Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 988/2023-T
Data da decisão: 2024-08-01   Outros 
Valor do pedido: € 240.545,25
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) – Competência dos Tribunais Arbitrais – Ilegitimidade ativa
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Sumário

 

  1. A Contribuição de Serviço Rodoviário reveste a natureza de um imposto sobre combustíveis, pelo que sob essa qualificação os tribunais arbitrais têm competência para apreciar os correspondentes atos de liquidação.
  2. A Requerente não é o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal deste imposto. Assim, a sua legitimidade é aferida pela qualidade de mera repercutida de facto, circunstância em que sobre si recai o ónus de demonstrar um interesse legalmente protegido, como se extrai do cotejo dos artigos 9.º, n.º 1 do CPPT, 18.º, n.º 4, alínea a) e 65.º da LGT.
  3. Esse interesse há-de corresponder à circunstância de ter suportado, do ponto de vista económico, o imposto [CSR] liquidado ao sujeito passivo fornecedor dos combustíveis. O que implica duas condições: a primeira é que o fornecedor de combustíveis tenha repercutido, de facto, à Requerente, a CSR; e a segunda é que o fenómeno da repercussão “voluntária” tenha ficado por aí, sem que a Requerente tenha, de igual modo, repercutido aos seus clientes o “peso” económico da CSR.
  4. Não tendo ficado provado que a Requerente suportou (e em que medida), a final, o encargo económico do imposto, falece-lhe legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto.
  5. A solução preconizada enquadra-se numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 268.º, n.º 4), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 27 de fevereiro de 2024, Alexandra Coelho Martins (presidente), Vítor Braz e Marisa Isabel Almeida Araújo, acordam no seguinte:

 

 

  1. Relatório

 

A..., S.A., adiante “Requerente”, com o número de matrícula e de pessoa coletiva ... e sede no ... Rua ..., ...-... Lisboa, apresentou, em 15 de dezembro de 2023, pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na redação vigente.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.

 

A Requerente pretende a “revogação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão da liquidação” de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”), respeitante ao período decorrido entre março de 2019 e dezembro de 2022, e a declaração de ilegalidade das liquidações e pagamento da CSR subjacentes, no montante total de € 240.545,25 (na parte relativa à CSR), com o consequente reembolso do imposto indevidamente pago e de todos os impostos que foram suportados sobre esse valor de CSR, tais como o IVA e a tributação autónoma, acrescido de juros indemnizatórios nos termos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), em 18 de dezembro de 2023 e, em seguida, notificado à AT.

 

Por requerimento de 22 de dezembro de 2023, a Requerida veio solicitar a identificação dos atos de liquidação cuja legalidade a Requerente pretende ver sindicada, tendo a Requerente respondido, em 2 de janeiro de 2024, que a AT está em condições para identificar esses atos, pois foram facultadas as faturas em que a CSR impugnada nos autos lhe foi repercutida [à Requerente], competindo à AT a referida identificação. Considera que a exigência da AT é incompatível com o princípio constitucional da proporcionalidade e o direito à tutela judicial efetiva (v. artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da Constituição)

 

Após nomeação de todos os árbitros, os mesmos comunicaram, em prazo, a aceitação do encargo. O Exmo. Presidente do CAAD informou as Partes, por notificação eletrónica registada no sistema de gestão processual em 7 de fevereiro de 2024, não tendo sido manifestada oposição.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 27 de fevereiro de 2024.

 

Em 10 de abril de 2024, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por exceção e por impugnação, e juntou o processo administrativo (“PA”).

 

Em 29 de abril de 2024, a Requerente pronunciou-se por escrito sobre a matéria de exceção suscitada pela Requerida.

 

Em 20 de junho de 2024, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, tendo sido inquiridas as duas testemunhas indicadas pela Requerente. O Tribunal notificou as Partes para apresentarem alegações escritas e determinou que a prolação da decisão arbitral ocorrerá até ao fim do prazo fixado no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT, devendo ser paga a taxa arbitral subsequente até à data limite para apresentação de alegações (v. ata que se dá por reproduzida e gravação áudio disponível no SGP do CAAD).

Requerida e Requerente apresentaram alegações, em 28 de junho e 1 de julho de 2024, respetivamente, reafirmando as posições expressas nos respetivos articulados.

 

Posição da Requerente

 

A Requerente começa por propugnar a sua legitimidade [ativa] para contestar os atos de liquidação de CSR em crise, por ser titular de um interesse legalmente protegido (v. artigo 9.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e artigo 65.º da LGT), em virtude de ter suportado o encargo do imposto, que alega ter-lhe sido repercutido enquanto consumidora do combustível.

 

Argumenta que a repercussão da CSR resulta de imposição legal, nos termos do disposto no artigo 2.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”), aplicável à CSR por remissão do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, não subsistindo dúvidas de que ao repercutido assiste o direito de obter a restituição do imposto ilegalmente liquidado, pois é aquele que sofre na sua esfera o impacto patrimonial negativo do imposto.

 

Afirma também que a AT tem na sua posse os atos de liquidação da CSR, tendo sido facultadas todas as faturas com a menção aos litros de combustível relativamente à CSR impugnada. Em seu entender, a exigência ao repercutido de identificação das liquidações, numa situação deste tipo, não é compatível com o princípio constitucional da proporcionalidade e o direito à tutela judicial efetiva (v. artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da Constituição).

 

Neste âmbito, a Requerente alega que vigora no procedimento tributário o princípio do inquisitório, podendo a AT utilizar todos os meios para o correto apuramento dos factos (v. artigos 55.º, 58.º e 72.º da LGT, 50.º do CPPT e 266.º, n.º 2 da Constituição). Quando os elementos de prova dos factos estão em poder da AT, o ónus da prova considera-se satisfeito se o interessado procedeu à sua correta identificação (v. artigo 74.º, n.º 2 da LGT).

 

Em relação à admissibilidade e tempestividade do pedido de revisão oficiosa, a Requerente sustenta que, no caso sub judice, está em causa a existência de erro de direito imputável aos serviços, por violação das normas de direito da União Europeia, que justifica a aplicação do prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, pelo que o pedido de revisão oficiosa e, bem assim, a ação arbitral, são tempestivos.

 

Sobre o mérito, a Requerente invoca que adquiriu o combustível – gasóleo e gasolina –  a dois fornecedores para consumo próprio, no âmbito da sua atividade de assistência em escala nos aeroportos a companhias de aviação. Afirma que no preço de compra do combustível estão incluídos os montantes de CSR pagos pela vendedora, determinados em função dos litros comercializados, pelo que suportou efetivamente o encargo deste imposto e pretende a sua restituição, com referência ao período decorrido entre março de 2019 e dezembro de 2022. Acrescenta que os dois fornecedores de combustível não irão solicitar em simultâneo o reembolso deste imposto.

 

Sustenta a incompatibilidade da CSR com a Diretiva 2008/118/CE, de 16 de dezembro de 2008, que fixa o regime geral dos impostos especiais de consumo (“IEC”), pois a criação de IEC não harmonizados, como a CSR, depende da existência de um “motivo específico” válido, condição que, segundo a Requerente, não se encontra preenchida, como foi já declarado pelo Tribunal de Justiça no processo C-460/21, Vapo Atlantic, por Despacho de 7 de fevereiro de 2022, na sequência de reenvio no âmbito do processo arbitral n.º 564/2020-T.

 

Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, este “motivo específico” não pode corresponder a uma finalidade puramente orçamental de obtenção de receita. É necessária uma ligação direta entre a utilização da receita e a finalidade do imposto, não se verificando essa ligação quando a receita gerada pelo imposto seja destinada a despesas suscetíveis de serem financiadas pelo produto de impostos de qualquer natureza.

 

No caso, a CSR foi criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, por razões de ordem puramente orçamental, para financiar a rede rodoviária nacional a cargo da empresa pública concessionária, à data a Estradas de Portugal, à qual ficou genericamente consignada a receita da CSR. No entanto, não existe qualquer nexo específico entre o benefício da atividade da entidade pública titular da contribuição e os sujeitos passivos.

 

Em suma, o legislador português não fixou uma afetação da receita da CSR que comprove que esta tenha sido criada por “motivo específico” distinto de uma finalidade orçamental, nomeadamente com vista a desmotivar através de um escopo de tipo ambiental, energético ou social, um qualquer comportamento por parte dos contribuintes.

 

Assim, a Requerente defende que a CSR é desconforme ao disposto no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, com a consequente ilegalidade dos atos de liquidação impugnados que devem ser anulados na parte respeitante à CSR[1].

 

Em consequência, e conforme a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, os Estados-Membros são obrigados a reembolsar os montantes de imposto indevidamente cobrados em violação do direito da União Europeia, exceto se se comprovar que este reembolso conduz ao enriquecimento sem causa do contribuinte, circunstância que a Requerente considera não se verificar na sua esfera.

 

Aduz que a denegação do direito ao reembolso da CSR comprometeria os princípios constitucionais do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva – v. artigos 20.° e 268.°, n.° 4 da Constituição – e violaria o disposto no artigo 103.º, n.º 2 da Constituição.

 

Sustenta ainda serem devidos juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º, n.º 1 da LGT, dada a ilegalidade das liquidações de CSR efetuadas por erro imputável aos serviços, a serem contados desde a data do pagamento do imposto até ao seu integral  reembolso, nos termos do artigo 61.º, n.º 5 do CPPT.

 

 

 

Posição da Requerida

 

Por exceção, a Requerida alega que o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria, qualificando a CSR como uma contribuição financeira, enquadrável como uma das “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas” a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição e 3.º, n.º 2 da LGT, e não como um imposto, concluindo que o seu conhecimento está excluído da arbitragem tributária, pois a vinculação da AT à jurisdição arbitral, operada pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, circunscreve-se à apreciação de pretensões relativas a impostos (artigo 2.º da Portaria), não abrangendo outros tributos, como se decidiu em diversos processos arbitrais.

 

Suscita também a incompetência material deste Tribunal, por entender que a Requerente pretende a apreciação da legalidade de todo o regime da CSR, pela sua natureza e conformidade jurídico-constitucional, com o intuito de fazer suspender a eficácia desse ato legislativo, o que corresponde à fiscalização da legalidade de normas em abstrato, para a qual o Tribunal Arbitral não tem competência, por se inscrever num contencioso de mera anulação. Afigurando-se inconstitucional à Requerida uma interpretação do artigo 2.º do RJAT que nele inclua a apreciação dos pedidos formulados pela Requerente. 

 

Ad cautelem, argumenta que ainda que se se considerasse existir competência do tribunal arbitral para a apreciação da ilegalidade dos atos de liquidação de CSR, a apreciação da legalidade de atos de repercussão de CSR extravasa o âmbito material da arbitragem tributária. Assim, nunca poderia o Tribunal Arbitral pronunciar-se sobre atos de repercussão, por não serem atos tributários.

 

Sobre o pedido de restituição de valores, entende a Requerida que o Tribunal Arbitral não se pode pronunciar, pois este só pode ser determinado em sede de execução do julgado (v. artigo 2.º do RJAT). 

 

De onde conclui que se verifica a exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria, que prejudica o conhecimento do mérito, nos termos vertidos nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável por via do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Ainda no domínio das questões prévias, a Requerida invoca diversas exceções, infra enumeradas: ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, ineptidão da petição inicial por falta de objeto e por ininteligibilidade do pedido e contradição entre este e a causa de pedir e, por fim, a caducidade do direito de ação.

 

No tocante à ilegitimidade processual (ativa), salienta que, ao abrigo do disposto no artigo 15.º, n.º 2 do Código dos IEC, aplicável por remissão do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que criou a CSR, tal pressuposto apenas assiste aos sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do imposto.

 

Em relação à revisão do ato tributário e reembolso, defende serem aplicáveis as normas dos artigos 15.º a 20.º do Código dos IEC que, como disposições especiais, prevalecem sobre as regras gerais previstas na LGT e no CPPT. Como tal, a Requerente, na qualidade de adquirente dos produtos, não tem legitimidade para solicitar a revisão do ato tributário e o reembolso do imposto, nem, consequentemente, o pedido arbitral, pois não integra a relação tributária relativa à liquidação originada pela Declaração de Introdução no Consumo (“DIC”).

 

A Requerente carece igualmente de legitimidade por se encontrar fora do âmbito de aplicação do artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, que prevê que os repercutidos legais, embora não sejam sujeitos passivos, têm legitimidade para reclamar, recorrer, impugnar e formular pedido arbitral. É que o diploma que institui a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, pelo que, no caso concreto, está em causa uma eventual repercussão de natureza meramente económica ou de facto, que não se pode presumir.

 

As faturas exibidas pela Requerente não corporizam atos de repercussão de CSR, apenas titulando operações de compra e venda de combustíveis, que não demonstram que os fornecedores repercutiram à Requerente aquele imposto. Por outro lado, ainda que a CSR, ou parte dela, tenha sido repassada à Requerente não é esta, necessariamente, quem suporta, a final, o encargo do tributo, pois não é consumidora final e, enquanto operadora económica, repassa, no todo ou em parte, os gastos incorridos no preço dos serviços que presta. I.e., a Requerente alega sem, todavia, provar que é repercutida e consumidora final.

 

A Requerida considera também que as declarações juntas e subscritas pelas duas fornecedoras de combustíveis, a B..., S.A. e a C..., S.A., esta última como intermediária na cadeia de comercialização, não fazem prova da repercussão, pois nem sequer identificam as DIC e as liquidações de CSR em causa, além de não se perceber em que qualidade atuam os signatários dessas declarações e com que poderes de representação.

 

Desta forma, conclui que a Requerente carece de legitimidade processual, o que consubstancia uma exceção dilatória, nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e) e 578.º, todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, que prejudica o conhecimento do mérito da causa e implica a absolvição da Requerida da instância. Ou, se assim não se entender, deve considerar-se que a Requerente carece de legitimidade substantiva, o que consubstancia uma exceção perentória, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, devendo a Requerida ser absolvida do pedido.

 

 De seguida, a Requerida argui a ineptidão da petição inicial por duas ordens de razões.

 

A primeira prende-se com a falta de objeto, em virtude de não terem sido identificados pela Requerente os atos tributários praticados pela AT, nem as DIC submetidas pelo sujeito passivo do imposto. Acrescenta que não é possível à AT identificar os atos de liquidação e/ou estabelecer qualquer correspondência entre esses atos originados nas DIC apresentadas pela B..., S.A. e as faturas apresentadas pela Requerente, nem sobre a AT recai tal ónus, ficando afastada a aplicabilidade do artigo 74.º, n.º 2 da LGT. A Requerida aduz que esta situação não é superável por atuações processuais.

A segunda respeita à ininteligibilidade do pedido e à contradição entre este e a causa de pedir. Na perspetiva da Requerida, a Requerente formula um pedido de anulação de liquidações que não identifica, através da mera impugnação de alegadas repercussões, sem sequer identificar o nexo entre estas e aquelas. Afinal o objeto do pedido são as liquidações ou as repercussões? E fá-lo com a ideia errada de que vigora na CSR um regime de repercussão legal e que esta pode ser presumida. Contudo, não se pode inferir da ilegalidade das liquidações a ilegalidade das repercussões.

 

Pelas razões expostas, considera verificada a exceção de ineptidão do pedido arbitral, por falta de identificação do ato tributário, exigida pelo artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, e por contradição entre o pedido e a causa de pedir, o que determina a nulidade de todo o processo e consequente absolvição da Requerida da instância, conforme disposto nos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b) e 278.º, n.º 1, alínea b), todos do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Por fim, a Requerida invoca a impossibilidade de se aferir em pleno da tempestividade dos pedidos de revisão oficiosa e de reembolso, dada a falta de identificação dos atos de liquidação em causa, uma vez que a contagem do prazo para a apresentação dos pedidos se inicia a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do ato de liquidação. Todavia, caso assim não se entenda, conclui que, quer o pedido de revisão oficiosa, quer o pedido arbitral, são intempestivos, suscitando a exceção de caducidade do direito de ação. 

 

A este respeito assinala que, estando em causa aquisições no período compreendido entre março de 2019 e dezembro de 2022, na data de apresentação do pedido de revisão oficiosa, em 25 de maio de 2023, já estava ultrapassado o prazo de 120 dias para deduzir a reclamação graciosa, previsto na primeira parte do artigo 78.º, n.º 1 da LGT.

 

Por outro lado, entende que a Requerente também não pode fazer-se valer do prazo de 4 anos previsto na segunda parte do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, por não se verificar o requisito de erro imputável aos serviços, uma vez que as liquidações de CSR foram efetuadas de acordo com a disciplina legal aplicável e não enfermam de qualquer vício. Nestes termos, sustenta que o pedido de revisão oficiosa é extemporâneo, com a consequente intempestividade da ação arbitral deduzida em 15 de dezembro de 2023, o que consubstancia uma exceção perentória que determina a absolvição da Requerida do pedido, ou, a título subsidiário, uma exceção dilatória, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 89.º, n.ºs 1, e 2 4 alínea k) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), devendo, nessa medida, ser absolvida da instância.

 

À cautela, alega ainda que, no âmbito dos IEC, os pedidos de reembolso apresentados devem ser apreciados à luz do regime específico previsto nos artigos 15.º a 20.º do Código dos IEC, que prevê o prazo de caducidade de 3 anos (v. artigo 15.º, n.º 3). Assim, em 25 de maio de 2023, já havia terminado o prazo em relação a todas as aquisições efetuadas pela Requerente em data anterior a 25 de maio de 2020.

 

Por impugnação, a Requerida invoca que a Requerente não provou a alegação de que pagou e suportou integralmente o encargo da CSR por repercussão, ónus que sobre si impendia (v. artigo 74.º da LGT), não se podendo presumir a existência da repercussão económica ou de facto. Por outro lado, exigir que fosse a Requerida a fazer prova de que não houve repercussão (prova de facto negativo) seria inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade, da tutela jurisdicional efetiva e do processo equitativo, preceituados nos artigos 2.º e 20.º da Constituição, e do direito ao contraditório e à ampla defesa.

 

Acrescenta que, admitir-se a condenação da AT à restituição dos montantes que a Requerente alegadamente suportou, a título de CSR, sem a exata identificação dos atos tributários em causa, poderia conduzir ao absurdo de a AT vir a ser, sucessivamente, condenada a pagar os mesmos montantes de CSR, a todos os intervenientes no circuito económico de comercialização de combustíveis rodoviários, que se veriam indevidamente enriquecidos em claro prejuízo do erário público, o que configuraria um atentado à segurança jurídica. Sendo que, na situação vertente, um dos fornecedores da Requerente, está também, ele próprio, na qualidade de repercutido, a apresentar pedidos destinados à recuperação da CSR.

 

Adicionalmente, mesmo a admitir-se que a CSR foi repercutida à Requerente, os montantes de imposto por esta indicados são incorretos, pois a unidade tributável é de 1000 litros convertidos para a temperatura de referência de 15ºC. Não existindo certificação da medição da temperatura na descarga do combustível adquirido (temperatura ambiente), não é viável realizar a correspondência para o número de litros a 15º C, pelo que é impossível, na fase da cadeia logística em que a Requerente se encontra, determinar a unidade tributável para efeitos de CSR e saber a eventual parte da CSR incluída no preço pago pelo combustível adquirido.

 

Em relação ao Despacho do Tribunal de Justiça no processo C-460/21, a Requerida sustenta que em momento algum este considera ilegal a CSR.

 

Afirma que existe um vínculo intrínseco entre o destino da CSR e o motivo específico que levou à sua criação, que se prende com a redução da sinistralidade rodoviária e a sustentabilidade ambiental, ambos distintos de uma finalidade orçamental. Deste modo, a CSR é conforme ao direito da União Europeia, não se constatando erro imputável aos serviços.

 

Por outro lado, ainda que a repercussão económica viesse a ser provada, de acordo com o Tribunal de Justiça, um Estado-Membro pode opor-se a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma ação civil de repetição do indevido.

 

Em relação ao pedido de reembolso de todos os impostos suportados pela Requerente incidentes sobre o valor da CSR, tais como o IVA e a tributação autónoma, a Requerida alega que não foi por aquela invocada qualquer causa de pedir para o mesmo, de onde decorre que esta pretensão tem por pressuposto a viabilidade do pedido principal, que é improcedente.

 

À cautela, salienta que, não havendo prova de que os encargos da Requerente com combustíveis incorporam ou não CSR, quer na sua totalidade ou apenas em parte, nem de que a Requerente, ela própria, não fez repercutir os alegados valores de CSR no preço final dos serviços/bens/mercadorias por si comercializadas, não é possível afirmar (ou sequer inferir) que a taxa de Tributação Autónoma referente a encargos efetuados ou suportados pela Requerente enquanto sujeito passivo de IRC com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos incidiu sobre aqueles valores de CSR. E o mesmo se diga quanto ao IVA. Pelo que, em ambos os casos, o pedido deve improceder.

 

Por fim, em relação ao pedido dos juros indemnizatórios, tendo sido apresentado pedido de revisão da liquidação, caso a ação fosse procedente, estes só seriam devidos depois de decorrido um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa, em conformidade com o disposto no artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, alínea c) da LGT.

 

Conclui pela extinção e absolvição da instância por incompetência do Tribunal Arbitral, e/ou ilegitimidade processual e/ou ineptidão do pedido arbitral, ou, se assim não se entender, pela absolvição do pedido, por verificação da exceção de caducidade do direito de ação, e/ou da exceção de falta de legitimidade substantiva; ou, por fim, caso assim não se entenda, pela improcedência total do pedido, por infundado e não provado.

 

 

III.     Questões a Apreciar

 

A questão de mérito a decidir respeita à compatibilidade do regime da CSR subjacente aos atos tributários impugnados com o direito da União Europeia, em concreto, com o disposto no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE.

 

No entanto, a Requerida invocou múltiplas exceções, quer dilatórias, quer perentórias, de que o Tribunal deve conhecer a título prévio, logo após a fixação da matéria de facto, a começar pelas dilatórias, pois a sua procedência impede a apreciação do mérito da causa.

 

 

  1. Fundamentação de Facto

 

  1. Factos Provados

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:

 

  1. A..., S.A., aqui Requerente, é uma sociedade que se dedica à atividade de assistência em escala nos aeroportos de Lisboa, Porto, Faro, Funchal e Beja, tendo cerca de 80 companhias aéreas como clientes – cf. depoimento das testemunhas e também provado por acordo.
  2. Os serviços prestados pela Requerente envolvem deslocações em terra com equipamentos e transporte para garantir a realização de diversas atividades, como, a aceitação automática de passageiros e bagagens em sistema próprio ou do cliente, embarque de passageiros ou o acolhimento de passageiros à chegada – cf. depoimento das testemunhas e também provado por acordo.
  3. No exercício da sua atividade, a Requerente efetua aquisições de combustíveis, designadamente gasóleo e gasolina – cf. faturas juntas como Documentos 1 a 236 e depoimento das testemunhas.
  4. Estas aquisições são efetuadas a dois fornecedores distintos, nos seguintes moldes – cf. faturas juntas como Documentos 1 a 236 e depoimento das testemunhas:  
    • Diretamente à B..., S.A. que os introduziu no consumo e que é o sujeito passivo da CSR, ou
    • Por intermédio da operadora do aeroporto, a C..., S.A., que por sua vez os adquiriu da B..., S.A..
  5. O combustível adquirido pela Requerente destina-se a ser consumido pela própria – cf. depoimento das testemunhas.
  6. Entre março de 2019 e dezembro de 2022, a Requerente adquiriu aos dois fornecedores supra referidos o seguinte combustível – cf. faturas juntas como Documentos 1 a 236:

Anos

Litros de Gasóleo

Litros de Gasolina

2019

655.487,02

74,02

2020

333.578,70

0,00

2021

451.576,70

7.868,08

2022

713.552,88

8.489,80

TOTAL

                       2.154.195,30

16.431,90

 

 

  1. As faturas que titulam a aquisição do combustível acima referido não contêm qualquer menção à CSR – cf. faturas juntas como Documentos 1 a 236.
  2. Os gastos com a aquisição de combustíveis fazem parte da estrutura de custos da Requerente e são tidos em conta para determinar as tarifas praticadas com os clientes – cf. Depoimento da primeira testemunha.
  3. Em 25 de maio de 2023, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa da CSR que alega ter suportado, no montante de € 240.545,25, por repercussão nas faturas de aquisição de combustíveis, no período compreendido entre março de 2019 e dezembro de 2022, tendo em vista o reembolso da CSR liquidada pelo fornecedor de combustíveis identificado B..., S.A. – cf. Documento 237 e PA.
  4. Até ao momento, a Requerente não foi notificada de qualquer decisão da AT sobre o referido pedido de revisão oficiosa  – provado por acordo.
  5. As fornecedoras de combustíveis emitiram declarações nos seguintes termos:
  • “B..., S.A. […] declara, para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível fornecido à empresa A..., S.A. (NIF –...), nos anos de 2019 a 2022, foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa. 

Pela B..., S.A.

[assinatura manual] D...” [sem data] – cf. Documento 238.

  • “B..., S.A. […] declara, para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário, referente aos anos de 2019 a 2022, por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível fornecido à empresa C..., S.A., pessoa coletiva n.º..., foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa. 

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2023

Pela B..., S.A.

[assinatura manual]D...” – cf. Documento 239.

  • C..., S.A., […] declara, para os devidos efeitos, que tendo contestado junto do Estado o montante de Contribuição do Serviço Rodoviário (CSR) que suportou nas faturas de aquisição de combustível à B... relativo aos anos de 2019 a 2022, excluiu dessa contestação o montante de CRS relativo ao combustível posteriormente cedido à A..., S.A tendo repercutido o respetivo custo nas faturas a essa empresa.

                 Lisboa, 17 de Maio de 2023

                                    Pela C..., S.A

                 [assinatura]                             [assinatura]

                     …                                                           …

                            CEO                                   CFO” – cf. Documento 240.

  1. Em 15 de dezembro de 2023, a Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral que deu origem à presente ação – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.

 

  1. Factos não Provados

 

            Não se provou em que medida os montantes de CSR que a Requerente reclama foram incluídos (e, portanto, repercutidos) no preço de compra do combustível adquirido aos dois fornecedores (artigos 40.º, 58.º, 59.º do ppa), nem que a Requerente não repercutiu, no todo ou em parte, esses montantes sobre terceiros, tendo suportado em definitivo o imposto (artigos 62.º, 64.º, 65.º, 74.º e 111.º do ppa).

 

            Com relevo para a decisão não existem outros factos que devam considerar-se não provados.

 

  1. Motivação da Decisão da Matéria de Facto

 

            Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos. Os depoimentos das duas testemunhas inquiridas, que depuseram de forma objetiva e com conhecimento direto dos factos relatados, apenas relevaram para contextualizar a atividade da Requerente e determinar que o combustível adquirido foi utilizado nessa atividade.

 

Em relação às alegações de que a CSR foi repercutida à Requerente e de que esta suportou economicamente (em definitivo) este imposto, as testemunhas não lograram fazer qualquer prova.

 

A primeira testemunha, E..., Diretor Financeiro e Administrativo, em relação à questão da repercussão da CSR à Requerente, afirmou esta informação consta das declarações emitidas pelos fornecedores e que foi obtida destes. Respondeu que desconhece a política de formação de preços da B..., S.A., pelo que não sabe nada sobre a repercussão a terceiros, nem sabe dizer qual a CSR, pois as faturas não têm qualquer menção a este imposto. Sobre a formação dos preços dos serviços prestados pela Requerente aos seus clientes, disse não ter acesso à fórmula de custeio, que é da competência da Direção Comercial. No entanto, em tese geral, confirmou que os custos incorridos com o combustível (incluindo o IVA que não é dedutível), fazem parte da estrutura de custos da Requerente que tem de ser refletida para determinar o valor da hora homem e a tarifa/preço a aplicar às companhias aéreas. Ou seja, confirmou que a regra é a da repercussão dos gastos incorridos e contabilizados pela Requerente nos preços praticados aos seus clientes.

 

A segunda testemunha, F..., Técnica Administrativa de Contabilidade, confirmou a natureza da atividade da Requerente e limitou-se a descrever a forma como calculou o valor da CSR. Multiplicou o valor da CSR aplicável pelos litros de gasolina ou gasóleo mencionados nas faturas dos fornecedores.

 

Quanto aos factos não provados, regista-se que a prova da repercussão da CSR à Requerente, pressupunha como ponto de partida a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelo sujeito passivo, a B..., S.A., quando da introdução no consumo dos combustíveis, em dado(s) período(s) e montante(s). O que não foi feito.

 

Na verdade, as declarações genéricas dos dois fornecedores de combustíveis, um dos quais nem sequer é sujeito passivo de CSR, tão-só um intermediário, estão longe de conter elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. E é o fornecedor de combustíveis que está na posse dos elementos de facto que permitem alcançar quais as DIC que apresentou (números e data) e qual o valor de CSR que delas consta em correspondência com as faturas emitidas ao seu cliente, a aqui Requerente. Também só com estes elementos se poderia exigir à AT que identificasse os atos de liquidação, que deles dependem.

A Requerente procura provar a repercussão através das declarações dos fornecedores juntas aos autos, onde aqueles se limitam a afirmar de forma genérica e abstrata que repercutiram o encargo da CSR. Declaração que não versa sobre as concretas transações realizadas entre a fornecedora de combustíveis e a Requerente; não faz a correspondência entre as operações praticadas e as DIC dos combustíveis transacionados; não estabelece a relação entre as transações e as DIC com as correspondentes liquidações emitidas pela AT e, finalmente, não demonstra a incorporação do encargo da CSR nas faturas de venda de gasóleo rodoviário à Requerente, nem tão pouco em que grau e/ou medida tal incorporação se processou, não se podendo presumir a repercussão da CSR.

 

Por outro lado, mesmo que se soubesse o concreto valor de CSR repercutido à Requerente, do adquirido processual não se retira, de igual modo, que tenha sido a Requerente, a final, a suportar economicamente o imposto em causa e que o encargo da CSR se cristalizou na sua esfera, como entidade que, em última instância, foi onerada com o tributo em causa. Tal asserção exige como premissa que o encargo com a CSR não estivesse compreendido no preço/tarifa dos serviços prestados aos clientes da Requerente (e/ou em que medida não estava), sendo que a primeira testemunha declarou, sem hesitação, que os gastos das faturas de combustíveis (nas quais, na tese da Requerente, está incluída a CSR) faziam parte da estrutura de custos da Requerente e que esta estrutura de custos era tida em conta para determinar as tarifas praticadas com os clientes, as quais refletiam os gastos incorridos. Ou seja, ficou claro o contrário do alegado pela Requerente: pelo menos em parte, o encargo da CSR eventualmente implícita nas faturas de aquisição de combustível é repassado aos seus clientes via tarifa/preço praticado.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

 

  1. Do Direito

 

Questões Prévias

 

  1. Sobre a Ineptidão do Pedido de Pronúncia Arbitral

 

A AT defende que o pedido de pronúncia arbitral é inepto, quer porque a Requerente não identifica os atos que são objeto do pedido arbitral, como exige o artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, quer porque o pedido está em contradição com a causa de pedir. A Requerente declina esta argumentação e propugna que os atos impugnados são da autoria da AT, sobre quem recai o ónus da sua identificação, e que a Requerida demonstra que percecionou o pedido arbitral na sua prolixa contestação de 272 artigos.

 

O artigo 98.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT indica como nulidade insanável do processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial, sem contudo esclarecer as situações que configuram essa ineptidão. Desta forma, deve aplicar-se, a título subsidiário (v. artigos 2.º, alínea e) do CPPT e 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT), o disposto no compêndio processual civil que, no artigo 186.º, rege esta matéria (v. neste sentido a decisão do processo arbitral n.º 410/2024-T, de 13 de novembro de 2023, que a seguir se acompanha).

 

No artigo 186.º, n.º 1 do CPC, indicam-se as seguintes situações de ineptidão da petição inicial:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

 

O n.º 3 do mesmo artigo determina que “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.

 

Em relação à identificação dos atos tributários, não tendo a Requerente a qualidade de sujeito passivo da CSR, não lhe é exigível que disponha das liquidações correspondentes, uma vez que não é o destinatário das mesmas, nem participou na sua emissão. Aliás, tal exigência comprometeria a sindicabilidade dos atos tributários por repercutidos legais, ou, no caso de retenções na fonte, pelos substituídos, com a consequente contração do acesso ao direito, incompatível com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva e com o princípio da proporcionalidade (v. artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da Constituição).

 

A não identificação dos atos tributários não impediu o exercício do contraditório pela Requerida, que, pelo teor da extensa e circunstanciada resposta, manifestou compreender o alcance da pretensão da Requerente e os argumentos que a alicerçam. Nem essa identificação é necessária para aferir da legalidade da cobrança de CSR.

 

O pedido formulado é perfeitamente inteligível e idóneo ao meio processual (ação arbitral tributária) - “revogação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão da liquidação de CSR sub judice respeitante ao exercício de 2019 a 2022 e […] ilegalidade das liquidações e pagamento da CSR repercutidas”- reconduzindo-se à declaração de ilegalidade (e consequente anulação) das liquidações de CSR.

 

Em relação à alegada contradição entre o pedido e a causa de pedir esta também não existe, pois a Requerente não põe em causa a legalidade de emissão das faturas, nem pretende atingir o ato de repercussão qua tale, antes visa a declaração de ilegalidade e a anulação das liquidações de CSR subjacentes e a restituição do imposto que alega ter suportado por repercussão (v. a este respeito a decisão de 12 de março de 2024 no processo arbitral n.º 676/2023).

 

Pelo exposto, improcede a exceção da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral, pois não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC.

 

  1. Da Competência Material do Tribunal Arbitral

 

A Requerida qualifica a CSR como contribuição financeira e não como imposto, daí retirando a consequente exclusão do âmbito da jurisdição arbitral por falta de vinculação da AT (v. artigo 4.º, n.º 1 do RJAT[2]). Isto porque a Portaria de Vinculação[3], no corpo do seu artigo 2.º, delimita o respetivo âmbito à “apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida [à AT]”, sem prever outros tributos. (sublinhado nosso)

 

A questão releva do ponto de vista da competência “relativa” do Tribunal Arbitral e não “absoluta”, em razão da matéria, já que a norma que rege a competência, o artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, faz referência a “atos de liquidação de tributos”, categoria ampla que compreende a tripartição clássica refletida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição e no artigo 3.º, n.º 2 da LGT – impostos, taxas e contribuições financeiras –, pelo que aí tem claro enquadramento a CSR.

 

Porém, mesmo na perspetiva da competência “relativa” não assiste razão à Requerida, porquanto, apesar de o artigo 2.º da citada Portaria parecer limitar o âmbito da vinculação da AT à jurisdição arbitral aos “impostos” e de o nomen juris da CSR sugerir que estamos perante uma contribuição financeira, a sua natureza é, na realidade, a de um imposto administrado pela AT, ainda que de receita consignada, não sendo a denominação determinante.

 

A Requerida cita diversas decisões arbitrais para reforçar o seu argumento[4], mas omite a existência de múltiplas outras decisões em sentido distinto, nomeadamente a do processo arbitral 304/2022-T, de 5 de janeiro de 2023[5], que se acompanha nesta matéria, e que, com suporte na jurisprudência dos Tribunais superiores, incluindo o Tribunal Constitucional, conclui que a CSR é um imposto.

 

Desde logo, a designação de contribuição não vincula o aplicador do direito e não é o facto de o tributo ter a receita consignada que o qualifica como contribuição financeira (v. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 539/2015; 369/99 e 232/2022, respetivamente), existindo vários impostos que têm a sua receita consignada (ainda que ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos).

 

O elemento decisivo para a qualificação da CSR como contribuição financeira é a existência de uma estrutura paracomutativa[6], ou dito de outra forma, de um nexo de bilateralidade/causalidade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita [Estado] e os sujeitos passivos do tributo. A prestação deve destinar-se a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos, “(...) acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2022, citado na decisão arbitral 304/2022-T).

 

No caso da CSR, constata-se que a mesma não tem por finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário e também não se identificam prestações administrativas a que o sujeito passivo tenha dado causa.

 

Conforme explicita a decisão arbitral 304/2022-T:

Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007).

Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se  inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.

A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.

No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos.

Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.

[…]

Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.

Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.

 

No mesmo sentido, salienta a decisão arbitral 629/2021-T, de 3 de agosto de 2022, que “o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas coletivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária.”.

 

A qualificação da CSR como um imposto foi também a seguida pelo Tribunal de Contas, na Conta Geral do Estado de 2008, e resulta da análise da sua génese. Interessa a este respeito notar que a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, criou a CSR por desdobramento do ISP, em relação ao qual é indiscutível a sua qualificação como imposto. Esta relação umbilical merece destaque na decisão arbitral 332/2023-T: “A CSR, durante algum tempo legalmente autonomizada do ISP, a partir do qual nasceu e ao qual voltou, constituiu sempre um pseudónimo deste – e, portanto, sempre foi um imposto”. 

 

Em síntese, a CSR é enquadrável como imposto, uma vez que não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições, estando, deste modo, abrangida pela autovinculação da AT à jurisdição arbitral, nos termos da citada Portaria n.º 112-A/2011, sendo este Tribunal competente para proceder à sua apreciação.

 

A Requerida suscita ainda a incompetência material deste Tribunal, por entender que a Requerente visa a apreciação da legalidade de todo o regime da CSR, pretendendo, em rigor, suspender a eficácia de atos legislativos. 

 

Contudo, não tem razão. O pedido formulado pela Requerente é especificamente dirigido à anulação dos atos tributários e da decisão silente de segundo grau que os manteve, não tendo sido peticionada a ilegalidade ou ineficácia da Lei n.º 55/2007 ou de alguma(s) das suas normas. E a pronúncia jurisdicional será, se a ação for procedente, meramente anulatória (constitutiva) dos atos impugnados, não consubstanciando uma declaração de ilegalidade do (ou dirigida ao) regime da CSR em bloco.

 

Quer do ponto de vista formal, quer numa perspetiva material, a Requerente não pretende, nem do seu articulado se infere, a “fiscalização da legalidade de normas em abstrato”. O que está em causa nos atos é a apreciação de atos individuais e concretos – de liquidação de CSR – em relação aos quais foi suscitada a questão da respetiva ilegalidade por erro de direito. A alegada ilegalidade do regime da CSR por violação do direito da União Europeia é causa de invalidade dos atos, mas não o objeto da pronúncia jurisdicional. A pretendida decisão anulatória de atos individuais e concretos com fundamento da desconformidade da disciplina da CSR com o direito europeu, mais não é do que a expressão do princípio do primado do direito da União Europeia, sem paralelo com uma alegada declaração de ilegalidade do próprio regime.

            A Requerida invoca ainda a falta de competência material do Tribunal Arbitral para se pronunciar sobre a legalidade dos atos de repercussão de CSR.  

 

            Como descreve Sérgio Vasques “Os atos de repercussão materializam “um fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem[7].

 

Independentemente da posição que se adote sobre a natureza jurídica dos atos de repercussão, quanto a saber se são atos que integram uma relação jurídico-tributária complexa, ou se são um fenómeno económico de natureza estritamente privada, certo é que aqueles não são atos tributários em sentido lato, porque não envolvem o apuramento da matéria coletável/tributável através da aplicação de uma norma tributária substantiva a um caso concreto e muito menos atos tributários de liquidação stricto sensu, que tornam certa, líquida e exigível a obrigação tributária através da operação aritmética de aplicação da taxa legal à matéria tributável previamente determinada (v. neste sentido Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Almedina, 2017, p. 278).

 

            Efetivamente, os atos de repercussão não se subsumem a nenhuma das realidades visadas pelo artigo 2.º do RJAT, pelo que os Tribunais Arbitrais não são competentes para os apreciar. Porém, a Requerente não solicita a apreciação da legalidade dos atos de repercussão. O pedido da Requerente circunscreve-se aos atos de liquidação de CSR emanados da AT, dos quais, como acima dito, o Tribunal pode conhecer.

 

            Por fim, no tocante à incompetência do Tribunal Arbitral para decidir o pedido de restituição de valores, que segundo a Requerida, só pode ser apreciado em execução do julgado, tal só se verifica se a determinação do valor da liquidação a anular estiver dependente de operações que envolvam o exercício da atividade administrativa, não havendo necessidade de remeter tal fixação para a fase de execução da decisão se a quantificação do valor anulado não oferecer dúvidas e resultar de um cálculo aritmético simples, sem margem de apreciação administrativa (v. artigo 609.º, n.º 2 do CPC (a contrario), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT). 

 

Assim, por oposição ao que a Requerida preconiza, não estão em juízo matérias às quais a AT não se tenha vinculado, nem pedidos que o Tribunal Arbitral não possa conhecer, inexistindo qualquer alargamento do âmbito do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT cuja inconstitucionalidade possa ser arguida.

 

À face do exposto, julga-se improcedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, encontrando-se a AT ao mesmo vinculada, por estar em causa um pedido de anulação de atos de liquidação de imposto, a CSR (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

 

  1. Da Ilegitimidade Ativa

 

O RJAT não contém a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, por via da aplicação do seu artigo 29.º, n.º 1, que remete para as disposições legais de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC.

 

Da regra geral do direito processual, constante do artigo 30.º do CPC, resulta que é parte legítima quem tem “interesse direto” em demandar, sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade ativa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (v. artigo 9.º, n.º 1 do CPTA).

 

A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um ato tributário, cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da LGT, como “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.”.

 

Neste domínio, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas (v. artigo 1.º, n.º 2 da LGT).

 

O CPPT consagra uma norma específica à legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

 

No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”. E o artigo 78.º da LGT, no âmbito da revisão dos atos tributários, assegura a mesma posição apelando aos conceitos de sujeito passivo e de contribuinte.

 

Em relação aos sujeitos passivos não originários, o legislador teve a preocupação de justificar, de forma especificada, a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Assim, quanto aos responsáveis solidários, a legitimidade processual deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (v. artigo 9.º, n.º 2 do CPPT). E, relativamente aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (v. artigo 9.º, n.º 3 do CPPT). Em ambas as situações constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias –, o que sucede igualmente com o substituto.

 

In casu, a Requerente invoca a qualidade de repercutido legal para deduzir a ação arbitral.

 

Efetivamente, apesar de o repercutido legal não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, determina que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjetiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica (ou pressupõe) desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

 

Nesse contexto, assinala Sérgio Vasques que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral[8].

 

            Todavia, a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, que institui a CSR, não contém qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1 da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”. Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, pelo que o artigo 5.º, n.º 1 não remete para o artigo 2.º do CIEC (que prevê a repercussão legal nos impostos especiais sobre o consumo), mas apenas para as normas desse código que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.

            A Requerente invoca a nova redação do artigo 2.º do Código dos IEC introduzida pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro[9], para demonstrar a repercussão, afirmando que o legislador veio esclarecer que a CSR é sempre repercutida nos consumidores.

 

            No entanto este raciocínio apresenta diversos problemas. Desde logo, porque a CSR tem um regime próprio, vertido na Lei n.º 55/2007, não sendo um dos tributos projetados no campo de incidência objetiva do Código dos IEC. A remissão do regime da CSR para o Código dos IEC que consta do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, restringe-se à componente procedimental da “liquidação, cobrança e pagamento” da CSR, não podendo extrapolar-se uma aplicação generalizada dos princípios e regras dos IEC consagrados nesse compêndio a um tributo que no mesmo não está previsto. Acresce que no mencionado artigo 2.º do Código dos IEC não é feita qualquer referência à CSR que, aliás, foi extinta precisamente pela Lei n.º 24-E/2022 que alterou a sua redação.  

 

            Acresce que a alteração legislativa operada no Código dos IEC, cuja redação (do artigo 2.º) passou a conter a referência expressa à repercussão, é posterior à data dos factos sob apreciação, pelo que, se fosse de seguir a posição da Requerida, estar-se-ia perante um caso flagrante de aplicação retroativa de normas fiscais. Esta conclusão não resulta afastada pela atribuição de natureza interpretativa pelo legislador[10], pois a retroatividade inerente às leis interpretativas “é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.” (v. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 16 de dezembro de 2020. No mesmo sentido se pronuncia o recente acórdão do mesmo Tribunal, n.º 503/2024, de 25 de junho de 2024).

 

Em síntese, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (v. artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil). E a alteração legislativa do Código dos IEC, ocorrida em dezembro de 2022, que passou a consagrar a repercussão nos IEC, além de não ser subsidiariamente aplicável à CSR, por falta de norma remissiva, mesmo que o fosse, não poderia reger a situação em análise porque é posterior à data dos factos.

 

A Requerente baseia a sua intervenção processual na alegação singela de lhe ter sido repercutida a CSR pelas empresas fornecedoras de combustíveis, caracterizando-se como um consumidor de combustíveis que suporta (a final) o encargo daquele tributo.

 

Contudo, a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3 da LGT, pelo que, não sendo parte em contratos fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

 

Como atrás exposto, a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, que requer, nos termos da lei, a demonstração de um interesse legalmente protegido, i.e., que mereça a tutela do direito substantivo.

 

A Requerente não tem a qualidade de consumidor de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”). Na verdade, o combustível adquirido é um fator de produção no circuito económico, pelo que se a CSR, conforme alega a Requerente, se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida aquela não faz parte das entidades potencialmente lesadas, que são os consumidores e não os operadores económicos (v. neste sentido as decisões dos processos arbitrais n.ºs 408/2023-T, de 8 de janeiro de 2024, e 375/2023-T, de 15 de janeiro de 2024).

 

Ora, não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, substituto, responsável ou repercutido legal desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, i.e., que evidencie um interesse direto e legalmente protegido na sua esfera (v. artigo 9.º, n.º 1 in fine do CPPT), passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre si impende.

 

Contudo, o único facto que a Requerente alega para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR, cujo encargo económico foi por si suportado. Qualifica esta repercussão, erradamente, como legal, que, a ser “legal”, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza, a qual, porém, não existe. Uma das características típicas da repercussão legal, como sucede no IVA e em algumas verbas do Imposto do Selo, é a evidenciação nos documentos de débito – faturas emitidas – do imposto repercutido, que permite o seu controlo por parte do repercutido (v. artigos 36.º, n.º 5, alíneas c) e d) do Código do IVA e 23.º, n.º 6 do Código do Imposto do Selo. Este último refere que “nos documentos e títulos sujeitos a imposto são mencionados o valor do imposto e a data da liquidação, com exceção dos contratos previstos na verba 2 da tabela geral [arrendamento e subarrendamento], cuja liquidação é efetuada nos termos do n.º 8.”).  Não é o que sucede na situação vertente, em que os documentos que titulam as vendas de combustível não mencionam a CSR ou o seu quantitativo (na parte repercutida). 

 

Por outro lado, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo, contrariamente ao que a Requerente afirma. Na realidade, a Requerente é tão-só um cliente comercial do sujeito passivo que liquidou a CSR.

 

Compreende-se que o legislador não tenha adotado um conceito irrestrito de legitimidade ativa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o ato de liquidação do imposto, a determinação da sua efetiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. A ser assim, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.

 

Conforme antes referido, a Requerente não logrou atestar que suportou a CSR contra a qual reage, ou a medida em que a suportou. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente ação arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legal da CSR. Diversamente, o que se demonstrou foi que a Requerente considera os gastos incorridos com a aquisição de combustíveis (incluindo os impostos inerentes aos mesmos) como fazendo parte da sua estrutura de custos, que reflete nos preços (tarifas) praticadas com os seus clientes, transferindo, portanto, o encargo económico da CSR para terceiros. 

 

Nem se diga que com esta solução a Requerente ficou desprovida de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma ação civil de repetição do indevido instaurada contra os seus fornecedores, se reunir os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspetiva, está acautelada a observância do acesso ao direito e do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (v. artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da Constituição).

 

Sublinha-se que a presente decisão não representa uma denegação do direito ao reembolso, mas o reconhecimento de que a demandante, aqui Requerente, não é a Parte com legitimidade para o solicitar ao Estado.

 

De notar, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao atual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respetiva liquidação, precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (v. Acórdão de 1 de outubro de 2003, processo n.º 0956/03).

 

Em síntese, não tendo ficado provado o valor da CSR repercutido pelos fornecedores de combustíveis à Requerente, nem que esta suportou o encargo económico do imposto, falece-lhe legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto, solução que se enquadra numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 268.º, n.º 4), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros.

 

A conclusão da ilegitimidade da Requerente também se retira da exegese do Código dos IEC, aplicável à CSR na parte referente à liquidação, cobrança e pagamento do imposto (por remissão do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007). Conforme declara o acórdão do CAAD, de 1 de fevereiro de 2024, proferido no âmbito do processo 296/2023-T, “qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”).” (realce nosso)

 

A referida norma [artigo 15.º, n.º 2, do Código dos IEC] estabelece que “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto.”.

 

Desde a redação inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho, a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjetiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.

 

Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados (no artigo 4.º), e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre, tal como resulta do n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”. Ora, esta solução apresenta total cabimento face à impraticabilidade que seria fazer a gestão de um sistema demasiadamente aberto a todo o género e tipo de reembolsos, com uma duvidosa forma de controlo. A esta mesma conclusão chegaram, entre outras, as decisões proferidas nos processos arbitrais n.ºs 296/2023-T, 408/2023-T, 375/2023-T e 633/2023-T.

 

À face do exposto julga-se verificada a exceção de ilegitimidade da Requerente, constituindo uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT, ficando prejudicados todos os passos seguintes no iter cognoscitivo acima delineado.

 

  1. Questões Prejudicadas

 

A procedência da questão prévia da ilegitimidade ativa da Requerente, prejudica o conhecimento das exceções de ilegitimidade substantiva e caducidade do direito de ação e impede o conhecimento do mérito da causa (v. artigos 608.º e 130.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT). Com referência ao indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, dado tratar-se de uma mera ficção jurídica destinada a abrir a via contenciosa, servindo, no caso do processo arbitral tributário, para a fixação do dies a quo do prazo para apresentação do pedido arbitral, nos termos do art.º 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, não tem este Tribunal de se pronunciar sobre a respetiva anulação ou confirmação.

 

  1. Decisão

 

            Atento o exposto, este Tribunal Arbitral Coletivo decide:

 

  1. Julgar improcedentes as exceções dilatórias de ineptidão do pedido de pronúncia arbitral e de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar os atos de liquidação de CSR;
  2. Julgar procedente a exceção ilegitimidade ativa da Requerente para deduzir o pedido de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de CSR e, em consequência, absolver a Requerida da instância;
  3. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo

 

Tudo com as legais consequências.

 

  1.    Valor do Processo

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 240.545,25, que corresponde à importância de CSR cuja anulação a Requerente pretende e não contestado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

  1. Taxa de Arbitragem

 

            Fixam-se as custas no montante de € 4.284,00 (quatro mil duzentos e oitenta e quatro euros), a suportar pela Requerente por decaimento, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT e com a Tabela I anexa ao RCPAT.

 

 

                        Notifique-se.

 

                        Lisboa, 1 de agosto de 2024

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins, relatora

 


Marisa Isabel Almeida Araújo

 

Vítor Braz

(com declaração de voto junta)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração

Atento o teor do douto acórdão, sem discordar com o sentido da decisão por falta de prova sobre a efetiva repercussão da CSR, quanto à matéria de direito e à ilegitimidade da Requerente, apresento as observações seguintes:

Quando é cobrado imposto em violação do direito da União Europeia é entendido que subiste a obrigação de restituí-lo ao sujeito passivo (SP), nos termos da lei e da jurisprudência da EU e nacional, salvaguardadas as situações de enriquecimento sem causa.

O pedido em apreciação consiste em saber se nos termos desses ordenamentos jurídicos, os restantes intervenientes nas operações comerciais e, em regra, os contribuintes consumidores finais a quem o imposto possa ter sido repercutido e que o possam ter suportado economicamente têm o direito de exigir diretamente da Requerida/Estado a apreciação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto indevidamente pago, caso seja provado ter sido acrescido ao preço de compra do bem/produto por eles adquirido.

As empresas petrolíferas, em regra, repercutem o ISP e, no caso a CSR, nos operadores a jusante. Enquanto impostos aplicados ao consumo, estes caracterizam-se pelo facto de o seu encargo financeiro poder ser repercutido -repercussão fiscal - nos intervenientes na atividade comercial, maxime, no consumidor final.

A legitimidade deve ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas - têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem um interesse legalmente protegido. - cf. n.º 2 do art.º 1.º e art.º 65.º da LGT.

Nos termos da alínea a) do n.º 4 do art.º 18.º da LGT assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”. Nesse sentido, o CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” – cf. art.º 9.º do CPPT.

No caso da CSR alegadamente paga pela/s Requerente/s, enquanto consumidor final, existe a demonstração de um interesse legalmente protegido e que merece a tutela do direito, porquanto é no contribuinte consumidor final que, em regra, recai o pagamento dos tributos indiretos.

Por fim, atenta a jurisprudência da UE, o “Tribunal de Justiça referiu expressamente a possibilidade de o comprador final poder exigir, directamente às autoridades nacionais, a restituição do montante do imposto indevido cujo encargo suportou. “ – cf. Acórdão Comateb e O (-192/95 a C-218/95, Colect., p. I-165, n.º 20) de 14 de Janeiro de 1997.”

A plena eficácia do direito de reparação e a proteção efetiva dos contribuintes poderia ficar manifestamente prejudicada perante uma interpretação restrita no sentido de apenas os SP (no caso de CSR) gozarem do direto de ação e de pedirem o reembolso ao Estado – art.ºs. 4.º a 12.º e 15.º a 20.º do CIEC, limitando-se formalmente a outros sujeitos da relação tributária a efetiva reparação dos prejuízos incorridos - os contribuintes que possam ter suportado efetivamente o imposto e ser objetivamente lesados pelos respetivos atos de liquidação.

Nesse sentido, aquele Tribunal afirma: “Por conseguinte, no caso em que um Estado-Membro tenha cobrado um imposto especial sobre o consumo em violação do direito da União e o sujeito passivo tiver repercutido este sobre o seu cliente, um direito a indemnização deste cliente contra o Estado não pode ser recusado com o fundamento de que é de excluir de antemão um nexo de causalidade directo entre a cobrança do imposto e o dano do cliente.” – cf. Proc. C-94/10, conclusões.

Termos em que a/s Requerente/s, na qualidade de consumidor final dos produtos sujeitos a ISP e, subsequentemente a CSR, a quem este imposto possa ter sido repercutido, é titular de um interesse legalmente protegido e, ipso facto, de legitimidade processual, enquanto forma de acesso à justiça e de proteção dos direitos e reparação dos prejuízos que alega ter suportado com o pagamento da CSR, considerada em desconformidade com o direito da União.

Por sua vez, o invocado direito de acesso à justiça, em matéria tributária, através da jurisdição civil contra o SP, o qual se limitou a cumprir a lei vigente e que, em princípio, não obteve qualquer ganho, afigura-se que tal possibilidade seria difícil ou inexistente, na medida em que não ocorre nenhuma das situações previstas no artigo 476º do Código Civil. Observa-se que a repetição do indevido dependeria, ainda, do enriquecimento sem causa do SP, o qual, em regra, não ocorreu por ter entregado ao Estado um imposto que, eventualmente, repercutiu no consumidor final.

Acresce que atento o princípio da efetividade, deve ser igualmente reconhecido ao consumidor final, em regra, o repercutido de impostos indiretos, o direito de reclamar diretamente junto da administração tributária os montantes de imposto indevidamente liquidados e alegadamente pagos, com os demais poderes de impugnação junto dos Tribunais, incluindo o presente Tribunal arbitral - cf. Acórdão do TJUE de 20 de outubro de 2011, Proc. C-94/10.

A legitimidade processual é analisada no início do processo, enquanto a insuficiência de prova é avaliada ao longo da instrução processual.

Termos em que entendo ser de distinguir, por um lado a apreciação dos aspetos estritamente jurídicos e, por outro, a matéria de facto e a prova, esta de livre apreciação pelo Tribunal. A legitimidade processual é analisada no início do processo, enquanto a prova é avaliada ao longo da instrução processual. A legitimidade é uma questão de capacidade para estar em juízo, enquanto a insuficiência de prova é uma questão de convencimento do Tribunal sobre a existência do direito alegado.

A insuficiência de prova é uma questão relacionada com a admissibilidade da ação e a prova da alegação, enquanto a legitimidade processual é uma questão de capacidade para estar em juízo. Trata-se de questões distintas e a primeira não afeta diretamente a segunda. A insuficiência de prova, in casu, gera a improcedência da ação.

Nesse sentido, observo a jurisprudência do TJUE e o teor do Acórdão de 7 de fevereiro de 2022, Proc. C-460/21, ponto 44: "Com efeito, ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos – Vd, neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C‑147/01, EU:C:2003:533, n.º 96.

01-08-2024

O árbitro,

 

Vítor  Braz

 

 

 

 



[1] A outra parte reporta-se ao ISP, imposto que não é contestado na presente ação.

[2] Dispõe o n.º 1 do artigo 4.º do RJAT o seguinte: “A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria […]”.

[3] V. Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

[4] V. decisões dos processos arbitrais n.ºs 31/2023-T, 508/2023-T, 520/2023-T e 675/2023-T.

[5] De referir ainda, a título de exemplo, as decisões arbitrais dos processos 564/2020-T, 629/2021-T, 305/2022-T, 644/2022-T, 665/2022-T,  702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T, 332/2023-T e 410/2023-T.

[6] V. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/2019.

[7] V. Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399.

[8] V. Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., p. 401.

[9] O artigo 2.º do Código dos IEC passou a dizer o seguinte: “Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

[10] V. artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro.