Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 558/2023-T
Data da decisão: 2024-08-01  IRS  
Valor do pedido: € 52.403,41
Tema: IRS: retenção na fonte; colocação de lucros à disposição; facto gerador de imposto.
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SUMÁRIO

A redução da rubrica de Resultados Transitados por contrapartida da correcção de lançamentos e registos contabilísticos errados, não corresponde, de forma automática, à colocação de lucros à disposição dos sócios de uma sociedade por quotas e a ocorrência do correspondente facto gerador da obrigação tributária de retenção na fonte pela entidade que procedeu a esses movimentos contabilísticos.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O Árbitro João Marques Pinto, designado, em 13 de Setembro de 2023, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, que foi constituído em 03.10.2023, acorda no seguinte:

 

1.1. Relatório

 

A..., LDA. NIPC ..., com sede social na ..., ...-... ..., doravante identificada apenas por “Requerente”, veio, no dia 28.07.2023, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 2º e no artigo 10º do Decreto-Lei 10/2011 de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante identificado apenas pelas iniciais RJAT), requerer a constituição de TRIBUNAL TRIBUTÁRIO com designação do Árbitro pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, para Pronuncia Arbitral contra o acto de Liquidação Adicional de IRS com o nº 2023..., por falta de retenção na fonte, relativamente ao exercício de 2019, documento de liquidação a que foi dado o nº 2023..., com o valor de € 52.403,41 (cinquenta e dois mil quatrocentos e três euros e quarenta e um cêntimos), sendo € 45.124,20 (quarenta e cinco mil cento e vinte e quatro euros e vinte cêntimos) referente a imposto e € 7.279,21 (sete mil duzentos e setenta e nove euros e vinte e um cêntimos) correspondente a juros compensatórios.

A Requerente, no seu pedido, solicitou ao Tribunal Arbitral que julgue o pedido procedente e, em concreto, que:

  • Seja declarada ilegal e anulada a liquidação com o nº 2023..., de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares,  constante do documento de identificação com o nº 2023... e dos respectivos juros compensatórios;

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante, quando for o caso, identificada também pelas iniciais AT).

A Requerente optou por não designar Árbitro.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 28.07.2023, sendo essa constituição notificada à Requerida na mesma data.

Em 13.09.2023, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação do Árbitro, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 7 do Artigo 11º do RJAT.

Desta forma, em face do disposto no nº 8 do artigo 11º do RJAT, decorrido o prazo estabelecido no nº 11, do citado artigo 11º, e sem que as Partes se pronunciassem, o Tribunal ficou devida e formalmente constituído em 03.10.2023, tendo, no dia 04.10.2023, sido emitido despacho a notificar a Requerida para apresentar resposta ao pedido formulado pela Requerente e juntar aos autos o processo administrativo.

A AT apresentou a sua resposta ao pedido de pronuncia arbitral no dia 08.11.23.

Em 03.04.2024, foi proferido despacho arbitral com o seguinte teor:

Despacho Arbitral

Considere-se, sem efeito, os despachos proferido sna presente data, às 11.51 e às 12.51, devendo considerar-se apenas o despacho proferido às 16.02, cujos termos foram os seguintes:

Dispensa-se, por se considerar desnecessária, a produção de prova testemunhal e por consequência a realização da reunião a que se refere o artigo 18º do RJAT.

Dispensa-se a produção de alegações, uma vez que as questões a decidir são essencialmente de direito e as partes já deixaram expressas, nos respectivos articulados, as suas posições.

Deverá a Requerente proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, dando de tal conhecimento ao CAAD.

Prorroga-se, nos termos do artigo 21º do RJAT, pelo prazo de 2 (dois) meses, o prazo de prolação da decisão, tendo em consideração e complexidade e a natureza das questões suscitadas. A decisão será, pois, proferida, até ao dia 3 de Junho de 2024."

Notifique-se

No dia 2 de Junho foi proferido um novo despacho, com o seguinte teor:

Despacho Arbitral

Tendo em consideração a complexidade das questões contabilísticas e fiscais suscitadas pelas Partes, em particular pela Requerente, e a tecnicidade das peças apresentadas, prorroga-se, nos termos do artigo 21º do RJAT, o prazo de prolacção da decisão por mais dois meses.

Notifique-se.

 

1.2. Saneamento

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituido.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4º e 10º nº 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março) e estão devida e correctamente representadas.

O processo não enferma de qualquer nulidade.

 

  1. Factos considerados provados

 

- A Requerente é uma pessoa colectiva, constituída sob a forma de sociedade por quotas e residente, para efeitos fiscais, em Portugal, sendo, por isso, sujeito passivo de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC).

2º - Entre 10.11.2022 e 02.03.2023, a Requerente foi, no seguimento da Ordem de Serviço (OS) da AT com nº OI2022..., alvo de um procedimento de Inspecção Tributária externa promovido pela Direcção de Finanças de Viseu.

3º -  No final do referido procedimento inspectivo foi enviada, em 03.02.2023, uma Proposta de Relatório de Inspecção Tributária, onde se referia que iria ser liquidada à Requerente a quantia de € 45.124,20 (quarenta e cinco mil cento e vinte e quatro euros e vinte cêntimos) a titulo de IRS não retido na fonte sobre rendimentos pagos a terceiros, a que deveria acrescer o valor de € 7.279,21 (sete mil duzentos e setenta e nove euros e vinte e um cêntimos), correspondente a juros compensatórios, perfazendo um total de € 52.403,41 (cinquenta e dois mil quatrocentos e três euros e quarenta e um cêntimos), tendo sido conferido à Requerente o direito a exercer, no prazo de 15 dias, o seu direito de audição prévia.

4º -  A Requerente exerceu esse direito, tendo enviado a sua resposta, inicialmente, no dia 14.02.2023, por correio electrónico, e remetido, posteriormente, o correspondente original, por correio normal.

5º - Na versão final e definitiva do Relatório de Inspecção Tributária (RIT), notificado à Requerente em 03.03.2023, a AT não atendeu aos argumentos invocados pela Requerente tendo mantido a proposta de liquidação da quantia de € 52.403,41 (cinquenta e dois mil quatrocentos e três euros e quarenta e um cêntimos), bem como os fundamentos que, já na proposta de relatório, suportavam essa liquidação.

- Na sequencia deste RIT foi emitida a nota de liquidação com o nº 2023..., constante do documento de identificação com o nº  2023... no já referido valor de € 52.403,41 (cinquenta e dois mil quatrocentos e três euros e quarenta e um cêntimos).

- A Requerente impugnou este acto de liquidação, interpondo o presente pedido de pronuncia arbitral a que foi dado o nº 558/23-T.

 

1.4. Fundamentação da decisão sobre matéria de facto

A fixação da matéria de facto baseia-se no pedido formulado e nos documentos anexados pela Requerente e no que consta na resposta e no Processo Administrativo anexado pela Requerida aos autos.

 

 

2. Matéria de Direito

 

Fundamentos das posições das Partes

De uma forma resumida, as Partes vêm, no pedido de pronuncia e apresentado pela Requerente e na subsequente resposta deduzida pela Requerida, sustentar as respectivas posições, com os seguintes argumentos:

 

2.1. Posição da Requerente

A Requerente sustenta que o acto de liquidação em crise é ilegal, basicamente pelas seguintes ordens de razão:

  1. A Sociedade não distribuiu, aos seus sócios, qualquer tipo de rendimento suscetível de tributação em sede de IRS, pelo que, tendo em consideração a natureza deste imposto, não se verificou o correspondente facto gerador, pois este só será devido quando o rendimento é efectivamente disponibilizado aos seus beneficiários;
  2. Acresce que não se verifica uma condição prévia e indispensável para que o substituto fiscal, neste caso, a Requerente, possa ser considerada responsável pela entrega do imposto em substituição do beneficiário do rendimento, pois essa responsabilidade só será possível apurar e imputar, após a determinação do imposto efectivamente devido, a final, pelo substituído;
  3. Ou seja, considera a Requerente que é condição necessária e fundamental à responsabilização do substituto fiscal a que se verifique a liquidação prévia do imposto na esfera pessoal do substituído;
  4. A Requerida nunca identificou, em particular no RIT, os efectivos beneficiários do rendimento, limitando-se, a esse propósito, a identificar os sócios da Requerente, na proporção das respectivas participações no capital social, para, então, presumir que seriam estes os destinatários dessa distribuição.
  5. A responsabilidade do substituto tributário, neste caso da Requerente, só poderia ser apurada depois de determinado montante de imposto devido pelo substituído, pois esse valor dependeria de outros valores recebidos nesse ano, das deduções elegiveis de cada um, da composição do respectivo agregado familiar e todas as particularidades e singularidades da respectiva situação tributária;
  6. Ou seja, o substituto tributário só pode ser responsabilizado pelo pagamento do imposto após a liquidação prévia e apuramento do imposto na esfera patrimonial do substituído;
  7. As correcções efectuadas pela Requerente aos exercícios anteriores não visaram obter qualquer efeito fiscal favorável, tratando-se tão só, no seu entendimento, de meros acertos de registos contabilisticos nesses anos, que não podiam e não deviam ser imputados ao ano em que essas correcções foram efectuadas - 2019;
  8. Se fosse propósito da Requerente distribuir qualquer tipo de resultados/rendimentos aos seus sócios, sem impacto fiscal, teria simplesmente debitado as contas de suprimentos ou de prestações suplementares de sócios que, nesse exercício, registavam o valor agregado de € 1.739.810,77, muito superior, pois, ao valor sobre o qual incidiu a liquidação efectuada pela AT;
  9. A opção da Requerente pela regularização dos saldos de diversas contas, incluindo a conta com o IVDP, por correcção de resultados de exercícios anteriores, teve, assim, como principal propósito o de não afectar, através da criação de custos artificiais, os seus resultados do exercicio de 2019, pois tal implicaria a redução do seu lucro tributável e a correspondente diminuição do imposto (IRC) a pagar.

 

2.2. Posição da Requerida

 

Na sua resposta, a Requerida sustenta a legalidade do acto de liquidação, com os seguintes fundamentos:

  1. Os movimentos contabilísticos efectuados pela Recorrente e indicados no ponto IV do RIT, apesar de ter como contrapartida o crédito de contas de Fornecedores, de IVA e de “Outros Devedores e Credores diversos”, significou uma verdadeira distribuição de resultados a título definitivo aos sócios;
  2. A consequência fiscal desta distribuição é a constituição da obrigação de retenção na fonte a título definitivo do correspondente IRS pela entidade que tenha procedido a essa distribuição;
  3.  A Requerente nunca apresentou documentos justificativos para os lançamentos efectuados nas contas em que foram reconhecidas e realizadas as referidas regularizações.
  4.  Esta distribuição só não se teria verificado se a Requerente tivesse apresentado documentos justificativos dos movimentos efectuados e que dão suporte ao acto de saldar as contas 24346, 278142, 27819, 221129018 e de criar créditos nas contas 278116, 221129019 e 22111501929797;
  5. A diminuição do Capital Próprio no valor de € 161.157,84 averbada nos registos contabilísticos da Requerente representa, dessa forma, uma efectiva distribuição de resultados nesse exacto valor.
  6. Esses rendimentos, tendo em consideração o conceito amplo de incidência fixado nos  nºs 1 e 2, da alínea h) do artigo 5º do Código do IRS, e sufragado em alguma Jurisprudência (cf. Acórdão TCA Sul de 20 de Dezembro de 2012, Proc. 03410/09), devem ser qualificados como rendimentos de capitais, por significar uma verdadeira “vantagem económica”.
  7. O momento determinante para a tributação deste tipo de rendimentos é o momento em que os mesmos são colocados à disposição dos seus beneficiários e titulares, não devendo relevar, pois, o seu lançamento e registo contabilístico.
  8. A Requerida considera que cumpriu a sua obrigação de demonstrar que o valor em causa - € 161.157,84 – foi colocado à disposição dos sócios da Requerente, porquanto, da factualidade recolhida no procedimento de inspeção, foi possível apurar que houve, no exercício de 2019, uma diminuição do capital próprio da Requerente.
  9. Em jeito de conclusão, entende a Requerida que a Requerente não apresentou qualquer justificação para os lançamentos efectuados na conta de Resultados Transitados (Conta 56129), sendo que o valor correspondente à diminuição do Capital Próprio, deve ser considerado como uma distribuição efectiva de lucros, sujeito, como tal, a retenção na fonte a titulo definitivo, à taxa liberatória de 28% (cf. artigo 71º alínea a) do Código do IRS), a qual deve operar no momento da colocação, desses rendimentos, à disposição dos seus titulares.

 

  1. Questões em apreciação

 

A primeira e principal questão suscitada pela Requerente, no seu pedido de pronuncia arbitral consistiu em defender, como vimos, que o facto gerador que sustentou a liquidação ora em apreciação não ocorreu, uma vez que não houve qualquer colocação de fundos ou rendimentos à disposição dos seus sócios.

Efectivamente, de acordo com o artigo 5º nº 2 alínea h) e do artigo 7º nº 3 alínea a) ponto 2, os “lucros e reservas” ficam sujeitos a tributação apenas no momento em que são “colocados à disposição” dos seus beneficiários, que, neste caso, seriam, no entendimento da AT, os sócios da Requerente.

Ou seja, cabe ao Tribunal apurar, em primeira linha se foram, ou não, colocados lucros à disposiçao dos sócios da Requerente.

É, pois, decisivo, apurar o que o legislador pretendeu quando utilizou este conceito para fixar o momento em que nasce o facto gerador do imposto e a correspondente obrigação, neste caso, de a entidade que coloca esses rendimentos à disposição, os tributar, através do mecanismo da retenção na fonte a uma taxa liberatória e definitiva.

Este conceito tem sido objecto de apreciação em inúmeras decisões jurisprudenciais e também pela própria Doutrina.

Nesta última vertente, atente-se ao que refere o Professor José Guilherme Vavier de Basto na sua obra “IRS – Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Liquidos” (Coimbra Editora, 2008)

Considera o Ilustre Causidico que esse facto deve coincidir com o momento em que “o sócio tem o poder de facto de receber os lucros que lhe hajam sido atribuídos”.

No âmbito de uma participação societária, este entendimento parece dar a entender que a colocação à disposição apenas será efectiva se tiver havido uma deliberação da sociedade, em assembleia geral, a aprovar uma distribuição de lucros.

Tal parece resultar, aliás, do disposto nos artigos 31º e 217º do Código das Sociedades Comerciais.

Este último preceito impõe, aliás, que apenas decorridos 30 dias da data da deliberação é que o crédito do sócio se torna efectivo.

A este propósito, atente-se ao que vem dito no Acordão proferido no âmbito do Processo 733/2019-T:

“Como se referiu, a colocação à disposição dos associados de lucros ou adiantamentos por conta de lucros que a alinea h) do nº 2 do artigo 5º do CIRS configura como facto tributário que pressupõe um acto da sociedade que se possa concluir que esta decidiu transferir quantias para a disponibilidade dos sócios.” (sublinhado nosso)

No mesmo sentido, vai um Parecer emitido pela OCC sobre esta temática, onde se veio considerar que “a aplicação de resultados” têm de constar de acta da assembleia geral de sócios.

A Jurisprudência, em algumas decisões tomadas em situações em que os fundamentos invocados pela AT (ora Requerida) eram algo semelhantes aos que estão em apreciação por este Tribunal, tem considerado, por outro lado, que a obrigação de retenção na fonte depende de uma transferência efectiva de rendimentos para a esfera dos beneficiários, incrementando, dessa forma, a respectiva situação patrimonial.

Pelo que, nesses casos, ou o acto de decisão de distribuir resultados ou a transferência de fundos a favor dos beneficiários constituiem os verdadeiros factos geradores de imposto e o momento a partir do qual nascerá a obrigação da efectuar a retençao na fonte, pela aplicação da taxa liberatória de 28%, prevista no citado artigo 71º  do Código do IRS.

Veja-se, no que se refere a esta questão, o disposto no Acórdão proferido no âmbito do Processo 200/2018-T do CAAD, onde se considerou o seguinte:

Como se referiu, a falta de retenção na fonte invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que justifica a liquidação impugnada, não tem como pressuposto os contratos de mútuo, sendo seu fundamento a anterior disponibilização de quantias aos sócios”. (sublinhado nosso)

Em idêntico sentido, vai a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral no Processo 751/2022-T onde se entendeu que “Diferentemente, ficou demonstrado que, em razão das transferências bancárias, em beneficio dos sócios no montante global de € 125.000,00, foi reduzido nesse montante o saldo credor dos resultados transitados da Requerente....”. (sublinhado nosso)

Para, um pouco mais adiante, e ainda no âmbito do mesmo Acórdão, se concluir que:

“Nestes termos, como os elementos de facto dados como provados não permitem configurar qualquer devolução de suprimentos, mas sim a retirada de lucros acumulados em resultados transitados, com deslocação de valores da esfera patrimonial da sociedade para os sócios, o que constitui facto tributário, nos termos e para os efeitos do nº 1 e da al. h) do nº 2 do artigo 5º do Código do IRS, .......” (sublinhado nosso)

Ora, no âmbito deste processo, e nos termos do artigo 74º nº 1 da Lei Geral Tributária (“1 - O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.”), cabia à AT, fazer prova de que o facto gerador de imposto, enquanto elemento fundamental da constituição da obrigação tributária, tinha ocorrido.

Ou seja, cabia-lhe demonstrar, para além dos movimentos contabilísticos efectuados pela Recorrente e descritos no final do ponto IV do RIT , que tinha havido uma “deslocação” ou “transferência” efectiva dos fundos correspondentes para a esfera patrimonial desses beneficiários, ou que, pelo menos, teria sido aprovada, em assembleia geral da sociedade, essa distribuição de valores a favor dos sócios, conferindo-lhes um direito de crédito e colocando-os, dessa forma, à sua disposição.

Ora, em nenhum momento a Requerida fez essa demonstração, limitando-se a referir que a diminuição do valor inscrito na rubrica “Resultados Transitados” representava, de forma automática e independentemente de qualquer outro facto, a colocação de lucros à disposição dos sócios da Sociedade.

Ou seja, considera este Tribunal que a AT deveria ter feito prova de que forma e quando esses valores tinham sido transferidos para a esfera patrimonial dos seus beneficiários, se por transferência, se por compensação de outros créditos, ou até, no limite se foram feitos directamente pelos fornecedores da Requerente para os seus sócios. 

Até porque, e apesar desta não ser uma questão que deva ser apreciada directamente por este Tribunal, porque não será fundamental para o sentido da sua decisão, os movimentos contabilísticos de regularização efectuados pela Requerente obedeceram aos procedimentos previstos nas normas contabilísticas aplicáveis à correcção de erros em exercícios anteriores.

Na verdade, de acordo com a Norma Contabilistica e de Relato Financeiro nº 4 (NCRF 4), as correcções de erros materiais em demonstrações financeiras de períodos anteriores, devem ser efectuadas através do procedimento de reexpressão retorspectiva,

Assim, quando esses erros afectem resultados de periodos anteriores, sendo situações materialmente relevantes, devem ser imputados à conta de Resultados Transitados, de forma a que, no período em que a correcção é feita, o efeito desse erro material, com influencia nos resultados de períodos anteriores, passando a estar reflectido nos resultados transitados, na medida em que decorre da correcção nos resultados desses exercícios anteriores.

Em face de tudo o exposto, não tendo a Requerida, como ficou dito, feito prova que os valores que foram deduzidos ou abatidos aos Resultados Transitados da Requerente por contrapartida de correcções de erros feitos em exercícios anteriores, foram, em algum momento e sob qualquer forma colocados à disposição dos beneficiários/sócios da Requerente, considera este Tribunal  que o facto gerador de imposto, ou seja, da retenção na fonte a efectuar pela Requerente, não se verificou, devendo, em consequência, a liquidação objecto de impugnação, ser anulada.

Em resultado da presente decisão, fica prejudicada a apreciação das restantes questões de direito suscitadas pelas Partes.

 

4. Decisão

Termos em que se decide, julgar, procedente o pedido de pronuncia arbitral, e em consequência:

  1. Anular o acto de Liquidação Adicional de IRS e respectivos juros compensatórios, com o nº 2023..., decorrente da falta de retenções na fonte, relativamente ao exercício de 2019, e constante do documento de identificação com o nº  2023... no já referido valor de € 52.403,41 (cinquenta e dois mil quatrocentos e três euros e quarenta e um cêntimos);
  2. Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

5. Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 52.403,41 (cinquenta e dois mil quatrocentos e três euros e quarenta e um cêntimos), que não foi objecto de contestação pela Requerida, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

 

6. Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2 142.00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 1 de Agosto de 2024

 

O Juiz Singular

                                                                      

Dr. João Marques Pinto