e de Relato Financeiro (“IAS/IFRS”), bem como das normas contabilísticas aplicáveis às contas consolidadas e individuais das entidades sujeitas à sua supervisão.

 

            41. Através dos mencionados avisos, o Banco de Portugal criou as Normas de Contabilidade Ajustadas (“NCA”), que adoptaram como regra as NIC e as IAS/IFRS, introduzindo-lhes derrogações em campos específicos, nomeadamente quanto ao reconhecimento contabilístico de perdas por imparidade.

 

            42. Ao que aqui importa, determinou-se no n.º 2, do artigo 1.º do Aviso n.º 1/2005, na redacção do Aviso n.º 3/2005, que:

 

“[as] instituições de crédito e as sociedades financeiras, incluindo as sucursais de instituições com sede em países não pertencentes à União Europeia, umas e outras adiante designadas por instituições, são obrigadas a constituir provisões, nas condições indicadas no presente aviso, com as seguintes finalidades:

a) Para risco específico de crédito;

b) Para riscos gerais de crédito;

c) Para encargos com pensões de reforma e de sobrevivência;

d) Para menos-valias de títulos e imobilizações financeiras;

e) Para menos-valias de outras aplicações;

f) Para risco-país;

g) Para imparidade em aplicações sobre instituições de crédito;

h) Para imparidade em títulos e em participações financeiras;

i) Para imparidade em activos não financeiros.”. (destaque do Tribunal)

 

            43. Sublinha-se que a revogação do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 35/2005, de 17 de Fevereiro, e do Plano Oficial de Contabilidade, em resultado da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística (“SNC”) pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho, não colocaram em causa a aplicabilidade dos referidos avisos, uma vez que o artigo 5.º, n.º 1 deste último diploma manteve a vigência do regime de atribuição de competência ao Banco de Portugal acima referido.

 

            44. A constituição de perdas por imparidade era ainda regulada pela Instrução n.º 7/2005, de 15 de Março, do Banco de Portugal, que ao que interessa estabelecia o seguinte:

 

1. As provisões a que se refere a alínea b) do número 1 do nº 1.º do Aviso nº 3/95 correspondem à imparidade determinada de acordo com as disposições relevantes que constam das Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) aplicáveis tal como adoptadas, em cada momento, por Regulamento da Comissão Europeia.

 

2. No que respeita aos activos financeiros, e de acordo com as disposições relevantes da Norma Internacional de Contabilidade 39, existe imparidade ou são incorridas perdas por imparidade num activo financeiro ou num grupo de activos financeiros se, e apenas se, existir prova objectiva de imparidade como resultado de um ou mais acontecimentos que ocorreram após o reconhecimento inicial do activo (um ‘acontecimento de perda’) e se esse acontecimento (ou acontecimentos) de perda tiver um impacto nos fluxos de caixa futuros estimados do activo financeiro ou do grupo de activos financeiros que possa ser fiavelmente estimado.

 

Pode não ser possível identificar um único acontecimento, discreto, que tenha causado a imparidade. Pelo contrário, o efeito combinado de vários acontecimentos pode ter causado a imparidade. A prova objectiva de que um activo financeiro ou um grupo de activos está com imparidade inclui dados observáveis que chamam a atenção do detentor do activo acerca, designadamente, dos seguintes acontecimentos de perda:

a) evidente dificuldade financeira do emitente ou do devedor;

b) quebra de algum contrato, tal como incumprimento ou atraso nos pagamentos de juro ou de capital;

c) probabilidade significativa de o mutuário entrar em falência ou noutra reorganização financeira;

d) desaparecimento, para esse activo financeiro, de um mercado líquido e com suficiente profundidade, se devido a dificuldades financeiras do emitente.”.

 

            45. Tendo em conta este enquadramento, constata-se que o B..., enquanto entidade sujeita à supervisão do Banco de Portugal, estava de facto obrigado a inscrever na sua contabilidade, em 2013, perdas por imparidade sobre o papel comercial subscrito à C... e à D... . Isto na medida em que naquele ano existiam já provas objectivas de imparidade, decorrentes da instauração de processos de insolvência contra as referidas sociedades, mencionados nas alíneas c) e d) da matéria de facto provada, que evidenciavam dificuldades financeiras das sociedades emitentes e probabilidade significativa da sua “falência” ou necessidade de reorganização financeira.

 

            46. Apesar de ter reconhecido as perdas por imparidade naqueles títulos pelo valor integral do respectivo custo de aquisição, cumprindo assim com a obrigação contabilística que lhe era imposta, certo é que o B... acresceu posteriormente aquele valor na Declaração de Rendimentos Modelo 22 do período de tributação de 2013, impedindo que o mesmo afectasse a matéria tributável apurada, conforme ficou assente na alínea e) da matéria de facto provada.

 

            47. Ora, de acordo com o princípio da dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade acima referido, o diferente entendimento adoptado pelo B... em cada um daqueles planos terá de justificar-se pela derrogação das normas contabilísticas no Código do IRC.

 

            48. Em 2013, o regime fiscal das perdas por imparidade em títulos encontrava-se previsto nos artigos 35.º e 37.º do Código do IRC, cuja redacção era a seguinte:

 

Artigo 35.º

Perdas por imparidade fiscalmente dedutíveis

1 – Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores:

a) As relacionadas com créditos resultantes da actividade normal que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade;

b) As relativas a recibos por cobrar reconhecidas pelas empresas de seguros;

c) As que consistam em desvalorizações excepcionais verificadas em activos fixos tangíveis, activos intangíveis, activos biológicos não consumíveis e propriedades de investimento.

2 – Podem também ser deduzidas para efeitos fiscais as perdas por imparidade e outras correcções de valor contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores, quando constituídas obrigatoriamente, por força de normas emanadas pelo Banco de Portugal, de carácter genérico e abstracto, pelas entidades sujeitas à sua supervisão e pelas sucursais em Portugal de instituições de crédito e outras instituições financeiras com sede em outro Estado membro da União Europeia, destinadas à cobertura de risco específico de crédito e de risco-país e para menos-valias de títulos e de outras aplicações.

3 – As perdas por imparidade e outras correcções de valor referidas nos números anteriores que não devam subsistir, por deixarem de se verificar as condições objectivas que as determinaram, consideram-se componentes positivas do lucro tributável do respectivo período de tributação.

4 – As perdas por imparidade de activos depreciáveis ou amortizáveis que não sejam aceites fiscalmente como desvalorizações excepcionais são consideradas como gastos, em partes iguais, durante o período de vida útil restante desse activo ou, sem prejuízo do disposto nos artigos 38.º e 46.º, até ao período de tributação anterior àquele em que se verificar o abate físico, o desmantelamento, o abandono, a inutilização ou a transmissão do mesmo.

 

Artigo 37.º

Empresas do sector bancário

1 – O montante anual acumulado das perdas por imparidade e outras correcções de valor para risco específico de crédito e para risco-país a que se refere o n.º 2 do artigo 35.º não pode ultrapassar o que corresponder à aplicação dos limites mínimos obrigatórios por força dos avisos e instruções emanados da entidade de supervisão.

2 – As perdas por imparidade e outras correcções de valor referidas no número anterior só são aceites quando relativas a créditos resultantes da actividade normal, não abrangendo os créditos excluídos pelas normas emanadas da entidade de supervisão e ainda os seguintes:

a) Os créditos em que Estado, Regiões Autónomas, autarquias e outras entidades públicas tenham prestado aval;

b) Os créditos cobertos por direitos reais sobre bens imóveis;

c) Os créditos garantidos por contratos de seguro de crédito ou caução, com excepção da importância correspondente à percentagem do descoberto obrigatório;

d) Créditos nas condições previstas nas alíneas c) e d) do n.º 3 do artigo 36.º

3 – As menos-valias de aplicações referidas no n.º 2 do artigo 35.º devem corresponder ao total das diferenças entre o custo das aplicações decorrentes da recuperação de créditos resultantes da actividade normal e o respectivo valor de mercado, quando este for inferior àquele.

4 – Os montantes anuais acumulados das perdas por imparidade e outras correcções de valor, referidas no n.º 2 do artigo 35.º, não devem ultrapassar os valores mínimos que resultem da aplicação das normas emanadas da entidade de supervisão.

5 – O regime constante do presente artigo, em tudo o que não estiver aqui especialmente previsto, obedece à regulamentação específica aplicável.

6 – Quando se verifique a anulação de provisões para riscos gerais de crédito, bem como de perdas por imparidade e outras correcções de valor não previstas no n.º 2 do artigo 35.º, são consideradas rendimentos do período de tributação, em primeiro lugar, aquelas que tenham sido aceites como gasto fiscal no período de tributação da respectiva constituição.”.

 

            49. Da leitura conjugada do artigo 35.º, n.º 2 e do artigo 37.º, n.ºs 3, 4 e 5 do Código do IRC resulta uma convergência entre o regime contabilístico e fiscal aplicável ao reconhecimento e dedução de perdas por imparidade em papel comercial, porquanto se remete naquele código para as normas emanadas pelo Banco de Portugal aplicáveis às entidades sujeitas à sua supervisão.

 

            50. A este respeito, regista-se não ter o Requerente razão quando afirma que em 2013 não estavam preenchidos os critérios previstos para a dedução fiscal das perdas por imparidade, porque não existia um critério objectivo, concreto e específico na lei que regulasse essa dedutibilidade e porque era mais prudente aguardar pela materialização definitiva da perda, altura em que seria possível apresentar provas objectivas de imparidade.

 

            51. Quanto ao primeiro daqueles argumentos, e sem prejuízo do já referido, cumpre salientar que a existir um vazio legal – que não existe –, na definição dos critérios fiscais de dedutibilidade destas perdas por imparidade, sempre seriam de convocar as normas contabilísticas previstas para o efeito, por conta da aplicação do princípio da dependência parcial entre a contabilidade e a fiscalidade consagrado no artigo 17.º do Código do IRC. Isto sendo certo que no n.º 5 do artigo 37.º do Código do IRC se remete supletivamente para a “regulamentação específica aplicável” em tudo o que não esteja expressamente previsto naquele código, o que convoca a aplicação dos avisos e informações do Banco de Portugal emitidos a este respeito.

 

            52. Quanto ao segundo daqueles argumentos, sublinha-se que o princípio contabilístico da prudência exigia no presente caso a adopção de solução exactamente oposta à defendida pelo Requerente. Com efeito, resulta deste princípio que na elaboração dos registos contabilísticos os sujeitos passivos devem considerar todos os riscos e perdas previsíveis, ainda que eventuais, que possam impactar o apuramento dos resultados do exercício. O reconhecimento destas perdas potenciais nas demonstrações financeiras é determinante para assegurar que os activos e os resultados não ficam sobredimensionados, sob pena de se transmitir uma falsa percepção da realidade da empresa. É precisamente para evitar que o registo de contingências negativas só ocorre com a materialização efectiva das perdas que se reconhecem perdas por imparidade, que por funcionarem numa óptica de prudência e verossimilidade, devem ser revertidas sempre que os cenários que justificaram a sua inscrição deixarem de se verificar.

 

            53. Aqui chegados, conclui-se que as perdas por imparidade reconhecidas contabilisticamente em 2013 pelo B... deveriam ter sido deduzidas fiscalmente nesse mesmo exercício, uma vez que estavam reunidos todos os pressupostos previstos para o efeito. Resta então analisar se a dedução das perdas por imparidade feita pelo Requerente em 2018 era ou não admissível ao abrigo do princípio da especialização dos exercícios.

 

§5 – Princípio da especialização dos exercícios

 

            54. O princípio da especialização dos exercícios, também designado de princípio da periodização do lucro tributável, encontra-se previsto no artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 do Código do IRC, cuja redacção entre 2013 e 2018 era, ao que importa, a seguinte:

 

Artigo 18.º

Periodização do lucro tributável

1 – Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

2 – As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.”

 

            55. Resulta deste princípio que no apuramento do lucro tributável os sujeitos passivos não podem escolher, de acordo com juízos de oportunidade, o período de tributação a que pretendem imputar os proveitos e custos, porquanto os mesmos têm de ser reconhecidos no exercício a que digam respeito, independentemente do efectivo recebimento ou pagamento. Para que se admita a imputação de proveitos e custos a um período distinto daquele em que se verificaram, é necessário que os mesmos sejam imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos no momento em que o sujeito passivo devia ter feito o seu reconhecimento.

 

            56. A importância deste princípio é realçada por Manuel Henrique de Freitas Pereira, “A periodização do lucro tributável”, Ciência e Técnica Fiscal, 1988, n.º 349, pp. 80‑81, ao sublinhar que:

 

a especialização temporal das componentes do lucro é ainda mais importante para efeitos fiscais do que contabilísticos, dados os condicionalismos em que decorre a determinação do imposto a pagar, de modo a evitar desvios de resultados entre exercícios diferentes com propósitos de minimização da carga fiscal, (…). Com efeito, essa imputação temporal pode ser instrumento de uma manipulação de resultados, de modo a, designadamente:

a) Diferir no tempo os lucros;

b) Fraccionar os lucros, distribuindo-os por exercícios diferentes, com o objectivo

de evitar, num imposto de taxas progressivas, a tributação por taxas mais elevadas;

c) Concentrar o lucro em exercício onde se podem efectivar deduções mais avultadas (v. g. por reporte de prejuízos ou por incentivos fiscais).”.

 

            57. Ora, no presente caso, não se verifica que as perdas por imparidade eram imprevisíveis ou desconhecidas do B..., que inclusive as reconheceu contabilisticamente em 2013. Por conseguinte, a dedução das perdas por imparidade feita pelo Requerente em 2018 viola o princípio da periodização do lucro tributável previsto artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 do Código do IRC, de acordo com o qual se deveria ter verificado a imputação fiscal daqueles perdas logo no exercício de 2013.

 

            57. Não obstante, conforme invoca o Requerente, o princípio da especialização dos exercícios não é absoluto, carecendo de ser conjugado – à semelhança de qualquer outro –, com os demais princípios que conformam o sistema. Em particular, impõe-se a conjugação com o princípio da justiça consignado no artigo 266.º, n.º 2, da CRP e no artigo 55.º da LGT, como forma de evitar que um entendimento demasiado formalista do princípio da especialização dos exercícios impossibilite definitivamente o reconhecimento de proveitos e custos.

 

            58. Conforme explicam Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., Encontro da Escrita, 2012, pp. 452-454:

 

  “Quando há divergência entre o critério do contribuinte e o da administração fiscal sobre a imputação de determinado ganho ou perda a determinado exercício esta deve proceder a correcção da matéria colectável, fazendo acrescer o proveito ou custo ao ano a que entende que ele deve respeitar e, correspondentemente, deveria abater tal proveito ou custo à matéria colectável do ano ao qual o contribuinte a imputou.

  Com este procedimento, não haverá qualquer situação de injustiça, pois ao acréscimo de imposto em determinado ano, corresponderá uma diminuição tendencialmente semelhante noutro, não havendo, assim, tributação de um mesmo proveito em dois exercícios ou não dedução em qualquer deles de um custo que deva ser considerado.

  Porém, em certas situações em que a correcção é efectuada no último ano em que pode ser feita e tem por objecto um custo que deveria ter sido considerado no exercício anterior, não é já (ou pode não ser já) possível corrigir a matéria colectável desse anterior ano, por ter já transcorrido o prazo em que podiam ser efectuadas correcções. O mesmo sucede quando, embora no momento em que a administração fiscal faz a alteração da matéria colectável fosse possível efectuar a correspondente correcção no ano a que se entende ser de imputar os custos, ela não o faz e, com o decurso do tempo, se torna inviável fazê-lo.

  Nestas condições, se a administração fiscal tinha razão na correcção que efectuou, o contribuinte, em princípio, teria sido prejudicado pelo seu próprio erro ao declarar a matéria colectável, pois, abatendo um custo no ano seguinte àquele em que o deveria ter deduzido, deixou de ver diminuído o montante do imposto correspondente no ano em que tal diminuição deveria ter ocorrido, para só ver tal diminuição ocorrer no ano seguinte e, paralelamente, a administração fiscal não tinha tido qualquer prejuízo, pois recebera no ano anterior o imposto sem que fosse tido em conta esse custo que o deveria diminuir.

  Assim, no caso de não poder ser feita já a correcção relativamente ao ano anterior, o contribuinte, que já era o único prejudicado pelo seu erro, veria ainda agravada a sua situação, vendo-se impossibilitado de efectuar a dedução desse custo em qualquer dos anos. A administração fiscal, assim, reteria em seu poder um imposto a que manifestamente não tinha direito.

  Esta é uma situação em que o exercício de um poder vinculado (correcção da matéria colectável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios) conduz a uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, para obstar à possibilidade de efectuar a referida correcção.

  Há, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria colectável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efectuar mesmo que não lhe traga vantagem; outro é o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça. Entre esses dois valores, designadamente nos casos em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte, deve optar-se por não efectuar a correcção, limitando aquele dever de correcção por força do princípio da justiça.

  Por outro lado, é de notar que numa situação deste tipo não se verifica sequer qualquer interesse público na actuação da administração fiscal, pois não está em causa a obtenção de um imposto devido, pelo que, devendo toda a actividade administrativa ser norteada pela prossecução deste interesse, a administração deveria abster-se de actuar.

  Consequentemente, serão de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, actos de correcção da matéria tributável que conduzam a situações de injustiça deste tipo.”.

 

            59. Esta é, também, a posição há muito defendida pelo Supremo Tribunal Administrativo, que no acórdão proferido em 19 de Novembro de 2008, no processo n.º 0325/08, deixou claro o seguinte:

 

  “O princípio da justiça é um princípio básico que deve enformar toda a actividade da Administração Tributária, como resulta do preceituado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT. Embora estes princípios constitucionais tenham um domínio primacial de aplicação no que concerne aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, introduzindo neste exercício aspectos vinculados cuja não observância é susceptível de constituir vício de violação de lei, a sua relevância não se esgota nos actos praticados no exercício desses poderes discricionários.

  Na verdade, por um lado, o texto do art. 266.º da CRP não deixa entrever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa, pelo que, em princípio, dever-se-á fazer tal aplicação, se não se demonstrar a sua inviabilidade.

  Por outro lado, na aplicação da legalidade, tanto pela Administração como pelos tribunais, não pode ser encarada isoladamente cada norma que enquadra uma determinada actuação da Administração, antes terá de se atender à globalidade do sistema jurídico, com primazia para o direito constitucional, como impõe o princípio da unidade do sistema jurídico, que é o elemento primacial da interpretação jurídica (art. 9.º, n.º 1, do CC).

  Não se pode afirmar, que, nos casos de exercício de poderes vinculados, a obediência a uma determinada lei ordinária se sobrepõe aos princípios constitucionais referidos, pois estes princípios fazem também parte do bloco normativo aplicável, eles são também definidores da legalidade e, como normas constitucionais, são de aplicação prioritária em relação ao direito ordinário.

  Tanto são normas legais a primeira parte do n.º 2 do art. 266.º da CRP, que impõe à Administração a observância do princípio da legalidade (…), como a sua segunda parte em que se prevêem os outros princípios e que generalizadamente impõem os modelos de actuação de toda a actividade administrativa, como também é uma norma legal a que, em determinada situação específica, prevê uma determinada actuação da Administração, designadamente, no caso em apreço, a aplicação do princípio da especialização dos exercícios (art. 18.º, n.º 1, do CIRC).

  Por isso, para definir a legalidade a que a Administração está vinculada, terão de se ter em conta todas essas normas e fazer uma ponderação e escolha entre elas caso a sua aplicação global, abstractamente compatível, se demonstre inviável em determinada situação concreta.

  Assim, (…), do referido art. 18.º, n.º 1, do CIRC resulta uma vinculação para a Administração, que, em regra, deve aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua actividade de controle das declarações apresentadas pelos contribuintes.

  Mas, o exercício deste poder de controle, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição.

  Na ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflecte uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de incompatibilidade se deve dar prevalência a este último princípio.”.

 

            60. Enfim, “na ponderação dos valores em causa – por um lado, o princípio da periodização económica e, por outro lado, o princípio da justiça – é manifesto que, em caso de incompatibilidade, deve ser dada prevalência a este último princípio nos casos em que não tenha resultado prejuízo para o erário público e se constate que não estamos perante comportamentos voluntários e intencionais, com o objectivo de obter vantagens fiscais”, conforme bem sintetizou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 21 de Dezembro de 2021, no processo n.º 696/2020-T.

 

            61. Aplicando estas considerações ao presente caso, inexiste nos autos qualquer indício de que o reconhecimento das perdas por imparidade apenas ocorreu em 2018 por decisão voluntária e intencional do B... – já que o Requerente ainda não havia sido constituído –, com vista à manipulação e transferência de resultados, mormente de prejuízos fiscais.

 

            62. Para além de essa voluntariedade não resultar provada ou sequer indiciada, não é verosímil, com base nas regras da experiência comum, que o B... tivesse adiado a operação de alienação do papel comercial por acreditar que o regime de reporte de prejuízos fiscais seria mais benéfico no futuro. Aliás, se o propósito do B... fosse realmente esse, e se tivesse sido um objectivo do Requerente assegurar a sua prossecução e materialização, seria natural e expectável que o reconhecimento fiscal das perdas por imparidade tivesse ocorrido logo em 2014, quando o regime consagrado no Código do IRC permitia o reporte de prejuízos por 12 anos e até 70% do lucro tributável, e não apenas em 2018.

 

            63. Verifica-se também que no presente caso não resultou qualquer vantagem fiscal para o Requerente e/ou prejuízo para o erário público em resultado do erro involuntário de imputação das perdas por imparidade no exercício de 2018 ao invés do exercício de 2013.

 

            64. Com efeito, conforme resulta dos factos assentes nas alíneas f) e i) dos factos provados, os prejuízos fiscais apurados pelo B... em 2013 transitaram para a esfera do Requerente aquando da sua constituição. Acresce que à semelhança do que sucedeu em 2013, e conforme consta do facto assente na alínea o) dos factos provados, em 2018 o Requerente também apurou prejuízos fiscais de avultado montante, não tendo sido por conta da dedução das perdas por imparidade que deixou de pagar imposto.

 

            65. Acresce ainda que o erro na imputação das perdas por imparidade não implicou para o B... e consequentemente para o Requerente a obtenção de qualquer ganho com a dedução de activos por impostos deferidos, até porque o Regime Especial Aplicável aos Activos por Impostos Diferidos, aprovado pela Lei n.º 61/2014 de 26 de Agosto, apenas permite a conversão em crédito tributários de perdas por imparidade em créditos e já não de perdas por imparidade em títulos, como é aqui o caso. Este é, de resto, um facto não controvertido nos autos e assente entre as partes.

 

            66. Nestes termos, conclui o presente Tribunal Arbitral que o erro na dedução fiscal das perdas por imparidade não resultou de omissões voluntárias ou intencionais com vista a operar transferências de resultados entre exercícios, não tendo igualmente originado para o Requerente uma vantagem fiscal incorrida à custa do erário público, razão pela qual deverá prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da especialização dos exercícios, admitindo-se a dedução em 2018 das perdas por imparidade com o papel comercial objecto dos presentes autos.

 

            67. Em face do exposto, julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente, determinando-se a anulação parcial da concreta parte dos actos aqui contestados.

 

§6 – Juros indemnizatórios

 

            68. No pedido de pronúncia arbitral peticionou ainda o Requerente a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

 

            69. Resulta do artigo 43.º, n.º 1 da LGT que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.

 

            70. No presente caso, apesar de ter existido um erro imputável aos serviços na emissão da liquidação adicional de IRC nos termos acima indicados, não se verificou o pagamento pelo Requerente de um montante de imposto superior ao que seria devido. O que se compreende, uma vez que a liquidação adicional emitida pela AT apenas teve como consequência a diminuição dos prejuízos fiscais apurados e a reportar, pelo que não assiste ao Requerente o direito a juros indemnizatórios, julgando-se assim improcedente este pedido.

 

V. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência, declarar ilegais e determinar a anulação parcial do acto de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022... e do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2022...;
  2. Julgar improcedente o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, com a consequente absolvição da Requerida dessa parte do pedido;
  3. Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 9.974.961,24.

 

VII. CUSTAS

 

            Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 123.624,00, a suportar pela Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 26 de Agosto de 2024

 

 

A Árbitra Presidente,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Relatora)

 

O Árbitro Adjunto,

 

Sérgio Pontes

 

O Árbitro Adjunto,

 

Luís Ricardo Farinha Sequeira