SUMÁRIO:
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A Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei nº 55/2007, de 31 de agosto é um imposto;
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A Contribuição de Serviço Rodoviário não prossegue, na aceção do artigo 1º nº 2 da Diretiva 2008/118, de 16 de dezembro, “motivos específicos”, por se tratar de um imposto cujas receitas ficam genericamente afetas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários;
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A repercussão da Contribuição de Serviço Rodoviário nos consumidores de combustíveis é uma repercussão legal e, dessa forma, presumida, podendo ser ilidida mediante prova em contrário;
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Os consumidores finais, enquanto utilizadores da rede rodoviária nacional, têm legitimidade para impugnar judicialmente os correspondentes atos de liquidação de ISP/CSR que tenham suportado, bem como para requerer o seu reembolso;
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Para o efeito, impõe-se a prova do efetivo pagamento da CSR, não bastando a mera junção das faturas de venda do combustível.
DECISÃO ARBITRAL
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RELATÓRIO:
A..., LDA., titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva..., doravante designada por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade e anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa das liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) e consequentes atos de repercussão, praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) com base nas Declarações de Introdução no Consumo (DIC) submetidas pelas entidades B..., S.A. e C... S.A., relativas ao período compreendido entre julho de 2019 e dezembro de 2022, no montante total de € 41.294,61; a anulação das liquidações correspondentes, bem como a condenação da Autoridade Tributária a reembolsar à Requerente o valor de CSR pago, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, à taxa legal.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em síntese:
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No período compreendido entre julho de 2019 e dezembro de 2022 a Requerente suportou, a título de CSR, na qualidade de consumidora final, CSR no valor global de € 41.294,61;
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A Requerente deduziu, em 11/08/2023, pedido de revisão oficiosa, tendo em vista as liquidações de CSR relativas ao período entre julho de 2019 a dezembro de 2022, no valor global de € 41.294,61;
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Até à data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral e de constituição do tribunal arbitral a Requerente não foi notificada de qualquer decisão que tenha recaído sobre o pedido de revisão oficiosa apresentado;
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Os atos de liquidação impugnados violam o direito europeu, designadamente a Diretiva 2008/118, de 16 de dezembro de 2008;
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A CSR configura uma mera alteração de designação de parte do ISP, e visa financiar a rede rodoviária nacional;
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A CSR não foi criada tendo em conta qualquer “motivo específico”, distinto de uma finalidade orçamental de obtenção de receita;
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A afetação da receita a despesas determinadas pode constituir um indicador de um motivo específico na criação destes impostos, mas nem toda a afetação comprova um motivo específico;
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Inexistindo motivo específico seria necessário, segundo o TJUE, que a estrutura do imposto servisse para desmotivar o consumo dos principais combustíveis, o que não sucede;
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Antes visa o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, mas é cobrada a todos os consumidores ainda que não circulem exclusivamente em estradas da rede rodoviária a cargo daquela;
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A CSR criada pela Lei nº 55/2007 é um verdadeiro imposto e não uma contribuição, e por isso desconforme à Diretiva nº 2008/118;
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O pedido de constituição de tribunal arbitral é o meio processual adequado a reclamar a reposição da legalidade e a Requerente, enquanto consumidor final que suportou o encargo, tem legitimidade para o fazer;
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A inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais de aceso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, da Lei 55/2007 quando interpretada no sentido de não reconhecer à Requerente o direito que reclama;
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Pelo que se encontra a Requerida obrigada a reembolsar o montante de imposto indevidamente cobrado, acrescido de juros indemnizatórios calculados desde a data dos pagamentos indevidos.
A Requerente juntou 3 documentos e não arrolou testemunhas.
No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº 1 do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.
O tribunal arbitral singular foi constituído em 24 de maio de 2024.
Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Na defesa por exceção, invocou a Requerida, em síntese:
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A CSR é uma contribuição e não um imposto, encontrando-se, assim, excluída da arbitragem tributária, já que a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos qualificados como contribuição;
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A Requerente não suscita a apreciação da legalidade de normas especificas do regime da CSR, mas antes o regime da CSR no seu todo, pretendendo com a presente ação suspender a eficácia de atos legislativos, o que extravasa o âmbito da ação arbitral prevista no RJAT;
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O tribunal arbitral não tem competência para se pronunciar sobre atos de repercussão de ISP/CSR subsequentes e autónomos dos respetivos atos de liquidação de ISP/CSR;
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Apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do ISP/CSR têm legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago, o que não é o caso da Requerente, entidade repercutida;
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No âmbito da CSR não existe um ato tributário de repercussão legal, mas apenas a possibilidade de repercussão económica ou de facto;
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Nem as declarações nem as faturas juntas pela Requerente corporizam quaisquer atos de repercussão da CSR, nem atestam que tal tributo foi suportado pela Requerente, enquanto consumidora final;
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A Requerente não identifica os atos tributários impugnados, limitando-se a invocar ter suportado CSR, apurando o valor de reembolso com base em faturas, que não constituem qualquer ato tributário;
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Não é possível à Requerida identificar os atos de liquidação em crise;
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Os alegados fornecedores de combustível da Requerente não são titulares de estatuto fiscal no âmbito do ISP e, como tal, não poderão ter sido responsáveis pela introdução dos produtos no consumo e pelo pagamento da CSR correspondente;
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A falta de identificação das liquidações impugnadas impede a verificação da tempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado, bem como, em consequência, do pedido de pronúncia arbitral;
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No entanto, tendo em conta as datas de aquisição de combustível alegadas pela Requerente, é manifesto que, à data da apresentação do pedido de revisão oficiosa, já há muito se encontrava ultrapassado o prazo legal estipulado para o efeito;
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Não se verifica qualquer erro imputável aos serviços passível de alargar para 4 anos o prazo para apresentação do pedido de revisão oficiosa, tendo-se a AT limitado a aplicar as normas vigentes;
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A extemporaneidade do pedido de revisão oficiosa tem, necessariamente, como consequência a caducidade do direito de ação por parte da Requerente.
Em sede de defesa por impugnação, invocou a Requerida, em síntese:
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A Requerente não logrou demonstrar ter suportado o encargo do pagamento da CSR por repercussão;
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Não se verifica qualquer desconformidade entre o ordenamento jurídico português e o Direito da União Europeia;
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Existe um vínculo entre o destino dado às receitas da CSR e o motivo específico que levou à sua criação;
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A CSR tem também objetivos de sustentabilidade ambiental e de redução de sinistralidade, pelo que não se pode defender ter esta uma finalidade puramente orçamental de obtenção de receita;
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Os juros indemnizatórios apenas seriam devidos desde a data do pagamento se a AT tivesse proferido decisão no âmbito do pedido de revisão oficiosa decorrido mais de um ano após a sua apresentação, o que não se verificou.
A Requerida juntou o processo administrativo e não arrolou testemunhas.
Devidamente notificada para o efeito, a Requerente não respondeu às exceções deduzidas.
Por despacho de 04/07/2024, foi dispensada a realização da reunião arbitral, bem como a produção de alegações.
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SANEAMENTO:
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
Não existem nulidades que invalidem o processado.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária, não ocorrendo vícios de patrocínio.
Em sede de resposta, a Requerida invocou diversas exceções que importa desde já conhecer, já que a procedência de alguma destas exceções prejudica o conhecimento do mérito do pedido.
Assim:
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Da incompetência material do tribunal arbitral, atenta a natureza jurídica da CSR:
Na resposta apresentada, defende a Requerida a incompetência do tribunal arbitral para conhecimento do pedido formulado, para tanto defendendo, em síntese, que a jurisdição arbitral se encontra limitada à apreciação da legalidade de atos de liquidação de impostos e a CSR não constitui um imposto, mas antes uma contribuição financeira. Invoca ainda a Requerida que a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição.
A Requerente, por seu turno, defende que a CSR constitui, na substância, um imposto, ainda que de receita consignada, e não de mera contribuição financeira, não se verificando, assim, qualquer incompetência material do tribunal arbitral.
Apreciando a questão, desde já adiantamos acolher a tese defendida pela Requerente.
A questão, segundo entendemos, coloca-se, não do ponto de vista da competência do tribunal arbitral - já que a sua competência abrange, conforme decorre do artigo 2º do RJAT, todos os tributos - mas no âmbito da vinculação da Autoridade Tributária.
O artigo 4º do RJAT determina que a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.
Por seu turno, de acordo com a AT, o artigo 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março restringe a vinculação da Autoridade Tributária à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo todos e quaisquer tributos, designadamente a CSR.
Tal entendimento não nos parece ter, no entanto, qualquer suporte na letra da lei, sendo que, como é sabido, não pode ser considerada pelo intérprete qualquer interpretação que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, devendo o intérprete presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Ora, da análise do artigo 2º da referida Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não se verifica qualquer restrição da vinculação da Autoridade Tributária à apreciação de pretensões relativas a impostos.
Com efeito, dispõe o citado preceito:
“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”
Pese embora a referida norma se refira a “apreciação das pretensões relativas a impostos”, a verdade é que remete para o artigo 2º nº 1 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT).
Sendo que o número 1 do artigo 2º do RJAT não restringe a competência dos tribunais arbitrais à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de impostos, abrangendo antes a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos no geral, entre os quais, como está bom de ver, se incluem as contribuições financeiras.
Ademais, a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março previu de forma taxativa as pretensões excluídas da vinculação da Autoridade Tributária, entre as quais não se encontra a análise de pretensões relativas a liquidações de contribuições financeiras.
E, onde a lei não distinguiu, não pode nem deve o intérprete fazê-lo.
De onde resulta que, ao contrário do defendido pela AT, a vinculação desta aos tribunais arbitrais não se restringe a impostos, abrangendo todos e quaisquer tributos.
Mas, ainda que se aceitasse a posição defendida pela AT, não se verificaria qualquer incompetência do tribunal arbitral.
Isto porque, ao contrário do defendido pela AT, a CSR constitui um verdadeiro imposto administrado pela AT, ainda que de receita consignada, e não uma mera contribuição financeira, não sendo a sua denominação, para efeito de apreciação da competência deste tribunal arbitral, determinante.
Ao invés, para determinar a qualificação de um tributo como imposto ou como contribuição impõe-se ao intérprete analisar o conteúdo específico de tal tributo e não apenas a sua denominação.
Ora, como é sabido, o sistema tributário português compreende três categorias de tributos: impostos, taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas.
Conforme ensina SOARES MARTINÉZ [1], a relação jurídica de imposto tem carácter obrigacional, tem por fim a realização de uma receita pública e não depende de outros vínculos jurídicos, nem determina para o sujeito ativo respetivo qualquer dever de prestar específico, o que significa que tem carácter unilateral, não bilateral ou sinalagmático.
O imposto consiste ainda numa prestação pecuniária sem carácter sancionatório.
Por seu turno, a taxa tem origem sinalagmática, correspondendo, por parte do sujeito ativo, a um dever de prestar específico. Nas palavras do indicado autor, a taxa “tem por causa a prestação por uma entidade pública de utilidades individualizadas”.
Já quanto à contribuição, explica o autor a que se vem de fazer referência, que as respetivas relações são obrigacionais, o seu fim é a criação de receitas públicas e não dependem de outros vínculos jurídicos nem determinam para o sujeito ativo qualquer dever de prestar específico.
Para ALBERTO XAVIER [2], os tributos dividem-se em duas grandes categorias: os impostos e as taxas.
O tributo, segundo ensina este Autor, “é a prestação patrimonial estabelecida por lei a favor de uma entidade que tem a seu cargo o exercício de funções públicas, com o fim imediato de obter meios destinados ao seu financiamento.”
São, pois, elementos caracterizadores do tributo (i) a patrimonialidade; (ii) o carácter obrigacional e (iii) a origem legal.
Nas palavras do indicado Autor, “a prestação patrimonial em que o imposto consiste é uma prestação unilateral, no sentido de não sinalagmática, pois a obrigação de que resulta não se encontra entrelaçada com qualquer outra obrigação recíproca com o mesmo fundamento a cargo do titular do imposto, que seja a contrapartida da atribuição patrimonial que através dela se obtém.”
Isto porque, como explica, “a situação que dá origem ao imposto não gera para o credor qualquer dever específico de efetuar uma contraprestação.”
O imposto diferencia-se da taxa por aquele ser o modo de funcionamento próprio dos serviços públicos indivisíveis e a taxa dos serviços divisíveis, isto é, que proporcionam vantagens ou satisfações individualizadas a quem os utiliza.
A taxa reveste carácter sinalagmático, não unilateral. Aqui, o fundamento do tributo é a prestação da atividade pública, a utilização do domínio e a remoção do limite jurídico e por isso estas realidades e a taxa que lhes corresponde encontram-se entre si ligadas por um nexo sinalagmático, em termos de uma se apresentar como contraprestação da outra.
Já quanto à contribuição financeira, figura afim do imposto e da taxa, defende este Autor que esta se verifica em dois casos distintos: naqueles em que é devida uma prestação, em virtude de uma vantagem económica particular resultante do exercício de uma atividade administrativa, por parte de todos aqueles que tal atividade indistintamente beneficia e naqueles em que é devida uma prestação em virtude das coisas possuídas ou da atividade exercida pelos particulares darem origem a uma maior despesa da entidade pública.
Para este Autor, a contribuição financeira não tem seguramente a natureza de taxa, mas “nada leva a separá-las da categoria dos impostos”.
Também para NUNO DE SÁ GOMES [3], a distinção entre imposto e contribuição financeira não tem relevância do ponto de vista jurídico. Na verdade, segundo ensina, as contribuições financeiras, “de um ponto de vista jurídico, são verdadeiros impostos”.
Sobre a noção de imposto e sua distinção de figuras próximas, podem ver-se ainda, entre outros, ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, “Princípios de Direito Fiscal”, 1979, nºs 5 e 6; ALBERTO AMORIM PEREIRA, “Noções de Direito Fiscal”, 1981, parte I, Capítulo II, nºs 1 e 2; SOUSA FRANCO, “Direito Financeiro e Finanças Públicas”, Volume II, 1982, capítulo XVI.
O Tribunal Constitucional[4] também se pronunciou sobre o tema, defendendo que a contribuição financeira tem uma estrutura paracomutativa, dirigida à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários.
Assim, o que determina a qualificação de um tributo como contribuição financeira é o facto de esse tributo ter por finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário ou a elas tenha dado causa. Por outras palavras, para que se possa defender estar perante uma contribuição financeira e não um imposto, é necessário que a prestação pública beneficie ou seja causada pelo respetivo sujeito passivo do tributo.
Não é este, claramente, o caso da CSR.
Por um lado, a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal, sendo esta a entidade titular da correspondente receita. No entanto, os sujeitos passivos da contribuição não são os destinatários da atividade da Infraestruturas de Portugal.
Por outro lado, a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa (conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas - artigo 3º nº 2 da Lei nº 55/2007, de 31 de agosto) não é dos sujeitos passivos da CSR, mas antes dos utilizadores da rede rodoviária nacional concessionada à Infraestruturas de Portugal.
Assim, os beneficiários e os responsáveis pelo financiamento da tarefa da Infraestruturas de Portugal não são os sujeitos passivos da CSR, mas antes a população em geral, aqui se incluindo tanto os utilizadores da rede rodoviária nacional concessionada à Infraestruturas de Portugal como os utilizadores de vias rodoviárias não incluídas da rede concessionada.
De onde resulta não existir qualquer nexo de comutatividade coletiva entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da atividade ou entre aqueles e os benefícios retirados de tal atividade.
A qualificação da CSR como um verdadeiro imposto, ainda que de receita consignada, resulta ainda da análise da sua génese. Com efeito, a Lei nº 55/2007, de 31 de agosto criou a CSR por desdobramento do ISP, em relação ao qual é indiscutível a sua qualificação como imposto.
Sendo que tal desdobramento não tem a virtualidade de transformar aquilo que era imposto em mera contribuição financeira. Ao invés, e independentemente da sua nomenclatura, a CSR mantém-se como verdadeiro imposto, como sempre foi, antes do dito desdobramento.
Improcede, assim, a exceção de incompetência material do tribunal arbitral, tendo por base a natureza da CSR, sendo este tribunal competente para apreciação do litígio e encontrando-se a AT vinculada à decisão que vier a ser proferida.
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Da incompetência do tribunal, atenta a natureza do pedido:
Invoca a AT que o pedido da Requerente não se dirige a normas especificas do regime da CSR, mas antes à legalidade do regime da CSR no seu todo, pretendendo assim a suspensão da eficácia de atos legislativos, o que extravasa o âmbito da ação arbitral prevista no RJAT.
O que a Requerente expressamente refuta, defendendo que a pretensão por si formulada, delimitada pelo respetivo pedido, respeita à declaração de ilegalidade dos atos impugnados.
Analisado o pedido de pronúncia arbitral, verifica-se, sem qualquer margem para dúvidas, que a Requerente, apesar de sindicar a conformidade com o direito comunitário do regime jurídico da CSR, não peticiona a declaração de ilegalidade da Lei nº 55/2007, de 31 de agosto nem a sua declaração de ineficácia. Ao invés, a Requerente peticiona:
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A anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa referente aos atos de liquidação impugnados;
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A declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de CSR, referentes ao período entre julho de 2019 e dezembro de 2022, no montante total de € 41.294,61.
A Requerente peticiona, pois, a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de CSR que lhe foram repercutidos, consubstanciados nas faturas juntas, com fundamento na ilegalidade abstrata dos mesmos. Em causa está, pois, a fiscalização da legalidade concreta de atos que aplicaram normas que, segundo a Requerente, violam o Direito da União Europeia e não qualquer fiscalização abstrata da legalidade das normas que criaram a CSR.
Verifica-se, pois, que o pedido formulado pela Requerente se insere dentro da competência material do tribunal arbitral, tal como definida no RJAT, pelo que improcede a exceção de incompetência material invocada pela Requerida.
c. Da incompetência do tribunal para apreciar atos de repercussão:
De acordo com a Requerida, o tribunal arbitral não tem competência para se pronunciar sobre atos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, que não são atos tributários e que, além do mais, não correspondem a qualquer repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto.
Com o que não podemos concordar. A repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis não é apenas uma repercussão económica ou de facto, mas uma verdadeira repercussão legal.
Com efeito, tal repercussão é pretendida pela lei, “ao estabelecer que o financiamento da rede rodoviária nacional «é assegurado pelos respectivos utilizadores» e que «a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis» (artigos 2.º e 3.º do CIEC na redacção anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro).” [5]
“Assim, a existência de repercussão do tributo no consumidor final numa situação em que a lei pretende que ela exista, como sucede com a CSR, tem de se presumir, à face das regras da experiência que os árbitros devem aplicar na fixação da matéria de facto, pois trata-se de uma situação normal, que corresponde ao andamento natural das coisas, quod plerumque accidit.
Neste contexto, deve dizer-se que a presunção de que ocorre repercussão quando ela está prevista na lei e não há qualquer facto que permita duvidar da correspondência do facto presumido à realidade, não é incompatível com o Direito da União, designadamente à face do Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no processo C-460/21.”[6]
Não sendo tal presunção de repercussão incompatível com o direito da união europeia, pois que, de acordo com o TJUE, o que é incompatível com o direito da união é o recurso à presunção de repercussão para prova de uma situação excecional de enriquecimento sem causa, decorrente da inexistência da repercussão, impedindo-se a demonstração de que tal repercussão não ocorreu.
Isto mesmo resulta do citado Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no processo C-460/21, onde se refere, relativamente à prova do enriquecimento sem causa enquanto exceção ao direito ao reembolso:
“o direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42)”.
Não é esta, porém, a situação dos autos, não estando aqui em causa o recurso a uma presunção para prova de uma situação excecional de enriquecimento sem causa.
Tratando-se de uma presunção, poderá sempre ser ilidida, mediante prova em contrário, demonstrando-se que a repercussão não ocorreu.
In casu, nenhuma prova foi trazida aos autos suscetível de ilidir tal presunção, pelo que terá necessariamente de se concluir pela existência de repercussão.
Note-se que, conforme tem vindo a ser defendido, “as regras do ónus da prova não significam que seja sobre a parte à qual ele é atribuído que recai o dever de trazer ao processo os meios de prova dos factos relevantes para decisão, dispensando a parte contrária de tal tarefa, pois a Administração Tributária nunca está dispensada de, em cumprimento do princípio do inquisitório, antes de aplicar as regras do ónus da prova, «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido», por força do artigo 58.º da LGT.”[7]
Situando-se o princípio do inquisitório “a montante do ónus de prova” [8], as regras do ónus da prova só operam quando, “após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.
Por isso, não podem aplicar-se as regras do ónus da prova contra o sujeito passivo, valorando contra ele as dúvidas sobre a matéria de facto, em situação em que não foi cumprido adequadamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira o princípio do inquisitório: se houve omissão absoluta de diligências no procedimento que tinham potencialidade para esclarecer os factos relevantes para a apreciação da causa, a falta de prova tem de ser valorada contra a Autoridade Tributária e Aduaneira.”[9]
Mas, ainda que assim não fosse, sempre se dirá que a Requerente não suscita a ilegalidade de quaisquer atos de repercussão da CSR, mas antes das respetivas liquidações que lhe foram repercutidas, o que se insere no âmbito da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.
Improcede, pois, a exceção invocada.
d. Da ilegitimidade processual da Requerente:
Defende a Requerida a ilegitimidade da Requerente, para tanto alegando, em síntese, que apenas os sujeitos passivos que tenham introduzido no consumo produtos e provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago.
Donde conclui que a Requerente, não sendo sujeito passivo do imposto nem suportando o encargo do imposto por repercussão legal, mas apenas por repercussão económica, não tem direito ao reembolso do valor pago, carecendo, assim, de legitimidade para o pedido formulado.
Mais defende a Requerida que a AT poderia ver-se na contingência de, para além de ter de restituir elevados montantes aos sujeitos passivos/devedores do imposto, ter ainda de restituir o mesmo montante a outras entidades que aleguem ter suportado a CSR por via da repercussão.
Desde logo se dirá que a Requerida vai moldando a sua argumentação em função da entidade que formula o pedido de reembolso: quando este é efetuado pelo sujeito passivo do imposto, argumenta não ter direito ao reembolso por o imposto ter sido repercutido no consumidor final/adquirente de combustível; quando o pedido é formulado pela entidade repercutida, argumenta não ter direito ao imposto por não ser o sujeito passivo. O que sempre culminaria no absurdo jurídico de, ainda que o imposto seja desconforme com o direito da união europeia, nunca seria devido o reembolso, por não existir entidade competente para o pedir.
Como quer que seja, adiantamos desde já ser nosso entendimento que o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de CSR e de reembolso dos valores pagos pode ser formulado quer pelo sujeito passivo do imposto tout court, quer pelas entidades repercutidas, em função da existência ou não de repercussão – cfr. artigos 18º nº 4 a) da LGT e 9º nº 1 do CPPT.
Nos termos do disposto no artigo 9º nº 1 do CPPT, têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido, prescrevendo o número 4 do mesmo preceito que, no processo judicial tributário, têm legitimidade, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.
O termo “contribuintes”, utilizado pela referida norma tem o significado de “sujeitos passivos”, utilizado pelo artigo 18º nº 3 da LGT - a pessoa singular ou coletiva, património ou organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.
Tendo havido repercussão do imposto, é o repercutido o único lesado pela liquidação, pelo que é este quem tem, em nome do princípio constitucional do reconhecimento do direito à impugnação de atos de natureza administrativa ao lesado por tal ato, previsto no artigo 268º nº 4 da CRP, legitimidade para impugnar os respetivos atos.
Tal direito de impugnação do ato lesivo reconhecido ao repercutido decorre também da norma constante do artigo 132º do CPPT.
Embora esta norma se refira apenas ao direito de impugnação em caso de retenção na fonte, conforme tem vindo a ser defendido maioritariamente pela jurisprudência, o respetivo regime deve aplicar-se a todos os casos de substituição[10].
Isso mesmo resulta, ademais, do artigo 20º nº 2 da LGT, segundo o qual “a substituição tributária é efetivada, designadamente, através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido” (sublinhado nosso). Donde, a retenção na fonte é apenas uma de entre várias formas de substituição tributária, aplicando-se o respetivo regime, designadamente o direito à impugnação do ato lesivo previsto no artigo 132º do CPPT, a todas as formas de substituição.
Assim, terá necessariamente de se concluir pela legitimidade da Requerente, enquanto entidade repercutida, para peticionar a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de CSR, bem como o reembolso do imposto por si suportado, por via da repercussão legal.
Só assim não o sendo caso se demonstrasse a inexistência de repercussão, o que, como vimos, não sucedeu in casu.
Pelo que, não se encontrando demonstrada a inexistência de repercussão, esta terá de ser presumida, o que confere ao repercutido o direito a pedir o reembolso dos valores por si suportados.
De onde resulta não se verificar qualquer possibilidade de, como aventado pela AT, esta ser chamada a reembolsar o mesmo imposto a duas entidades, isto é, ao sujeito passivo e ao repercutido.
E, no caso de, em determinada situação, se verificar que tanto o sujeito passivo como o repercutido formulam pedido de reembolso do mesmo imposto, caberá à AT, para evitar o reembolso ao sujeito passivo, demonstrar que este repercutiu o imposto no consumidor final e que o reembolso ao sujeito passivo representaria enriquecimento sem causa deste.
Em suma: não havendo repercussão, é o sujeito passivo do imposto quem tem legitimidade para solicitar o seu reembolso; tendo havido repercussão, é a entidade repercutida quem tem legitimidade para solicitar o reembolso do valor por si suportado.
No caso dos autos, não se tendo logrado ilidir, mediante prova em contrário, a presunção legal de repercussão, esta terá de se presumir, pelo que a Requerente tem legitimidade, enquanto entidade repercutida, para solicitar o reembolso dos valores por si suportados.
Invoca ainda a Requerida que a entidade fornecedora de combustíveis indicada pela Requerente (Vendeiro) não detêm estatuto fiscal no âmbito do ISP, pelo que não poderá ter sido responsável pela introdução dos produtos no consumo nem pelo pagamento da CSR correspondente.
Tal alegação é, no entanto, para o caso dos autos, perfeitamente inócua, apenas podendo assumir relevância caso se demonstrasse que esta entidade, havia pedido e obtido o reembolso da CSR que pagou à sua fornecedora de combustível ou caso se demonstrasse que o sujeito passivo desse mesmo imposto havia sido reembolsado do imposto que entregou ao Estado.
Nada tendo resultado demonstrado a este propósito, pese embora o alegado pela AT, terá de se concluir que esta entidade, embora não fosse o sujeito passivo do imposto, o repercutiu efetivamente à Requerente e não foi reembolsada do imposto que pagou ao sujeito passivo, razão pela qual tem a Requerente, enquanto consumidora final, direito a pedir o seu reembolso.
Improcede, pois, a invocada exceção de ilegitimidade ativa.
e. Da ineptidão do requerimento inicial:
Alega a Requerida a ineptidão do requerimento arbitral, por falta de identificação do ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral, defendendo encontrar-se impossibilitada de estabelecer a ligação entre os atos de liquidação praticados pelos sujeitos passivos e as faturas de compra alegadas pela Requerente, encontrando-se, assim, o tribunal impedido de apreciar a sua legalidade.
Conforme resulta do já exposto, a Requerente é a entidade repercutida da CSR em causa nos autos e não o sujeito passivo do imposto. Como tal, a Requerente não é notificada das liquidações de ISP/CSR em causa nem tem forma de as conhecer e/ou identificar ou sequer de estabelecer a ligação entre as liquidações em causa e as faturas emitidas pelos fornecedores.
Ao contrário da AT, que, promovendo as diligências necessárias e que, ademais, se lhe impunham, em cumprimento do princípio do inquisitório, poderia e deveria averiguar a relação entre as faturas juntas pela Requerente e as liquidações que lhe estão subjacentes, designadamente notificando os fornecedores de combustível para prestar os esclarecimentos necessários e acedendo às declarações de introdução no consumo. Não sendo credível que a Requerida não tenha acesso ou não tenha como ter acesso às liquidações emitidas e às correspondentes declarações de introdução no consumo.
De onde resulta que a falta de identificação das liquidações subjacentes às faturas juntas pela Requerente está perfeitamente justificada, não sendo sequer exigível ou possível à Requerente a sua identificação. A Requerente identificou os atos impugnados da única forma que lhe era possível, isto é, através da identificação das faturas emitidas pelos fornecedores, as quais consubstanciam a repercussão do imposto na sua esfera jurídica.
Qualquer outro entendimento representaria uma ostensiva violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, constitucionalmente protegido, não podendo, por via disso, ser defendido.
Da mesma forma, a falta de indicação das liquidações não é essencial para que o tribunal aprecie a legalidade da cobrança de CSR. Isto porque, através da análise das faturas, é possível ao tribunal determinar, por simples cálculo aritmético, o valor da CSR que lhe está subjacente, atento o valor de CSR devido por cada litro de combustível, fixado no artigo 4º nº 2 da Lei nº 55/2007, de 31 de agosto.
Posto isto,
Dispõe o número 2 do artigo 186º do CPC, aplicável ex vi artigos 2º e) do CPPT e 29º nº 1 e) do RJAT:
“Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.”
Pese embora a Requerida não indique, em concreto, qual o vício que imputa ao requerimento inicial e que, no seu entender, determina a ineptidão, é manifesto não se enquadrar a hipótese dos autos em nenhuma das alíneas b) ou c) da referida norma ou sequer na 1ª parte da alínea a) – falta da indicação do pedido ou da causa de pedir.
Pelo que apenas poderá a imputada ineptidão decorrer de eventual ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir.
O que desde já avançamos entender não se verificar, já que tanto o pedido como a causa de pedir são perfeitamente inteligíveis.
O pedido reconduz-se à declaração de ilegalidade do ato tácito de indeferimento do pedido de revisão oficiosa; à anulação das liquidações de CSR e à condenação da Requerida no reembolso do valor pago, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.
A causa de pedir, por seu turno, reconduz-se à desconformidade da CSR, criada pela Lei nº 55/2007, com o direito da união europeia, maxime com o artigo 1º nº 2 da Diretiva nº 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro de 2008.
Donde não se verifica qualquer ininteligibilidade nem do pedido, nem da causa de pedir.
Aliás, analisada a resposta apresentada pela Requerida, verifica-se que esta percebeu perfeitamente o pedido formulado pela Requerente, bem como a respetiva causa de pedir. Pelo que a arguição de ineptidão nunca poderia ser julgada procedente – cfr. artigo 186º nº 3 do CPC.
Improcede, pois, a exceção de ineptidão do pedido de pronuncia arbitral.
f. Da caducidade do direito de ação:
Por último, invoca a Requerida a exceção de caducidade do direito de ação, para tanto sustentando que o pedido de revisão oficiosa apresentado é intempestivo.
Para tanto defende desde logo que, não sendo identificados os atos de liquidação impugnados, não é possível apurar da tempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado em 11/08/2023.
Por outro lado, de acordo com a Requerida, nunca poderia ser aplicável o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT o qual apenas pode ser aplicado se o fundamento da revisão consistir em erro e esse erro for imputável aos serviços.
Erro esse que in casu não se verifica já que, de acordo com a Requerida, os atos de liquidação impugnados foram praticados ao abrigo dos artigos 4º e 5º da Lei 55/2007, não podendo a Requerida, que se encontra sujeita ao princípio da legalidade, deixar de aplicar quaisquer normas com base num julgamento de não conformidade com o direito comunitário.
Em causa nos autos está a interpretação da norma contida no número 1 do artigo 78º da LGT, que dispõe o seguinte:
“A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”.
O dissenso entre a Requerente e a Requerida reside na interpretação da 2ª parte deste preceito, concretamente, em saber se a revisão oficiosa do ato pode ter lugar a pedido do sujeito passivo, ultrapassado o prazo da reclamação administrativa, por um lado, e, por outro lado, na interpretação da locução “erro imputável aos serviços”.
Vamos por partes.
No que diz respeito à possibilidade de, ultrapassado o prazo da reclamação administrativa, o sujeito passivo pedir a revisão oficiosa do ato tributário, parece-nos que tal questão se encontra há muito ultrapassada, já que, tendo a AT o dever legal de decidir os pedidos que lhe sejam formulados pelos interessados, não pode escusar-se a tomar a iniciativa de revisão oficiosa do ato tributário quando tal lhe seja pedido pelos interessados - neste sentido vejam-se, entre outros, acórdãos do STA de 04MAIO2016, processo nº 0407/15 e de 29MAIO2013, processo nº 0140/13, ambos in www.dgsi.pt.
O mesmo se diga em relação à definição de “erro imputável aos serviços”, a qual se encontra há mais de 20 anos estabelecida na jurisprudência, no sentido de que tal erro comporta quer o erro de facto, quer o erro de direito.
Como bem se sumaria no recente acórdão do TCA Sul de 05NOV2020, disponível in www.dgsi.pt, “I. Existindo uma obrigação genérica de a Administração Tributária atuar em plena conformidade com a lei, legalmente preceituada, desde logo, no artigo 266.°, nº2, da CRP e bem assim no artigo 55.° da LGT, qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração. II- Para a questão se subsumir no “erro imputável aos serviços”, constante no artigo 78.º, nº 1, da LGT importa, desde logo, que o contribuinte não tenha contribuído, por qualquer forma, para a emissão do ato de liquidação, ou seja, não pode existir uma conduta, seja ela ativa ou omissiva, que tenha determinado a emissão do ato de liquidação, nos moldes em que o foi.” (realce nosso).
Sendo certo que tal ilegalidade poderá reconduzir-se à ilegalidade da liquidação (ilegalidade em concreto) ou à ilegalidade do tributo, isto é, à ilegalidade absoluta da liquidação (ilegalidade abstrata), comportando esta última a ilegalidade de normas nacionais violadoras do direito comunitário [11].
No caso dos autos, o fundamento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente e do subsequente pedido de pronúncia arbitral é a ilegalidade abstrata da CSR e não propriamente das liquidações efetuadas, as quais, como bem defende a Requerida, o foram em cumprimento do princípio da legalidade.
Em defesa da sua tese, sustenta ainda a Requerida que o erro imputável aos serviços, para efeito do disposto no artigo 78º nº 1 da LGT, no que à alegada violação do direito comunitário respeita, abrange apenas o erro na aplicação do direito comunitário que vincula diretamente todos os poderes públicos e os particulares, sem necessidade de qualquer lei nacional que o determine.
Entendemos ser esta questão perfeitamente inócua para o litígio em causa, já que, como é sabido, às diretivas comunitárias é reconhecido o efeito direto vertical, podendo, em consequência, as respetivas normas ser invocadas diretamente pelos particulares junto dos tribunais nacionais, independentemente da sua aplicação direta, isto é, independentemente de esta vincular diretamente todos os poderes públicos e os particulares, sem necessidade de qualquer lei nacional que o determine.
Em suma, temos, assim, por assente, que (i) o pedido de revisão oficiosa pode ter lugar por iniciativa do sujeito passivo, quer dentro do prazo de reclamação administrativa, com base em qualquer fundamento, quer dentro do prazo de 4 anos, com fundamento em erro imputável aos serviços; (ii) o erro imputável aos serviços comporta quer o erro de facto, quer o erro de direito; e (iii) o erro de direito engloba o erro derivado da violação de qualquer norma, incluindo de direito comunitário, independentemente de este vincular ou não diretamente os poderes públicos e os particulares.
No caso dos autos, é manifesto que o erro imputado aos atos impugnados não é imputável à Requerente, que neles não teve intervenção, pelo que o erro terá de ser considerado, nos termos expostos, imputável aos serviços.
Por outro lado, pese embora se desconheça a data de pagamento voluntário das liquidações que estiveram na origem da CSR suportada pela Requerente, a verdade é que, tratando-se de repercussão legal, o pagamento da CSR pelo adquirente de combustíveis presume-se efetuada com a aquisição e pagamento do combustível.
Assim, a CSR apenas foi repercutida à Requerente aquando da aquisição do combustível, constante das faturas emitidas no período compreendido entre julho de 2019 e dezembro de 2022.
Foi apenas a partir da aquisição do combustível que ocorreu o facto lesivo da esfera jurídica da Requerente, suscetível de impugnação, pelo que o prazo de 4 anos se terá de contar a partir dessa data.
Efetivamente, dispõe o artigo 298º, nº 2 do Código Civil que “Quando, por força da lei, ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de um certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição”. Pressupõe este normativo que a caducidade opera quando um direito deva ser exercido dentro de um certo prazo, o que ocorre nos autos.
Com efeito, artigo 78.º da LGT estabelece que a revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços.
Por sua vez, o artigo 331º do Código Civil prescreve que “Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo.”
In casu, tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado em 11/08/2023, é manifesto que, em relação a todas as aquisições de combustível ocorridas após 11/08/2019, inclusive, foi o mesmo apresentado tempestivamente.
Analisados os documentos juntos aos autos pela Requerente, verifica-se que, de todas as aquisições efetuadas, apenas 3 não poderão ser consideradas como efetuadas em data anterior a 11/08/2019. É o caso das seguintes aquisições:
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10.000,00 litros de combustível ocorrida em 05/07/2019, titulados pela fatura C3.FT3 689/4180
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10.000,00 litros de combustível ocorrida em 18/07/2019, titulados pela fatura C3.FT3 689/4209;
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10.021,00 litros de combustível ocorrida em 10/08/2019, titulados pela fatura n.º 614/1929.
O mesmo se dirá do pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 11/03/2024, que, em relação a todas as aquisições efetuadas ocorridas após 11/08/2019, inclusive e excetuadas as 3 aquisições suprarreferidas, se terá de considerar tempestivo.
Com efeito, não tendo o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente sido objeto de decisão até 11/12/2023, presume-se o mesmo tacitamente indeferido nessa data, iniciando-se na mesma data o prazo de 90 dias para a Requerente deduzir pedido de pronúncia arbitral, prazo esse que terminaria em 11/03/2024, data em que o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado pela Requerente.
Em face do exposto, verifica-se a caducidade do direito de ação invocada pela Requerida, quanto às aquisições de combustível tituladas pelas faturas com os números C3.FT3 689/4180 (10.000,00 litros); C3.FT3 689/4209 (10.000,00 litros) e 614/1929 (10.021,00 litros), não se verificando a caducidade do direito de ação relativamente às demais aquisições.
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QUESTÕES DE DIREITO A DECIDIR:
Conhecidas as exceções invocadas pela Requerida, importa agora determinar as questões de direito a decidir, que, atentas as posições das partes, são as seguintes:
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Determinar se a CSR viola a Diretiva 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro de 2008;
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Determinar se a Requerente tem direito ao reembolso da CSR.
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MATÉRIA DE FACTO:
a. Factos provados:
Com relevo para a decisão consideram-se provados os seguintes factos:
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No período compreendido entre julho de 2019 e dezembro de 2022, a Requerente adquiriu 372.023,23 litros de gasóleo rodoviário;
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A CSR respeitante ao gasóleo adquirido, a que se alude na alínea a) anterior, foi repercutida à Requerente;
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Em 11/08/2023 a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das liquidações de CSR refletidas nas faturas emitidas pelos fornecedores a quem a Requerente adquiriu a gasóleo rodoviário a que se alude em a) anterior;
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O pedido de revisão oficiosa não foi decidido até 11/03/2024;
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O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral foi apresentado em 11/03/2024.
b. Factos não provados:
Com relevo para a decisão, não se consideraram provados os seguintes factos:
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Quais as liquidações emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira relativas ao combustível adquirido pela Requerente e constante das faturas juntas com o pedido de pronúncia arbitral;
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A Autoridade Tributária e Aduaneira não tem forma de apurar as liquidações a que se alude em a) anterior;
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A Requerente tem forma de apurar as liquidações a que se alude em a) anterior;
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Relativamente ao gasóleo adquirido, a que se alude na alínea a) da matéria de facto provada, a Requerente pagou, a título de CSR, o valor de € 41.294,61.
c. Fundamentação da matéria de facto:
A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base a prova documental, incluindo o processo administrativo, junta pelas partes, indicada relativamente a cada um dos pontos, e cuja adesão à realidade não foi questionada, bem como a matéria alegada e não impugnada.
Quanto ao facto constante da alínea b) dos factos provados, dá-se aqui por integralmente reproduzido tudo quanto supra se expôs relativamente à natureza da repercussão da CSR, de onde resulta que a repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis é pretendida pela lei e, dessa forma, deve ser presumida.
Tratando-se de uma presunção, poderá sempre ser ilidida, mediante prova em contrário, demonstrando-se que a repercussão não ocorreu.
In casu, porém, nenhuma prova foi trazida aos autos suscetível de ilidir tal presunção, pelo que terá necessariamente de se concluir pela existência de repercussão.
O que determinou a inclusão deste facto na matéria de facto provada.
No que diz respeito à matéria de facto não provada, a inclusão nesta matéria do facto constante do ponto a) foi motivada pela total ausência de prova nesse sentido.
Quanto ao ponto b) da matéria de facto não provada, não resultou demonstrado que a AT não tenha forma de apurar as liquidações emitidas, relativas ao combustível adquirido pela Requerente em causa nos autos.
Bem ao invés, somos do entendimento que, mediante a promoção das diligências adequadas, pode a AT fazer a correspondência entre as liquidações de ISP/CSR e as faturas juntas aos autos pela Requerente, designadamente acedendo às declarações de introdução no consumo, sendo certo que não é credível que a Requerida não tenha acesso ou não tenha como ter acesso às liquidações emitidas e às correspondentes declarações de introdução no consumo.
O facto de a AT não ter feito tal correspondência, apesar de ter ao seu dispor ou pelo menos poder ter, os meios necessários para o efeito, e apesar de tal lhe ser imposto pelo princípio do inquisitório, apenas a si é imputável.
Nem se diga que tal será uma prova “diabólica”. Poderá ser uma prova difícil, trabalhosa e demorada, mas em todo o caso possível. Mas que a AT não fez, o que motivou a inclusão deste ponto na matéria de facto não provada.
No que diz respeito ao ponto c) da matéria de facto não provada, conforme já exposto, a Requerente é a entidade repercutida da CSR em causa nos autos e não o sujeito passivo do imposto. Como tal, a Requerente não é notificada das liquidações de ISP/CSR em causa, razão pela qual se encontra impedida de apurar e/ou identificar as liquidações em causa.
Por último, quanto ao ponto d) da matéria de facto não provada, a AT impugnou a força probatória das faturas juntas pela Requerente, defendendo a AT que estas carecem de força probatória quer por não serem os documentos originais; quer por não fazerem prova do pagamento nem conterem qualquer referência aos montantes pagos a título de ISP ou CSR.
No que diz respeito ao facto de as faturas não serem originais, conforme é sabido, a junção de originais aos processos arbitrais tributários apenas é exigível quando o julgador o determinar, designadamente quanto duvidar da autenticidade ou genuinidade dos documentos ou quando for necessário para realizar perícia – cfr. artigo 4º do DL 325/2003, de 29 de dezembro e 144º nº 5 do CPC, ambos aplicáveis ex vi artigo 29º nº 1 e) do RJAT.
No caso dos autos, os documentos juntos pela Requerente não suscitam a este tribunal quaisquer dúvidas sobre a sua autenticidade ou genuinidade, o que, aliás, a AT também não questiona.
Pelo que não se verifica a necessidade de junção dos originais das faturas.
Quanto ao facto de as faturas juntas não conterem qualquer referência aos montantes pagos a título de ISP ou CSR, sempre se dirá que as faturas apenas contêm os parâmetros legalmente exigíveis, designadamente o IVA.
Não sendo obrigatória a inclusão, nas faturas, do montante pago a título de ISP ou CSR, não pode a inexistência de tal elemento ser valorada contra a Requerente.
Da mesma forma, carece de fundamento a alegação de que a Requerente não demonstrou não ter repercutido a CSR paga no preço dos serviços prestados aos seus clientes, já que tal prova sempre incumbiria à AT e não à Requerente, por se tratar de facto impeditivo do direito que a Requerente se arroga.
Pese embora o exposto, a verdade é que as faturas juntas pela Requerente não são aptas a demonstrar o pagamento alegado pela Requerente, nem por si, nem conjugadas com quaisquer outros elementos de prova juntos aos autos.
Tratando-se de facto constitutivo do direito da Requerente ao reembolso da CSR que lhe foi repercutida, incumbia à Requerente a sua demonstração. Não o tendo feito, não poderá este tribunal julgar provado o pagamento da totalidade da CSR invocado pela Requerente.
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DIREITO:
Decididas as exceções invocadas pela Requerida, importa agora conhecer do mérito do pedido, atentas as questões a decidir supra elencadas.
Atenta a interligação existente entre as questões a decidir, serão as mesmas analisadas em conjunto.
Assim,
No que diz respeito à alegada violação do direito comunitário, em concreto, da Diretiva 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, sustenta a Requerente que a CSR não foi criada por um motivo específico distinto de uma finalidade orçamental.
Defende a Requerente que a CSR foi criada por um motivo meramente orçamental de obtenção de receita - em concreto, para o financiamento da Infraestruturas de Portugal -, não detendo em si mesma qualquer finalidade de redução de custos sociais e ambientais especificamente associados à utilização da rede rodoviária nacional.
Não podendo o motivo específico a que alude a Diretiva ser reconduzido a uma finalidade meramente orçamental.
Mais defende a Requerente a necessidade de existir uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa, que não existe no caso da CSR.
De onde conclui que a CSR é ilegal, por violação da Diretiva n.º 2008/118, sendo, em consequência, ilegais as liquidações e os atos de repercussão subsequentes.
Mais defende a Requerente que a CSR viola o princípio da igualdade fiscal e da capacidade contributiva, para tanto invocando que o universo de sujeitos que beneficia da atividade da Infraestruturas de Portugal, S.A. extravasa o conjunto de sujeitos passivos da CSR, bem como dos contribuintes onerados com a CSR por via da repercussão do seu encargo
A Requerida, por seu turno, defende que existe um vínculo intrínseco entre o destino da CSR e o motivo específico que levou à sua criação, estando subjacente à sua criação finalidades de redução de sinistralidade e de sustentabilidade orçamental.
Concluindo, pois, inexistir qualquer desconformidade da CSR com a Diretiva nº 2008/118.
No âmbito da questão relativa ao direito ao reembolso, defende a Requerente, em suma, que, sendo as liquidações ilegais, por desconformes com o Direito da União Europeia, impõe-se à AT o reembolso à Requerente do imposto indevidamente pago.
Por seu turno, sustenta a Requerida que, tal como se decidiu no acórdão do TJUE C-94/10, ainda que se verificassem os pressupostos legais e processuais e se considerasse efetuada a prova da repercussão, poderia a AT recusar o reembolso, com o fundamento de não ter sido a Requerente a efetuar o pagamento da CSR às autoridades fiscais e de a Requerente poder instaurar contra o sujeito passivo uma ação com vista à repetição do indevido.
Sinteticamente expostas as posições das partes quanto à matéria de direito, importa agora proceder à sua análise.
A questão da conformidade da CSR com a Diretiva 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro de 2008 já foi objeto de pronúncia por parte do TJUE, em sede de reenvio prejudicial suscitado no âmbito de processo arbitral idêntico ao presente.
Com efeito, no âmbito do processo arbitral 564/2020-T, em que foi Requerente a D..., S.A., o tribunal arbitral desencadeou o mecanismo de reenvio prejudicial, tendo formulado, entre outras, a seguinte questão ao TJUE:
“1. O artigo 1.º, n.º 2, da Directiva n.º 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, e designadamente a exigência de “motivos específicos”, deve ser interpretado no sentido de que a finalidade de um imposto é meramente orçamental quando a sua criação é feita com o objectivo de financiar empresa pública concessionária da rede nacional de estradas, por ocasião da renovação da sua concessão, e à qual a receita do imposto fica genericamente afectada, e a sua estrutura não atesta a intenção de desmotivar um qualquer consumo?”
O TJUE pronunciou-se por decisão de 07 de fevereiro de 2022 (processo nº C-460/21), constando da decisão do TJUE, quanto à referida questão (pontos 29 a 35):
“29. No caso em apreço, importa salientar, em primeiro lugar, como resulta da jurisprudência referida no n.º 26 do presente despacho, que, embora a afetação predeterminada do produto da CSR ao financiamento, pela concessionária da rede rodoviária nacional, das competências gerais que lhe são atribuídas possa constituir um elemento a tomar em consideração para identificar a existência de um motivo específico, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, essa afetação não pode, enquanto tal, constituir um requisito suficiente.
30. Em segundo lugar, para se considerar que prossegue um motivo específico, na aceção desta disposição, a CSR deveria destinar‑se, por si só, a assegurar os objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental que foram atribuídos à concessionária da rede rodoviária nacional. Seria esse o caso, nomeadamente, se o produto deste imposto devesse ser obrigatoriamente utilizado para reduzir os custos sociais e ambientais especificamente associados à utilização dessa rede que é onerada pelo referido imposto. Seria então estabelecida uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa.
31. Em terceiro lugar, como resulta do n.º 14 do presente despacho, é certo que a Autoridade Tributária sustenta que existe uma relação entre a afetação das receitas geradas pela CSR e o motivo específico que levou à instituição deste imposto, uma vez que o decreto‑lei que atribuiu a concessão da rede rodoviária nacional à IP impõe a esta última que trabalhe em prol, por um lado, da redução da sinistralidade nessa rede e, por outro, da sustentabilidade ambiental.
32. No entanto, como foi salientado no n.º 15 do presente despacho, resulta da decisão de reenvio que o produto do imposto em causa no processo principal não se destina exclusivamente ao financiamento de operações que supostamente concorrem para a realização dos dois objetivos mencionados no número anterior do mesmo despacho. Com efeito, as receitas provenientes da CSR destinam‑se, mais amplamente, a assegurar o financiamento da atividade de conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional.
33. Em quarto lugar, os dois objetivos atribuídos à concessionária da rede rodoviária nacional portuguesa estão enunciados em termos muito gerais e não deixam transparecer, à primeira vista, uma real vontade de desencorajar a utilização quer dessa rede quer dos principais combustíveis rodoviários, como a gasolina, o gasóleo rodoviário ou o gás de petróleo liquefeito (GPL) automóvel.
34. Em quinto lugar, o pedido de decisão prejudicial não contém nenhum elemento que permita considerar que a CSR, na medida em que incide sobre os utilizadores da rede rodoviária nacional, foi concebida, no que respeita à sua estrutura, de tal modo que dissuade os sujeitos passivos de utilizarem essa rede ou que os incentiva a adotar um tipo de comportamento cujos efeitos seriam menos nocivos para o ambiente e que seria suscetível de reduzir os acidentes.
35. Por conseguinte, sem prejuízo das verificações que caberá ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar atendendo às indicações que figuram nos n.ºs 29 a 34 do presente despacho, as duas finalidades específicas invocadas pela Autoridade Tributária para demonstrar que a CSR prossegue um motivo específico, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, não se distinguem de uma finalidade puramente orçamental (v., por analogia, Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, Transportes Jordi Besora, C-82/12, EU:C:2014:108, n.ºs 31 a 35).”
Tendo, em consequência, respondido à questão colocada nos seguintes termos:
“O artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revoga a Diretiva 92/12/CEE, deve ser interpretado no sentido de que não prossegue «motivos específicos», na aceção desta disposição, um imposto cujas receitas ficam genericamente afetadas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários.”
A título prévio, sempre se dirá que, como corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267º do TFUE, a jurisprudência do TJUE, quando tem por objeto questões de Direito da União Europeia, tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais, o que, aliás, é pacificamente defendido e aceite pela jurisprudência nacional.
Tal carácter vinculativo resulta ainda do princípio do primado do direito da união europeia, previsto no artigo 8º nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
Pelo que, face à posição assumida pelo TJUE, terá necessariamente este tribunal de concluir pela inexistência de motivos específicos na criação da CSR, o que conduz à sua ilegalidade, por violação do disposto na Diretiva 2008/118/CE do Conselho, a qual, como se viu, submete a possibilidade de o Estado criar impostos não harmonizados sobre IEC harmonizados à dupla condição de estes respeitarem a estrutura essencial dos IEC e do IVA e de terem como fundamento um motivo específico.
Sobre esta questão, subscrevemos na íntegra o expendido na decisão arbitral 304/2022-T, que se transcreve:
“parece-nos clara a inconsistência na definição dos alegados “motivos específicos” da CSR, na medida em que a Lei 55/2007, no seu art.º 3.º, n.º 2 estipula que a CSR tem como finalidade específica o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP – Estradas de Portugal E.P.E. e mais concretamente a respetiva conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento; enquanto o ponto 4 da Base 2 do Decreto-Lei n.º 380/2007, que atribui às EP - Estradas de Portugal, S. A., a concessão do financiamento, conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional e aprova as bases da concessão, estipula que é dever da concessionária (al. b) “prosseguir os objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental referidos no quadro ii anexo às presentes bases.”
Não que exista, evidentemente, qualquer incompatibilidade entre estas duas missões cometidas à atual Infraestruturas de Portugal, S.A.. O que existe, sim, é inconsistência quando se sustenta que as duas finalidades constituem o motivo específico da CSR.
Inconsistência que se vê ainda mais nítida quando se considera que a finalidade de conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional a cargo da entidade é a finalidade que a Lei 55/2007 atribui à CSR, e é uma finalidade de âmbito geral, que incumbe necessariamente ao Estado e que poderia ser financiada por quaisquer receitas fiscais; enquanto prosseguir os objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental referidos no quadro ii anexo às presentes bases é uma missão atribuída através de um contrato de concessão, e não consta da lei que cria e regula a CSR, não se encontrando na lei tributária nenhuma norma que assegure que a CSR é afetada na sua totalidade a essa finalidade específica, pelo contrário, resulta da lei tributária (Lei 55/2007) que o não pode ser.
Há, assim, que concluir, que a CSR não tem um “motivo específico”, antes se destina ao financiamento de despesas de caráter geral que incumbem obrigatoriamente ao Estado e são suscetíveis de ser financiadas por quaisquer receitas fiscais, violando a lei que cria o tributo, com essa ausência de “motivo específico” o artigo 1., n.º 2, da Diretiva 2008/118.”
A ilegalidade da lei que cria a CSR, por violação da Diretiva 2008/118, determina necessariamente a ilegalidade abstrata das liquidações impugnadas, que a final se declarará, bem como a ilegalidade dos atos de indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa apresentados.
De onde resultaria evidente a resposta à segunda questão a dirimir já que a ilegalidade da CSR determinaria, necessariamente, a obrigatoriedade de a AT reembolsar a Requerente do valor indevidamente pago.
Não sendo aplicável in casu o regime previsto nos artigos 15º a 20º do CIEC, ao contrário do defendido pela AT.
Com efeito, este regime aplica-se apenas às hipóteses de reembolso com fundamento em erro na liquidação ou em caso de expedição ou exportação. Nos autos não se trata de qualquer pedido de reembolso com base nestes fundamentos, mas de reembolso consequente da anulação das liquidações.
Nem se diga que a AT poderia recusar o reembolso, conforme decidido no acórdão do TJUE C-94/10, já que, em causa nos presentes autos não está, ao contrário do que sucede naquele aresto, qualquer pagamento efetuado pela Requerente de forma indevida.
Ao invés, a Requerente encontra-se obrigada a pagar à fornecedora de combustível a CSR que esta lhe repercute pelo que, sobre este prisma, o pagamento que tenha sido efetuado não é indevido. Questão diferente é o direito que a Requerente tem de pedir à AT o reembolso do valor pago, em face da ilegalidade da CSR repercutida.
A Requerente tem direito a ser reembolsada do valor da CSR que lhe foi repercutida e que tenha pago. Sucede que, nos autos, conforme resulta da matéria de facto, não resultou provado que a Requerente tenha pago o valor da CSR que lhe foi repercutido pelas fornecedoras de combustíveis.
Em face de tudo quanto ficou exposto, resulta manifesta a procedência do pedido de pronúncia arbitral no que diz respeito ao pedido de declaração de ilegalidade das liquidações, bem como do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado.
Já o mesmo não sucedendo com o pedido de condenação da AT a reembolsar a CSR paga, já que, como exposto, a Requerente não logrou demonstrar, como se lhe impunha, o pagamento deste tributo, pelo que o pedido de condenação da AT a reembolsar o valor pago a título de CSR terá de improceder.
A improcedência do pedido de condenação da AT a reembolsar a Requerente da CSR paga determina a improcedência do pedido de condenação da Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios, à taxa legal.
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DISPOSITIVO:
Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado e em consequência:
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Julgar procedente a exceção de caducidade do direito de ação quanto às aquisições de combustível tituladas pelas faturas com os números C3.FT3 689/4180 (10.000,00 litros); C3.FT3 689/4209 (10.000,00 litros) e 614/1929 10.021,00 litros) e improcedente quanto às demais aquisições de combustível;
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Julgar improcedentes as demais exceções invocadas;
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Declarar a ilegalidade dos atos de indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa apresentados pela Requerente em 11/08/2023, quanto a todos os atos de repercussão, excetuados os consubstanciados nas vendas a que se alude em a) anterior;
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Declarar a ilegalidade dos atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário impugnados, com a consequente anulação dos correspondentes atos de repercussão, quanto a todos os atos de repercussão, excetuados os consubstanciados nas vendas a que se alude em a) anterior;
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Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida a reembolsar a Requerente da CSR paga;
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Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
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Fixa-se o valor do processo em € 41.294,61, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
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Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142,00, nos termos da Tabela I da Tabela Anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 1 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerente e pela Requerida, na proporção de 58,07% para a Requerente e 41,93% para a Requerida.
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Registe e notifique.
Lisboa, 22 de julho de 2024.
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O Árbitro,
Alberto Amorim Pereira
[1] “Direito Fiscal”, Almedina, 10ª Edição, pp. 27 e ss.
[2] “Manual de Direito Fiscal”, Volume I, Lisboa 1974, pp. 35 e ss.
[3] “Manual de Direito Fiscal”, Volume I, 1998, Editora Rei dos Livros, página 79.
[5] Neste sentido, entre outros, acórdão arbitral proferido no processo 1015/2023-T, in www.caad.org.pt.
[6] Cfr. acórdão do tribunal arbitral, processo 1015/2023-T, já citado.
[7] Cfr. acórdão do tribunal arbitral, processo 1015/2023-T, já citado.
[8] Cfr. acórdão do STA de 21/10/2009, processo n.º 0583/09, in www.dgsi.pt.
[9] Mesmo acórdão do tribunal arbitral, processo 1015/2023-T.
[10] Neste sentido, entre outros, Ac. do STA de 06SET2023, processo nº 067/09.6BELRS, in www.dgsi.pt.
[11] Neste sentido, entre outros, acórdão do STA de 22MARÇO2011, processo nº 01009/10, in www.dgsi.pt.