SUMÁRIO:
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A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) é um tributo que se qualifica como “imposto” e não como “contribuição”, pelo que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar matérias a ela respeitantes.
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Os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de actos de liquidação de CSR e já não de actos de repercussão daquele imposto.
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A Requerente não suportou o encargo da CSR por repercussão legal, pelo que carece de legitimidade processual para contestar a legalidade dos actos de liquidação daquele imposto.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Prof. Dra Carla Castelo Trindade (árbitro-presidente), Dr. Fernando Miranda Ferreira e Dr. David de Oliveira Silva Nunes Fernandes, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem Tribunal Arbitral, constituído em 06-02-2024, acordam no seguinte:
1. Relatório
“A..., S.A”., NIPC..., com sede na Rua..., ...‐... ..., Castelo Branco (doravante, «Requerente»), apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a declaração da «ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e a gasolina adquiridos pela Requerente no decurso do período compreendido entre abril de 2019 e dezembro de 2022, e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva fornecedora de combustíveis, determinando-se, nessa medida, a sua anulação, com as demais consequências legais, designadamente, com o reembolso a requerente de todas as quantias suportadas a esse título, acrescidas dos respetivos juros indemnizatórios».
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 28-11-2023.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 06-02-2024.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que suscitou as seguintes excepções:
- incompetência do Tribunal em razão da matéria
- ilegitimidade processual e substantiva da Requerente
- ineptidão do pedido arbitral – da falta de objeto
- falta de interesse em agir por parte da Requerente
- Incidente de intervenção provocada
- caducidade do direito de ação
- falta de pagamento dos valores a título de CSR por parte da Requerente
Para além disso, a AT defendeu, por impugnação de mérito, a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Por despacho de 27-02-2024, foi a Requerente notificada para responder às exceções invocadas pela AT e para identificar e juntar aos autos as liquidações de CSR contestadas.
Por requerimento de 11‑03‑2024, veio a Requerente exercer o contraditório, sem, contudo, identificar e juntar as liquidações contestadas.
Por despacho de 13-03-2024, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, facultando prazo para alegações.
Apenas a Requerida apresentou alegações escritas.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
- A Requerente é uma sociedade de direito português, com sede e direcção efetiva em Portugal;
- A empresa B... S.A. comercializa combustíveis;
- Durante o período compreendido entre abril de 2019 e dezembro de 2020 a Requerente adquiriu à B..., 2.326.145,00 de litros de gasóleo rodoviário, tendo sido emitidas as faturas correspondentes;
- A Requerente apresentou pedidos de revisão oficiosa das liquidações, praticadas pela AT, com base nas DIC submetidas pela empresa fornecedora, por entender ilegais os atos de liquidação de CSR que lhes estão subjacentes, e, bem assim, dos consequentes atos de repercussão da referida CSR;
- Os pedidos de revisão oficiosa, apresentados em 27 de abril e 25 de maio de 2023, não foram decididos até á data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
Não há factos relevantes, nos termos do sentido decisório da causa, que não se tenham provado.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
O Tribunal Arbitral, tem o dever de selecionar os factos pertinentes para a decisão da causa, com base na sua relevância jurídica e tendo em consideração as várias soluções plausíveis das questões de Direito suscitadas pelas partes, bem como o dever de discriminar os factos provados e não provados. Porém, o Tribunal Arbitral não tem um dever de pronúncia quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes, em conformidade com o disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e nos artigos 596.º, n.º 1 do CPC e 607.º, n.º 3, ambos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Assim, o Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados e não provados, atenta a posição das partes e através do exame de todos os elementos probatórios carreados aos autos, que foram apreciados e avaliados com base no princípio da livre apreciação e regras da experiência, normalidade e racionalidade. Tudo em conformidade com os ditames fixados nos artigos 16.º, alínea e) do RJAT e 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
3. MATÉRIA DE DIREITO
Importa apreciar prioritariamente as excepções, começando pela de (in)competência, que é de conhecimento prioritário [artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT].
3.1. Apreciação das Excepções
3.1.1. Argui a AT, no respeitante (e, em suma, face ao sentido decisório):
3.1.1.1. A espécie tributária da CSR é qualificada como contribuição financeira e não como imposto, pelo que está excluída do âmbito material da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (“Portaria de Vinculação”), tal como entenderia o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 29 de Maio de 2023, no processo n.º 31/2023-T.
- A incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido das Requerentes resulta ainda do facto de esta questionar a conformidade jurídico-constitucional do regime jurídico da CSR no seu conjunto, tendo em vista a suspensão da eficácia de atos legislativos aprovados por Lei da Assembleia da República no exercício das suas competências, o que extravasa as competências dos Tribunais Arbitrais previstas nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, as quais são de natureza exclusivamente anulatória.
- Neste sentido, verifica-se, em seu entender, a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral que determina a absolvição da Requerida da instância nos termos do disposto nos artigos 576.º e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi da alínea e), do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT.
3.1.1.2 Da leitura do pedido arbitral e documentos anexos apresentados pela Requerente resulta que nunca e em momento algum indica a Requerente qualquer ato tributário, limitando‑se, a identificar faturas de aquisição de combustíveis à sua fornecedora, sem, no entanto, identificar os atos tributários.
Salienta que o artigo 429.º do CPC se refere a documentos, e não à questão de identificação e invocação por parte da Requerente de quaisquer atos ou factos que têm obrigatoriamente de ser invocados na petição inicial/pedido arbitral sob pena de ineptidão da petição inicial/pedido arbitral.
Pelo que era (e é) exigido à Requerente que identifique os atos tributários impugnados, que formule uma pretensão concreta por referência a esses atos devidamente identificados e indique os factos essenciais e concretos que alegadamente justificam a sua pretensão.
Por todo o exposto, refere, verifica-se a exceção de ineptidão da petição inicial, na medida em que o pedido arbitral não identifica qualquer ato tributário, violando o requisito da al. b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, o que determina a nulidade de todo o processo, e, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, dá lugar à absolvição da instância, conforme artigos 186.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. b) e 278.º, nº 1, al. b), do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º do RJAT, devendo, consequentemente, determinar-se a nulidade de todo o processo e a absolvição da Requerida da instância.
3.1.1.3. O direito à revisão oficiosa ou ao reembolso por erro não é conferido às entidades em que alegadamente foi repercutido o imposto, como é o caso das Requerentes, que não estão abrangidas na incidência subjetiva da CSR, como vem definida no já referido artigo 4.º do CIEC, aplicável ex vi do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007.
Apenas, se esse meio fosse impossível ou excessivamente difícil, entre outras causas por insolvência do repercutente, em conformidade com a jurisprudência do TJUE no acórdão Danfoss A/S, proferido em 20 de Outubro de 2011, no processo n.º C94/10, impossibilidade ou desproporcionada onerosidade que as Requerentes não provaram, seria eventualmente possível a impugnação da repercussão pelo repercutido seria legalmente possível.
No seu entendimento, verifica-se, pois, entre o mais, também, a excepção de ilegitimidade, com a consequente absolvição da Requerida da instância nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, alínea d), 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º todos do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 2.º, alínea e), do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), de todos os pedidos.
3.1.2. A Requerente, notificada para exercer o direito ao contraditório, sustenta, o seguinte, (também, em suma, face ao sentido decisório):
3.1.2.1. Incompetência relativa do tribunal arbitral em virtude da violação da portaria de vinculação e incompetência absoluta em razão da matéria.
Como foi possível verificar, a CSR é exigida, essencialmente, com o objetivo de “repercutir nos respetivos utilizadores os custos inerentes à gestão da rede rodoviária nacional, tendo em atenção o percurso que estes realizam consumindo uma unidade de medida de combustível”.
Neste contexto, parece dever-se concluir, sem mais, pela subsunção da CSR no conceito de contribuição especial por maiores despesas, “em que é devida uma prestação em virtude das coisas possuídas ou da atividade exercida pelos particulares darem origem a uma maior despesa da entidade pública” (cf. ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal, Vol. I, Lisboa, pp. 57-58), ou seja, quanto maior for a utilização da rede rodoviária nacional (mensurada pelo maior consumo de combustível por parte do respetivo utilizador), maiores serão os custos de gestão da mesma e, nessa medida, maior será o encargo a suportar a título de CSR.
Ora, a esta luz, verifica-se que a CSR consubstancia uma prestação devida pelo grupo de presumíveis utilizadores da rede rodoviária nacional (identificados por via do seu consumo de combustível) na medida em que essa utilização dê origem a presumíveis maiores despesas de gestão da respetiva rede rodoviária, preenchendo, também por esta via, o conceito de contribuição especial.
Em suma, fica demonstrado que a CSR deve, atenta a sua qualidade de contribuição especial por maiores despesas (segregada pelo legislador constitucional de 1997 do conceito de contribuições financeiras consagrado na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa), ser perspetivada como um verdadeiro imposto, quer em sede constitucional, quer, consequentemente, em sede infraconstitucional.
Consequentemente, impõe-se concluir que todos os atos tributários relacionados com a CSR – como sucede com os atos objeto da presente ação – serão plenamente arbitráveis nos termos dos artigos 2.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, e 2.º do RJAT, improcedendo, em conformidade, a exceção de incompetência material invocada pela AT.
3.1.2.2. Competência material do presente Tribunal Arbitral para promover a apreciação da ilegalidade abstrata dos atos contestados.
Infirmando a indicada exceção de incompetência alegada pela Requerida, importa recordar que está em causa nos presentes autos a apreciação da ilegalidade de atos tributários de repercussão de CSR decorrentes da aplicação de um regime – o da CSR – comprovadamente desconforme com o direito da União, nos termos já decretados pelo TJUE.
Verifica-se que, no caso concreto, contrariamente ao que vem pressuposto na resposta da Requerida, a Requerente não visa através da presente ação arbitral a impugnação de quaisquer atos legislativos, mas, tão-somente, suscitar a (in)validade dos atos de repercussão de CSR praticados à luz de um regime comprovadamente desconforme com o direito da União (o regime da CSR), configurando este um caso paradigmático de ilegalidade abstrata suscetível de ser apreciado.
3.1.2.3. Ineptidão da PI
No âmbito de uma relação jurídico-tributária sujeita a repercussão legal (como a de CSR), os atos de repercussão legal consubstanciam atos tributários autonomamente sindicáveis por parte dos respetivos repercutidos (in casu, a Requerente), cabendo-lhes, ao abrigo do princípio geral de repartição do ónus da prova consagrado no artigo 74.º da LGT, o ónus de identificação e de comprovação dos pertinentes atos tributários de repercussão que pretendam contestar (corporizados nas faturas que lhes foram emitidas pelas entidades repercutentes), mas já não o ónus de identificação e de comprovação dos antecedentes atos de liquidação repercutidos, o qual caberá à própria Requerida.
Com efeito, no que se refere aos atos de liquidação de CSR, os mesmos foram praticados pela própria AT e notificados, tão-somente, às entidades fornecedoras de combustível (enquanto sujeitos passivos primários da relação jurídico-tributária subjacente e primeiros repercutentes do respetivo tributo), não tendo a Requerente (na sua qualidade de terceiro repercutido) acesso aos mesmos.
Ademais, sendo a Requerida a entidade incumbida de promover a liquidação da CSR, é esta quem está, na verdade, em condições de identificar os atos pressupostos pelos atos de repercussão, através dos meios ao seu dispor e ao abrigo dos respetivos poderes de indagação, averiguar a correlação entre os identificados atos de repercussão da CSR e o imposto liquidado, e, assim, proceder à específica identificação dos atos de liquidação de CSR aqui em causa (promovendo, nessa sequência, a sua junção aos presentes autos – tal como, aliás, vem requerido no pedido de pronúncia arbitral).
Por conseguinte, contrariamente ao que a Requerida invoca na sua resposta, não cabe à Requerente, mas antes à própria AT – caso considere necessário – proceder à concreta e específica identificação dos atos de liquidação de CSR objeto de repercussão, constituindo ónus da Requerente, apenas, indicar os elementos de que disponham para esse efeito [o que, de resto, a Requerente cumpriu de forma plena].
Assim, verifica-se que a Requerente, entidade terceira sobre as quais a CSR foi legalmente repercutida, veio, através desta ação arbitral, contestar, em primeiro lugar, a legalidade dos referidos atos de repercussão da CSR (corporizados nas faturas que lhes foram dirigidas pelas entidades fornecedoras de combustível), e, em segundo lugar, a legalidade dos antecedentes atos de liquidação de CSR (praticados pela AT e notificados, tão somente, às referidas entidades repercutentes), atos que estão na origem daquela repercussão legal e sem os quais a mesma não existiria.
Neste contexto, a Requerente juntou aos presentes autos todas as faturas emitidas pelas entidades fornecedoras do combustível por si adquirido – documentos que, conforme observado, corporizam os atos de repercussão cuja legalidade aqui se contesta −, juntamente com uma listagem com todos os elementos identificativos de tais faturas.
Consequentemente, no que aos atos de repercussão da CSR diz respeito – objeto principal do presente processo arbitral – nenhuma dúvida poderá subsistir de que os mesmos se encontram plena e devidamente identificados pela Requerente em cumprimento de todos os ónus probatórios que sobre si impendiam.
Improcede, portanto – de forma liminar –, a exceção de ineptidão da P.I. por falta de objeto que vem invocada pela Requerida, posto que o ónus de identificar e de juntar aos autos os atos que a AT considera em falta impende sobre a própria Requerida e, segundo, porque os atos de repercussão de CSR dirigidos à Requerente – os únicos de que foram destinatárias – se encontram devida e cabalmente identificados no pedido de pronúncia arbitral.
3.1.2.4. Sobre a legitimidade processual da requerente para apresentar pedidos de reembolso de CSR na qualidade de terceiro repercutido
Conforme resulta da letra da lei, a administração tributária, por sua iniciativa, pode (rectius, deve) promover a revisão oficiosa no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços, possibilidade essa que se torna extensiva, por força do n.º 7 do artigo 78.º da LGT, ao contribuinte no seu sentido mais lato, incluindo, portanto, aquele que (como a aqui Requerente) suporta, por determinação legal, o encargo económico do imposto.
Impõe-se, pois, concluir a Requerente tem legitimidade para sindicar, através do procedimento de revisão oficiosa regulado no artigo 78.º da LGT, a legalidade de atos tributários de liquidação de CSR, enquanto titular de interesse legalmente protegido, considerando-se que é na sua esfera patrimonial que se opera a repercussão desse tributo.
Em qualquer caso, qualquer interpretação que conclua pela inexistência do direito dos repercutidos legais (como é o caso da Requerente) a recorrer ao procedimento de revisão oficiosa regulado no artigo 78.º da LGT – ou que, considerando ser aplicável à CSR o regime especial de reembolso previsto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC (o que, não obstante, não se admite), exclua os repercutidos legais do respetivo âmbito subjetivo de aplicação – violaria, de forma grosseira, os princípios constitucionais do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, por não acautelar os direitos dos repercutidos (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa), e da igualdade, por discriminar negativamente os repercutidos relativamente aos demais sujeitos da relação jurídico-tributária de repercussão legal (artigo 13.º da CRP).
Cumpre decidir
3.3. É conhecida a forte divisão da jurisprudência do CAAD, nesta matéria, nomeadamente, em termo de procedência de exceções.
Assumimos, no entanto, a concordância, em larga medida, com o defendido no processo n.º 736/2023-T, (excecionando a ineptidão), que, pela sua apreciação exaustiva, pouco cabe acrescentar:
Competência material do Tribunal Arbitral
3.3.1. Quanto à competência deste Tribunal Arbitral, impõe-se, em primeiro lugar, aferir se, em termos gerais, o pedido formulado pelas Requerentes é arbitrável, isto é, se a apreciação de pretensões referentes à CSR se encontra ou não inserida no âmbito de competência material da arbitragem tributária.
Apesar de a jurisprudência do CAAD não ser uniforme sobre a arbitrabilidade de atos de liquidação de contribuições, certo é que a vinculação do competência material dos Tribunais Arbitrais apenas abrange a apreciação da legalidade de atos de liquidação de impostos e não dos tributos sem essa natureza, como as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas. Obviamente, não interessa para tal a designação da espécie tributária em concreto, mas a sua substância: historicamente o legislador deu a designação de contribuições a espécies tributárias que a doutrina e jurisprudência maioritárias qualificam de impostos, como é o caso das contribuições da entidade patronal para a segurança social e da extinta contribuição autárquica, ambas abrangidas pela reserva constitucional na criação de impostos.
Revela-se, pois, necessário, qualificar a CSR enquanto “contribuição” ou “imposto”, para daí extrair as necessárias consequências quanto à competência material deste Tribunal Arbitral. Esta análise tem sido amplamente discutida e desenvolvida pela jurisprudência, que importa aqui considerar em cumprimento do desiderato de interpretação e aplicação uniforme do direito que emana do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.
Nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 31/2023-T, 508/2023-T e 520/2023T a CSR foi qualificada como uma contribuição, o que levou aqueles Tribunais Arbitrais a julgar procedente a exceção de incompetência material. No acórdão proferido em 16 de Novembro de 2023, no processo n.º 520/2023-T, referiu-se a este respeito o seguinte:
“(…) nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.
Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considera «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma atividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.
No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma atividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspetiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.”.
Em sentido contrário, entre outras, pronunciaram-se, os Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T, 410/2023T, 467/2023-T e 491/2023-T que qualificaram a CSR como imposto e, consequentemente, consideraram-na arbitrável. Por todos, cita-se nesta sede o acórdão proferido em 24 de Outubro de 2023, no processo n.º 644/2022-T, que registou a este respeito o seguinte:
“Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coativo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto.
Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspetividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT.
Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito ativo respetivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspetividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).
Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da atividade da Infraestruturas de Portugal. Na sua conceção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.
Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada,(a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008 (…)
Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respetiva natureza.
Não há, nesse ponto, qualquer paralelo entre a CSR e a CESE (Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético), relativamente à qual uma decisão arbitral (Proc. n.º 714/2020-T) entendeu procedente a excepção de incompetência ratione materiae. A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária cuja receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, tendo por base, portanto, uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional, o que configura uma bilateralidade genérica ou difusa – que pura e simplesmente não encontramos na CSR.”
Acompanha este Tribunal Arbitral a jurisprudência maioritária que qualifica a CSR como um imposto sobre o consumo de combustíveis e não como uma taxa ou contribuição financeira a favor da Infra-estruturas de Portugal. Tal qualificação resulta, não apenas do direito nacional, como do princípio do primado do direito comunitário, consagrado no n.º 3 do artigo 8.º da CRP e do efeito direto da norma do n.º 2 do artigo 1.º da Diretiva n.º 2007/118/CE, que pode ser invocado diretamente pelos tribunais junto dos tribunais nacionais como seria o caso da pretensão que originou o Despacho no processo n.º C-460/2021.
Para justificar que a CSR não é um imposto, as referidas Decisões Arbitrais invocam que a Lei n.º 55/2007 que destacou do CIEC a CSR, a designou como contribuição. O facto, no entanto, não é relevante.
A designação dessa prestação como imposto ou contribuição nada diz sobre a natureza jurídica da figura. Essa jurisprudência tem um sólido suporte doutrinário:
Na recolha de Casalta Nabais “Estudos sobre a Tributação dos Transportes e do Petróleo”, Almedina, Coimbra, 2019, pgs. 42-43, refere-se, a propósito da CSR (e de outras figuras aí referidas), “estarmos perante tributos que, atenta a sua estrutura unilateral, se configuram como efectivos impostos, muito embora dada a titularidade activa das correspondentes relações tributárias (e o destino da sua receita), tenham clara natureza parafiscal.”. Como o A. escreve em Direito Fiscal, 11.ª ed, Almedina, Coimbra, 2021, pp. 53-54, “o critério para a distinção entre os tipos de tributos [reporta-se] exclusivamente à estrutura da relação tributária, ao tipo de relação que se estabelece entre os respetivos sujeito ativo e passivo, e não à titularidade activa dessa relação (…) É, pois, a estrutura bilateral da relação jurídica, em que assentam tanto as taxas como as contribuições financeiras, que revela a natureza comutativa destes tributos….”
Procurando identificar os critérios de distinção das taxas, das contribuições financeiras, das contribuições especiais e dos impostos, Suzana Tavares da Silva, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, recorre, para a delimitação dos contornos das contribuições financeiras, aos critérios desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional Alemão: 1) incidir sobre um grupo homogéneo; 2) manter uma proximidade com a obrigação tributária e as suas finalidades; 3) corresponder a uma relação encargo/benefício capaz de demonstrar que as receitas geradas são fruídas pelos membros do grupo” (pg. 91).”
Segundo essa autora:
“(…) a CSR apresenta diferenças muito significativas em relação ao comum das contribuições financeiras, sejam elas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas” de regulação ou as “grandes contribuições” que foram surgindo a título transitório e se vão mantendo (Contribuição sobre o Sector Bancário, Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético - CESE, Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, …).
Em primeiro lugar, nessas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições”, o sujeito passivo é o contribuinte (na CESE há mesmo uma proibição da sua repercussão), enquanto que na CSR um e outro são diferentes: o sujeito passivo (quem tem de entregar o imposto ao Fisco) é o introdutor dos produtos no mercado e o contribuinte (quem tem de suportar a exação fiscal) é o adquirente dos combustíveis (incluindo, como a já citada jurisprudência arbitral evidencia, adquirentes de combustíveis que nada têm a ver com a utilização das estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal).
Em segundo lugar, o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas colectivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária. (…)
Em terceiro lugar, enquanto nas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições” é a pertença ao grupo que permite de imediato a identificação do devedor – sendo a indução de um custo ou a obtenção de um benefício presumida a partir dessa inclusão nele – na CSR não há nenhum grupo prévio a que se possa imputar o pagamento: é porque se paga a CSR que se supõe que se integra o grupo. (…)
Em quarto lugar, o princípio da equivalência – a que se recorre para conferir unidade de sentido às contribuições financeiras, equiparando-se o pagamento feito à repartição, tendencialmente idêntica (ou, pelo menos, com base em características dadas e estáveis), dos custos especificamente gerados pelo grupo homogéneo (ou dos benefícios auferidos pelo grupo homogéneo, como nas “taxas” das autoridades reguladoras, ou, forçando mais ou menos a nota, nas tais “grandes contribuições”) – assume na CSR uma ligação a um índice variável: o do consumo dos “grandes combustíveis rodoviários”. Com a agravante de o presumido benefício não ter uma relação direta com esse índice variável: por um lado, as vias da Rede Rodoviária Nacional (que foram concessionadas, em 2007, à EP - Estradas de Portugal, E.P.E.) não são a totalidade das estradas nacionais (além das auto-estradas concessionadas, e da rede municipal – urbana e rural –, o Plano Rodoviário Nacional prevê a transferência para as autarquias das estradas que não estejam nele incluídas). Noutras palavras: a utilidade proporcionada pela circulação nas estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal não é segmentável da que é proporcionada pelas demais; por outro lado, uma fração crescente dos utilizadores dessa sub-parcela das vias de circulação automóvel – a rede rodoviária nacional – não fica sujeita a essa “contribuição”: o dos utilizadores dela com veículos eléctricos ou velocípedes. (…)
Em quinto lugar, e não obstante – como já referido – não ser bom critério determinar a natureza de um tributo a partir da sua consignação material ou orgânica, certo é que a EP - Estradas de Portugal, E.P.E. só gastava o dinheiro em estradas (e no mais necessário a poder fazê-lo, incluindo as suas despesas correntes), mas, com a fusão, em 2015, com a Rede Ferroviária Nacional - REFER E.P.E. para dar origem à Infraestruturas de Portugal, isso deixou de ser assim.”.
Na mesma linha, Tribunal de Contas, a pp. 90 do seu Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2008, consideraria o seguinte:
“Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspetos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança.”.
A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) é, assim, um tributo que se qualifica como “imposto” e não como “contribuição”, pelo que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar matérias a ela respeitantes.
3.3.2. Questão da incompetência por a Requerente pretender a fiscalização da legalidade de normas em abstrato.
A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, o seguinte:
Considerando o teor do pedido e sua fundamentação, o mesmo extravasa o âmbito da Ação Arbitral prevista no RJAT, e em concreto do artigo 2.º, o qual não consente o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-legislativa do Estado, que, conforme decorre da restrição do perímetro desta forma processual à mera ilegalidade face a atos de liquidação de impostos, determina a exclusão do âmbito da jurisdição arbitral a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de atos praticados no exercício da função política e legislativa;
Isto é, a fiscalização da legalidade de normas em abstrato, sem enquadramento processual impugnatório de ato concreto de liquidação, não é da competência do tribunal arbitral.
A Requerente diz, em suma, que a ilegalidade abstracta das normas da Lei n.º 55/2007 se veio a traduzir em ilegalidade concreta das liquidações que aplicaram aquelas normas.
A AT parte do pressuposto errado de que a Requerente não impugna actos de liquidação. A Requerente impugna, não só os actos de liquidação praticados pela AT às empresas fornecedoras de combustível, bem como os subsequentes «atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas».
Assim, não está, em causa, a fiscalização abstracta da legalidade das normas que criaram e regularam a CSR, mas sim a fiscalização da legalidade concreta de actos que as aplicaram, o que se insere na competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, definida no artigo 2.º do RJAT.
Improcede, assim, esta excepção de incompetência.
3.3.3. Questão da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral
A AT defende a que o pedido de pronúncia arbitral é inepto por a Requerente não identificar os actos que são objecto do pedido arbitral, como exige a alínea b) o n.º 2 do artigo 10.º do RJAT.
Ora, o artigo 98.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, indica como uma das nulidades insanáveis em processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial.
Não indicando o CPPT as situações em que se deve entender que ocorre ineptidão da petição inicial, há que fazer apelo ao CPC, que é de aplicação subsidiária, nos termos do artigo 2.º, alínea e), daquele Código, e também o é no âmbito do processo arbitral tributário, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
No artigo 186.º, n.º 1, do CPC, indicam-se as seguintes situações de ineptidão da petição inicial:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
O n.º 3 do mesmo artigo estabelece que «se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial».
No caso em apreço é manifesto que a ineptidão arguida pela AT não se enquadra nas referidas alíneas b) e c), pelo que só se pode aventar o seu enquadramento na alínea a).
No que concerne à alínea a), não se estando perante uma situação de falta do pedido ou de causa de pedir, apenas se poderá enquadrar a arguição no conceito de inteligibilidade.
No entanto, percebe-se o que pretende a Requerente com os pedidos que formula:
– declarar a ilegalidade dos atos de liquidação de contribuição de serviço rodoviário emitidas pela AT, (com base nas DIC submetidas pela respetiva fornecedora de combustíveis), e os actos de repercussão nas facturas emitidas pelas sociedades fornecedoras de combustível, adquiridas no período mencionado.
– reembolso das quantias suportadas a esse título, acrescido de juros indemnizatórios.
Ora, não obstante a aparente falta de inequivocidade, (típica de outros actos mais, facilmente, sindicáveis), do pedido na PI, podemos verificar, que o mesmo mostra a intenção da autora - a qual foi apreendida pela AT - podendo o Tribunal concluir que, a ação terá o sentido correspondente à intenção de impugnar a decisão de indeferimento das Revisões oficiosas, pretendendo, mediatamente, a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários de liquidação de CSR (e actos de repercussão nas facturas a si emitidas).
De todo o modo, se fosse o caso, sempre estaríamos perante um pedido implícito, que, na conjugação do previsto no art. 186.º, n.º 3 do CPC, com a específica natureza do processo arbitral, leva a que a PI não seja considerada inepta, com as legais consequências.
Improcede, pois, a excepção da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral.
3.3.4. Repercussão
Avança-se, desde já, que a apreciação da legalidade de actos de repercussão de CSR extravasa o âmbito material da arbitragem tributária.
Os atos de repercussão materializam “um fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem”, tal como evidencia Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2ª edição , Coimbra, 2019. pg. 399.
Fenómeno este que não se subsume a nenhuma das realidades visadas pelo artigo 2.º do RJAT anteriormente transcrito, que determina que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de actos de liquidação (alínea a) do n.º 1) e de atos de fixação da matéria tributável/matéria coletável/valores patrimoniais na eventualidade de não terem originado qualquer ato de liquidação (alínea b) do n.º 1).
Com efeito, independentemente da posição que se adote sobre a natureza jurídica dos atos de repercussão – i.e., saber se são atos que integram uma relação jurídico-tributária complexa ou se são um fenómeno económico de natureza estritamente privada – certo é que aqueles não são atos tributários em sentido lato, porque não envolvem o apuramento da matéria coletável/tributável através da aplicação de uma norma tributária substantiva a um caso concreto e muito menos atos tributários de liquidação stricto sensu, que tornam certa, líquida e exigível a obrigação tributária através da operação aritmética de aplicação da taxa legal à matéria tributável previamente determinada (neste sentido vide Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Almedina, 2017, p. 278).
Este é, de resto, o entendimento que tem sido defendido pela jurisprudência que se pronunciou sobre o tema, concretamente pelos Tribunais Arbitrais constituídos nos processos n.º 296/2023-T, 375/2023-T, 332/2023-T, 408/2023-T e 467/2023-T. Por todos, reproduz-se nesta sede em reforço das considerações já realizadas, o excerto das conclusões a que chegou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 1 de Fevereiro de 2024, no processo n.º 296/2023-T:
“III.6. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem atos de repercussão
Como os Coletivos que decidiram os processos n.os 408/2023-T e 375/2023-T, o presente Tribunal arbitral entende que não tem competências para apreciar diretamente – e sem mais – actos de repercussão. Ainda que se possam integrar numa relação tributária complexa, tais atos ocorrem a jusante dos atos de liquidação e a competência que o legislador atribuiu aos tribunais arbitrais esgota-se – no que ao caso importa – na sindicância dos atos de liquidação. Isso decorre diretamente das normas legais, mas corresponde também ao ensinamento da doutrina: Alberto Xavier, distinguindo a substituição tributária da repercussão, escrevia que nesta temos “um devedor de imposto, que é do mesmo passo contribuinte, e um terceiro que não desempenha qualquer papel na obrigação tributária.”
Para Leite de Campos/Benjamim Rodrigues/Lopes de Sousa, entre o terceiro repercutido “e o sujeito ativo não existe vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do sujeito ativo. A sua obrigação não nasce da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga o direito de o sujeito passivo de repercutir e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar o sujeito passivo quando este exerça o seu direito. Daqui decorre, nomeadamente, que as relações entre o sujeito passivo e o repercutido inadimplente se regem pelo Direito privado.”
Da apreciação da legalidade da repercussão, em que repercutente e repercutido discutem a legalidade da transferência do encargo económico do primeiro para o segundo, seja por esta ser proibida por lei ou contrária às relações contratuais de direito privado estabelecidas entre repercutente e repercutido, distingue-se a legalidade da liquidação do imposto ao repercutido, que ao Tribunal Arbitral é lícito conhecer, desde que verificados os pressupostos da alínea a), do n.º 4 do artigo 18.º da LGT: legitimidade das partes e interesse em agir.
Em face do exposto, declara-se o presente Tribunal Arbitral incompetente, em razão da matéria, para conhecer o pedido de apreciação da legalidade de actos de repercussão de CSR, impondo-se a absolvição parcial da Requerida da instância quanto a este concreto pedido, em conformidade com o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) todos do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
3.3.5. (I)legitimidade das partes
Considerando que o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de CSR, se refere, às liquidações efectuadas às sociedades fornecedoras de combustíveis, porque subsumível ao âmbito material previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, interessa saber se tal impugnação pode ser feita pelas Requerentes, na qualidade de (alegadas) repercutidas, ou apenas por tais fornecedoras de combustíveis, enquanto sujeitos passivos a quem foi (alegadamente) liquidada e por quem foi (alegadamente) paga a CSR.
Parte da jurisprudência arbitral tem-se pronunciado no sentido da legitimidade do repercutido para impugnar as liquidações de CSR efetuadas ao repercutente (Decisões Arbitrais n.ºs 294/2023-T, 299/2023-T, 332/2023-T, 374/2023-T, 379/2023T, 409/2023-T, 410/2023-T, 467/2023-T, 490/2023-T, 491/2023-T, 496/2023T e 534/2023-T).
Outra parte tem-se pronunciado desfavoravelmente a essa legitimidade, abstendo-se, por isso, de decidir sobre o mérito (Decisões Arbitrais n.ºs 24/2023-T, 75/2023-T, 113/2023-T, 523/2023-T, 375/2023-T, 477/2023-T 644/2023-T, 467/2023-T e 702/2023T).
Cumpre, desde logo, referir, que nada interessa, para o caso, o facto de se considerar ter ou não havido repercussão do encargo da CSR (e que a mesma tenha sido suportada pela Requerente). Pois, a mesma seria, sempre, parte ilegítima para deduzir impugnação ou pedido de pronúncia arbitral pelos motivos que se passam a expor.
O artigo 15.º do CIEC reserva a legitimidade para requerer o reembolso do ISP e, inerentemente, da CRS aos sujeitos passivos do imposto enunciados no artigo 4.º do CIEC, ou seja, os operadores que introduzem no consumo os bens sujeitos a IEC e, em virtude da remissão do n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, com exclusão, assim, dos repercutidos.
A jurisprudência arbitral que sustenta a legitimidade do repercutido para impugnar a liquidação da CSR e o consequente direito a uma decisão de mérito da causa baseia-se na parte final da alínea a), do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, que, após declarar não ser sujeito passivo quem suporta o imposto por repercussão legal, admite que aquele goza do direito de reclamação, impugnação ou recurso de acordo com as leis tributárias.
O n.º 1, do artigo 20.º da CRP garante aos cidadãos o acesso a uma justiça fiscal plena, eficaz e efetiva que garante, entre outras consequências, o direito de reclamação, impugnação ou recurso não apenas dos atos formalmente administrativos, mas de todos os atos lesivos, independentemente da forma. Esse princípio não é, no entanto, incompatível com a necessidade da racionalização dos meios processuais, indispensável à eficácia da justiça: apenas exige que a cada direito ou meio processual corresponda, pelo menos, um meio processual adequado, a exercer conforme os casos junto dos tribunais para o fazer valer em juízo.
Apenas na repercussão legal e não na repercussão voluntária cuja fonte não é a lei, mas a vontade das partes, tal direito vem legalmente garantido ao repercutido: o facto de este não ter acesso à jurisdição arbitral por os repercutidos não integrarem o universo definido no universo definido no artigo 15.º do CIEC não prejudica, nesse caso, o acesso aos tribunais estaduais, comuns ou arbitrais.
Assim, tal possibilidade apenas pode ser exercida, desde que cumulativamente:
a) O repercutido tenha suportado efetivamente o imposto, o que é ao impugnante que cabe provar.
b) Quando a repercussão seja legal, no sentido de obrigatória ou resultar de um direito potestativo do repercutente da incorporação do imposto suportado no preço do bem.
Tenha-se em conta que, segundo a doutrina dos Acórdãos C-193/95 a C-218/95, mesmo na repercussão legal, o direito do repercutente, ainda que consagrado na lei, é renunciável, “maxime” por razões comerciais.
No direito interno, tal dever de repercussão legal, é imposto no artigo 37.º, n.º 1, do Código do IVA, ainda que com as exceções previstas no n.º 3 dessa norma legal, e no artigo 3.º do Código do imposto de Selo, mas não é imposto pelo CIEC, nem na Lei n.º 55/2007, nem se conhecem quaisquer medidas legais ou administrativas para operacionalizar tal dever.
Basta para haver repercussão legal que o sujeito passivo do IVA, que tenha procedido ao pagamento do imposto, poder exigir com fundamento na lei ao adquirente dos bens ou serviços o reembolso do imposto que tiver pago ao Estado.
O CIEC não impõe qualquer dever ou direito potestativo de repercussão aos operadores referidos no artigo 4.º, pelo que essa repercussão, pelo menos aquando dos factos sobre os quais incide o presente pedido de pronúncia arbitral, é meramente voluntária.
Tal repercussão – mesmo a acontecer – ocorreria, assim, dada a inexistência de qualquer dever ou faculdade jurídica de repercussão de, em geral, os fornecedores terem de refletir os custos suportados na sua atividade comercial que, por serem sociedades comerciais, visarem a obtenção do lucro (nesse sentido, ainda a Decisão Arbitral n.º 375/2023-T).
No mesmo sentido de que a repercussão nos impostos especiais de consumo é um fenómeno exterior à relação tributária, mas uma mera condição de legitimação, em virtude de a função última desses impostos ser fazer pagar o consumidor pelo custo social das suas escolhas, Sérgio Vasques e Tânia Carvalhais Pereira, Coimbra, 2016 “Os impostos especiais de consumo”, pgs. 104 e sgs.).
Também, sendo a repercussão voluntária, a AT carece de legitimidade processual passiva.
Segundo a jurisprudência consolidada do STA (Acórdão do Pleno de 4/2/2023, proc. 0506/17.2 BEALM, a propósito de outro caso de repercussão voluntária, não legal, a da taxa de ocupação do sub-solo) na impugnação judicial do ato de repercussão de um tributo intentada contra entidade pública, a legitimidade processual passiva é atribuída a quem seja imputável o ato impugnado, no caso o repercutente, não relevando tal entidade ser de direito público ou privado.
Sendo certo, que o artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022 é, uma norma falsamente interpretativa, mas materialmente inovatória (sobre o caráter falsamente interpretativo de norma de tipo idêntico, o artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que visa essencialmente contornar a proibição constitucional da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 104.º, n.º 3, da CRP, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 196/2021).
Na interpretação e aplicação do artigo 2.º do CIEC sempre foi entendido, antes da Lei n.º 24‑E/2022, que é um imposto de repercussão voluntária, entendimento subjacente ao Despacho do proc. C-460/2021.
De acordo com a referida alínea a), do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, em princípio, apenas o repercutido que não assuma a qualidade de sujeito passivo ou seja, o consumidor final que não adquire os bens e serviços no âmbito de uma atividade económica tem o direito de reclamar ou impugnar (artigo 9.º e alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT em conjugação com os n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT, cfr. António Carlos Santos e Clotilde Celorico Palma, Código do IVA e do RITI, Anotado e Comentado, Coimbra, 2014, Notas e Comentários de 347, e sgs.).
Em face de tudo o exposto, e sem necessidade de maiores considerações, julga este Tribunal Arbitral procedente a exceção de ilegitimidade da Requerente para deduzir pedido de declaração da ilegalidade das liquidações de CSR.
Fica prejudicada, porque inútil, em face do decidido, a apreciação das demais questões suscitadas no processo.
DECISÃO
Termos em que o Tribunal decide:
-
Julgar improcedente a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar atos de liquidação de CSR;
-
Julgar procedente a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade de atos de repercussão;
-
Julgar improcedente a exceção dilatória de ineptidão do pedido de pronúncia arbitral;
-
Julgar procedente a exceção de ilegitimidade da Requerente quanto ao pedido de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de CSR;
-
Em consequência, absolver a Requerida da instância.
-
Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º -A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €258.202,10 indicado pela Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €4.896,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 5 de agosto de 2024
Presidente do Tribunal Arbitral
(Carla Castelo Trindade, com declaração de voto em anexo)
O árbitro adjunto
(David de Oliveira Silva Nunes Fernandes, com declaração de voto em anexo)
O árbitro adjunto e relator
(Fernando Miranda Ferreira)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Sem prejuízo de acompanhar a decisão proferida por este Tribunal Arbitral de absolvição da Requerida da instância, voto parcialmente vencida por discordar do entendimento que fez vencimento quanto à concreta questão da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral. Com efeito, perfilho a posição que fez vencimento nos processos arbitrais n.ºs 467/2023-T e 736/2023-T, que integrei enquanto presidente e para onde remeto a fundamentação detalhada do tema, onde se julgou procedente a excepção dilatória de ineptidão do pedido de pronúncia arbitral por falta de objecto. Assim, também no presente processo teria julgado procedente esta nulidade insanável, que determina a absolvição da Requerida da instância arbitral, nos termos conjugados do artigo 98.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, do artigo 89.º, n.º 4, alínea b) do CPTA e dos artigos 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea b), do CPC.
Carla Castelo Trindade
Declaração David Oliveira Silva Nunes Fernandes (11 páginas)
Não acompanho o sentido da decisão, na exata medida em que teria julgado procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal arbitral – ainda que a reconduzindo a incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral -, ancorando-me em fundamentação anteriormente subscrita, nomeadamente, nos autos 508/2023-T (e plasmada em voto vencido nos autos 669/2023), a qual se reproduz infra nos segmentos relevantes, porquanto são plenamente aplicáveis nos presentes autos:
«O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixou como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária».
O Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior».
A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminado a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando dêem origem à liquidação de qualquer tributo, e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação.
No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio admitir que, no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, o âmbito da arbitragem tributária fosse limitado de harmonia com a vinculação.
Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» da seguinte forma:
Artigo 1.º
Vinculação ao CAAD
Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:
a) A Direcção-Geral dos Impostos (DGCI); e
b) A Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).
Artigo 2.º
Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
Artigo 3.º
Termos da vinculação
1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.
2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:
a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;
b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.
3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.
Desta legislação e regulamentação conclui-se que houve uma preocupação em limitar o âmbito da arbitragem tributária:
– na alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei de autorização legislativa admitia-se a possibilidade de nela ser incluída a generalidade dos litígios relativos a liquidação de tributos (inclusivamente os praticados pelos contribuintes) e de fixação de valores patrimoniais que podem ser apreciados em processo de impugnação judicial e o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária;
– no artigo 2.º do RJAT não se incluiu na arbitragem tributária o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária e estabeleceu-se no artigo 4.º, que a vinculação da Administração Tributária, que se reconduz a definição do âmbito da arbitrabilidade de litígios deveria ser efectuada por portaria;
– com a Lei n.º 64-B/2011, impôs-se que na portaria se indicassem o tipo e o valor máximo dos litígios, o que tem como corolário que nem todos os litígios abrangidos pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT;
– a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, limitou a vinculação aos serviços da Administração Tributária estadual e aos tribunais «que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida», com várias excepções.
A intenção legislativa de restringir o âmbito da arbitragem tributária em relação ao que foi permitido pela autorização legislativa resulta com evidência destes diplomas e é explicada pelas justificadas dúvidas que, no início da arbitragem tributária, se suscitavam sobre o possível inadequado funcionamento de um meio inovador de resolução de litígios em matéria tributária, bem patentes nas preocupações sentidas pelo Senhor Conselheiro Santos Serra, Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, na sessão de apresentação do novo regime de arbitragem fiscal, que ocorreu em Lisboa, no dia 14-12-2010:
Assim, e logo à partida, é preciso que o regime de arbitragem tributária ora constituído consiga afastar receios de que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais que sobre si recaem, e que façam letra morta dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes em matéria tributária, com a capacidade negocial diferenciada das partes a sobrepor-se ao princípio da tributação de acordo com a sua real capacidade contributiva.
A consciência dos riscos como fundamento das limitações do âmbito foi expressamente explicada pelo Senhor Prof. Doutor Sérgio Vasques (que desempenhava as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ao tempo em que foram emitidos o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), em texto publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD:
A arbitragem tributária, tal como contemplada no Regime da Arbitragem Tributária veio a apresentar âmbito mais estreito relativamente ao que figurava na autorização legislativa do orçamento do estado para 2010, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora que não vai sem os seus riscos. Foi também com precaução que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual se vinculou a administração tributária ao regime, impôs vários limites desde logo atendendo à especificidade e ao valor das matérias em causa, associando-se deste modo a Administração Fiscal a este mecanismo de resolução alternativa de litígios nos estritos termos e condições estabelecidos na Portaria».
Nos litígios em matéria de direito tributário está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que na vinculação se tomassem cautelas.
A arbitragem tributária poderia vir a ser um meio generalizado alternativo de resolução de litígios fiscais, mas, antes de serem dadas provas reiteradas da qualidade e isenção das suas decisões, a necessidade de protecção do interesse público e de assegurar a efectividade dos princípios essenciais da legalidade e da igualdade tributária que o enformam nesta matéria recomendava em 2011 e recomenda actualmente que se avance com cuidado, sem entusiasmos desmedidos, não deixando ao arbítrio dos cidadãos a opção livre e ilimitada por esse meio de resolução de litígios.
Essa cautela é especialmente aconselhada quando, por razões de celeridade, se optou por restringir os meios de impugnação e recurso das decisões arbitrais e, por isso, é menor do que nos tribunais tributários a viabilidade de correcção de possíveis erros de julgamento que sejam lesivos do interesse público.
Por isso se justificava em 2011 e se justifica ainda hoje que haja limitações ao acesso à arbitragem tributária, de forma de compatibilizar a utilização deste meio opcional de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público, assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.
A esta luz, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que o âmbito da vinculação seria definido por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, atribui-lhes um poder discricionário, para definirem a amplitude da vinculação da forma como entendam que melhor se prossegue o conjunto de interesses públicos cuja concretização está em causa, definição esta que não pode dispensar, naturalmente, a avaliação da verificação da existência das condições de ordem material e humana necessárias para a implementação deste novo regime.
Neste contexto em que havia uma evidente intenção de restringir o âmbito inicial da arbitragem tributária em relação à amplitude permitida pela lei de autorização legislativa, sendo consabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) e a Lei Geral Tributária (LGT) aludem a vários tipos de tributos, que designam como «impostos», «taxas» e «contribuições financeiras» [artigos 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 3.º, n.ºs 2 e 3, da LGT], a inclusão da palavra «impostos» na expressão «apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» contrastando com a referência mas abrangente a «actos de liquidação de tributos» que foi usada na alínea a) do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 3-B/2010 (autorização legislativa) para definir o âmbito da autorização, tem de ser interpretada expressão precisa da restrição que se pretendeu efectuar.
Na verdade, assente que a intenção legislativa era restringir o âmbito da jurisdição arbitral, se foi utilizada uma expressão com alcance restritivo para indicar o âmbito da restrição, tem de pressupor-se, presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), que se pretendeu restringir nos precisos termos, se não houver razões que imponham que se conclua que houve alguma deficiência na expressão do pensamento legislativo. Uma norma com alcance restritivo deve, em princípio, ser interpretada em termos estritos e não extensivamente, pois a ampliação do seu alcance estará presumivelmente ao arrepio do pensamento legislativo que a interpretação jurídica visa reconstituir (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).
Como se escreve no Acórdão n.º 539/2015, do Tribunal Constitucional:
«As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).
As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 221, e Suzana Tavares da Silva, em “As taxas e a coerência do sistema tributário”, pág. 89-91, 2.ª edição, Coimbra Editora)».
Por outro lado, quando foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que o Governo definiu o âmbito da vinculação à arbitragem tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava tributos com a designação de «contribuição» (designadamente, desde 2008, a contribuição de serviço rodoviário que aqui está em causa, e tinha já sido criada pelo artigo 141.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a contribuição sobre o sector bancário), pelo que não se pode aventar, com pertinência, que não se colocasse, no momento da emissão daquela Portaria, a necessidade esclarecer com rigor se o âmbito da vinculação abrangia ou não tributos com a designação de «contribuições».
A intenção governamental de afastar da vinculação à arbitragem tributária as pretensões relativas a contribuições é confirmada pela alteração efectuada ao artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2001 pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, em que se manteve a referência restritiva a «impostos», em momento em que a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava vários tributos com a designação de «contribuições», como, além da CSR e da contribuição sobre o sector bancário, a contribuição extraordinária sobre o setor energético (criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro) e a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (criada pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro).
Por outro lado, utilizando a Constituição e a Lei designações específicas para classificar os vários tipos de tributos, terá de se presumir também que, para efeito da definição das competências dos tribunais arbitrais, se pretendeu aludir à classificação que a legislativamente foi adoptada em relação a cada tributo e não à que o intérprete poderá considerar-se mais apropriada, como base em considerações de natureza doutrinal. A classificação de tributos especiais, designadamente para apurar se devem ser ou não tratados constitucionalmente como impostos é, frequentemente, uma tarefa complexa, objecto de abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional. Não há qualquer razão para crer, em termos de razoabilidade, que o legislador, que tem de se presumir que consagrou a solução mais acertada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), tivesse optado por impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais, em vez de optar pela identificação clara e segura dos tributos a que pretendeu aludir através da designação que legislativamente foi considerada adequada que, além do mais, se compagina melhor com a celeridade de decisões que se visou atingir com a criação da arbitragem tributária.
Para além disso, nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.
Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considerada «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.
No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.
Por outro lado, da relegação da definição do âmbito da vinculação para diploma de natureza regulamentar depreende-se que, subjacente à restrição que se pretendeu efectuar estarão também razões pragmáticas relacionadas com a criação das condições práticas para implementação do novo regime, que normalmente se reservam para diplomas de natureza executiva, como são as relativas à disponibilidade de meios humanos da Administração Tributária com formação adequada para a representarem adequadamente nos processos tributários que exijam formação mais especializada. Neste caso, pelas limitações ao âmbito da jurisdição arbitral que se fazem nas alíneas c) e d) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quanto a litígios relacionados com matéria aduaneira, entrevê-se que estarão razões desse tipo subjacentes a essas restrições à arbitrabilidade de litígios.
Tendo o poder discricionário para definir o âmbito da vinculação sido atribuído aos membros do Governo indicados no artigo 4.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 e não aos tribunais arbitrais, não podem estes substituir-se àqueles na definição do âmbito da jurisdição arbitral. Desde logo porque os tribunais não possuem o conhecimento de todos os elementos de natureza operacional que podem ter levado os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011. E, depois, porque foi a esses membros do Governo e não aos tribunais arbitrais que a lei atribuiu o poder de definir o âmbito da vinculação.
Pelo exposto, a interpretação correcta, alicerçada no teor literal deste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 e nas regras interpretativas que constam do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, mas tendo também em conta as «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), é a de que se pretendeu restringir a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios em que estejam em causa tributos legislativamente classificados como impostos ou explicitamente como tal considerados (como sucede com as «contribuições especiais» referidas no n.º 3 do artigo 4.º da LGT), com as excepções arroladas naquela norma.
Assim, é de concluir que não é abrangida pela vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, a apreciação de litígios que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas à CSR.
Pelo que se refere no acórdão arbitral proferido no processo n.º 146/2019-T, a falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de actos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.
Mas, está-se perante incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ( )], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação, prevista no artigo 4.º do RJAT.
Tendo esta incompetência sido arguida tempestivamente, na Resposta (artigo 18.º, n.º 4, da LAV), tem de concluir-se que procede, com esta fundamentação, a excepção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
Esta interpretação do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é compaginável com a Constituição, como já decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 545/2019, de 16-10-2019, proferido no processo n.º 1067/2018.»
Lisboa 5 de agosto de 2024
David Nunes Fernandes