Proc. 339/2014-T
Decisão arbitral
Tema: Imposto Único de Circulação – Sujeição passiva; presunção de propriedade de veículos automóveis com base no registo
Requerentes: A
Requerida: AT - Autoridade Tributária e Aduaneira
I – RELATÓRIO
1. Pedido
A, contribuinte n.º …, com sede no …, doravante designada por Requerente, apresentou, em 17.04.2014, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 2º e do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária” – RJAT), um pedido de pronúncia arbitral em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista a:
- A anulação dos atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) e de juros compensatórios correspondentes, identificados nos processos administrativos juntos aos autos;
- O reembolso do montante de 53 835,74 euros correspondente ao imposto pago respeitante a essas liquidações acrescido de juros compensatórios;
- A anulação dos atos contraordenacionais consistentes na aplicação de coimas pelo atraso no pagamento do imposto liquidado;
- O pagamento à Requerente de juros indemnizatórios, pela privação dos referidos montante, nos termos do artigo 43.º da LGT.
Para fundamentar a sua pretensão, a Requerente alega, no essencial, o seguinte:
- Embora os veículos objeto do Imposto Único de Circulação liquidado se encontrassem registados em nome da Requerente à data dos factos tributários subjacentes a todas as liquidações impugnadas, parte dos mesmos foram alienados pela Requerente em data anterior aos factos tributários e os restantes foram dados como perda total, tendo-se em consequência procedido ao cancelamento das respetivas matrículas, não existindo correspondência entre a situação registal e a realidade jurídica;
- Embora o registo definitivo, nos termos do art.º 7º do Código do Registo Predial (CRPred.), aplicável ao registo automóvel por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel (CRAut.), constitua presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, tal presunção é ilidível;
- Para ilidir a presunção resultante do registo é necessário fazer prova da nulidade do registo, demonstrar a invalidade do negócio ou que a titularidade do direito pertence a outrem;
- A Requerente demonstrou que a titularidade dos veículos pertence a outrem, através de faturas de venda dos mesmos, datadas de momento anterior à obrigação fiscal exigida;
- O contrato de compra e venda tem natureza real, sendo o efeito real efeito do próprio contrato, não ficando o mesmo dependente de qualquer ato posterior, como o registo;
- Também as presunções contidas nas leis fiscais respeitantes à incidência dos tributos são ilidíveis, sendo de considerar como presunção legal a norma contida no art.º 3º, n.º 1 do CIUC;
- Considerando que ao Direito Fiscal interessa mais a substância do que a forma, deve atender-se à realidade substancial de transmissão da propriedade das viaturas atestada pelas faturas de venda dos veículos juntas pela Requerente como meio de prova mais do que a uma mera presunção formal resultante do registo;
- Esta realidade é a que melhor se coaduna com a natureza do próprio imposto, que se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária.
2. Resposta
Na sua resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT-Autoridade Tributária e Aduaneira pugna pela improcedência do pedido, alegando, em síntese, o seguinte:
a. Por exceção
- Os tribunais arbitrais constituídos ao abrigo do RJAT não têm competência para apreciar matéria relativa a contraordenações fiscais.
b. Por impugnação
- O legislador tributário, ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos [veículos] se encontrem registados;
- O legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter usado;
- Por outro lado, o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros;
- A título exemplificativo, apontam-se os artigos 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2.º, 3.º e 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e 4.º, 17.º, 18.º e 20.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), em que se utiliza a expressão “considera-se” para se qualificar uma situação para efeitos fiscais, sem que tal expressão possa ser vista como uma presunção;
- Nestes termos, é imperativo concluir que, no art.º 3º, n.º 1 do CIUC, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, os titulares aí enunciados) as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal, sendo que uma interpretação contrária seria uma interpretação contra legem;
- O referido entendimento corresponde ao adotado na jurisprudência dos nossos tribunais, tendo sido sufragado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no Processo n.º 210/13.0BEPNF;
- Tal resulta de várias normas do CIUC, para além do art.º 3º, n.º 1, que ligam o mecanismo do imposto ao registo;
- Também a consideração do elemento teleológico leva à conclusão de que o legislador pretendeu que fossem sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome de quem se encontram registados os veículos, já que o CIUC procedeu a uma reforma da tributação dos veículos automóveis, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública;
- A interpretação proposta pela Requerente violaria ainda os princípios constitucionais da eficiência do sistema tributário, da confiança e segurança jurídicas e da proporcionalidade;
- A interpretação defendida pela Requerente, desvalorizando a realidade registal em detrimento de uma “realidade informal” e insuscetível de um controlo mínimo por parte da Requerida, é ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídicas que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária.
- Desconsiderar a realidade registal, que constitui a pedra angular na qual assenta todo o edifício do IUC, geraria para a Requerida, e em última instância para o Estado Português, custos administrativos adicionais, entorpecimento do desempenho dos seus serviços, ausência de controlo do tributo e inutilidade dos sistemas de informação registal;
- Finalmente, a argumentação veiculada pela Requerente representa uma violação do princípio da proporcionalidade, na medida em que o desconsidera totalmente no confronto com o princípio da capacidade contributiva, quando na realidade a Requerente dispõe dos mecanismos legais necessários e adequados à salvaguarda daquela sua capacidade (v.g., o registo automóvel), sem que, contudo, os tenha exercitado em devido tempo;
- Quanto à questão da prova da alienação dos veículos, os documentos probatórios oferecidos pela Requerente – as faturas relativas à venda dos veículos – não são aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático, como é a compra e venda;
- Além disso, a Requerente não indica quais são os veículos “dados como perda total” e não junta qualquer prova nem deste facto nem do cancelamento das respetivas matrículas;
- Finalmente, a Requerida sustenta que, caso as liquidações sejam consideradas inválidas, ainda assim nunca deveria a Requerida ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios, uma vez que não existe nas liquidações qualquer erro imputável aos serviços, como requerido pelo art.º 43º, n.º 1 da LGT.
3. Alegações finais escritas
Em alegações finais, a Requerente reiterou todos os argumentos já por si alegados na petição inicial.
No que respeita à matéria de facto, a Requerente alega ainda:
- As faturas de venda apresentadas encontram-se registadas na contabilidade da Requerente o que significa que os contratos de compra e venda foram efetivamente realizados;
- As faturas gozam de presunção de veracidade e de força bastante para ilidir a presunção registal;
- A Requerida possui toda a informação relativa à contabilização das faturas apresentadas, através das declarações de Imposto sobre o Valor Acrescentado da Requerente (IVA), não podendo aceitar as faturas para efeitos de Imposto sobre o Rendimento (IRC) e IVA e não as aceitar para efeitos da ilisão da presunção do art.º 3º, n.º 1 do CIUC;
- No que diz respeito à competência do Tribunal para apreciar a legalidade da fixação de coimas por atraso no pagamento do imposto liquidado, alega a Requerente que, caso se logre ilidir a presunção de propriedade das viaturas, os fundamentos de aplicação das coimas têm igualmente de improceder, uma vez que partem da premissa de que o imposto deveria ter sido liquidado, quando é exatamente esse pressuposto que a Requerente visa atacar no presente processo.
Também a Requerida apresentou alegações finais, em que reafirmou a argumentação expendida na resposta.
II – SANEAMENTO
O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.
É admissível a cumulação de pedidos, por se encontrarem verificados todos os pressupostos estabelecidos no artigo 3º, n.º 1 do RJAT.
Não foram identificadas nulidades no processo, pelo que nada obsta à apreciação do mérito do pedido.
III – QUESTÕES A DECIDIR
Identificam-se como questões a decidir as seguintes:
- A competência do Tribunal para apreciar a o pedido no que respeita às coimas aplicadas por falta de pagamento do imposto dentro do prazo de pagamento voluntário;
- A interpretação do artigo 3º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação Automóvel (CIUC) como consagrando ou não uma presunção respeitante à qualificação, como proprietário de um veículo, da entidade em nome da qual a propriedade do mesmo se encontra registada;
- A concluir-se pela qualificação dessa norma como uma presunção, a sua efetiva ilisão no caso dos autos.
IV – FUNDAMENTAÇÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
São os seguintes os factos provados considerados relevantes para a decisão:
- A Requerente foi notificada de 687 liquidações oficiosas (cujas cópias se encontram nos processos administrativos juntos aos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido) de Imposto Único de Circulação (IUC), acrescido de juros compensatórios e agravado com coimas por falta de pagamento do imposto dentro do prazo de pagamento voluntário.
- Na sequência dessas notificações e anteriormente à apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pagou integralmente o imposto liquidado e apresentou reclamações (cujas cópias se encontram nos processos administrativos juntos aos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido) com vista à anulação de todas as liquidações.
- A Requerente emitiu faturas de venda (cujas cópias se encontram nos processos administrativos juntos aos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido) de todos os veículos sobre os quais incide o imposto liquidado.
- A Requerente foi notificada, em 29 de Janeiro de 2014, do indeferimento das seguintes reclamações graciosas, relativas a Imposto Único de Circulação acrescidos de juros compensatórios e coimas respetivas, conforme cópias dos respetivos despachos que se encontram nos processos administrativos juntos ao processo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido:
- Reclamação graciosa n.º … 2014..., relativa a liquidações oficiosas de imposto único de circulação dos anos 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013;
- Reclamação graciosa n.º ... 2014..., relativa a liquidações oficiosas de imposto único de circulação dos anos 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013;
- Reclamação graciosa n.º ... 2014…, relativa a liquidações oficiosas de imposto único de circulação dos anos 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013.
- A Requerente foi notificada, em 30 de Janeiro de 2014, do indeferimento das seguintes reclamações graciosas, relativas a Imposto Único de Circulação acrescido de juros compensatórios e coimas respetivas, conforme cópias dos respetivos despachos que se encontram nos processos administrativos juntos ao processo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido:
- Reclamação graciosa n.º ... 2013…, relativa a liquidações oficiosas de Imposto Único de Circulação dos anos 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013;
- A Requerente foi notificada, em 31 de Janeiro de 2014, do indeferimento das seguintes reclamações graciosas, relativas a Imposto Único de Circulação acrescido de juros compensatórios e coimas respetivas, conforme cópias dos respetivos despachos que se encontram nos processos administrativos juntos ao processo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido:
- Reclamação graciosa n.º ... 2013…, relativa a liquidações oficiosas de Imposto Único de Circulação dos anos 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013;
- Reclamação graciosa n.º ... 2013…., relativa a liquidações oficiosas de Imposto Único de Circulação dos anos 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013;
- Os veículos sobre os quais incide o imposto liquidado encontravam-se, todos eles, à data dos factos tributários, registados em nome da Requerente.
Consideraram-se provados os factos indicados com base na prova documental constante dos processos administrativos juntos ao processo e ainda com base nos factos que foram alegados pelas partes e não contraditados, segundo o princípio da livre apreciação da prova.
Não se considera provado que tenha sido pedido o cancelamento de matrículas.
B. QUANTO À MATÉRIA OBJETO DE EXCEÇÃO
A competência dos tribunais arbitrais constituídos ao abrigo do regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro é definida pelo art.º 2.º deste mesmo diploma, que dispõe:
1 – A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.
Na competência dos tribunais arbitrais não se compreende, portanto, matéria contraordenacional tributária, pelo que está vedado ao Tribunal pronunciar-se sobre a legalidade dos atos de fixação de coimas.
C. QUANTO AO MÉRITO DA CAUSA
1. Quanto à interpretação do artigo 3º, n.º 1 do CIUC, no sentido de determinar se o mesmo estabelece ou não uma presunção de propriedade do veículo
Sobre esta questão, nos exatos termos em que aqui se apresenta, pronunciou-se anteriormente o laudo arbitral proferido no processo n.º 63/2014-T, ao qual inteiramente se adere e que, por esse motivo, se passa a citar:
“Dispõe o artigo 3º do CIUC:
Artigo 3.º
Incidência subjetiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.
Os sujeitos passivos do IUC são, em primeiro lugar, os proprietários dos veículos, podendo ser ainda equiparados a proprietários os “locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”
A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (artigo 5º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).
A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador – sujeito ativo do facto sujeito a registo, que é, no caso, a propriedade do veículo (artigo 8º-B, n.º 1 do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artigo 29º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e conjugado com a al. a) do n.º 1 do art.º 5º do DL N.º 54/75)
Mas o Regulamento do Registo Automóvel contém um regime especial, em vigor desde 2008, para entidades que se dediquem à atividade comercial de venda de veículos automóveis. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no art.º 25º, n.º 1, alíneas c) e d), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.
Desde 2001, a obrigação de declarar a venda por parte do vendedor “à autoridade competente para a matrícula” encontra-se também expressamente estabelecida no Código da Estrada (hoje no seu artigo 118º, n.º 4).
O registo deve ser efetuado no prazo de 30 dias a contar da data da aquisição do veículo (artigo 42º do Regulamento do Registo Automóvel (Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro).
O atual IUC está desenhado para funcionar em integração com o registo automóvel, o que se infere do próprio art.º 3º do CIUC. A alternativa a esta articulação seria a obrigação de comunicar à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira todas as transmissões de veículos, à semelhança do que acontece com o Código do IMT, solução altamente burocrática que o legislador rejeitou.
Numa situação de total conformidade com a lei, verificando-se a alienação da propriedade do veículo automóvel, esta alteração da propriedade será registada em tempo devido.
A AT- Administração Tributária e Aduaneira poderá, assim, em qualquer momento, saber que veículos estão matriculados em território português e quais os respetivos proprietários, para efeitos de liquidação do imposto.
Existe, pois, uma articulação estreita entre o Registo Automóvel e o Imposto Único de Circulação, de modo que, não podendo a Administração Tributária valer-se dos dados constantes do Registo Automóvel, isso repercutir-se-á numa inevitável perda de eficiência, para não dizer paralisação, na administração do imposto.
Por essa razão, o n.º 1 do art.º 3º do CIUC, depois de estabelecer que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos” acrescenta que se consideram como tais “as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
No caso dos autos, em que a Requerente alega ter transmitido a propriedade de todos os veículos a que respeitam as liquidações impugnadas, anteriormente às datas a que dizem respeito as liquidações, a mesma Requerente conservava-se, à data dos factos tributários, como titular do registo de propriedade dos veículos alegadamente vendidos.
Mas uma vez que tais transmissões não foram comunicadas ao Registo Automóvel, a Administração Tributária adotou o único procedimento que podia adotar: aplicou o art.º 3º, nº 1 do CIUC, considerando a Requerente como proprietária dos veículos, por ser ela a entidade em nome da qual os veículos se encontravam registados. Note-se que, ainda que o art. 3º do CIUC não contivesse a expressão “considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a Administração Fiscal sempre beneficiaria dessa presunção de propriedade pois esta resulta do próprio Registo Automóvel.
Com efeito, o art.º 7º do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao registo de automóveis, por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipula que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”
A Requerente reconhece que, no período a que se referem as liquidações, era a titular do registo de propriedade dos veículos, mas alega que não era já a efetiva proprietária dos mesmos por, entretanto, os ter alienado.
A questão que se coloca nesta situação é a do valor da segunda parte do preceito, ao determinar que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
Ao dizer que “se consideram como proprietários dos veículos as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a lei está a estabelecer uma presunção legal?
Ou, pelo contrário, a lei está a dizer que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados são “proprietários” para efeitos fiscais, i.e, são sujeitos passivos?
A Requerente sustenta que a lei contém uma presunção legal, baseando-se para tal no exemplo de várias disposições legais vigentes no ordenamento jurídico que, empregando o verbo “considerar”, contêm indubitavelmente presunções.
A tese da Requerente socorre-se igualmente do valor meramente declarativo do registo automóvel.
Se a tese da Requerente estiver correta, então, de acordo com o disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária, e porque se trata de uma norma de incidência, a presunção é necessariamente ilidível, o que significa que admite prova em contrário. O que no caso significa que a Impugnante poderá provar que não era proprietária dos veículos no período a que as liquidações dizem respeito e, logo, não era sujeito passivo do imposto liquidado.
Em sentido contrário, a Requerida sustenta que na norma em causa não se estabelece presunção alguma, e que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (“como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas”) as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
A Requerida apoia-se, tal como a Requerente, no exemplo de várias normas legais tributárias, que, utilizando o verbo “considerar”, não contêm presunções, mas qualificações não presuntivas. Seriam exemplos os artigos 2º do Código do Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2º, 3º e 4º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e 4º, 17º, 18º e 20º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC).
Pelos exemplos fornecidos por ambas as partes, resulta evidente, desde logo, que é possível encontrar no ordenamento jurídico tantos exemplos de preceitos que utilizam o verbo “considerar” no sentido de “presumir” como exemplos de preceitos legais que utilizam o verbo “considerar” para estabelecer qualificações jurídicas não presuntivas, pelo que estes argumentos não são concludentes.
A existir uma presunção no artigo 3º, n.º 1 do CIUC, ela consiste na presunção sobre a qualidade de proprietário: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
Por outro lado, se se entender que a norma não estabelece uma presunção legal, então haverá que considerar que a lei qualifica não presuntivamente como proprietários dos veículos, as pessoas em nome das quais os veículos estão registados.
Teremos, nesse caso, uma ficção legal, desligada do conceito do direito civil, e que consiste num expediente jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir determinadas consequências jurídicas
O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei”.
Há pois que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.
Ora, será que a “liberdade de conformação legislativa” de que goza o legislador, que a Requerida refere no parágrafo 17º da sua Resposta, pode ir tão longe, ao ponto de determinar taxativamente quem é proprietário de um veículo, ainda que para efeitos meramente fiscais, dissociando radicalmente essa qualificação fiscal da qualificação do direito civil?
E, na sequência da questão anterior, outra pergunta se impõe: por que razão o legislador não teria então estipulado simplesmente - pois obteria exatamente o mesmo efeito útil mas eliminando toda e qualquer margem de insegurança ou incerteza jurídicas - que “são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados, seja como proprietários, seja como locatários financeiros, como adquirentes com reserva de propriedade, ou como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”? Questão tanto mais pertinente, e hipótese tanto mais atrativa, quanto o legislador conhecia a experiência, negativa, e que volta repetir-se, do anterior Imposto de Circulação?
A resposta parece evidente: porque, nesta última hipótese, que o legislador não seguiu, a incidência subjetiva do imposto poderia ficar totalmente desligada de qualquer substância económica e ficaria dependente exclusivamente de uma aparência jurídica.
Ora, se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjetiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjetiva.
É certo que a eficiência da tributação determina a necessidade de o IUC assentar no registo automóvel e, por conseguinte, exige que a administração fiscal possa confiar no mesmo registo automóvel.
Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjetiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do veículo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte direto (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro).
E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.”
Conclui-se assim, acompanhando a decisão citada, que o art.º 3º, n.º 1 do CIUC contém uma presunção em matéria de incidência tributária, relativa à qualidade de proprietário de um veículo.
2. Quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente
Concluído que o n.º 1 do art.º 3º do CIUC consagra uma presunção de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, daí decorre que tal presunção é ilidível, nos termos do artigo 73º da LGT.
Por outro lado, o registo automóvel constitui presunção de que o titular do direito de propriedade é a entidade a favor de quem o mesmo direito se encontra registado. Esta presunção encontra-se expressamente estabelecida no artigo 7º do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel.[1]
Se é certo que a presunção do art.º 3º, n.º 1 do CIUC é estabelecida tendo em vista os fins da tributação, já a presunção estabelecida pela lei registal tem em vista a segurança jurídica em geral, não existindo nenhum fundamento para julgar que essa presunção não se aplica no âmbito de relações jurídicas tributárias.
Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da atualização do registo face ao facto publicitado”.
No que toca à ilisão da presunção do registo automóvel, existe jurisprudência firmada no sentido de que é necessário provar que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-01-2013, proc. n.º 3654/03.2TBLRA.C1; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3-06-2008, proc. n.º 245-B/2002.C1).
Para provar que o direito de propriedade sobre os veículos pertence a outrem, a Impugnante apresenta faturas relativas à venda dos veículos em causa. E pretende, com tais documentos, provar que alienou os veículos.
No entanto, no entender deste Tribunal arbitral, e em consonância com a decisão arbitral anteriormente citada, nem as faturas provam a alienação, nem provar que ocorreu uma alienação num momento que em muitos dos casos em apreço teria ocorrido vários anos antes do facto tributário, equivale, em abstrato, a provar que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, no momento do facto tributário. E com efeito, o que a Requerente teria de fazer para ilidir a presunção do registo automóvel não era provar que alienou há vários anos, mas que, no momento do facto tributário, o direito de propriedade pertencia a outrem. Provar que o direito pertence a outrem, por sua vez implica provar a quem pertence o direito de propriedade registado em seu nome.
Sendo a compra e venda um contrato bilateral, provar que o contrato de compra e venda foi concluído pressupõe provar que foram emitidas declarações de vontade eficazes por ambas as partes do contrato. A fatura, porém, é um documento unilateral, que apenas pode fazer prova da declaração do seu emitente.
Neste sentido existe sólida jurisprudência dos tribunais cíveis relevante para o caso que aqui nos ocupa, citada na decisão arbitral referenciada antes.
Num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-2-2010, (Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8) afirma-se, referindo-se às faturas apresentadas como meio de prova de uma contrato de compra e venda: “Os documentos juntos limitam-se à existência das declarações nele contidas, ou seja, que foram emitidas faturas referentes a mercadoria fornecida à ré/apelada com a correspondente nota de entrega”.
Noutro acórdão do mesmo Tribunal de 26-11-2009 (Proc. n.º 29158/03.5YXLSB.L1-2), afirma-se que “a força probatória do documento particular se limita às declarações do respetivo subscritor”.
E ainda num terceiro acórdão do mesmo Tribunal de 5-6-2008 (Proc. 1586/2008-8), o Tribunal sentencia que “a exigência de um pagamento por fatura não basta para se provar que o contrato a que respeita o pagamento foi celebrado com a entidade faturada.”
Em face do exposto, é forçoso concluir, como na decisão arbitral citada, que a Requerente não logrou provar a alienação dos veículos.
Os registos contabilísticos que a Requerente protestou juntar, caso fosse considerado necessário, são igualmente documentos unilaterais e internos. Não acrescentariam, por conseguinte, qualquer valor probatório às faturas, tratando-se de provar a existência de um contrato bilateral.
Porém, como foi dito anteriormente, e como é dito nos arestos anteriormente citados, para ilidir a presunção de veracidade dos factos constantes do registo, neste caso a presunção de propriedade automóvel, a Requerente tinha de provar que era outro o titular do direito registado à data dos factos tributários.
Ora, provar – o que não se provou – que se celebrou um contrato de compra e venda em determinado momento não implica deixar provado que, vários anos depois, é outro o titular do direito, pelas mais elementares regras da lógica.
É irrelevante, para esta questão, qualquer consideração acerca das circunstâncias concretas e particulares do negócio que esteja em causa, pois a questão que se analisa não é uma questão de facto, mas uma questão de direito probatório material. A questão de direito probatório em causa é a de saber se um documento particular e unilateral tem força probatória para, por si só, destruir a prova plena que o registo constitui.
Tratando-se de uma questão de direito, o que importa saber é se uma declaração particular e unilateral deve, em abstrato, ser considerada suficiente para destruir a presunção registal.
Sobre esta questão, passa a citar-se o laudo arbitral proferido no processo arbitral n.º 126/2014-T, a cuja doutrina se adere sem reserva:
“Sobre a ilisão da presunção de veracidade do registo, diz Mouteira Guerreiro (Mouteira Guerreiro, J. A., Noções de Direito Registral, 2ª ed. Coimbra ed.1994, p. 70): “A proteção conferida pelo registo traduz-se no nosso sistema, numa presunção elidível. Mas, não o podemos esquecer, trata-se de uma presunção legal. (…) O que o registo revela não pode ser impugnado, mesmo em juízo, sem que simultaneamente se peça o cancelamento.
O mesmo autor (Ibidem, p. 71) acrescenta: “Decorre do princípio da presunção de verdade ou da exatidão a regra prevista no art.º 8º do Crp. Se o registo definitivo faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito “nos precisos termos em que o registo o define”, não faria sentido atacar judicialmente essa verdade publicitada, sem simultaneamente atacar o próprio registo. Por isso, quem pretender contestar a veracidade dos factos tabularmente consignados terá igualmente de pedir o cancelamento do registo. Se o não fizer, a ação não prosseguirá após os articulados, porque haveria o risco de chegar a uma efetiva contradição: por um lado, ter uma sentença declarando juridicamente irrelevantes ou inverídicos certos factos e, pelo outro, existir um registo a fazer presumir erga omnes a veracidade e validade desses mesmos factos”.
O entendimento exposto é sancionado pela jurisprudência dos tribunais superiores. Vejam-se os acórdãos anteriormente citados, nos quais se afirma que, para afastar a presunção de propriedade que decorre do registo automóvel, é necessário provar que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, mas tal não bastando, sendo ainda necessário pedir-se, simultaneamente o respetivo cancelamento (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-01-2013, proc. n.º .../03.2TBLRA.C1; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3-06-2008, proc. n.º 245-B/2002.C1).
Ou seja, dada a função de garantia da segurança das relações jurídicas relativas a bens sujeitos a registo, para que não seja arrasada a função probatória do registo, aquele que pretenda afastar a presunção terá de estar em condições de pedir o cancelamento do registo. (…)”.
Há, pois, que concluir, que os documentos apresentados pela Requerente não provam que é outro o titular do direito registado, como era exigido a fim de se considerar ilidida a presunção registal.
De todo o exposto resulta que a Requerente não ilide a presunção que sobre si recai quanto à titularidade da propriedade dos veículos sobre os quais incidem as liquidações de IUC impugnadas, e que, por conseguinte, as liquidações impugnadas não enfermam de qualquer ilegalidade.
Improcede portanto, a pretensão da Requerente quanto à ilegalidade das liquidações impugnadas com base em erro nos pressupostos de Direito, por falta dos pressupostos da incidência subjetiva do Imposto quanto à Requerente.
VI. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, este Tribunal decide julgar totalmente improcedente o presente pedido arbitral.
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em 53 835,74 euros.
Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 2 142,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Registe-se e notifique-se.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 15 de Dezembro de 2014.
O Tribunal arbitral
(Nina Aguiar)
[1] DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.