O Árbitro Francisco de Carvalho Furtado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:
DECISÃO ARBITRAL
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RELATÓRIO
A..., contribuinte n.º ..., Rua..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, notificado do despacho do Senhor Diretor de Finanças Adjunto, de 27 de Março de 2023, nos termo do qual foi negado provimento ao Recurso Hierárquico n.º ...2022... (RHQ 2023...), em que se discute a legalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimentos das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2021..., praticado pela Senhora Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, por referência ao ano de 2020 e de que resulta o valor a pagar de € 27.167,23, requer pronúncia arbitral, nos termos do artigo 2.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com vista à declaração de ilegalidade e anulação dos acima identificados despacho que nega provimento ao recurso hierárquico e acto de liquidação de IRS do ano de 2020.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 26 de Junho de 2023.
Os Requerentes não procederam à nomeação de arbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitro o signatário desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 11 de Agosto de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal Arbitral encontra-se, desde 30 de Agosto de 2023, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Em 31 de Agosto de 2023, o Tribunal Arbitral proferiu despacho para que a Requerida, querendo, apresentasse Resposta e, bem assim, juntasse aos autos o procedimento administrativo.
Em 15 de Setembro de 2023, a Requerente apresentou requerimento em que pede a junção aos autos de documento.
Em 31 de Outubro de 2023, a Requerida juntou aos autos despacho do Senhor Subdiretor Geral, actuando ao abrigo de competências delegadas, de 12 de Outubro de 2023, nos termos do qual é revogado parcialmente o ato de liquidação de IRS, do ano de 2020.
Em 29 de Fevereiro, 26 de Abril e 28 de Junho foi proferido despacho nos termos do disposto no artigo 21.º, do RJAT.
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DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS
II.1 Posição da Requerente
A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:
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O Requerente é sujeito passivo de IRS;
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Por referência ao ano fiscal de 2020 entregou a sua declaração de rendimentos de IRS – Modelo 3.
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Na linha 9001 do quadro 9 do anexo “G”, declarou a alienação onerosa de partes sociais, indicando como valor de aquisição, no ano de 2014, o valor de € 265,24.
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O referido valor era o constante de declaração emitida pela entidade bancária onde as mesmas estavam depositadas;
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O valor declarado pela entidade bancária não era o correto, tal como não o era a data de aquisição dos mesmos títulos;
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Com efeito, o referido valor implicava que os títulos representativos do capital social tivessem sido adquiridos, cada um, por € 0,01, sendo que tal nunca foi a cotação da sociedade B... SGPS.
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A Requerida pretende-se faze valer de um documento emitido pela entidade bancária, que é manifestamente incorreto;
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A Requerida, atenta a evidência do erro, não poderia considerar que o conteúdo do documento emitido pela entidade bancária fizesse prova, quer do valor de aquisição, quer da data de aquisição dos títulos;
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Não obstante, os documentos e extratos juntos aos autos demonstram o valor e data de aquisição dos títulos transacionados pelo que a Requerida tinha à sua disposição os elementos necessários para a liquidação de imposto de acordo com a sua capacidade contributiva;
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A Requerida violou o princípio do inquisitório, previsto no artigo 58.º, da LGT dado que não realizou todas as diligências com vista à descoberta da verdade material;
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Termina pedindo a condenação da Requerida no reembolso do valor pago, acrescido de juros indemnizatórios.
II.2 Posição da Requerida
Por seu turno, a Requerida, fundamenta a sua posição nos seguintes termos:
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Inexiste qualquer ilegalidade nos procedimentos de inspecção tributária;
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O ato de liquidação foi praticado nos termos da declaração de rendimentos apresentada;
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As declarações emitidas pela entidade bancária corroboram os valores declarados pelo Requerente;
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Após junção de novos documentos, na pendência do presente processo, a Requerida considerou como custo de aquisição os valores aí constantes, revogando parcialmente o ato, em conformidade;
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Termina sustentando que não existe culpa imputável aos serviços pelo que deve improceder o pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios.
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SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
O processo não enferma de nulidades.
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Fundamentação
IV.1. Matéria de facto
Factos dados como provados
Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:
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O Requerente, em 21 de Setembro de 2021, apresentou a sua declaração de rendimentos de IRS Modelo 3, relativa ao ano de 2020 (Documento 3, junto ao Requerimento Inicial);
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Na linha 9001 do quadro 9, do anexo G, o Requerente declarou a alienação onerosa de participações sociais, tendo declarado que a mesmas foram adquiridas no ano de 2014 e pelo valor de € 260,34 (Documento 3, junto ao Requerimento Inicial);
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Com base na referida declaração de rendimentos, a Requerida praticou o acto de liquidação de IRS, n.º 2021... (Documento 2, junto ao Requerimento Inicial);
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Em 31 de Janeiro de 2022 o Requerente apresentou reclamação graciosa, e juntou documentos comprovativos, quer data de aquisição, quer do valor de aquisição dos títulos (Documento 6, junto ao Requerimento Inicial);
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Em 21 de Setembro de 2022, o Requerente apresentou Recurso Hierárquico (Documento 7, junto ao Requerimento Inicial);
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Em 23 de Junho de 2023, o Requerente deduziu o presente pedido de pronuncia arbitral;
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Por despacho de 13 de Outubro de 2023, a Senhora Subdiretora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira revogou parcialmente a decisão do recurso hierárquico, alterando o valor e data de aquisição dos títulos de acordo com o documento junto pelo Requerente, mas mantendo a decisão de negar provimento quantos os juros indemnizatórios (Documento 1, junto ao Requerimento da Requerida de 31 de Outubro de 2023).
Factos dados como não provados
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Não se provou que as Requerentes tenham pago o imposto liquidado.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos ao processo.
Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes.
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
IV. 2. Matéria de Direito
Tendo sido revogado, na parte relevante, o acto de liquidação que constitui o objeto mediato do presente processo, cumpre apreciar a utilidade da apreciação, nessa parte, do pedido.
A respeito da inutilidade superveniente da lide pronunciou-se já o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 30 de Julho de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 0875/14, no qual referiu que “A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância - al. e) do art. 277º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio”. É também este o sentido que a doutrina tem conferido ao conceito em análise, referindo LEBRE DE FREITAS, RUI PINTO e JOÃO REDINHA, em Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 555, que “(…) a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio”.
No caso em apreço o Requerente pede:
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a declaração de ilegalidade e anulação, quer do despacho que nega provimento ao recurso hierárquico que antecede e, bem assim, do acto de liquidação de IRS; e,
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A condenação da Requerida no reembolso do imposto, acrescido de juros indemnizatórios.
Ora, conforme resulta da matéria de facto dada como provada nos presentes autos, o acto tributário, na parte contestada pelo Requerente foi revogado pela Requerida, o que implica a inutilidade e impossibilidade deste Tribunal declarar a ilegalidade e determinar a consequente anulação de um ato que já se encontra suprimido da ordem jurídica.
Com a referida revogação o Requerente atingiu, nessa parte, a totalidade dos efeitos pretendidos, no que à ilegalidade do ato respeita.
Em face do exposto verifica-se, quanto ao pedido de declaração da ilegalidade, do ato de liquidação de IRS e do despacho que nega provimento ao recurso hierárquico, a inutilidade superveniente da lide, verificando-se uma situação de inutilidade superveniente nos termos e para os efeitos previstos no artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Não obstante, importa conhecer do pedido de reembolso do imposto e de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
Nos termos do disposto no artigo 43º, 1 da LGT são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido". E, nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT, o direito a juros indemnizatórios existe também “[q]uando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
Nos termos do art. 24º, 5 do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento e até à data do processamento da respectiva nota de crédito.
Tudo isso condicionado, quer pela existência, ou não, de erro imputável aos serviços, quer pelo pagamento do imposto.
No caso em apreço conclui-se e não obstante a existência de elementos probatórios (relativos à data e valor de aquisição dos títulos) relevantes logo na reclamação graciosa, que não se encontra demonstrada um dos critérios essenciais – o pagamento do imposto.
Com efeito, no julgamento da matéria de facto foi dado como não provado que as Requerentes tenham pago qualquer quantia relativamente ao imposto liquidado.
Assim, improcede o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
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DECISÃO
Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:
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Julgar verificada a inutilidade superveniente da lide no que respeita ao pedido de declaração de ilegalidade e anulação do ato de liquidação de IRS e do despacho que nega provimento ao Recurso Hierárquico, na parte em que se pronuncia sobre a ilegalidade do ato de liquidação; e,
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Julgar improcedente o pedido de condenação da requerida no pagamento de juros indemnizatórios;
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Condenar a Requerente e a Requerida nas custas arbitrais na proporção de decaimento que se fixa em 10% para a Requerente e 90% para a Requerida.
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Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 28.491,64, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
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Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 1.530,00, a pagar pela Requerente e pela Requerida, na proporção de decaimento acima decidida, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 28 de agosto de 2024.
O Árbitro,
(Francisco Carvalho Furtado)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.