Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 941/2023-T
Data da decisão: 2024-07-11  IRC  
Valor do pedido: € 86.143,14
Tema: IRC – Tributação de Juros pagos a Organismos de Investimento Coletivo (OIC) não Residentes – Discriminação e Violação da Livre Circulação de Capitais – Arts. 22.º, n.ºs 1 a 3 e 10 EBF e 63.º do TFUE
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Sumário

  1. A violação do direito da União Europeia configura um erro (de direito) imputável aos órgãos do Estado, pelo que é admissível o pedido de revisão oficiosa de atos de retenção na fonte, por erro imputável aos serviços da AT, ao abrigo do disposto no artigo 78.º, n.º 1, II parte da LGT.
  2. O pedido de revisão oficiosa deve ser encarado como um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa, para efeitos de cumprimento do requisito de recurso prévio à via administrativa previsto no artigo 2.º, alínea a) da Portaria de Vinculação.
  3. O artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação por força da qual os juros pagos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os juros pagos a um OIC residente estão isentos dessa retenção, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, designadamente no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds.
  4. Assim, o regime instituído pelos n.ºs 1, 3 e 10 do artigo 22.º do EBF é incompatível com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, na medida em que limita a dispensa de retenção na fonte nele prevista a OIC constituídos segundo a legislação nacional, excluindo os OIC constituídos sob a legislação de outros Estados.
  5. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (presidente), Cristina Aragão Seia e Jorge Carita, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 20 de fevereiro de 2024, acordam no seguinte:

 

                    I.        Relatório

 

A..., doravante designado por “Requerente”, organismo de investimento coletivo (“OIC”), constituído e a operar no Reino da Bélgica, sob supervisão da Autorité des Services et Marchés Financiers, contribuinte fiscal belga n.º ... e português n.º ..., com sede em Rue...–..., na Bélgica, representado pela sua entidade gestora B..., também com sede na morada acima identificada, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“ppa”), na sequência da  formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa por si apresentado em 9 de maio de 2023, relativo a retenções na fonte de IRC ocorridas em 2019, quando da colocação à disposição do Requerente de juros pagos por entidades residentes em território português. 

 

Para tanto, o Requerente invoca o disposto nos artigos 57.º, n.ºs 1 e 5, 95.º, n.º 2, alínea d) da Lei Geral Tributária (“LGT”), 97.º, n.º 1, alínea c), 99.º, alínea a) e 102.º, n.º 1, alínea d) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 137.º, n.º 1 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“Código do IRC”), 10.º, n.ºs 1, alínea a) e  2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

Em 11 de dezembro de 2023, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD, do que foi notificada a AT.

 

De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram de forma tempestiva a aceitação do encargo. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 20 de fevereiro de 2024.

 

            Em 5 de abril de 2024, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por exceção e por impugnação.

 

            Por despacho do Tribunal, de 8 de abril de 2024, foi a Requerente notificada para exercer o contraditório sobre a matéria de exceção, tendo esta optado por não o fazer.

 

            Subsequentemente, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (v. artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT). As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas, por despacho de 14 de junho de 2024, que também fixou o prazo para a decisão até à data-limite prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.

 

            Apenas o Requerente apresentou alegações e em 3 de julho de 2024, nas quais mantém a posição expressa no ppa.

 

Posição do Requerente

 

            O Requerente alega que a tributação em IRC, por retenção na fonte a título definitivo, sobre os juros de fonte portuguesa que recebeu, em 2019 de sociedades residentes em território português, constitui uma discriminação contrária ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), pois, se fosse um OIC residente em Portugal, não seria sujeito à referida retenção na fonte.

 

            Como questão prévia, invoca que o pedido de revisão oficiosa que apresentou está enquadrado no disposto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, in fine, tendo por fundamento o erro imputável aos serviços, por violação do artigo 63.º do TFUE e do princípio do primado do Direito da União Europeia (v. artigo 8.º, n.º 4 da Constituição), beneficiando do prazo de 4 anos aí previsto.

 

            Sublinha o Requerente que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo se pronuncia no sentido de que o erro dos serviços compreende quer o erro de facto, quer o erro de direito.

 

            Deste modo, impendia sobre a AT o dever de rever os atos tributários de retenção na fonte, nos termos dos artigos 56.º e 78.º. n.º 1, in fine, da LGT. Não o tendo feito, ao fim de 4 meses formou-se o indeferimento tácito com a consequente abertura da via contenciosa (artigo 57.º, n.ºs 1 e 5 da LGT).

 

            Em relação à ilegalidade substantiva dos atos tributários, o Requerente invoca que o regime fiscal previsto no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), ao ser aplicável apenas aos OIC residentes em Portugal, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, e não aos OIC não residentes, constituídos e a operar noutro Estado-Membro ao abrigo da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, doravante “Diretiva 2009/65/CE”, mesmo demonstrando o cumprimento, no Estado de residência, de exigências equivalentes às da lei portuguesa, como é o seu caso, consubstancia uma diferença de tratamento não justificada.

Argui o Requerente que o regime do artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do EBF, ao restringir a dispensa de retenção na fonte e a exclusão de tributação em IRC aos juros auferidos por OIC residentes em Portugal, discrimina os OIC não residentes, residentes noutro Estado-Membro da União Europeia, não obstante tais entidades serem constituídas e operarem em condições equivalentes às previstas na legislação portuguesa, ao abrigo da Diretiva 2009/65/CE, colocando-os numa situação de desvantagem comparativa, tão-só em consequência de não terem a sua residência em Portugal.

 

Este tratamento discriminatório operado pelos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b) e n.º 5, 87.º, n.º 4, todos do Código do IRC, e 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do EBF, constitui uma restrição às liberdades fundamentais – no caso à livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE – e, em consequência, do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição, por violação do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito interno.

 

            Por outro lado, assinala que, por estar isento de imposto belga sobre os rendimentos das pessoas coletivas, não lhe foi possível neutralizar a tributação dos referidos juros em Portugal através do crédito de imposto previsto no artigo 28.º, n.º 2 (?) da Convenção celebrada entre a  Portugal e a Bélgica para Evitar a Dupla Tributação e Regular Algumas Outras Questões  em Matéria de Impostos sobre o Rendimento (“Convenção de Dupla Tributação”).

 

Para o Requerente, estamos perante situações objetivamente comparáveis, pois quer no seu caso particular, quer no de OIC residentes, os juros pagos por entidades portuguesas podem ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia por mero efeito do exercício da competência tributária do Estado português.

 

Em suporte do entendimento preconizado, cita jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente nos processos C-170/05, Denkavit II; C-374/04, ACT; C-190/12, Emerging Markets; C-480/16, Fidelity Funds; e jurisprudência arbitral tributária do CAAD nos processos n.ºs 90/2019-T; 528/2019-T; 11/2020-T e 926/2019-T. E, se dúvidas houvesse, afirma que estas foram definitivamente superadas pelo recente acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds AEVN.

Por outro lado, argui que a restrição à livre circulação de capitais não pode ser neutralizada pelo Estado da residência do Requerente, através do mecanismo de crédito de imposto previsto no artigo 24.º, n.º 2 da Convenção de Dupla Tributação Portugal/Bélgica, uma vez que aquele está isento de tributação em sede de imposto belga sobre o rendimento das pessoas coletivas.

 

Acrescenta que, para que uma legislação fiscal discriminatória como a portuguesa pudesse ser considerada compatível com as disposições do TFUE relativas à livre circulação de capitais, seria necessário que a diferença de tratamento fosse justificada por razões imperiosas de interesse geral, fossem elas a necessidade de: (i) salvaguardar a coerência do regime fiscal português, (ii) garantir a repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros, (iii) evitar a diminuição de receitas fiscais, ou (iv) garantir a eficácia dos controlos.

 

Porém, o Requerente defende que nenhuma destas razões é admissível no presente caso. De novo, cita a jurisprudência do Tribunal de Justiça nos casos C-35/98, Verkooijen; C-319/02, Manninen; C-379/05, Amurta; C-324/00, Lankhorst; C-168/01, Bosal Holdings; C-190/12, Emerging Markets; C-480/16, Fidelity Funds; C-493/09, Comissão c. Portugal; C-545/19, AllianzGi-Fonds AEVN.

 

Conclui pelo pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte (sobre juros pagos em 2019), fundada em erro de direito, e peticiona a restituição do imposto retido acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT, se a revisão dos atos se efetuar mais de um ano após o pedido do Requerente, até integral pagamento.

 

Posição da Requerida

           

            A Requerida vem invocar a exceção da incompetência, em razão da matéria, do Tribunal Arbitral, com fundamento no facto de o Requerente, na qualidade de substituído tributário, pedir que este Tribunal aprecie, pela primeira vez, as retenções na fonte efetuadas pelo substituto tributário, sem que tenha previamente desencadeado o procedimento de reclamação graciosa, nos termos exigidos pelo artigo 132.º do CPPT.  Segundo a Requerida, o pedido de revisão oficiosa não pode substituir a reclamação graciosa, ainda para mais quando o recurso ao mesmo é feito além do prazo de 2 anos previsto no citado artigo 132.º.

 

            Donde, não tendo o pedido anulatório sido precedido, em prazo, de reclamação graciosa necessária, o Tribunal Arbitral carece de competência para apreciar a ilegalidade das retenções na fonte. Acrescenta que uma interpretação que amplie a vinculação da AT à tutela arbitral, com a renúncia, nessa medida, ao recurso jurisdicional pleno, viola os princípios constitucionais do Estado de direito e da separação de poderes (v. artigos 2.º e 111.º da Constituição), bem como da legalidade (v. artigos 3.º, n.º 2, 202.º, 203.º e 266.º, n.º 2 da Constituição), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, e do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da Constituição).

 

            Argui, de igual modo a incompetência do Tribunal Arbitral dado que a AT nunca se pronunciou sobre a (i)legalidade das retenções impugnadas, que não foram por si efetuadas, não tendo o Requerente comprovado o alegado erro de direito imputável à AT, ónus que sobre si recaía, pelo que o prazo aplicável à revisão é o da reclamação graciosa, que já estava esgotado.

 

            Assim, a ficção de indeferimento tácito teria, no caso, de se reportar obrigatoriamente a um indeferimento por extemporaneidade, que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação e cujo meio de reação é a ação administrativa. Trata-se de questão que respeita ao controle dos pressupostos de aplicação do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, para a qual a Requerida entende que o Tribunal Arbitral não tem competência.

 

            Conclui pela existência da exceção dilatória de incompetência material do tribunal arbitral, a qual obsta ao conhecimento do pedido e que conduz à absolvição da entidade Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

            Por impugnação, a Requerida começa por salientar, na esteira dos acórdãos Schumacker, C-279/03, e Truck Center, C-282/07, que em matéria de impostos diretos, a situação dos residentes e dos não residentes não é, por regra, comparável, pois apresenta diferenças objetivas do ponto de vista do rendimento, da capacidade contributiva e da situação familiar ou pessoal, pelo que o tratamento diferenciado não é discriminatório e está plenamente justificado dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português (v. acórdãos Bachman, C-204/90;  Comissão/Bélgica, C-300/90; e Marks & Spencer, C-446/03). Invoca ainda os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 20 de fevereiro de 2013, processo n.º 01435/12, e de 27 de novembro de 2013, processo n.º 0654/13, de 27 de novembro.

 

            A este respeito, assinala que a exclusão de tributação dos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional (v. artigo 22.º, n.º 3 do EBF) é contrabalançada com a criação de uma taxa de Imposto do Selo incidente sobre o ativo global líquido dos OIC [da verba 29]. Daí resulta uma tributação trimestral, à taxa de 0,0025%, sobre o valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa de 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC. Desta tributação em Imposto do Selo ficam excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira.

 

            Também assinala que os OIC com sede em Portugal estão sujeitos a tributação autónoma, nos termos previstos no 88.º, n.º 11 do Código do IRC, por remissão do artigo 22.º, n.º 8 do EBF, o que não sucede com os demais OIC.

 

            Acresce que também não está demonstrado que o imposto retido na fonte não possa vir a ser recuperado pelos investidores.

 

            Logo, não pode afirmar-se que as situações em que se encontram os OIC residentes e aqueles constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem juros com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis, nem concluir-se que o regime fiscal dos OIC – que não se contém em exclusivo no n.º 3 do artigo 22.º do EBF – esteja em desconformidade com as obrigações que decorrem do artigo 63.º do TFUE. Além de que não compete à AT avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, nem pode deixar de aplicar as normas legais internas que a vinculam.

 

            Apesar de no caso sub iudice estar em causa o recebimento de juros, a Requerida refere-se unicamente à distribuição de dividendos. Sustenta que a “distribuição de dividendos” efetuada por sociedades residentes em Portugal é passível de ser qualificada como movimento de capitais na aceção do artigo 63.º do TFUE e que para se avaliar se o tratamento fiscal é menos vantajoso para os OIC não abrangidos pelo artigo 22.º [n.º 10] do EBF, tem de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte ao OIC não residente e os impostos – IRC (por tributação autónoma) e Imposto do Selo – que incidem sobre os residentes, que podem exceder 23% do valor bruto dos “dividendos”. Além do mais, afirma que o imposto retido ao Requerente é passível de dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional, tanto na esfera deste, como na dos investidores.

 

            Não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos “dividendos” opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º [n.º 10] do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os “dividendos” auferidos em Portugal pelo Requerente, antes, pelo contrário. O que existe é uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas a que não corresponde uma discriminação em substância.

 

            Defende que a jurisprudência do Tribunal de Justiça não permite retirar a conclusão de que a retenção na fonte constitui uma restrição à livre circulação dos fluxos de capital e faz referência ao fundo de investimento estabelecido em França, quando na presente ação o país em causa é a Bélgica. Entende que a retenção na fonte efetuada sobre os “dividendos” pagos ao Requerente respeita o disposto na legislação nacional e na convenção para evitar a dupla tributação, devendo ser mantida na ordem jurídica.

 

            Acrescenta ainda que, mesmo a admitir a comparabilidade das situações dos OIC residentes e não residentes, seguindo o acórdão de 9 de julho de 2014, proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 1435/12, o tratamento diferenciado entre residentes e não residentes não constitui em si mesmo qualquer discriminação proibida pelo n.º 1 do artigo 63.º do TFUE.

            Seguindo o entendimento expresso no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 19/10.3BELRS, de 7 de maio, para se concluir pelo carácter discriminatório do regime que sujeita a retenção na fonte as entidades não residentes, o Requerente teria de demonstrar que suportara uma tributação mais elevada no seu conjunto, o que não se verificou. Neste sentido, remete para o acórdão Gerritse, de 12 de junho de 2003, processo C- 234/01, concluindo que o Requerente não fez prova da discriminação proibida, o que lhe competia (v. artigos 74.º da LGT, 342.º e 348.º do Código Civil).

 

            Sobre os juros indemnizatórios, a Requerida não vislumbra qualquer ilegalidade nos atos tributários (de retenção na fonte) contestados, pelo que considera prejudicada a possibilidade do seu pagamento. Porém, sem conceder, mesmo em caso de decisão favorável ao Requerente, entende não haver lugar a juros indemnizatórios, conforme a posição do Supremo Tribunal Administrativo que determina que a AT só pode deixar de aplicar uma norma legal com fundamento em inconstitucionalidade quando o Tribunal Constitucional já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (acórdão de 30 de janeiro de 2019, proc. 0564/18.2BALSB) .

 

            Conclui pela absolvição da instância ou, subsidiariamente, pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

* * *

 

O Tribunal foi regularmente constituído.

 

Na sua resposta, a Requerida invocou a exceção de incompetência material, que importa conhecer, pois a sua procedência impede o conhecimento do pedido, e que será apreciada logo após a fixação da matéria de facto relevante.

 

  1. Fundamentação de Facto

 

  1. Factos  Provados

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

  1. O A..., aqui Requerente, é um OIC com sede e direção efetiva no Reino da Bélgica, constituído e a operar ao abrigo da Loi du 3 août 2012 relative à certaines formes de gestion collective de portefeuilles d’investissement e do Arrêté royal du 7 décembre 2007 relatif aux organismes de placement collectif à nombre variable de parts institutionnels, que transpõem para a ordem jurídica belga a Diretiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2019[1] – cf. Documento 2 (cópia da certidão emitida pela Autorité des Services et Marchés Financiers, ao abrigo do artigo 2.º do Regulamento UE n.º 584/2010, da Comissão, de 1 de julho de 2010, e Documento 3 (prospeto do Requerente e publicações dos referidos atos belgas, disponíveis em linha:  http://www.ejustice.just.fgov.be/eli/loi/2012/08/03/2012003296/justel e http://www.ejustice.just.fgov.be/eli/arrete/2007/12/07/2007003552/justel.
  2. O Requerente cumpre os requisitos previstos na Diretiva 2009/65/CE no Reino da Bélgica – cf. Documentos 2 e 3.
  3. O Requerente é administrado pela sociedade B..., entidade também com residência no Reino da Bélgica – cf. Documentos 2 e 4 (cópia do certificado de residência da sociedade gestora).
  4. O Requerente é residente para efeitos fiscais no Reino da Bélgica e aí isento de tributação sobre o rendimento das pessoas coletivas – cf. Documento 2.
  5. Em 2019, o Requerente auferiu juros em Portugal, no montante total de € 344.572,55, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória, à taxa de 25%, efetuada pelo C..., contribuinte fiscal português n.º..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, nos termos do artigo 94.º, n.º 7 do Código do IRC, perfazendo o valor de € 86.143,14, a título de imposto retido, através das guias de retenção na fonte n.os ..., ..., ..., de 20 de maio, 22 de julho e 20 de novembro de 2019, e ..., de 20 de fevereiro de 2020, conforme detalhado no quadro seguinte – cf. Documento 5:

Entidade

Data

Juros brutos

Retenção na fonte

Juros líquidos

D...

30-04-2019

8.868,80

2.217,20

6.651,60

E...

15-04-2019

43.848,75

10.962,19

32.886,56

E...

15-04-2019

17.425,00

4.356,25

13.068,75

F...

14-06-2019

193.800,00

48.450,00

145.350,00

G...

28-06-2019

5.750,00

1.437,50

4.312,50

E...

15-10-2019

70.380,00

17.595,00

52.785,00

H...

09-12-2019

4.500,00

1.125,00

3.375,00

Totais

344.572,55

86.143,14

258.429,41

 

  1. O Requerente não obteve crédito de imposto no seu Estado de residência, a Bélgica,  relativo às retenções na fonte de IRC antes mencionadas, seja ao abrigo da Convenção de Dupla Tributação Portugal/Bélgica, seja da lei interna do Reino da Bélgica – cf. Documentos 5 e 6.
  2. Inconformado com as retenções na fonte acima identificadas, por entender que essa tributação consubstancia uma discriminação injustificada entre OIC residentes e não residentes em Portugal, em violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, em consequência, do primado do direito da União Europeia consagrado no artigo 8.º, n.º 4 da Constituição, em moldes similares ao alegado no ppa, o Requerente apresentou, em 9 de maio de 2023, pedido de revisão oficiosa – cf. Documento 1.
  3. Até ao momento o Requerente não foi notificado da decisão do procedimento de revisão oficiosa que correu termos sob o n.º ...2023... – cf. provado por acordo.
  4. Em discordância das retenções na fonte de IRC sobre os juros auferidos em 2019 de fonte portuguesa o Requerente apresentou no CAAD, em 7 de dezembro de 2023, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral na origem da presente ação – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.

 

            2.         Motivação da Decisão da Matéria de Facto

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos, que é consensual. A questão a decidir é, pois, unicamente de direito.

 

Não existem factos alegados com relevância para a apreciação da causa que devam considerar-se não provados.

 

 

  1. Do Direito

 

  1. Da Incompetência Material

 

A competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que se impõe a sua apreciação a título prévio (v. artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT ).

Nos Tribunais Arbitrais em matéria tributária que funcionam sob a égide do CAAD, a  competência é delimitada pelo artigo 2.º, n.º 1 do RJAT compreendendo, exclusivamente, a apreciação de pretensões relacionadas com a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável que não dêem origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais. Este recorte da jurisdição arbitral em razão da matéria corresponde, de um modo geral, a pretensões que são sindicáveis nos Tribunais Tributários por via da impugnação judicial, conforme resulta do disposto no artigo 97.º, n.º 1 do CPPT.

 

Acrescenta o artigo 4.º do RJAT que a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de Portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça. E, através da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, aqueles serviços e organismos vincularam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais nos casos que tenham por objeto a apreciação das referidas pretensões, de valor não superior a € 10.000.000,00, relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, o que abrange de forma inequívoca o IRC (artigos 2.º e 3.º da Portaria de Vinculação).

 

No entanto, a vinculação à jurisdição dos tribunais arbitrais é excluída no caso de “Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, como resulta do artigo 2.º, alínea a) da citada Portaria n.º 112-A/2011.

 

A Requerida alega diversas razões para suscitar a incompetência deste Tribunal. E uma delas é precisamente a de não ter existido o prévio recurso à via administrativa exigido pela Portaria de Vinculação, apesar de as liquidações de IRC, por retenção na fonte, aqui impugnadas, terem sido objeto de prévia apresentação de pedido de revisão oficiosa, ao abrigo artigo 78.º, n.º 1 da LGT.

 

É verdade que o artigo 132.º do CPPT, para o qual a Portaria de Vinculação remete, faz referência à reclamação graciosa e não à revisão oficiosa dos atos tributários. A norma dispõe no seu n.º 3 que o “substituto que quiser impugnar reclamará graciosamente para o órgão periférico regional da administração tributária competente no prazo de dois anos a contar do termo do prazo nele referido”, aplicando-se, de igual modo, por remissão do n.º 4 “à impugnação pelo substituído da retenção que lhe tiver sido efetuada”.

 

Contudo, o recurso prévio à via administrativa deve ser entendido como abrangendo, além da reclamação, a via da revisão dos atos tributários aberta pelo artigo 78.º da LGT, pois a finalidade visada pela norma é a de garantir que a retenção  efetuada seja objeto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro “litígio”. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar, pela primeira vez, sobre o erro na retenção efetuada pelo devedor do contribuinte e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo contencioso.

 

Com efeito, os atos de retenção na fonte (bem como os de autoliquidação e de pagamento por conta versados nos artigos 131.º e 133.º do CPPT) decorrem da iniciativa dos contribuintes, sem que a administração tributária tenha tido qualquer intervenção, ou seja, são atos em relação aos quais a administração tributária ainda não tomou posição, razão pela qual se justifica a obrigatoriedade de recurso à via administrativa prévia, que não se cinge à reclamação graciosa, como declaram os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de setembro de 2012, processo n.º 476/12, e de 12 de julho de 2006, processo n.º 402/06.

 

Não se alcança que deva ser outro o propósito da norma de remissão da Portaria de Vinculação que indica expressamente as pretensões “que não tenham sido precedid[a]s de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, ou seja, referindo-se com clareza a um procedimento administrativo prévio e não, em exclusivo, à reclamação graciosa. Por outro lado, seria incoerente e antissistemático que os artigos 131.º a 133.º do CPPT revestissem distintos significados consoante estivessem a ser aplicados nos Tribunais Tributários e nos Tribunais Arbitrais, sendo que em relação aos primeiros o Supremo Tribunal Administrativo sancionou o entendimento de que, para este efeito, o pedido de revisão oficiosa deve ser encarado como um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa.

 

Nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adotadas  nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa[2].

 

Verificando-se que o pedido de revisão do ato tributário assegura a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada e coerente com o desígnio legislativo de “reforçar a tutela eficaz e efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes”, manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, que contém a autorização legislativa do regime da arbitragem tributária, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de atos de liquidação por retenção na fonte previamente apreciada em procedimento de revisão oficiosa instaurado ao abrigo do artigo 78.º da LGT.

 

De igual modo, no mesmo sentido, se pronunciou o Tribunal Central Administrativo Sul, especificamente com referência aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, declarando-os competentes para apreciar a legalidade de atos de autoliquidação (a que são, para este efeito, equiparáveis os atos de retenção na fonte) na sequência da apresentação de pedidos de revisão oficiosa[3].

 

No caso concreto, o Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa previamente à propositura da presente ação arbitral, pelo que a AT teve a oportunidade de se pronunciar em fase administrativa prévia. Se não o fez foi porque escolheu adotar uma conduta omissiva, em violação do dever legal de decisão no prazo de 4 meses, contrariamente ao determinado nos artigos 56.º e 57.º, n.º 1 da LGT, não podendo tal circunstância ser atendida como fundamento válido de exclusão da jurisdição arbitral.

 

Noutra linha de argumentação, diz ainda a Requerida que o prazo de quatro anos, previsto no artigo 78.º, n.º 1, in fine, para apresentação de pedido de revisão oficiosa contra as retenções de IRC em causa, não estaria disponível por falta de comprovação, pelo Requerente, de erro de direito imputável aos Serviços da AT, pelo que o prazo aplicável à revisão seria o da reclamação graciosa, que já estava esgotado.

 

Não tem razão, pois o que está em causa é a violação do direito da União Europeia, em concreto da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE e também do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição, pelo artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do EBF, que consubstancia um erro de direito que não pode deixar de ser imputado aos órgãos do Estado português.

 

A noção de “erro imputável aos serviços” constante do n.º 1 do artigo 78.º da LGT concretiza qualquer ilegalidade, não imputável ao contribuinte, mas à Administração, e compreende “não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afectada pelo erro” (v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 8 de março de 2017, processo n.º 01019/14 e acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 7 de maio de 2020, processo n.º 19/10.3BELRS). O erro de direito pode, assim, resultar, quer da má interpretação das normas legais em vigor, quer da aplicação de normas desconformes com o bloco de legalidade que lhes serve de parâmetro, designadamente o direito da União Europeia. 

 

Recentemente, e de forma cristalina, o Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 9 de novembro de 2022, proferido no processo n.º 087/22.5BEAVR, pronunciou-se favoravelmente à qualificação de “erro imputável aos serviços” em relação a uma questão similar, respeitante a atos de retenção de imposto do selo, ou seja, a atos não efetuados diretamente pela própria AT, mas pelos operadores económicos, de que se transcreve o seguinte excerto ilustrativo:

 

 “Por isso, colhem de pleno os argumentos da recorrente no sentido de que, tendo sido o IS liquidado e cobrado pelas instituições financeiras, em substituição da AT tal como lhe é perpetrado pela lei (artigo 2.º do Código do IS), o erro de direito tem de ser imputado precisamente “aos serviços” como antedito, pelo que os PROAT [pedidos de revisão oficiosa dos atos tributários] apresentados no prazo de quatro anos, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, devem ter-se como apresentados tempestivamente e está a AT obrigada a tomar conhecimento do mérito dos pedidos feitos na revisão oficiosa, com os efeitos próprios desta, limitados à cessação dos efeitos do acto.”. [4]

 

Em síntese, sendo a liquidação praticada com erro, no caso, por violação do direito da União Europeia, o que interessa saber é apenas se o Requerente contribuiu para esse erro. O que não se verificou, nem sequer foi alegado. Deste modo, reitera-se que o erro não pode deixar de ser imputável aos Serviços da AT, pelo que a situação do Requerente é enquadrável no prazo de 4 anos estipulado na parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, não se verificando qualquer intempestividade do pedido de revisão oficiosa.

Por último, argui a Requerida que a ficção de indeferimento tácito tem de se reportar obrigatoriamente a um indeferimento por extemporaneidade, que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação e cujo meio de reação é a ação administrativa. Trata-se de questão que, em seu entender, respeita ao controle dos pressupostos de aplicação do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, para a qual a Requerida entende que o Tribunal Arbitral não tem competência.

 

Ora, sobre esta alegada incompetência material derivada de a “decisão silente” do pedido de revisão oficiosa não ter apreciado a legalidade dos atos de liquidação e, se o tivesse, de essa decisão ser necessariamente de intempestividade do pedido de revisão, com a consequente insindicabilidade por via de impugnação judicial e, portanto, também pela sucedânea ação arbitral, interessa referir que é irrelevante saber se a decisão administrativa chegou ou não a pronunciar-se sobre as ilegalidades imputadas à liquidação, conforme assinala a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (v. acórdãos de 18.11.2020, processo n.º 0608/13.4BEALM 0245/18, e de 13-01-2021, processo n.º 0129/18.9BEAVR).

 

Assim, o que releva é saber se o pedido do Requerente tem por objeto a apreciação da legalidade de uma liquidação de imposto. Em caso afirmativo, como sucede neste caso, pois estamos perante um pedido de anulação de atos de retenção na fonte de IRC por erro nos pressupostos de direito (violação de lei), o meio processual de reação não é a ação administrativa, mas a impugnação judicial (ou a arbitragem tributária, como meio alternativo à impugnação judicial).

 

Não há, pois, erro na forma de processo ou incompetência do Tribunal Arbitral, pelo que mesmo que a decisão do pedido de revisão oficiosa fosse a intempestividade, que não foi, o Requerente poderia fazer uso da ação arbitral. 

 

Há que salientar, tal como se referiu, que é consolidada a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul sobre a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de atos de autoliquidação na sequência da apresentação de pedidos de revisão oficiosa, o que naturalmente tem implícita a possibilidade de apreciação de qualquer “pedido de revisão” previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT[5].

 

Deste modo, conclui-se que este Tribunal Arbitral é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo, para conhecer dos atos de liquidação de IRC por retenção na fonte impugnados, que resultem de um pedido de revisão oficiosa que tenha por base uma ilegalidade da liquidação em causa, mesmo que tenha ocorrido o seu indeferimento tácito (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e julga-se improcedente a exceção dilatória suscitada pela Requerida.

 

Sobre as questões de (in)constitucionalidade suscitadas pela Requerida, nomeadamente de violação dos princípios da separação de poderes, da legalidade e do acesso à justiça, afigura-se que as mesmas se encontram prejudicadas, pois baseiam-se no pressuposto, que não se verifica, da ampliação da vinculação da Requerida à jurisdição arbitral, i.e., além do previsto na Portaria de Vinculação.

 

Adicionalmente, a Requerida não explicitou nem desenvolveu as razões que justificam um juízo de inconstitucionalidade, limitando-se a uma mera enunciação de princípios e artigos da Constituição. A suscitação processualmente adequada da questão implica a precisa delimitação do seu objeto, mediante a especificação da norma, segmento normativo ou a dimensão normativa que se entende ser inconstitucional (acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 450/06, 21/06, 578/07, 131/08) e a indicação das razões pelas quais se considera verificada a violação de normas ou princípios constitucionais (acórdãos n.ºs 645/06, 708/06, 630/08), não bastando uma referência genérica a essas normas ou princípios ou a imputação da inconstitucionalidade aos próprios atos jurídicos impugnados. Adicionalmente, a questão de constitucionalidade deve ter incidido sobre normas jurídicas que hajam sido a ratio decidendi da decisão posta em crise.

 

 

 

Tendo-se limitado a Requerente a imputar os vícios de inconstitucionalidade, sem um mínimo desenvolvimento quanto às razões que justificam um juízo de inconstitucionalidade, não há que tomar conhecimento de qualquer dessas questões (v. artigo 72.º, n.º 2 da LTC e decisão no processo arbitral n.º 14/2021-T).

 

  1. Demais pressupostos processuais

 

Em relação aos restantes pressupostos processuais, o pedido de pronúncia arbitral apresentado, é tempestivo, porque apresentado em 7 de dezembro de 2023, i.e., dentro do prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do CPPT, a contar da data da presunção do indeferimento tácito da revisão oficiosa deduzida contra os atos tributários (de retenção na fonte) impugnados, ocorrido em 9 setembro de 2023.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

Não foram identificadas nulidades ou outras questões que obstem ao conhecimento do pedido.

 

  1. Do Mérito

 

Retenção na Fonte de IRC aos OIC não Residentes – Violação da Liberdade de Circulação de Capitais – Artigo 63.º do TFUE

 

A questão de direito a decidir respeita à compatibilidade com o direito da União Europeia, especificamente com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, do regime de tributação diferenciado que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os juros de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos juros quando recebidos por OIC constituídos noutro Estado-Membro, no caso no Reino da Bélgica, com observância dos requisitos da Diretiva 2009/65/CE.

 

Na primeira hipótese, de OIC residentes, aqueles juros não são tributados em IRC. No segundo pressuposto, de OIC não residentes constituídos num outro Estado-Membro da União Europeia, nos termos da Diretiva 2009/65/CE, os juros são sujeitos a retenção na fonte, a título definitivo, nos termos do disposto nos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b), n.ºs 5 e 7 e 87.º, n.º 4, todos do Código do IRC.

 

O problema jurídico equacionado foi objeto de pronúncia recente do Tribunal de Justiça, no acórdão de 17 de março de 2022, proferido no processo de reenvio prejudicial C-545/19, numa situação factual com características essenciais idênticas às dos presentes autos, respeitante a rendimentos de capitais (dividendos), suscitada pelo Tribunal Arbitral Tributário constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T), sob o mesmo enquadramento legislativo.

 

Conclui o Tribunal de Justiça que o “artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”

 

Sobre a mesma questão, também o Supremo Tribunal Administrativo proferiu Acórdão uniformizador no âmbito do processo n.º 93/19.7BALS, publicado na 1.ª série do Diário da República, de 26 de fevereiro de 2024, nos seguintes termos:

 

1 - Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;

2 - O art.º 63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado -Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;

3 - A interpretação do art.º 63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o art.º 22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.

 

Nos presentes autos também está em causa a apreciação da tributação de rendimentos de capitais auferidos por OIC não estabelecido em Portugal, em concreto, de juros recebidos. Apesar de na jurisprudência citada os rendimentos de capitais se reportarem a dividendos distribuídos, a questão de direito subjacente, que se prende com a admissibilidade, ou não, de um tratamento fiscal diferenciado, apenas em função da residência do OIC, é a mesma.

 

Com efeito, a situação pela qual um residente num Estado-Membro recebe rendimentos de juros de uma entidade residente noutro Estado-Membro da União Europeia constitui uma operação intraeuropeia que se encontra abrangida pelo TFUE[6].

 

O tratamento fiscal conferido a uma situação desse tipo tem, assim, de respeitar as disposições dos Tratados e, em particular, as liberdades europeias, entre as quais se encontra a liberdade de circulação de capitais.

 

Ora, a liberdade de circulação de capitais, prevista no artigo 63.º do TFUE, abrange toda e qualquer transferência de capital, onerosa ou não, de um Estado para outro. Esta liberdade impede quaisquer restrições aos movimentos de capitais suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir ou transacionar em certo Estado-Membro e, pese embora o TFUE reconheça, em geral, os elementos de conexão do Direito tributário internacional – residência e fonte –, aceitando o tratamento diferenciado de entidades nacionais e não nacionais[7], a admissibilidade de tal diferenciação está restrita aos casos em que as mesmas (i) não se encontram em situações objetivamente comparáveis, ou (ii) em que a diferença de tratamento é justificada por uma razão imperiosa de interesse geral[8].

 

Dado o manifesto paralelismo, justifica-se a aplicação, também no presente caso, da conclusão interpretativa alcançada pelo Tribunal de Justiça no processo assinalado [C-545/19], no sentido de que o artigo 63.° do TFUE se opõe a uma legislação de um Estado-Membro [como a portuguesa], por força da qual os dividendos (perfeitamente equiparados aos juros que constituem o objeto da presente ação) distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de  retenção na fonte, ao passo que os dividendos (ou juros) distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

Com efeito, à semelhança da situação analisada no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o Requerente:

  • é um OIC constituído ao abrigo da legislação de um outro Estado-Membro com observância do disposto na Diretiva 2009/65/CE;
  • é gerido por uma entidade gestora com sede nesse outro Estado-Membro;
  • não é residente nem dispõe de estabelecimento estável em território nacional; e
  • foi sujeito a tributação por retenção na fonte sobre juros recebidos de entidades residentes em Portugal.  

 

Neste âmbito, segundo a interpretação do Tribunal de Justiça no aresto em referência, a situação é abrangida pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais constante do artigo 63.º, n.º 1 do TFUE que proíbe “todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros”, resultando de jurisprudência constante que as medidas proibidas “incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado-Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C-252/14, EU:C:2016:402, n.º 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln-Aktienfonds Deka, C-156/17, EU:C:2020:51, n.º 49 e jurisprudência referida).” – v. pontos 33 e 36 do acórdão no processo C-545/19.

 

Prossegue o Tribunal de Justiça nos seguintes moldes, com plena aplicabilidade à situação em análise:

 

“37   No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.

 

38   Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

 

39    Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).

 

40    Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.

 

41      Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OIC), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 29 e jurisprudência referida].

 

42    O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OIC), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 30 e jurisprudência referida].

É, pois, indiscutível que a legislação fiscal portuguesa trata de modo desfavorável os OIC não residentes face aos OIC residentes, em relação à tributação sobre o rendimento, sob a forma de retenção na fonte, dos juros recebidos de entidades estabelecidas em Portugal [v. o artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do EBF conjugado com os artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b), n.ºs 5 e 7 e 87.º, n.º 4 do Código do IRC].

 

Esta discriminação, nos termos enunciados pelo Tribunal de Justiça, é desconforme ao direito da União Europeia exceto se, de duas uma: i) respeitar a situações que não sejam objetivamente comparáveis; ou (ii) for justificada por uma razão imperiosa de interesse geral.

 

Importa, assim, aquilatar sobre estes dois motivos de exclusão, no que se continua a acompanhar o aresto em referência na parte relevante para a matéria em discussão nestes autos [C-545/19], como se transcreve:

 

“ Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis

 

44   O Governo português alega, em substância, que as respetivas situações dos OIC residentes e dos OIC não residentes não são objetivamente comparáveis uma vez que a tributação dos dividendos recebidos por estas duas categorias de organismos de investimento de sociedades residentes em Portugal é regulada por técnicas de tributação diferentes – a saber, por um lado, esses dividendos são objeto de retenção na fonte quando são pagos a um OIC não residente e, por outro, estão sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas quando são pagos a um OIC residente.

 

45   Este Governo indica igualmente que resulta do artigo 22.°‑A do EBF que os dividendos distribuídos por OIC residentes a detentores de participações sociais residentes em território português ou que sejam imputáveis a um estabelecimento estável situado neste território são tributados à taxa de 28 % (quando os beneficiários estão sujeitos ao imposto sobre o rendimento das pessoas singulares) ou de 25 % (quando os beneficiários estão sujeitos ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas), ao passo que os dividendos pagos a detentores de participações sociais que não residem no território português e que não têm estabelecimento estável neste último estão, em princípio, isentos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (com algumas exceções destinadas essencialmente a prevenir abusos).

 

46  Segundo o referido Governo, há uma estreita coerência entre a tributação dos rendimentos dos OIC e dos detentores de participações sociais nestes organismos. Assim, o modelo português de tributação dos OIC, de natureza «compósita», conjuga estruturalmente os impostos incidentes, por um lado, sobre os OIC residentes, ou seja, o imposto do selo e o imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, bem como, por outro, os incidentes sobre os detentores de participações sociais em tais organismos, conforme referidos no número anterior. Estas diferentes tributações, muito bem integradas entre si, sendo cada uma delas imprescindível à coerência do sistema de tributação instituído, devem ser entendidas como um todo.

 

47  Além disso, este mesmo Governo acrescenta, em substância, que, no âmbito da apreciação da comparabilidade das situações em causa, não se deve abstrair dos efeitos da transparência fiscal que caracteriza a relação entre a recorrente no processo principal e os detentores de participações sociais na mesma, o que leva a que a retenção na fonte efetuada em Portugal possa ser imediatamente repercutida nos detentores de participações sociais que, não estando isentos de imposto, podem imputar ou, ainda, creditar a sua participação dessa retenção efetuada em Portugal sobre o imposto do qual são devedores na Alemanha.

 

48  Por último, o Governo português considera que, ao ter livremente optado por não operar em Portugal através de um estabelecimento estável, a recorrente no processo principal autoexcluiu‑se de qualquer comparação com os OIC estabelecidos em Portugal, sendo a sua situação, isso sim, comparável a todas as situações das demais entidades não residentes e cujos dividendos auferidos em Portugal são sempre tributados a taxas nunca inferiores a 25 %.

 

49  Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.° 47 e jurisprudência referida).

 

50  Quanto ao argumento do Governo português que figura no n.° 44 do presente acórdão, há que recordar que, nas circunstâncias que deram origem ao Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Truck Center (C‑282/07, EU:C:2008:762), o Tribunal de Justiça admitiu a aplicação, aos beneficiários de rendimentos de capitais, de técnicas de tributação diferentes consoante esses beneficiários sejam residentes ou não residentes, uma vez que esta diferença de tratamento diz respeito a situações que não são objetivamente comparáveis (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Truck Center, C‑282/07, EU:C:2008:762, n.° 41).

 

51  Do mesmo modo, no processo que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek  (C‑252/14, EU:C:2016:402), o Tribunal de Justiça declarou que o tratamento diferenciado da tributação dos dividendos pagos a fundos de pensões segundo a qualidade de residente ou de não residente destes últimos, resultante da aplicação, a esses fundos respetivos, de dois métodos de tributação diferentes, era justificado pela diferença de situação entre estas duas categorias de contribuintes à luz do objetivo prosseguido pela regulamentação nacional em causa nesse processo, bem como do seu objeto e do seu conteúdo.

 

52 No entanto, sob reserva da verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, a legislação nacional em causa no processo principal não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes (v., por analogia, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.° 44 e jurisprudência referida).

 

53  A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.

 

54  Além disso, como salientou a advogada‑geral no n.° 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek  (C‑252/14, EU:C:2016:402).

 

55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente.

 

56   Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.

 

57  Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.

 

58  Em seguida, quanto ao argumento do Governo português que figura no n.° 48 do presente acórdão, há que salientar que, como alegou a Comissão em resposta às perguntas escritas do Tribunal de Justiça, no domínio da livre prestação de serviços, ao abrigo do artigo 56.° TFUE, os operadores económicos devem ser livres de escolher os meios adequados para exercer as suas atividades num Estado‑Membro diferente do da sua residência, independentemente de se estabelecerem ou não de modo permanente nesse outro Estado‑Membro, não devendo esta liberdade ser limitada por disposições fiscais discriminatórias.

 

59 Além disso, na medida em que o argumento do Governo português se refere à pretensa necessidade de ter em conta a situação dos detentores de participações sociais, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a comparabilidade de uma situação transfronteiriça com uma situação interna do Estado‑Membro em causa deve ser examinada tendo em conta o objetivo prosseguido pelas disposições nacionais controvertidas (v., designadamente, Acórdão de 30 de abril de 2020, Société Générale, C‑565/18, EU:C:2020:318, n.° 26 e jurisprudência referida), bem como o objeto e o conteúdo destas últimas (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.° 48 e jurisprudência referida).

 

60  Por outro lado, apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença de situação objetiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.° 49 e jurisprudência referida).

 

61   No caso em apreço, no que diz respeito, em primeiro lugar, ao objeto, ao conteúdo e ao objetivo do regime português em matéria de tributação dos dividendos, seja ao nível dos próprios OIC ou dos seus detentores de participações sociais, resulta tanto da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informação do Tribunal de Justiça como da resposta do Governo português às perguntas escritas que lhe foram dirigidas no âmbito do presente processo que o referido regime foi concebido numa lógica de «tributação à saída», ou seja, os OIC que são constituídos e operam de acordo com a legislação portuguesa estão isentos do imposto sobre o rendimento, sendo o encargo que este último representa transferido para os detentores de participações sociais que têm a qualidade de residentes, estando os detentores de participações sociais não residentes dele isentos.

 

62  Com efeito, o Governo português precisou que o regime nacional em matéria de tributação dos dividendos visava alcançar objetivos como, nomeadamente, evitar a dupla tributação económica internacional e transferir a tributação na esfera dos OIC para a esfera dos respetivos participantes, procurando assim que a tributação incidente sobre estes rendimentos seja aproximadamente equivalente à que ocorreria caso esses rendimentos tivessem sido obtidos diretamente pelos participantes nesses mesmos OIC.

 

63  Caberá ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para interpretar o direito nacional, tendo em conta todos os elementos da legislação fiscal em causa no processo principal e o conjunto dos elementos constitutivos desse mesmo regime de tributação, determinar o objetivo principal prosseguido pela legislação nacional em causa no processo principal (v., neste sentido, Acórdão de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.° 79).

 

64  Se o órgão jurisdicional de reenvio concluir que o regime português em matéria de tributação dos dividendos visa evitar a dupla tributação dos dividendos pagos por sociedades residentes, atendendo à qualidade de intermediário dos OIC face aos seus detentores de participações sociais, importa recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que, relativamente às medidas previstas por um Estado‑Membro para evitar ou atenuar a tributação em cadeia ou a dupla tributação económica dos rendimentos distribuídos por uma sociedade residente, as sociedades beneficiárias residentes não se encontram necessariamente numa situação comparável à das sociedades beneficiárias não residentes (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 53 e jurisprudência referida).

 

65  Todavia, como resulta do n.° 49 do presente acórdão, a partir do momento em que um Estado‑Membro, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só as sociedades residentes mas também as sociedades não residentes, relativamente aos rendimentos que auferem de uma sociedade residente, a situação das referidas sociedades não residentes assemelha‑se à das sociedades residentes.

 

66   Com efeito, é unicamente o exercício por esse mesmo Estado da sua competência fiscal que, independentemente de tributação noutro Estado‑Membro, cria um risco de tributação em cadeia ou de dupla tributação económica. Em tal caso, para que as sociedades beneficiárias não residentes não sejam confrontadas com uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE, o Estado de residência da sociedade distribuidora deve assegurar que, em relação ao mecanismo previsto no seu direito nacional para evitar ou atenuar a tributação em cadeia ou a dupla tributação económica, as sociedades não residentes sejam submetidas a um tratamento equivalente ao tratamento de que beneficiam as sociedades residentes (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 55 e jurisprudência referida).

 

67  Tendo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram‑se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o.,  C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 56 e jurisprudência referida).

 

68  Caso o órgão jurisdicional de reenvio chegue à conclusão de que o regime português em matéria de tributação dos dividendos visa, no intuito de não renunciar pura e simplesmente à tributação dos dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal, transferir essa tributação para a esfera dos detentores de participações sociais dos OIC, há que recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que, se o objetivo da legislação nacional em causa for deslocar o nível de tributação do veículo de investimento para o acionista desse veículo, são, em princípio, as condições materiais do poder de tributação sobre os rendimentos dos acionistas que devem ser consideradas determinantes e não a técnica de tributação utilizada (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 60).

 

69  Ora, um OIC não residente pode ter detentores de participações sociais que tenham residência fiscal em Portugal e sobre cujos rendimentos este Estado‑Membro exerce o seu poder de tributação. Nesta perspetiva, um OIC não residente encontra‑se numa situação objetivamente comparável à de um OIC residente em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 61).

 

70   É certo que a República Portuguesa não pode tributar os detentores de participações sociais não residentes sobre os dividendos distribuídos por OIC não residentes, como aliás o Governo português admitiu tanto nas suas observações escritas como em resposta às perguntas que lhe foram submetidas pelo Tribunal de Justiça. Contudo, essa impossibilidade é coerente com a lógica de deslocação do nível de tributação do veículo para o detentor de participações sociais (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 62).

 

71   No que respeita, em segundo lugar, aos critérios de distinção pertinentes, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.° 60 do presente acórdão, há que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.

 

72   Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.° 58 e jurisprudência referida).

 

73   Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.

 

74  Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.

 

 Quanto à existência de uma razão imperiosa de interesse geral 

 

75  Há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma restrição à livre circulação de capitais pode ser admitida se se justificar por razões imperiosas de interesse geral, for adequada a garantir a realização do objetivo que prossegue e não for além do que é necessário para alcançar esse objetivo [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OIC), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 56 e jurisprudência referida].

 

76   No caso em apreço, há que constatar que, embora o órgão jurisdicional de reenvio não invoque essas razões no pedido de decisão prejudicial, uma vez que este se concentra na eventual comparabilidade das situações em causa no processo principal, o Governo português alega, tanto nas suas observações escritas como em resposta às perguntas que lhe foram submetidas pelo Tribunal de Justiça, que a restrição à livre circulação de capitais efetuada pela legislação nacional em causa no processo principal se justifica à luz de duas razões imperiosas de interesse geral, a saber, por um lado, a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional e, por outro, a de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os dois Estados‑Membros em causa, ou seja, a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha.

 

77   No que respeita, em primeiro lugar, à necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional, o Governo português considera, como resulta do n.° 46 do presente acórdão, que o modelo de tributação português dos dividendos constitui um modelo «compósito». Assim, só seria possível garantir a coerência deste modelo se a entidade gestora dos OIC não residentes operasse em Portugal através de um estabelecimento estável, de modo a que essa entidade pudesse concretizar as retenções na fonte necessárias junto dos detentores de participações sociais residentes, bem como, em certos casos excecionais orientados por considerações ligadas ao facto de evitar a planificação fiscal, junto dos detentores de participações sociais não residentes.

 

78   A este respeito, há que recordar que, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado que a necessidade de preservar a coerência de um regime fiscal nacional pode justificar uma regulamentação nacional suscetível de restringir as liberdades fundamentais (v., neste sentido, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.° 50 e jurisprudência referida, e de 13 de março de 2014, Bouanich, C‑375/12, EU:C:2014:138, n.° 69 e jurisprudência referida), precisou, contudo, que, para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.° 49 e jurisprudência referida, e de 13 de novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, EU:C:2019:960, n.° 87).

 

79  Ora, no presente processo, como resulta do n.° 71 do presente acórdão, a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte (v., por analogia, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.° 52, e de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.° 93).

 

80   Consequentemente, não há uma relação direta, na aceção da jurisprudência referida no n.° 78 do presente acórdão, entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo.

 

81  A necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal.

 

82  No que diz respeito, em segundo lugar, à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha, há que recordar que, como o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente, a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros pode ser admitida quando o regime em causa visa prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território (v., neste sentido, Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.° 57 e jurisprudência referida, e de 20 de janeiro de 2021, Lexel, C‑484/19, EU:C:2021:34, n.° 59).

 

83 No entanto, como o Tribunal de Justiça também já declarou, quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 71 e jurisprudência referida).

 

84 Daqui resulta que a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros também não pode ser acolhida.

 

85  Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”

 

Resulta, em síntese, da apreciação do Tribunal de Justiça que o tratamento diferenciado da legislação portuguesa não é admissível por se verificar, por um lado, a comparabilidade dos OIC residentes e não residentes (constituídos num Estado-Membro da União Europeia), não ocorrendo, por outro lado, uma razão imperiosa de interesse geral que o justifique.

 

Neste âmbito, sublinha-se, tal como a decisão arbitral no processo n.º 99/2019-T, de 22 de julho, que o Tribunal de Justiça ponderou “(i) quer o facto de os OICs Residentes serem alvo de uma diferente modalidade de tributação/de técnicas de tributação diferentes (a saber, em IS e em TAs), (ii) quer o facto de o regime tributário em questão ter sido concebido numa lógica de tributação à saída e o de, assim, os dividendos [neste caso, os juros] serem tributados na esfera dos Participantes”.

 

Acresce que, como salienta a decisão no processo arbitral n.º 370/2021-T:

 

Por outro lado, o Estado português não compensa aos titulares de unidades de participação em OICs estrangeiros residentes em território português ao imposto português retido a estes em Portugal, o que é suficiente para que se considere a tributação desses residentes não estar salvaguardada pela doutrina do Acórdão [do Tribunal de Justiça] C-282/07.  

 

Segundo o nº 23 daquele Acórdão, a possibilidade de reservar a  isenção da retenção na fonte  aos  OICs residentes, como fez o legislador nacional, não  pode ir além do  necessário para garantir a coerência do regime fiscal em causa, o que deve ser determinado caso a caso, o que não acontece no presente caso: a coerência do sistema fiscal não justifica a abdicação pelo Estado português do poder de tributação dos não residentes titulares de unidades de participação  em OICs nacionais, nem o não reconhecimento aos residentes titulares de unidades de participação em OICs estrangeiros de crédito do imposto retido em Portugal .

 

Tendo o legislador optado por isentar os rendimentos redistribuídos por OICs nacionais a não residentes, a retenção aos OICs estrangeiros mas que respeitem as exigências impostas pela lei nacional aos OICs violaria o princípio da equivalência de tratamento, já que a sua única justificação seria a garantia da cobrança de um imposto à qual, em situações equiparadas, renunciou.

 

Com efeito, de  acordo com o nº 28 do  Acórdão do TJUE C-338/11 a 347/11[3],  apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela regulamentação nacional da tributação dos OICs devem ser tidos em conta para efeitos de apreciar se a diferença de tratamento resultante de tal regulamentação reflete uma diferença de situações objetiva.

 

Quando um Estado-Membro escolha   exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos OICs beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações dos OICMVs  seria  desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do caráter discriminatório ou não da referida regulamentação: a apreciação da comparabilidade das situações para fins de determinar o caráter discriminatório ou não da referida regulamentação deve ser realizada apenas ao nível do veículo de investimento, o OIC, e não ao nível do investidor.”

 

À face do exposto, tendo em conta a interpretação do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, que versa sobre uma situação idêntica à dos presentes autos, regida pelo mesmo quadro legislativo, impõe-se concluir pela desconformidade ao artigo 63.º do TFUE do regime de tributação por retenção na fonte que foi aplicado aos juros auferidos pelo Requerente, na qualidade de OIC não residente, previsto nos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b) e n.º 5, e 87.º, n.º 4, todos do Código do IRC, uma vez que os OIC residentes não estão sujeitos a essa retenção ao abrigo do artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10 do EBF.

 

Em linha com a decisão do processo arbitral n.º 133/2021-T, de 21 de março de 2022, interessa sublinhar que constitui corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º TFUE, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça “tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, p. 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2602; de 7-11- 2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2593). A supremacia do Direito da União sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, em que se estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

 

Termos em que deve ser julgado procedente o pedido de declaração de ilegalidade e de anulação, por erro de direito, das liquidações de IRC por retenção na fonte impugnadas, com a consequente restituição do imposto pago (v. artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e artigo 100.º da LGT, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).

 

Em relação ao indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, dado tratar-se de uma mera ficção jurídica, destinada a abrir a via contenciosa, servindo, no caso do processo arbitral tributário, para a fixação do dies a quo do prazo para apresentação do pedido arbitral, nos termos do art.º 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, não tem este Tribunal de proceder à respetiva anulação.

 

  1. Sobre o Pedido de Juros Indemnizatórios

 

O Requerente peticiona juros indemnizatórios, que dependem da verificação do requisito de “erro [de facto ou de direito] imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. No caso de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, estes juros são devidos se esta se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária – v. artigo 43.º, n.º 1 e n.º 3, alínea c) da LGT.

 

O direito a juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral como resulta do disposto no artigo 24.º, n.º 5 do RJAT e da jurisprudência consolidada.

 

Acresce que o Tribunal de Justiça tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência, não só direito ao reembolso, como o direito a juros – v. acórdão de 18.04.2013, processo n.º C-565/11 (e outros nele citados), em que se refere que:

21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).

 

Compete à ordem jurídica interno dos Estados-Membros prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União.

 

O Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que o erro imputável aos serviços fica demonstrado quando seja procedente a reclamação graciosa ou impugnação da liquidação e o contribuinte não tenha contribuído para aquele [erro]. A imputabilidade do erro aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos seus funcionários, podendo servir de base à responsabilidade por juros indemnizatórios a falta do próprio serviço, globalmente considerado. E preconiza ainda que “Resultando a ilegalidade do acto anulado da desconformidade do mesmo com normas de direito da União Europeia, para além da restituição da quantia ilegalmente retida, são devidos juros indemnizatórios, por tal ilegalidade não ser imputável ao contribuinte.” – v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, processo n.º 01273/08.6BELRS 01364/17.

 

Em face desta jurisprudência, não sendo os erros que afetam os atos de retenções na fonte imputáveis ao Requerente, são-no à AT e o facto de não serem praticados diretamente pela AT, não afasta essa imputabilidade, pois, a ilegalidade da retenção a fonte, quando não é baseada em informações erradas do contribuinte, não lhe é imputável.

 

Nestes termos, são devidos juros indemnizatórios ao Requerente, ao abrigo do disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT, a partir de 10 de maio de 2024, dia seguinte àquele em que perfez um ano sobre a data da apresentação do pedido de revisão oficiosa, a liquidar até ao processamento da nota de crédito (v. artigo 61.º do CPPT e acórdão n.º 4/2023 de uniformização de jurisprudência, do Supremo Tribunal Administrativo, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 222, de 16 de novembro de 2023, e proferido no processo n.º 40/19.6BALSB, de 30 de setembro de 2020).

 

 

  1. Decisão

 

De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar procedente a ação e, em consequência:

  1. Anular as liquidações de IRC por retenção na fonte impugnadas, referentes a 2019, no valor de € 86.143,14;
  2. Reconhecer o direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT.

 

 

VI.     Valor do Processo

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 86.143,14, indicado pelo Requerente, respeitante ao montante das retenções na fonte de IRC cuja anulação pretende (valor da utilidade económica do pedido), e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

VII.    Custas

 

            Custas no montante de € 2 754,00  (dois mil setecentos e cinquenta e quatro euros), a suportar integralmente pela Requerida, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.

 

Notifiquem-se as Partes.

 

 

Lisboa, 11 de julho de 2024

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins, Relatora

 

 

 

Cristina Aragão Seia

 

 

Jorge Carita

 



[1] Que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns organismos de investimento coletivo em valores mobiliários.

[2] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-07-2006, processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07.

[3] Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-04-2017, processo n.º 8599/15; de 25-06-2019, processo n.º 44/18.6BCLSB; de 11-07-2019, processo 147/17.4BCLSB; de 13-12-2019, processo n.º 111/18.6BCLSB; de 11-03-2021, processo n.º 7608/14.5BCLSB; de 26-05-2022, processo n.º 97/16.6BCLS; de 12-05-2022, processo n.º 96/17.6BCLSB.

[4] Como salienta o processo arbitral n.º 818/2023-T, não se pode esquecer também o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 8 de março de 2023, proferido no processo n.º 035/21.0BEPRT, e muitos outros com igual conclusão sobre a mesma matéria, que no contexto de um tributo (uma taxa) liquidado por uma entidade privada e por si indevidamente repercutido noutro contribuinte, considerou que a entidade privada encarregue por lei da liquidação de tal tributo é serviço para efeitos da expressão normativa “erro imputável aos serviços”, prevista igualmente no normativo referente aos juros indemnizatórios (artigo 43.º da LGT).

[5] Entre outros, os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-04-2017, processo n.º 8599/15; de 25-06-2019, processo n.º 44/18.6BCLSB; de 11-07-2019, processo 147/17.4BCLSB; e de 13-12-2019, processo n.º 111/18.6BCLSB.

[6] V. quanto a situações análogas, os acórdãos Verkooijen (Processo C-35/98); Manninen (Processo C- 319/02, ACT 4 (Processo C 374/04) e Denkavit II (Processo C-170/05).

[7] V. os acórdãos Futura Participations, Processo C-391/97, Marks & Spencer, Processo C-446/03 e Denkavit II, Processo C-170/05.

[8] V. acórdãos X AG, Processo C-40/13, e Felixstowe Dock and Railway Company, Processo C-80/12.