Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 878/2023-T
Data da decisão: 2024-07-29   Outros 
Valor do pedido: € 50.913,17
Tema: Contribuição sobre o Sector Rodoviário (CSR). Direito de União Europeia. Competência dos tribunais arbitrais. Ineptidão da petição. Legitimidade.
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SUMÁRIO:

 

I - Não tendo o Tribunal de Justiça, no Despacho Vapo Atlantic (processo C-460/21) colocado em causa a qualificação da CSR como uma imposição indireta para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, conclui-se que aquele tributo é um desdobramento do ISP e, como tal, um imposto.

II – Assentando o regime jurídico da CSR num princípio de repercussão legal, as entidades adquirentes de combustível e que suportem o encargo do tributo gozam de legitimidade processual para impugnar judicialmente os atos de liquidação, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, a) da LGT e do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT.

III – O regime jurídico da Contribuição de Serviço Rodoviário, constante da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, é incompatível com o Direito da União, mormente com artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118/CE.

IV – A repercussão de um imposto – legal ou não – é uma questão de facto, sobre a qual não recai qualquer presunção nem em benefício da AT nem em benefício dos contribuintes. Uma vez provada a repercussão do imposto, mostra-se constituído, na esfera jurídica da adquirente do combustível, o direito à restituição do imposto indevidamente liquidado pela AT e por aquela indevidamente suportado.

 

DECISÃO ARBITRAL

I – Relatório

 

1. A..., titular do n.º de identificação fiscal ..., com domicílio fiscal na Rua ..., n.º ..., ..., ...-..., Lisboa (doravante, Requerente), apresentou, em 25-11-2023, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede:

(i) a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa identificado sob o n.º .../2023, apresentado em 27-04-2023 junto da Autoridade Tributária e Aduaneira / Direção Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais (documento n.º 01 junto com o PPA e o processo administrativo junto pela AT);

(ii) a anulação dos atos de liquidação de Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) subjacentes às faturas de aquisição de combustível referentes ao período entre março de 2019 e dezembro de 2022, identificadas sob os documentos n.ºs 01 e 02, juntos com o pedido de pronúncia arbitral;

(ii) a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do montante de €50 913, 17 indevidamente suportado pela Requerente, acrescidos de juros indemnizatórios nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 3, c) e 100.º da LGT.

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

 

4. Em 28-11-2023, o pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

 

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, al. a) e no artigo 11.º, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido. Em 12-12-2023, a Requerida juntou requerimento, dirigido ao Exmo. Senhor Presidente do CAAD, solicitando a identificação dos atos de liquidação cuja apreciação se pretende. A necessidade, ou não, dessa identificação por parte da Requerente será analisada infra, aquando da apreciação da defesa por exceção deduzida pela Requerida.

 

6. Foram as partes notificadas da designação da signatária, em 17-01-2024, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11.º, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6.º e 7 do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 06-02-2024.

 

7. Em 07-02-2024, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, notificado na mesma data, ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17.º do RJAT).

 

8. A Requerida apresentou resposta, em 13-03-2024, remetendo o Processo Administrativo. Em 15-03-2024, o Tribunal arbitral proferiu Despacho conferindo 10 (dez) dias à Requerente para se pronunciar sobre a defesa por exceção deduzida pela AT – o que não aconteceu. Considerando o PPA e a Resposta oferecidos pelas partes, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, em 22-07-2024, dispensando a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT bem como a produção de alegações escritas. 

 

9. Compulsado o PPA e a resposta, a posição das partes é, em síntese, a seguinte:

 

(a) A Requerente alega que a CSR é um imposto, independentemente da nomenclatura legal que lhe foi conferida, conclusão que se extrai não só da ausência de estrutura comutativa, como da jurisprudência do TJUE, em especial do Despacho Vapo Atlantic (C-460/21), do TJUE. O regime jurídico da CSR, instituído pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, é incompatível com o Direito da União Europeia (DUE), uma vez que o tributo, tal como recortado pelo legislador nacional, não tem subjacente “motivos específicos” na aceção do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, tendo sido criado por razões puramente orçamentais, conclusão também evidenciada por aquele Despacho. Em face de tal incompatibilidade, deverá o tribunal arbitral, ao abrigo do princípio do primado do DUE, determinar a anulação dos atos de liquidação de CSR legalmente repercutidos na Requerente (pontos 30.º a 54.º do PPA).

 

(b) Estavam, assim, verificados os pressupostos para que a AT procedesse à revisão oficiosa dos atos de liquidação de CSR feridos de ilegalidade (artigo 78.º, n.º 1 da LGT), em especial o prazo – que é de 4 anos contados desde a data da liquidação – e a ocorrência de “erro imputável aos serviços”, mormente um erro de direito, por os atos de liquidação terem por base um regime jurídico incompatível com o Direito da União (pontos 55.º a 82.º do PPA).  

 

(c) Invoca, ademais, que é parte legítima do procedimento e processo tributários, seja nos termos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, visto que é titular de um interesse legalmente protegido, seja nos termos do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, por o regime jurídico da CSR pressupor a repercussão legal do imposto e não a mera repercussão económica ou de facto (pontos 83.º a 100.º do PPA).

 

(d) Finalmente, a Requerente peticiona o reembolso dos montantes indevidamente pagos a título de CSR, bem como a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 3, c) e 100.º da LGT (pontos 101.º a 108.º).

 

(e) A Requerida apresentou defesa por exceção e defesa por impugnação. Na sua resposta, suscita as exceções dilatórias da incompetência do tribunal em razão da matéria, incompetência do tribunal em razão da matéria, mas por outra via (em razão da causa de pedir), ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, ineptidão da petição inicial e caducidade do direito de ação.  

 

(f) Quanto ao fundo, considera que a Requerente não logrou fazer prova de ter adquirido e pago combustível e suportado o encargo do pagamento da CSR por repercussão. Atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, não incumbe à Requerida fazer a prova da não repercussão, nem é possível presumir a existência de repercussão quando se está perante uma repercussão meramente económica. A Requerida impugna o teor dos documentos n.ºs 1 a 3, juntos com o PPA (concretamente, os extratos de pagamento, as faturas de aquisição de combustível e a declaração emitida pela B..., S.A.) e a sua capacidade de demonstração dos factos alegados. Ainda que se admita que o valor pago pelo combustível levou incorporado os montantes liquidados a título de CSR, entende a Requerida que os montantes invocados pela Requerente não são corretos, por terem subjacente uma unidade tributável distinta daquela que foi tomada em consideração aquando da introdução ao consumo (artigo 91.º do CIEC).

 

(g) A Requerida contesta a apreciação do Tribunal de Justiça no sentido de que não estão subjacentes àquele tributo “motivos específicos” para efeitos do preceituado no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE. Finalmente, louvando-se no acórdão Danfoss (processo C-94/10), do Tribunal de Justiça, a AT relembra que um Estado-membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo adquirente/comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, desde que, à luz do direito desse Estado-membro, seja possível ao adquirente exercer uma ação civil de repetição do indevido e o reembolso dos montantes indevidamente suportados não se mostre, na prática, impossível ou excessivamente difícil.

 

II – Saneamento

10. O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

 

  1. Questão da incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria

 

11. Na Resposta, a AT arguiu a exceção dilatória de incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria, nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, a) do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT (pontos 19.º a 36.º). Entende, em síntese, que a CSR é uma contribuição financeira, estando a sua sindicância, por conseguinte, excluída da competência dos tribunais arbitrais tributários, à luz do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (“Portaria de vinculação).

 

12. A Requerente não apresentou resposta às exceções, nem se pronunciou sobre esta questão no PPA.

 

Vejamos:

 

13. O âmbito da jurisdição arbitral tributária conhece as limitações impostas por lei e por Regulamento. Com efeito, segundo a al. a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de retenção na fonte e de pagamento por conta. Por sua vez, o artigo 4.º do mesmo regime faz depender a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis, onde se estabeleça, designadamente, “o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”. Em cumprimento desta delegação legislativa, a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, definiu o objeto da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD como abrangendo “as pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”.

 

14. A referência aos “impostos” que se encontra no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, pode ser interpretada de duas formas.

 

15. Para uma linha jurisprudencial, a designação relevante para efeitos de definição de competência é a designação adotada pelo legislador, e não aquela que o intérprete ou aplicador do direito possam reputar mais adequada. Pretende-se, com esta posição, obstar a que a jurisdição dos tribunais arbitrais se veja dependente da incerteza inerente às diversas perspetivas doutrinais sobre a destrinça entre taxa, imposto e contribuição financeira (cf. acórdão do CAAD de 29-05-2023, processo n.º 31/2023-T; e já antes, com idêntico entendimento, os acórdãos do CAAD de 22-07-2022, processo n.º 788/2021-T, e de 16-10-2018, processo n.º 115/2018-T). Ao passo que, num outro entendimento jurisprudencial, a aferição da jurisdição dos tribunais arbitrais já dependerá do resultado que o intérprete alcance através da qualificação dos tributos em função das suas caraterísticas e do seu regime jurídico (cf., por exemplo, acórdão do CAAD de 05-01-2023, processo n.º 304/2022-T; e acórdão do CAAD de 15-01-2024, processo n.º 375/2023-T). Sobre esta questão, o Tribunal arbitral entende que, havendo jurisprudência que aponte para uma determinada classificação, não pode o intérprete e aplicador do direito deixar de daí retirar as devidas conclusões em matéria de jurisdição.

 

16. A Constituição refere-se abertamente a três modalidades de tributos – impostos, taxas e contribuições financeiras (artigo 165, n.º 1, i) da CRP). Para cada um destes tributos, em razão do tipo de ablação patrimonial que representam para o contribuinte, prevê a Constituição um acervo de regras formais, orgânicas e materiais distinto, embora com semelhanças no plano dos tributos bilaterais (taxas e as contribuições financeiras).

 

17. A divisão tripartida dos tributos afirmou-se com a revisão constitucional de 1997, por oposição à summa divisio, até aí vigente, entre impostos e taxas. Com a inclusão de um segundo tipo de tributos bilaterais (as contribuições financeiras) o teste da bilateralidade, segundo o qual os tributos rigorosamente bilaterais seriam taxas e os tributos não rigorosamente bilaterais seriam impostos, deixou de ser determinante no processo de qualificação. Se antes da revisão de 1997 o processo de qualificação não era simples, uma vez que uma plêiade de tributos merecia uma qualificação distinta daquela para que remeteria o seu nomen iuris (princípio da irrelevância do nomen iuris), o contencioso constitucional da qualificação dos tributos tornou-se, a partir dessa data, ainda mais complexo, atenta a proliferação de tributos híbridos, a meio-caminho entre taxas e impostos.

 

18. Assim, o imposto é uma prestação pecuniária e coativa, com estrutura unilateral. Cada um é chamado a contribuir para os encargos da comunidade independentemente de receber algo em troca, na medida da sua força económica ou da sua capacidade de pagar (princípio da capacidade contributiva). Os impostos pretendem arrecadar receitas para custear as despesas públicas gerais do Estado (artigo 5.º, n.º 1 da LGT). Coerentemente, visto que os impostos agridem o património do particular de forma mais intensa que outros tributos, a Constituição sujeita-os a um regime formal e orgânico bastante rigoroso (reserva de lei integral), colocando sob a alçada do legislador parlamentar todo o regime jurídico de cada um dos impostos. 

 

19. Já as contribuições financeiras são prestações pecuniárias coativas, assentes numa estrutura bilateral, exigidas como contrapartida de uma prestação administrativa de que presumivelmente os respetivos sujeitos passivos, por integrarem um determinado grupo homogéneo, beneficiaram ou causaram.

 

20. A constitucionalização das contribuições financeiras, promovida pela revisão de 1997, visou abarcar uma categoria de tributos que, embora não possuíssem uma estrutura unilateral, não compartilhavam da bilateralidade rigorosa das taxas. Todavia, a circunstância de o legislador de revisão ter optado por subordinar as contribuições financeiras a um regime formal e orgânico semelhante ao das taxas é suficientemente revelador de que a estrutura e a finalidade das contribuições financeiras se aproximam mais dos tributos bilaterais do que dos tributos unilaterais.

 

21. Como se esclarece no acórdão n.º 344/19, do Tribunal Constitucional, a propósito da “taxa” SIRCA:

 

A criação de tributos dirigidos à compensação de prestações presumidas e admissibilidade de um quadro amplo de incidência das taxas torna mais diluída a fronteira entre as diferentes categorias de tributos e muito mais delicada a respetiva qualificação. Se atendermos à «natureza» que assume a prestação do ente público, a linha de fronteira entre as diferentes categorias de tributos públicos pode demarcar-se do seguinte modo: se o pressuposto de facto gerador do tributo é alheio a qualquer prestação administrativa ou se traduz numa prestação meramente eventual, estamos perante um imposto; se o facto gerador do tributo consubstancia uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada por um grupo em que o sujeito passivo se integra, estamos perante uma contribuição; se o facto gerador do tributo é constituído por uma prestação administrativa de que o sujeito passivo seja efetivo causador ou beneficiário, ou por um facto que, de acordo com as regras da experiência, constitui um indicador seguro da existência daquela prestação, estamos perante uma taxa”.

 

22. A “prova do algodão” entre imposto e contribuição financeira é dada, portanto, pela identificação expressa ou implícita de uma prestação administrativa – ainda que grupal ou presumida, no caso das contribuições financeiras. Em termos coadjuvantes, a jurisprudência constitucional reconhece igualmente a importância do critério finalístico, admitindo que a consignação da receita do tributo – por oposição ao financiamento das despesas públicas gerais – pode constituir uma orientação relevante no esclarecimento da sua natureza. Como se lê no acórdão n.º 268/2021, do Tribunal Constitucional, a propósito da Contribuição sobre o setor bancário:

 

A distinção entre as três categorias tributárias parte da consideração simultânea de um critério finalístico a par de um critério estrutural ou do pressuposto e da finalidade do tributo (...). Em linha com a conclusão que antecede, tem sido sublinhada pela jurisprudência do Tribunal a importância de atender, ainda, ao elemento teleológico do tributo (critério finalístico), na medida em que este pode constituir um indicador determinante no esclarecimento da sua natureza (...). Nesta perspetiva, a consignação de receitas à entidade pública competente para financiar as prestações subjacentes aos tributos que as geram constitui, por regra, «uma qualidade reveladora da natureza comutativa destes tributos, por tal consignação significar que a receita não pode ser desviada para o financiamento de despesas públicas gerais» (Acórdãos nºs 539/2015, 320/2016, 7/2019, 255/2020). Todavia, o Tribunal Constitucional reconhece que a consignação da receita do tributo não constitui, por si só, um elemento determinante na qualificação de um tributo – não é uma condição nem necessária nem suficiente (v. Acórdãos n.ºs 344/2019 e 255/2020)”.

 

23. Com base nestes critérios, o Tribunal Constitucional qualificou como contribuições financeiras tributos tão variados como as taxas de regulação e supervisão económica (acórdão n.º 365/2008), a taxa pela utilização do espectro radioelétrico (acórdão n.º 152/2013), as penalizações pela emissão de carbono (acórdão n.º 80/2014), a Contribuição extraordinária sobre o setor energético (acórdão n.º 7/2019), a taxa de segurança alimentar mais (acórdão n.º 539/2015) ou a contribuição sobre o setor bancário (acórdão n.º 268/2021). Foram ainda qualificadas como contribuições financeiras a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (cf. acórdão do STA de 10.05.2023, processo n.º 0191/20.4BEVIS), assim como a taxa de promoção e de coordenação do Instituto da Vinha e do Vinho (cf. acórdão do STA de 26.09.2018, processo n.º 0299/13.2BEVIS 01007/17), ou a taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas (acórdão do TCA de 29.09.2022, Processo n.º 21/13.3 BELRS);

 

24. Uma vez denotada a estrutura bilateral ou pelo menos comutativa do tributo, as eventuais inconsistências ou incoerências do seu regime jurídico – designadamente o facto de terem como sujeito passivo pessoas que não são presumíveis beneficiários ou causadores da prestação administrativa – deverão ser tratadas no âmbito do princípio da igualdade material, tomado como critério de equivalência, ferindo de inconstitucionalidade material as normas do regime jurídico do tributo que o contrariem (cf., neste sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 344/2019, sobre a taxa SIRCA, e n.º 101/2023, sobre a Contribuição extraordinária do setor energético, quando aplicada aos operadores do setor do gás).

 

25. Ora, a Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto) e constitui “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis” (artigo 3.º, n.º 1). Por financiamento da rede rodoviária entende-se “a respetiva conceção, projeto, conservação, exploração, requalificação e alargamento” (artigo 3.º, n.º 2).

 

26. A incidência objetiva do tributo coincide com a do ISP, ou seja, o tributo incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP) e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1). E o mesmo sucede com a incidência subjetiva, uma vez que os sujeitos passivos do tributo coincidem com os sujeitos passivos do ISP (artigo 5.º, n.º 1). Além disso, é aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações (artigo 5.º, n.º 1). Finalmente, o produto da CSR constitui receita própria da concessionária da rede rodoviária nacional, a EP – Estradas de Portugal, E. P. E, que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A (artigo 6.º).

 

27. Não obstante a operação “cosmética” que o legislador ensaia na Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, ao identificar como facto tributário a utilização da rede rodoviária nacional, consignando a receita do tributo à respetiva concessionária, a Infraestruturas de Portugal, a CSR aproxima-se de um simples desdobramento do ISP, partilhando com este a incidência objetiva e subjetiva, bem como os aspetos da liquidação e cobrança (cf. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.º ed., reimpressão, Almedina, 2021, p. 384, nota n.º 8).[1]

 

28. Esta conclusão é corroborada pelo Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, o qual, em razão dos princípios da interpretação conforme e do primado do Direito da União Europeia, se projeta como elemento determinante na qualificação do tributo. Efetivamente, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma tributação, um imposto, uma taxa ou um direito, à luz do Direito da União Europeia, compete ao Tribunal de Justiça, em função das caraterísticas objetivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional (cf. acórdãos Istituto di Ricovero e Cura a Carattere Scientifico (IRCCS) — Fondazione Santa Lucia, processo C-189/15, §29; e Test Claimants in the FII Group Litigation, processo C-446/04, §107, entre outros).

 

29. É certo que, no processo arbitral que motivou o pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça (Processo n.º 564/2020-T), o Tribunal qualificou a CSR como um imposto, formulando as questões prejudiciais com base nesse pressuposto. Entende o Tribunal arbitral, todavia, que na decisão em que culminou esse pedido de reenvio – o Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21 – o Tribunal de Justiça não colocou em causa essa qualificação, precisamente por considerar que, pela sua estrutura e regime jurídico, a CSR preenchia as caraterísticas de uma imposição indireta, concretamente, de um imposto indireto sobre os produtos petrolíferos. Por outras palavras, foi o legislador português que, não obstante apelidar o tributo como “contribuição”, definiu a respetiva incidência subjetiva, objetiva, liquidação e cobrança em termos análogos às do ISP. Em condições que levaram o Tribunal de Justiça a assumir que a CSR teria uma finalidade exclusivamente orçamental para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, e que poderia entravar as trocas comerciais pondo em causa o efeito útil da harmonização levada a cabo pela Diretiva no domínio do imposto sobre produtos petrolíferos (Despacho Vapo Atlantic, §26).

 

30. Não constituindo a qualificação da CSR uma questão puramente interna, há que concluir que a CSR é um imposto indireto para efeitos da Diretiva 2008/118/CE, e consequentemente, também para efeitos da legislação portuguesa que se enquadre no âmbito de aplicação da Diretiva, como é o caso da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto. Ou seja, se o Tribunal de Justiça tratou a CSR como um desdobramento do ISP, não pode o intérprete e aplicador português deixar de fazer o mesmo, procurando uma interpretação e aplicação uniformes do Direito da União.

 

31. Termos que se julga improcedente a exceção dilatória de incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria.

 

  1. Exceção da incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, por outra via

 

32. A AT suscita, na sua resposta, a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, mas por outra via (em razão da causa de pedir), exceção dilatória cuja procedência acarreta a absolvição da ré da instância (artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, a) do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT). Sustenta que o pedido formulado pela Requerente, que passa pela declaração de ilegalidade do regime da CSR “no seu todo” (pontos 37.º a 46.º da Resposta), a par da anulação dos atos de liquidação, extravasa o âmbito da jurisdição arbitral tributária prevista no artigo 2.º do RJAT, que assenta num contencioso de mera anulação. Este não consente “o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-administrativa do Estado” (ponto 44.º), “não sendo da competência do tribunal arbitral (...) a fiscalização da legalidade de normas em abstrato, sem enquadramento processual impugnatório de ato concreto de liquidação” (ponto 43.º). Uma interpretação do artigo 2.º do RJAT que permitisse a apreciação dos pedidos formulados pela Requerente seria, no entender da AT, inconstitucional, porquanto vedada pela letra e pelo espírito da lei (ponto 44.º da Resposta).

 

33. A exceção dilatória invocada pela AT não procede. Vejamos.

 

34. A Requerente não pede a declaração de ilegalidade do regime jurídico onde está consagrada a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto). Pede, na verdade, a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e, bem assim, a anulação dos atos de liquidação de CSR inerentes às faturas juntas com o PPA. Faz assentar, porém, a anulação das liquidações num vício de ilegalidade abstrata, por oposição à ilegalidade concreta, porquanto o que está em causa é a ilegalidade do tributo (por desconformidade do ato legislativo que o criou com a CRP ou por incompatibilidade com o Direito da União Europeia), e não a ilegalidade do ato que faz aplicação da lei ao caso concreto (cf. acórdão do STA de 20-03-2019, processo n.º 0558/15.0BEMDL 0176/18).

 

35. O controlo incidental ou concreto da constitucionalidade das normas assenta, precisamente, na destrinça entre questão principal e questão de constitucionalidade. Como se lê no artigo 204.º da CRP, pedra angular do modelo de fiscalização concreta português, “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas contrárias à Constituição”.

 

36. In casu, mesmo que a inconstitucionalidade ou a incompatibilidade com o DUE seja o catalisador da impugnação, o feito submetido a julgamento não é a inconstitucionalidade da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, nem tão-pouco a sua incompatibilidade com o Direito da União, mas a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR (artigo 99.º do CPPT).

 

37. A idiossincrasia do modelo português de fiscalização concreta é a de que todos os juízes, em todos os tribunais, têm não só o poder-dever de verificar a conformidade constitucional das normas legais aplicáveis (poder-dever de exame), mas também de recusar a sua aplicação caso concluam pela sua inconstitucionalidade (poder-dever de rejeição). Não podendo, então, o juiz, nos termos do artigo 204.º CRP da Constituição, aplicar normas inconstitucionais, ele fica obrigado a decidir, seja a pedido das partes seja oficiosamente, a referida questão de constitucionalidade, isto é, tem de decidir previamente se a norma em causa é ou não inconstitucional.

 

38. Aliás, num modelo como o português, que não conhece a figura da ação direta de constitucionalidade, entendida como o direito dos cidadãos de pedirem ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas, a possibilidade de os particulares, nos feitos submetidos a julgamento, suscitarem a questão de constitucionalidade é imprescindível para assegurar o direito fundamental de acesso à justiça constitucional e a uma tutela jurisdicional efetiva em matéria constitucional. Por essa razão, não poderia o RJAT deixar de consagrar a figura do recurso de constitucionalidade quando, na decisão arbitral, se recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade ou se aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo (artigo 24.º, n.º 1 do RJAT).

 

39. Idêntico raciocínio é aplicável, mutatis mutandis, à incompatibilidade com o Direito da União. Também aqui, por força do princípio do efeito direto, conjugado com o princípio do primado, estão todos os tribunais nacionais, nos feitos submetidos a julgamento, sob o dever de desaplicar as normas de direito interno incompatíveis com o Direito da União. Não podendo um tal dever ficar na dependência de regras internas que atribuam aos tribunais superiores competência exclusiva para afastar a aplicação dessas normas. Foi esse o dito do Tribunal de Justiça no acórdão Simmenthal, processo C-106/77: “[Q]ualquer juiz nacional tem o dever de, no âmbito das suas competências, aplicar integralmente o direito comunitário e proteger os direitos que este confere aos particulares, considerando inaplicável qualquer disposição eventualmente contrária ao direito interno, quer seja esta anterior ou posterior à norma comunitária” (§21).

 

40. A sustentar o seu argumento, a AT invoca dois acórdãos do STA (ponto 46.º da Resposta), proferidos no âmbito dos processos n.ºs 01390/17 e 0637/15, e um acórdão do TCA Norte, proferido no âmbito do processo n.º 00502/15.4BEPRT). Mas também aqui sem acerto. Com efeito, o que estava em causa no primeiro daqueles arestos era uma ação popular administrativa na forma de providência cautelar de suspensão de eficácia do disposto na norma do artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos, na redação introduzida pelo artigo 217.º da Lei n.º 42/2016, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2017. No segundo, o STA limitou-se a declarar a incompetência absoluta para a apreciação da legalidade de atos emitidos no exercício da função político-legislativa (artigo 4.º, n.º 2, a) do ETAF), ajuizando que o ato em causa – um decreto-lei – apesar da sua natureza individual e concreta, não continha um ato administrativo sob a forma legislativa que o Tribunal pudesse apreciar. E no terceiro, o TCA Norte reiterou não ter competência para declarar a ilegalidade e consequente nulidade das normas públicas inseridas em atos legislativos que fixaram a introdução de portagens em auto-estradas. O que, facilmente se percebe, nada tem que ver com um pedido de ilegalidade de um ato de liquidação de um imposto, que não é um ato da função político-legislativa, mas um ato caraterístico da função administrativa.

 

41. Acrescenta a AT, nos pontos 47.º a 52.º da Resposta, que os atos de repercussão não são atos tributários e, nessa medida, extravasam a competência dos tribunais arbitrais tributários, definida nos termos já mencionados. O que consubstancia uma exceção dilatória, nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT.

 

42. Também aqui não assiste razão à Requerida. O pedido de pronúncia arbitral não tem por objeto a anulação de atos de repercussão per se, mas antes a anulação dos atos de liquidação de CSR cujos montantes foram posteriormente repercutidos sobre os adquirentes de combustível. Neste sentido, caso a anulação das liquidações venha a ser julgada procedente, e uma vez feita a prova da repercussão do imposto sobre os adquirentes de combustível, impõe-se à AT, nos termos do artigo 100.º da LGT e do artigo 22.º da CRP, “a reposição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade” e, nessa medida, também a eliminação dos atos de repercussão, sem a qual não haverá reposição da situação atual hipotética.

 

43. Termos em que julga improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria.

 

  1. Questão da ineptidão da petição inicial

 

44. A Requerida alega, nos pontos 110.º a 148.º da sua defesa, a ineptidão da petição inicial, com a consequente nulidade de todo o processo, ao abrigo dos artigos 186.º, n.º 1, 576, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. b) e 278.º, n.º 1, al. b) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.

 

45. Acrescenta que o PPA não cumpre os pressupostos vertidos no artigo 10.º, n.º 2 do RJAT, porquanto não identifica o ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral, nem as declarações de introdução no consumo que deram origem às liquidações de CSR por parte da AT.

 

46. A AT não tem forma de suprir esta omissão, atenta a impossibilidade de estabelecer qualquer correspondência entre os atos de liquidação de CSR junto do fornecedor de combustível e as faturas de aquisição de combustível apresentadas pela Requerente (ponto 125.º). Isto acontece porque os sujeitos passivos declaram a introdução de combustível no mercado em múltiplas alfândegas, submetendo a exigida e-DIC, combustível esse destinado a múltiplos clientes e depois revendido a outros tantos. Portanto, as transações de combustível em que a CSR terá sido alegadamente repercutida não têm por base um ato de liquidação específico (ponto 133.º da Resposta). Assim, “é totalmente impossível à AT identificar os atos de liquidação subjacentes à declaração dos produtos para o consumo, que vão sendo transacionados ao longo da cadeia de comercialização” (ponto 134.º da Resposta).

 

Vejamos:

 

47. O RJAT não contém regime próprio em matéria de exceções e nulidades processuais, aplicando-se, nesta matéria, a título subsidiário, o disposto no CPPT, no CPTA e no CPC, como decorre do previsto no artigo 29.º, n.º 1, a), c) e e) do RJAT.

 

48. A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória cuja verificação conduz à abstenção de conhecimento do mérito da causa e à absolvição do réu da instância (artigo 278, n.º 1, al. b) do CPC). Trata-se de uma exceção de conhecimento oficioso, conforme preceituado no artigo 196.º do CPC e também no artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, al. b), do CPTA e no artigo 98.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPPT.

 

49. Do artigo 186.º, n.º 1 do CPC consta uma lista fechada de situações geradoras de ineptidão da petição inicial: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. De acordo com o n.º 3 do mesmo dispositivo, ainda que os factos essenciais alegados sejam insuficientes, se a ré contestar, decorrendo da contestação que interpretou convenientemente a petição inicial e os pedidos, impugnando expressamente o que foi alegado pelo Autor e, em consequência, requerendo a sua absolvição daqueles, não procede a arguição de ineptidão da petição inicial que eventualmente seja arguida.

 

50. Ora, a exceção relacionada com a ineptidão da petição inicial não procede uma vez que não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC. Ao contrário do alegado, não existe contradição entre o pedido e a causa de pedir.

 

51. Quanto à questão da identificação dos atos de liquidação impugnados, a que alude a al. b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, importa referir que, não sendo a Requerente o sujeito passivo do imposto, nem o direto responsável pela sua liquidação, mas apenas a entidade que alegadamente suporta o encargo por efeito da repercussão, não lhe compete o ónus de identificação e de comprovação dos atos de liquidação repercutidos.

 

Sendo antes sobre a Autoridade Tributária que impendia o ónus de realizar, no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, as diligências que permitiriam verificar a existência dos atos de liquidação do imposto, ao abrigo do princípio do inquisitório e do dever de colaboração (cfr. acórdão do CAAD de 14-05-2024 relativo ao Processo n.º 790/2023-T, §15-16). A eventual dificuldade que a AT possa ter na identificação das liquidações a que ela própria procedeu junto dos fornecedores de combustíveis é um problema de organização dos seus serviços, que não pode ser imputado nem trazer desvantagem à Requerente. A Requerente fez tudo quanto poderia ter feito, juntando os documentos que tinha à sua disposição. Exigir à Requerente a identificação dos atos de liquidação numa situação com este recorte, em que o repercutido não tem meios para proceder a essa identificação nem ela se assume como imprescindível para a apurar da legalidade da liquidação de CSR que as faturas respaldam, constituiria uma interpretação dos normativos sob apreciação em desalinho com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP (cfr. acórdão do CAAD de 13-11-2023 relativo ao Processo n.º 410/2023-T).

 

Improcede, portanto, a exceção de ineptidão da petição inicial.

 

  1. Questão da caducidade do direito de ação 

 

52. A AT invoca, seguidamente, vários argumentos relacionados com a tempestividade do pedido de revisão oficiosa, que foi objeto de indeferimento tácito (pontos 149.º a 162.º).

 

Argumenta, em primeiro lugar, que não logrando a Requerente a identificação dos atos de liquidação impugnados, não é possível apurar da tempestividade do pedido de revisão oficiosa recebido em 27-04-2023 e, consequentemente, a tempestividade do PPA ora apreciado.

 

Depois, ainda que superado este obstáculo, é entendimento da AT que o pedido de revisão é intempestivo, não sendo aplicável o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, uma vez que inexiste in casu “erro imputável aos serviços”. Ao proceder às liquidações de CSR impugnadas, a AT manteve-se fiel ao princípio da legalidade da administração, estando-lhe vedado atuar de forma diversa (ponto 154.º da Resposta).

 

Alega, finalmente, que o artigo 15.º do CIEC, onde estão previstas regras gerais de reembolso em caso de erro na liquidação, expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, é lex specialis relativamente ao artigo 78.º da LGT. De acordo com aquele normativo, só os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução do consumo dos produtos em território nacional têm, no prazo de três anos a contar da liquidação do imposto, legitimidade para apresentar o pedido de reembolso (artigo 15.º, n.ºs 2 e 3 do CIEC). Prazo que, em 27-04-2023, data da receção do pedido de revisão oficiosa, já estaria terminado pelo menos no que se refere a todas as aquisições efetuadas pela Requerente em data anterior a 27-04-2020.

 

53. A Requerente argumenta, no PPA, que o prazo aplicável é o prazo de 4 anos a contar da data da liquidação, constante do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, uma vez que a AT, ao liquidar a CSR, incorreu em “erro imputável aos serviços”, em especial num erro de direito, aplicando normas contrárias ao Direito da União.

 

54. Também esta exceção deve ser julgada improcedente.

 

O artigo 15.º do CIEC contém um conjunto de disposições comuns às várias modalidades de reembolso previstas no Código, seja o reembolso por erro (artigo 16.º), o reembolso na expedição (artigo 17.º), o reembolso na exportação (artigo 18.º), reembolso na retirada do mercado (artigo 19.º) e outros casos de reembolso (artigo 20.º). Dispõe o seguinte:

 

Artigo 15.º

Regras gerais do reembolso

1 - Constituem fundamento para o reembolso do imposto pago, desde que devidamente comprovados, o erro na liquidação, a expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, bem como a retirada dos mesmos do mercado, nos termos e nas condições previstas no presente Código.

2 - Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.

3 - O pedido de reembolso deve ser apresentado na estância aduaneira competente no prazo de três anos a contar da data da liquidação do imposto, sem prejuízo do disposto na alínea a) do artigo 17.º e na alínea a) do artigo 18.º.

4 - O reembolso só pode ser efectuado desde que o montante a reembolsar seja igual ou superior a (euro) 25.

 

55. Ora, como se lê no acórdão do CAAD de 14-05-2024, referente ao Processo n.º 790/2023-T, o regime especial previsto nos artigos 15.º e seguintes do CIEC vale para o reembolso com fundamento em erro na liquidação ou em caso de expedição ou exportação. Ora, no presente processo o que está em causa não é um pedido de reembolso tout court, mas uma declaração de ilegalidade de atos de liquidação de um imposto, à qual se pode seguir, verificados os demais pressupostos, o reembolso do imposto pago indevidamente.

 

56. Resulta, depois, do n.º 1 do artigo 78.º da LGT que a revisão do ato tributário prevista naquele dispositivo constitui um meio de correção de erros na liquidação de tributos levado a cabo pela própria administração tributária (a revisão é da competência de quem praticou o ato tributário), e que pode partir da iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa (reclamação graciosa) e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou da iniciativa da administração, no prazo de 4 anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

 

É entendimento pacífico da jurisprudência do STA que, para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e em face da teleologia que subjaz ao instituto da revisão, este não abrange apenas os pedidos de revisão oficiosa da iniciativa da administração tributária, mas também a revisão do ato de liquidação requerida pelo sujeito passivo e como tal abrangida pelo prazo alargado de 4 anos. A revisão é, portanto, um afloramento do dever de revogação de atos tributários ilegais, que encontra arrimo nos princípios da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, que são princípios fundamentais da atividade administrativa (cf. artigo 266.º, n.º 2 CRP e artigo 55.º da LGT). E «face a tais princípios, não se vê como possa a Administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do acto quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes» (acórdão do STA, 11.05.2005, processo n.º 0319/05).

 

Neste sentido, tal como este Tribunal arbitral a compreende, a revisão do ato tributário prevista no n.º 1 do artigo 78.º da LGT é um modo de reação complementar aos meios administrativos e contenciosos gerais e especiais, que tem o seu campo primordial de aplicação naquelas situações em que já não é possível a impugnação do ato tributário, ou seja, em todos os casos em que o contribuinte, não logrou lançar mão, por sua iniciativa, dos processos impugnatórios previstos na lei (cf. decisão arbitral do CAAD de 24.06.2021, processo n.º 500/2020-T). Como se lê no acórdão do STA de 08.06.2022, processo n.º 0174/19.7BEPDL, “[e]m função do respetivo, integral, conteúdo normativo, o art. 78.º da LGT consubstancia, no âmbito da proteção dum Estado de Direito, um depósito de garantias, acrescidas, de defesa e reposição da legalidade, concedidas aos sujeitos de relações jurídico-tributárias”.

 

Os mecanismos de reembolso previstos nos artigos 15.º e ss. do CIEC não afastam a aplicação do artigo 78.º da LGT ao caso sub judice. O procedimento de revisão oficiosa assume-se, tanto pela sua localização sistemática (na LGT), como pelo substrato teleológico que lhe preside, como uma garantia dos contribuintes que acresce às previstas no CIEC ou noutra legislação especial.

 

57. Esta modalidade de revisão do ato tributário só é possível nas situações em que haja “erro imputável aos serviços”, aqui compreendido não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, do qual tenha resultado, para o contribuinte, uma liquidação de imposto superior ao devido. Essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro (cf., entre outras, a decisão arbitral do CAAD de 24-03-2022, processo n.º 615/2021-T, e, entre outros, os acórdãos do STA de 12-02-2001, recurso n.º 26233, de 11-05-2005, recurso n.º 0319/05, de 26.04.2007, recurso n.º 39/07, de 14.03.2012, recurso n.º 01007/11 e de 18-11-2015, recurso n.º 1509/13).

 

Como se lê no acórdão do STA de 12.02.2001, recuperado recentemente no acórdão do STA de 03.06.2020, «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...)» (cf. acórdão do STA de 03.06.2020, processo n.º 018/10).

 

E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais – que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, acesso direto à Constituição – não tem a Administração Tributária o poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e, por maioria de razão, normas contrárias ao direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado – e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto – estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto (acórdão Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, § 31).

 

58. Assim, havendo – como se demonstrará claramente infra – erro imputável aos serviços, o prazo para apresentar o pedido de revisão oficiosa é de 4 anos após a liquidação, e não de 120 dias, como sustenta a AT (ponto 154.º da Resposta). O pedido de revisão oficiosa foi recebido pela AT em 27-04-2023 (cf. Documento n.º 01 junto com o PPA, bem como o processo administrativo), tendo por objeto atos de liquidação de CSR relativos a faturas emitidas pela aquisição de combustível no período entre março de 2019 e dezembro de 2022. Logo, o pedido foi apresentado tempestivamente, isto é, antes de decorridos quatro anos desde a data da liquidação, que é o prazo que releva à luz do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, em face da ocorrência de “erro imputável aos serviços”.

 

O indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa formou-se a partir de 27-08-2023, ou seja, quatro meses após a AT ficar constituída no dever de decidir (artigo 57.º, n.º 1 da LGT). Por conseguinte, o PPA, apresentado em 25-11-2023, é também tempestivo (artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).

 

59. Pelo que, pelas razões expostas, improcede a exceção relacionada com a caducidade do direito de ação.

 

  1. Questão da ilegitimidade da Requerente

 

60. A AT pugna, nos pontos 53.º a 109.º da sua defesa por exceção, pela ilegitimidade processual ativa da Requerente, o que, nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º, a) CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) RJAT, consubstancia uma exceção dilatória, que, se verificada, implica a absolvição da Requerida da instância.

 

Segundo a AT, atento o regime especial previsto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, só o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo e a quem foi liquidado o imposto tem legitimidade para requerer a revisão oficiosa e, consequentemente, para apresentar o pedido de pronúncia arbitral. Ora, o sujeito passivo da CSR é o sujeito passivo do ISP, aplicando-se as mesmas regras em termos de liquidação e cobrança (artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto). 

 

Por outra banda, a AT alega que a Requerente carece de legitimidade à luz do disposto no artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, porquanto no caso concreto não estará em causa uma situação de repercussão legal, mas de mera repercussão económica ou de facto. O ónus da CSR é transferível, através do fenómeno financeiro da repercussão económica dos custos que podem ser tidos em conta na política de definição dos preços de venda (pontos 80.º e 81.º da Resposta). Em síntese, a Requerente não só não consegue demonstrar que o valor pago pelos combustíveis que adquiriu à sua fornecedora inclui o montante pago a título de CSR pelo sujeito passivo que introduziu o combustível no mercado, como não consegue demonstrar que não o repassou no preço dos serviços prestados aos seus clientes ou consumidores finais (ponto 92.º da Resposta).

 

61. A Requerente invoca que é parte legítima do procedimento e processo tributários, seja nos termos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, visto que é titular de um interesse legalmente protegido, seja nos termos do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, por o regime jurídico da CSR pressupor a repercussão legal do imposto e não a mera repercussão económica ou de facto (pontos 83.º a 100.º do PPA).

 

Vejamos.

62. A legitimidade é a qualidade de ser parte ativa ou passiva num procedimento ou processo tributários. Trata-se de um requisito cuja verificação condiciona a apreciação da questão de fundo e não de uma condição de procedência do pedido. Razão pela qual, nesta fase, se atende à configuração da relação jurídica tal como alegada pelo autor, sem cuidar de saber se o direito invocado efetivamente existe na sua esfera jurídica [Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 120 (anotação ao art. 9.º)].

63. A lei tributária parte de um conceito amplo de legitimidade, que não coincide plenamente com a qualidade de sujeito ativo ou passivo na relação jurídica tributária, abrangendo a AT, os contribuintes, os substitutos, os responsáveis, outros obrigados tributários e “quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (artigo 9.º, n.º 1 do CPPT). Neste sentido, estão abrangidos tantos quantos possam dizer-se afetados pelo que venha a ser decidido no procedimento ou processo tributários, ou seja, que tenham nele um interesse económico a defender (Rui Duarte Morais, Manual de procedimento e processo tributário, Almedina, 2012, p. 58). Por outro lado, o artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, embora privando quem suporte o imposto por repercussão legal da qualidade de sujeito passivo da relação jurídica tributária, estende ao repercutido legal as garantias dos contribuintes, concretamente o direito de reclamação, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral.

64. Entende o Tribunal arbitral que, seja pela via do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, seja pela via do artigo 18.º, n.º 1, a) da LGT, a Requerente tem legitimidade processual para apresentar a presente ação.

É certo que o CIEC não continha, até à entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro, uma norma semelhante à do artigo 37.º do CIVA, ou seja, uma norma que previsse expressamente o dever de incluir no preço a pagar pelo adquirente dos bens e serviços a importância de imposto liquidada pela AT ao sujeito passivo. Todavia, entende o Tribunal arbitral que a referência à “repercussão legal” inscrita no artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT terá de abranger todos aqueles casos em que a lei, direta ou indiretamente, faz assentar o regime jurídico do tributo num princípio de repercussão legal do imposto, ou seja, em que a lei pretende que a ablação patrimonial do imposto seja suportada, não pelo sujeito passivo, mas pelo titular da manifestação de capacidade contributiva que dá causa ao imposto.

65. É o que sucede com a CSR, que, como dispõe o artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, constitui “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo de combustíveis”. A manifestação de capacidade contributiva que dá causa à CSR não é a introdução dos combustíveis no mercado, mas o próprio consumo de combustíveis por parte dos utilizadores da rede rodoviária nacional. A nova redação do artigo 2.º do CIEC, introduzida pelo artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro, limita-se a reconhecer abertamente aquilo que já resultava do regime jurídico dos IEC na versão anterior, ou seja, que o ISP e a entretanto extinta CSR assentam num princípio da repercussão legal.[2]

O alcance subjetivo do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT encontra igualmente reconhecimento na doutrina jus tributária. Neste sentido, Jorge Lopes de Sousa escreveu, ainda antes da alteração legislativa de que resultou a atual redação do artigo 2.º do CIEC:

Nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o do direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18º, nº 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face dos respetivos regimes legais, a lei exige o pagamentos dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende Tributar” [Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 106 (anotação ao art. 9.º)].

Também Sérgio Vasques pugna pela indistinção, para efeitos da aplicação do n.º 2 do artigo 54.º da LGT (“As garantias dos contribuintes previstas no presente capítulo aplicam-se também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, na parte não incompatível com a natureza destas figuras”), entre a repercussão obrigatória prevista para o IVA e a repercussão facultativa que vale para os impostos especiais sobre o consumo:

“O artigo 54.º, n.º 2 da LGT acrescenta ainda que as garantias dos contribuintes se aplicam também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, “na parte não incompatível com a natureza destas figuras”. A. Lima Guerreiro (2001), 254, observa a propósito que as normas de procedimento da LGT se aplicam à repercussão obrigatória que podemos dizer existir no contexto do IVA em virtude da obrigação geral da menção em factura, e a uma repercussão facultativa, que mais frequentemente encontramos na área dos impostos especiais sobre o consumo, taxas e contribuições. E, bem vistas as coisas, faltam razões para distinguir entre uma e outra modalidades de repercussão, quando está em jogo facultar defender o repercutido contra a exigência de tributo superior ao devido (...)” [Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2021, p. 402, nota n.º 35].

66. Independentemente da leitura que se faça do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, a legitimidade processual da Requerente resulta, também, do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT e do conceito amplo de legitimidade que aí se sufraga (Bruno Botelho Antunes, “Impugnação judicial em retenções na fonte – uma nova perspetiva sobre o interesse processual”, Fiscalidade, n.º 37, 2009, pp. 101-112). Ou seja, mesmo que se entenda que o regime jurídico da CSR não assenta num princípio de repercussão legal, há que reconhecer que o adquirente de combustíveis pode alegar a titularidade de um interesse legalmente protegido para efeitos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, intervindo no processo tributário nessa qualidade (cfr., neste sentido, a decisão do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T, a decisão do CAAD de 08-11-2023, Processo n.º 294/2023-T).

67. A Autoridade Tributária refere ainda que a Requerente, não sendo sujeito passivo do imposto, carece não apenas de ilegitimidade processual, mas também de ilegitimidade substantiva, que constitui uma exceção perentória e conduz à absolvição do pedido (ponto 109.º da Resposta).

Mas não lhe assiste razão. A chamada legitimidade substancial ou substantiva tem que ver com a efetividade da relação jurídica material, interessando já ao mérito da causa e, nesse sentido, constitui um requisito da procedência do pedido e não uma condição para a apreciação do mérito (cfr. acórdão arbitral de 14-05-2024, referente ao Processo n.º 790/2023-T). Neste sentido, a legitimidade substantiva só pode ser analisada em função dos factos que sejam dados como provados ou não provados, ou seja, aquando da apreciação do mérito do pedido, não consubstanciando, em coerência, uma exceção perentória.

68. O que vem de dizer-se é extensível à alegada inexistência de prova de efetiva repercussão da CSR por efeito da aquisição de combustíveis, a que a Requerida se refere nos artigos 93.º a 102.º da resposta. Essa é matéria de prova que terá de ser analisada no âmbito da decisão arbitral quanto ao fundo e que não integra, em si, uma qualquer exceção, nem dilatória, nem perentória.

 

III – Matéria de facto

 

  1. Factos provados

 

69. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma pessoa coletiva sob a forma jurídica de Agrupamento Complementar de Empresas, identificada pelo NIPC ..., cuja atividade empresarial consiste na prestação, a cada uma das Agrupadas, de serviços de consultoria, conceção, desenvolvimento, implementação e execução de soluções e processos nos domínios dos sistemas de informação, recursos humanos, gestão financeira, negociação, compras e logística, marketing, instalação e equipamentos, controlo de gestão, entre outras que lhe venham a ser atribuídas..
  2. No período compreendido entre março de 2019 e dezembro de 2022, a Requerente adquiriu à B..., S.A. um total de 383 687,82 litros de gasóleo e 95 676,15 litros de gasolina (cf. faturas que constam do documento n.º 2, e os extratos de pagamento que constam do documento n.º 1, juntos com o PPA).
  3. Tendo suportado com essas aquisições um total de € 50 913,17 a título de CSR.

 

  1. A B..., S.A. é sujeito ativo de ISP/CSR, tendo apresentado e-DIC, ou seja, declarações de introdução no consumo de produtos petrolíferos.
  2. Em 27-04-2023, a Requerente apresentou, perante a AT/DGAIEC, um pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de CSR, referentes ao período entre março de 2019 e dezembro de 2022, durante o qual adquiriu um total de 383 687,82 litros de gasóleo e 95 676,15 litros de gasolina, invocando que o encargo tributário foi repercutido na sua esfera jurídica pelos fornecedores.
  3. Até à data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, a AT/DGAIEC não emitiu decisão quanto ao pedido de revisão oficiosa.
  4. O pedido arbitral deu entrada em 25-11-2023.

 

  1. Factos não provados

 

70. Não se provou que a Requerente tenha repercutido os montantes suportados a título de CSR sobre os seus clientes.

 

  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

71. Os factos dos pontos A, B, E, F e G resultam da prova documental junta aos autos, mormente dos documentos n.ºs 01, 1 e 2 e do processo administrativo remetido pela AT. O facto do ponto D foi alegado pela Requerente e tem por base a Declaração da B..., S.A sob o Documento n.º 03. A Requerida não contesta a qualidade de sujeito passivo de ISP/CSR da B..., S.A (ponto 105.º da resposta).

72. A Requerida impugna o teor das faturas juntas com o PPA por estas não consubstanciarem fatura-recibo, nem recibo, nem nota de crédito, nem a conjugação de documentos (contabilísticos ou outros), que permitam comprovar o pagamento dos montantes alegados pela Requerente (pontos 98.º da Resposta). Contudo, o Tribunal arbitral entende que as referidas faturas, quando conjugadas com as informações contabilísticas identificadas sob o documento n.º 1, constituem prova suficiente das quantidades de combustível adquiridas e de que a Requerente pagou à B..., S.A. os montantes neles registados.

A AT contesta a ocorrência de repercussão, invocando que “a venda de combustível não dá origem a uma repercussão”, estando esta dependente da “política de definição nos preços de venda da empresa vendedora/fornecedora”. Esta pode repercutir integral ou apenas parcialmente a CSR, ou não a repercutir de todo, atenta a existência de vários intervenientes na cadeia de distribuição/comercialização de combustíveis (ponto 82.º da Resposta). À luz do artigo 74.º, n.º 1 da LGT e do artigo 342.º do Código Civil, o ónus da prova de factos constitutivos do direito recai sobre quem o invoca, ou seja, sobre a Requerente, que não beneficia de qualquer presunção no sentido de que a repercussão tenha ocorrido (ponto 168.º da Resposta).

A AT impugna ainda a eficácia probatória da Declaração da B... S.A. sob o Documento n.º 03, porque esta não identifica o seu signatário, não indica se o mesmo tem poderes de representação, pelo que constitui um documento simples sem qualquer efeito legal e que está longe de conter os elementos indispensáveis à exata e concreta comprovação dos factos alegados pela Requerente, designadamente em que medida é que o sujeito passivo de ISP/CSR repercutiu a jusante a CSR que, alegadamente, foi “repassada” à Requerente (pontos 99.º e 116.º da Resposta).

Finalmente, a AT sublinha que a Requerente não demonstrou, como lhe competia, que o preço dos bens e serviços prestados aos seus clientes não comportou, a jusante, a repercussão da CSR, não tendo, com isso, demonstrado que suportou efetivamente o encargo relativo ao imposto (ponto 192.º da Resposta).

Vejamos:

73. O artigo 74.º, n.º 1 da LGT dispõe, efetivamente, que “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. Incumbe, nessa medida, à Requerente alegar factos que demonstrem que o direito ao reembolso do imposto (ilegalmente liquidado), por esta suportado através do mecanismo da repercussão, se constituiu na sua esfera jurídica. Por outro lado, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a repercussão de um imposto não se presume mesmo quando seja legalmente exigida a incorporação do imposto no preço de venda dos bens (repercussão legal), ou mesmo que, habitualmente, no domínio do comércio, o imposto seja parcial ou totalmente repercutido. Neste sentido, para o Tribunal de Justiça, a repercussão tributária – legal ou não – é uma questão de facto, que depende de fatores inerentes a cada transação comercial e será mais ou menos provável consoante as caraterísticas do mercado, mormente a sua elasticidade ou inelasticidade (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44; Weber’s Wine, processo C-147/01, §96).

74. Neste sentido, o Tribunal arbitral dá como provado o facto do ponto C, isto é, a repercussão integral da CSR sobre a Requerente, respaldada nas faturas de aquisição de combustível juntas aos autos sob o documento n.º 2 e na declaração emitida pela B... S.A., junta sob o documento n.º 3. Esta última tem o seguinte teor: “a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível fornecido à empresa A... ACE, com NIPC ..., foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa”.

75. Ora, o Tribunal arbitral entende que a declaração é credível e que a AT não logrou contraditar a sua autenticidade. Na verdade, não se deteta motivo para que os fornecedores de combustíveis procedessem à declaração de que repercutiram o tributo a quem a própria lei indica que o deve suportar caso tal declaração não correspondesse à realidade.

A declaração contém uma afirmação contundente: a de que sempre que forneceu combustível à Requerente a B... S.A. incorporou no preço de venda o montante de CSR, correspondente a €0,11 por litro (gasóleo) e €0,087 por litro (gasolina). A circunstância de as declarações serem genéricas, e não fornecimento a fornecimento, deve ser entendido, à luz do artigo 236.º do Código Civil, no sentido de que se reportam a todos os fornecimentos de combustíveis efetuados pela declarante à Requerente num determinado período. Existe prova bastante da ocorrência de repercussão, conjugando a prova documental produzida com as regras da experiência e da prática. Note-se que o Tribunal arbitral não presume a repercussão da CSR sobre as Requerentes. Mas também não obnubila os meios de prova que a Requerente submeteu à sua apreciação e que entende serem suficientes para a demonstração dos factos alegados.

76. Ao contrário do que alega a Requerida, não incumbe à Requerente fazer prova de que não repercutiu os montantes suportados a título de CSR sobre os seus clientes. Não é por estar em causa outro momento da cadeia comercial que são diferentes as regras sobre o ónus da prova: a repercussão não se presume – eis o dito do Tribunal de Justiça. Esta asserção não varia ao sabor do tipo de repercussão tributária, como também é insensível aos segmentos do circuito económico do bem ou serviço transacionado. Assim, se os factos provados evidenciam que houve repercussão da CSR pela B... S.A, não demonstram, todavia, que tenha havido repercussão da CSR pela Requerente sobre os seus clientes.

 

IV – Fundamentação de direito

 

  1. Da ilegalidade das liquidações: a questão da violação do Direito da União

 

77. A questão que vem colocada é a de saber se a CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que constitui um imposto incidente sobre os combustíveis rodoviários também sujeitos ao Imposto sobre Produtos Petrolíferos, e que se encontra enquadrada pela Diretiva n.º 2008/118/CE, tem um “motivo específico” na aceção do artigo 1.º, n.º 2, dessa Diretiva.

 

78. A AT defende-se por impugnação contrariando a asserção de que a CSR não tem um “motivo específico” na aceção do 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE (pontos 209.º a 219.º da Resposta). Invoca que o contrato de concessão da rede rodoviária nacional adstringe a CSR à prossecução de objetivos não orçamentais, mormente de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental. Insiste que inexiste qualquer decisão judicial transitada em julgado – do Tribunal de Justiça ou de outro Tribunal – que tenha declarado ou julgado a inconstitucionalidade ou ilegalidade do regime jurídico da CSR. Não havendo contrariedade entre a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto e o DUE, não existe “erro imputável aos serviços”, seja para efeitos do pedido de revisão oficiosa, seja para efeitos da condenação em juros indemnizatórios.

 

79. A Requerente, louvando-se no Despacho do Tribunal de Justiça, Vapo Atlantic, processo C-460/21, e em jurisprudência anterior do mesmo Tribunal, alega que não preside à CSR qualquer “motivo específico”, distinto do subjacente ao ISP. Solicita, por conseguinte, ao Tribunal arbitral que, em linha com o princípio do primado do Direito da União, ínsito no artigo 8.º, n.º 4 da CRP, desaplique as normas da Lei n.º 55/2017, de 31 de agosto, e declare a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR. 

 

80. Importa, num primeiro momento, atentar nos efeitos do Despacho Vapo Atlantic. As decisões do Tribunal de Justiça em sede de reenvio prejudicial (artigo 267.º TFUE) têm valor declarativo, definindo o sentido a atribuir a uma norma de DUE (originário ou derivado) desde o momento em que esta entrou em vigor. A interpretação declarada pelo Tribunal de Justiça passa a ser parte integrante da norma de DUE. Como é sabido, o Tribunal de Justiça não é competente para, em sede de reenvio prejudicial, declarar a ilegalidade de atos de direito interno. Essa é uma competência do órgão jurisdicional nacional. Todavia, uma vez que o instituto do reenvio prejudicial procura assegurar o princípio da interpretação e aplicação uniformes do DUE, as interpretações do Tribunal de Justiça vinculam todos os demais órgãos jurisdicionais nacionais chamados a interpretar e aplicar aquela norma.

 

81. Naquele Despacho, foi o Tribunal de Justiça chamado a responder, entre outras, à seguinte questão: “O artigo 1.°, n.º 2, da Diretiva [2008/118], e designadamente a exigência de “motivos específicos”, deve ser interpretado no sentido de que a finalidade de um imposto é meramente orçamental quando a sua criação é feita com o objetivo de financiar empresa pública concessionária da rede nacional de estradas, por ocasião da renovação da sua concessão, e à qual a receita do imposto fica genericamente afetada, e a sua estrutura não atesta a intenção de desmotivar um qualquer consumo?”.

 

82. Entendeu o Tribunal de Justiça que a resposta à questão prejudicial poderia ser claramente deduzida da jurisprudência ou não suscitava qualquer dúvida razoável, pelo que estariam verificados os pressupostos para que pudesse pronunciar-se através de Despacho fundamentado, nos termos do artigo 99.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. O que aconteceu, em termos que o Tribunal arbitral sintetiza da seguinte forma (§§ 20-36):

a)         A Diretiva 2008/118/CE não se opõe a que os Estados-membros estabeleçam outras imposições indiretas para além do imposto especial sobre o consumo mínimo. Mister é que tais imposições, no sentido de não entravar as trocas comerciais, sejam cobradas por “motivos específicos” e sejam conformes com as normas fiscais da União aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto (artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva).

b)         O facto de um imposto ter uma finalidade orçamental não obsta a que possa ter uma finalidade específica na aceção da Diretiva. Mas a existência de um motivo ou finalidade específicos pressupõe que se possa estabelecer, a partir do regime jurídico do tributo, uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa.

c)         A alocação da receita do tributo ao financiamento de atribuições administrativas, em particular a adjudicação da receita da CSR ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional, constitui um elemento relevante, ainda que insuficiente, para que se logre identificar um motivo específico.

d)         Para que se considere que a imposição indireta prossegue efetivamente uma finalidade específica, mormente de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, é necessário que o produto desse imposto seja obrigatoriamente utilizado para reduzir os custos sociais e ambientais associados à utilização da rede rodoviária nacional. O que não acontece com a CSR, cuja receita se destina, mais amplamente, a assegurar o financiamento da atividade de conceção, projeto, construção, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional. Acresce que a estrutura da CSR, nomeadamente a matéria coletável ou a taxa de tributação, não espelha, em termos suficientemente precisos, o propósito de reduzir a sinistralidade, dissuadir os sujeitos passivos do tributo de utilizarem a rede rodoviária nacional ou incentivar a adoção de comportamentos menos nocivos para o ambiente.

e)    A CSR tem uma finalidade puramente orçamental, na aceção da Diretiva 2008/118/CE.

 

83. No Despacho analisado, o Tribunal de Justiça afirma claramente que as finalidades específicas apontadas pela AT – a redução da sinistralidade e a sustentabilidade ambiental – não se mostram suficientemente respaldadas na estrutura do tributo, em termos de matéria coletável ou da taxa de tributação aplicável. Esta asserção não é infirmada pelo que eventualmente resulte do clausulado do contrato de concessão da rede rodoviária nacional, ao contrário do que sugere a Requerida. O Tribunal de Justiça é muito claro no sentido de que não se prova uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa só porque a entidade a quem está legalmente alocada a respetiva receita assumiu compromissos no âmbito da redução da sinistralidade ou da proteção do ambiente.

 

84. Não tendo sido alegados elementos que permitam chegar a outra conclusão, entende o Tribunal arbitral que a CSR é uma imposição indireta que não prossegue um motivo específico na aceção da Diretiva 2008/118/CE. Consequentemente, as liquidações emitidas pela AT à B... S.A., que estão subjacentes ao pagamento de CSR pela Requerente, enfermam de vício de violação de lei, por incompatibilidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, com o artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE.

 

  1. Restituição do imposto

 

85. A Requerida insiste, na defesa por impugnação, que não deve haver lugar à restituição do imposto indevidamente liquidado por, segundo o acórdão Danfoss, processo C-94/2010, do Tribunal de Justiça, um Estado-membro poder “opor-se a um pedido de reembolso de um imposto indevido apresentado pelo comprador final sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, quem tiver suportado afinal o encargo possa, nos termos do direito interno, exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo” (pontos 220.º a 226.º da Resposta).

 

86. O Tribunal de Justiça tem declarado que os Estados-membros estão, em princípio, obrigados a restituir os impostos cobrados por um Estado-membro em violação do Direito da União. Esta obrigação conhece apenas uma exceção, reiterada no Despacho Vapo Atlantic: um Estado-membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da UE quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por pessoa diferente do sujeito passivo e que o reembolso do imposto implicaria um enriquecimento sem causa deste último (Despacho Vapo Atlantic, §39-42; acórdão Weber’s Wine, processo C-147/01, §93-94).

 

87. Mesmo quando se prove a ocorrência de repercussão, a restituição do imposto ao sujeito passivo não consubstancia necessariamente um enriquecimento sem causa, porquanto o sujeito passivo pode sofrer prejuízos associados à diminuição das suas vendas, por comparação com produtos sucedâneos não sujeitos a idêntica imposição. A circunstância de a lei prever a repercussão não dispensa a AT ou o particular (consoante os casos) de demonstrar que essa repercussão ocorreu, cabendo a decisão ao órgão jurisdicional nacional decidir, a partir da livre apreciação dos elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44).

 

88. Em nome da autonomia processual dos Estados-membros, o Direito da União não reclama que o direito processual dos Estados-membros preveja um mecanismo de reação do suportador económico do imposto (o adquirente ou comprador) diretamente junto das autoridades fiscais dos Estados-membros, desde que este possa exercer uma ação civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso não seja na prática impossível ou excessivamente difícil (acórdão Danfoss, processo C-94/10, §29). No entanto, caso a reparação do dano sofrido pelo comprador que suportou o encargo económico do imposto indevido nele repercutido se revelar impossível ou excessivamente difícil, o princípio da efetividade exige que esse comprador tenha a possibilidade de dirigir o seu pedido de indemnização diretamente contra o Estado, sem que este possa validamente opor-lhe a falta de nexo direto de causalidade entre a cobrança do imposto indevido e o dano sofrido pelo comprador (idem, §38).

 

89. Tudo isto a demonstrar que, mesmo aqueles Estados-membros que não confiram legitimidade direta ao adquirente / comprador, terão, em certas circunstâncias, de acautelar vias processuais que permitam a restituição do imposto, não podendo, nesses casos, invocar obstáculos jurídicos à compensação do dano sofrido. Ou seja, na eventualidade de a ação civil de restituição do indevido tornar impossível ou excessivamente difícil a recuperação do que foi indevidamente suportado, o Estado-membro tem de estar preparado para receber e dar satisfação ao pedido de reembolso, não lhe bastando alegar que não houve repercussão do imposto sobre o adquirente / comprador, ou – acrescente-se – que não lhe é possível identificar os atos de liquidação do imposto a montante praticados.

 

90. Por outro lado, o Direito da União não se opõe a que o suportador económico do imposto possa obter diretamente das autoridades fiscais nacionais a restituição do montante de imposto cujo encargo suportou, caso em que a questão do reembolso ao sujeito passivo (prestador ou fornecedor de bens e serviços) não chega, dessa forma, a colocar-se (acórdão Comateb, processo C-192/95 a C-218/95, §24).

 

91. Finalmente, nada obsta a que o Estado-membro preveja vias processuais que assegurem ao adquirente / comprador recuperar o imposto indevidamente suportado diretamente junto das autoridades fiscais nacionais. O entendimento amplo de legitimidade processual constante do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT, que abrange qualquer pessoa que possa dizer-se diretamente afetada pelo que no processo possa vir a ser decidido, dá arrimo à pretensão do adquirente / comprador. Por essa razão, de nada vale evocar o dito do Tribunal de Justiça no acórdão Danfoss, processo C-94/10. O que aí se diz é que o direito da União não obriga os Estados-membros a assegurar uma via processual direta em benefício do comprador / adquirente, desde que assegurada uma ação civil de repetição do indevido. Mas não inibe, bem entendido, os Estados-membros de consagrarem uma tal via processual de reação, no exercício da autonomia que lhes é reconhecida nestas matérias. E é isso que, no entender do Tribunal arbitral, acontece no caso português.

 

92. O Tribunal arbitral deu como provada a repercussão da CSR sobre as Requerentes, pelas razões expostas na fundamentação da matéria de facto. Conforme jurisprudência reiterada do Tribunal de Justiça, a repercussão de um imposto – legal ou não – é uma questão de facto, sobre a qual não recai qualquer presunção nem em benefício da AT nem em benefício da Requerente. Pelas mesmas razões, o Tribunal arbitral não deu como provado que a Requerente tenha transferido para o preço dos bens ou serviços prestados aos seus clientes os montantes suportados a título de CSR nas aquisições de combustível. Considerou, concretamente, que se a prova junta aos autos, apreciada à luz das regras da experiência e da prática e tendo em conta o setor económico em causa, aponta no sentido de que o sujeito passivo do imposto – a B..., S.A. – repercutiu a CSR sobre o adquirente de combustível, não demonstra, todavia, que a Requerente tenha repercutido sobre os seus clientes o imposto suportado na aquisição de combustível.

 

93. Por estas razões, mostra-se constituído na esfera jurídica da Requerente o direito ao reembolso do imposto ilicitamente liquidado, suportado por intermédio da repercussão legal. Atenta a incompatibilidade do regime jurídico da CSR com o DUE, nos termos já expostos, o Tribunal arbitral julga totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando as liquidações de CSR, com todas as suas consequências.

 

  1. Juros indemnizatórios

 

94. A par do pedido de anulação das liquidações de CSR, e do consequente reembolso da importância que indevidamente pagaram em excesso, a Requerente pede ainda que se lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, c) da LGT (pontos 101.º a 108.º do PPA).

 

95. Dispõe o n.º 1 do artigo 43.º da LGT que “[S]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. Na al. c) do n.º 3 do mesmo preceito pode ler-se o seguinte: “São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (...) c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.

 

96. Ora, conforme resulta de tudo quanto vem de ser dito, as liquidações (agora anuladas) assentaram em erro imputável aos serviços, da qual resultou o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

97. Assim, tendo havido um pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação (agora anulados), os juros indemnizatórios são devidos desde a data em que se se tenha completado um ano sobre a formulação do pedido, de acordo com o disposto na al. c) do n.º 3 do mesmo preceito, conforme jurisprudência firmada (cf., entre outros, os acórdãos do STA de 20.05.2020, processo 05/19.8BALSB, prolatado pelo pleno da Secção de contencioso tributário; e de 03.06.2020, processo n.º 018/10.5BELRS 095/18).

 

98. Alicerça o STA este arrazoado na circunstância de o contribuinte, podendo ter obtido anteriormente a anulação do ato de liquidação, se ter temporariamente desinteressado da recuperação do que foi liquidado em excesso pela administração tributária, até à apresentação do pedido de revisão oficiosa «(...) A reposição da legalidade poderia ter sido provocada por iniciativa do contribuinte que a não desenvolveu, o que justifica que o direito a juros indemnizatórios haja de ter uma extensão mais reduzida por contraposição à situação em que o contribuinte suscita a questão da ilegalidade do acto de liquidação imediatamente após o desembolso da quantia em questão, nomeadamente nos três meses seguintes ao termo do prazo de pagamento voluntário usando o processo de impugnação do acto de liquidação» – cf. acórdão do STA de 11.12.2019, processo 058/19.9BALSB.

 

99. O STA não tem subtraído a esta jurisprudência as situações em que o pedido de revisão oficiosa tem por base um erro de direito, por aplicação de normas de direito interno incompatíveis com o Direito da União (na sequência de uma decisão do Tribunal de Justiça em sede de reenvio prejudicial), como acontece no presente caso (cfr., por exemplo, o acórdão do Pleno da secção de contencioso tributário do STA de 24-01-2024, processo n.º 0108/23.4BALSB). Além disso, não devem distinguir-se, para efeitos de aplicação da alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, as situações em que é deduzido o pedido de revisão e a administração revê o ato mais de um ano após a dedução desse pedido, daquelas em que a administração não revê o ato, mas este vem a ser anulado judicialmente após mais de um ano a contar desse pedido.

 

100. Uma vez que o pedido de revisão oficiosa deu entrada em 27-04-2023, conclui-se que são devidos juros indemnizatórios a partir de 27-04-2024.

 

V- Decisão

De harmonia com o exposto, o Tribunal arbitral decide:

a) Julgar improcedentes as exceções suscitadas pela AT;

b) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

c) Anular as liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário subjacentes às faturas indicadas no documento n.º 02 e sistematizadas no documento n.º 01, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, emitidas pela B..., S.A. no período compreendido entre março de 2019 e dezembro de 2022, bem como os atos de repercussão consubstanciados em cada uma destas faturas;

d) Julgar procedente o pedido de reembolso de quantias indevidamente pagas formulado pela Requerente, quanto ao valor de € 50.913,17, e condenar a Administração Tributária a pagar-lhe essa quantia;

e) Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a AT a pagá-los à Requerente a partir de 27-04-2024.

 

Valor da causa: € 50.913,17 nos termos do disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Custas: Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2 142,00, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

CAAD, 29 de julho de 2024

 

O Árbitro

 

 

(Marta Vicente)

 



[1] Cf., igualmente, os acórdãos do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T; de 03-08-2022, processo n.º 629/2021-T; de 16-01-2023, processo n.º 305/2022-T; de 09-02-2024, processo n.º 490/2023-T; de 01-02-2024, processo n.º 332/2023-T; de 14-05-2024, processo n.º 790/2023-T, entre outros.

[2] O artigo 2.º do CIEC tem agora a seguinte redação: “Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”. Conclusão para que já antes apontava o artigo 93.º-A do CIEC, que se refere abertamente ao “imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos suportado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros”.