Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Nuno Miguel Morujão e Dr. Sérgio Santos Pereira (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 28-05-2024, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., fundo de investimento constituído ao abrigo da lei dos Estados Unidos da América, com sede em ..., ... ..., Estados Unidos da América, com o número de contribuinte fiscal americano ... e com o número de contribuinte fiscal português..., representado pela sua entidade gestora B..., sociedade de direito norte-americano, com sede em ..., ..., Estados Unidos da América, com o número de contribuinte fiscal americano..., veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação dos actos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) de 2020, consubstanciados nas guias n.º ... e n.º ..., referentes aos períodos de Maio e de Julho de 2020, bem como a anulação do despacho de indeferimento proferido pelo Diretor de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, datado de 14-12-2023, no âmbito do processo de reclamação graciosa n.º...2022... .
O Requerente pede ainda a restituição da importância que considera indevidamente retida, com juros indemnizatórios.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 18-03-2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 08-05-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 28-05-2024.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Por despacho de 02-07-2024, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e o Tribunal é competente.
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
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O Requerente é um fundo de investimento mobiliário constituído e a operar de acordo com o direito norte-americano (documento n.º 1 junto com a reclamação graciosa cujo teor se dá como reproduzido);
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A gestão do Requerente é levada a cabo pela B... (documento n.º 1 junto com a reclamação graciosa);
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Em 2020 o Requerente era residente, para efeitos fiscais, nos Estados Unidos da América (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 2020 o Requerente auferiu dividendos da sua participação no capital social das sociedades C... e D... SGPS, com sede em Portugal (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Os dividendos auferidos pelo Requerente em 2020 foram objecto de retenção na fonte a título definitivo, à taxa de 15%, como se discrimina na tabela infra:
(documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, corrigido com aplicação da taxa de 15% em vez de 25%);
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A retenção na fonte foi efectuada pelo E..., sendo as quantias retidas entregues ao Estado com as guias n.ºs ... e ... (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral e ponto IV da informação em que se baseou o indeferimento da reclamação graciosa);
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O Requerente não deduziu nos EUA o imposto retido na fonte em Portugal (declaração de rendimentos referente ao exercício de 2020 (Schedule J), que consta do documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 15-06-2022, o Requerente apresentou reclamação graciosa dos actos de retenção na fonte referidos (processo administrativo);
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Em 17-11-2023, o Requerente foi notificado do projeto de indeferimento da reclamação graciosa (documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido)
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Em 18-12-2023, o Requerente foi notificado da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, proferido em 14-12-2023, pelo Director Adjunto de Direcção de Finanças de Lisboa (documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido),
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Na fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa refere-se, além do mais, o seguinte:
IV-DESCRIÇÃO SUCINTA DOS FACTOS
7Relativamente à entrega de imposto retido nos cofres do estado português pelo substituto tributário i(E... S A, com o NIF...), consultada a declaração modelo 30(declaração de rendimentos pagos ou colocados à disposição de sujeitos passivos não residentes), verifica-se que as guias identificadas pelos n.ºs ... e ..., apresentam valores superiores ao reclamado.
Ademais, verifica-se que foi declarada pelo substituto tributário a distribuição de rendimentos ao 1 Reclamante tendo sido retido imposto à taxa legal (Mod.30).
V- ANALISE DO PEDIDO E PARECER
Fazendo um enquadramento tributário da matéria controvertida dir-se-á que:
1. O Reclamante, não residente fiscal em Portugal e sem estabelecimento estável, é sujeito passivo de IRC, nos termos do disposto na al. c) do n.° 1 do art,° 2.° do CIRC, incidindo o imposto apenas sobre os rendimentos obtidos em território nacional {país da fonte), nos termos da al. d) do n.° 1 do art.° 3 e n.° 2 do art,° 4°, ambos do CIRC, à taxa de 25% nos termos do n." 4 do art° 87.° do CIRC, objeto de retenção na fonte a título definitivo ou liberatório, na data da verificação do facto tributário (pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos), cujas importâncias retidas devem ser entregues nos cofres do Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que forem deduzidas, nos termos da al. c) do n.° 1, al. b) do n.°3, n.° 5 en.°6, todos do art.° 94.° do CIRC,
2.No entanto, se no momento da retenção for feita prova junto do substituto tributário, da verificação dos pressupostos da aplicação da CDT (2) celebrada entre Portugal e os Estados Unidos da América (art.° 10.° n.º 2), nos termos da al. a) do n.° 2 do art.° 98.° do CIRC, pode ser aplicada a taxa reduzida de 15%.
3.Quanto à desconformidade do regime previsto no art.0 22.0 do EBF com o Direito da União Europeia, cumpre dizer o seguinte:
4.Através do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro (4), procedeu-se à reforma do regime de tributação dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC), alterando, com interesse para o caso em apreço, a redação do art.° 22.° do EBF (5), aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de
investimento mobiliário e imobiliário e sociedades de investimento mobiliário e imobiliário, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional (6), conforme resulta do n.º 1 do art° 22.° do EBF, e Circular n.° 6/2015.
5.Com a nova redação, o legislador estabeleceu que, para esses sujeitos passivos de IRC, (i) não são considerados, na determinação do lucro tributável, os rendimentos de capitais, prediais e mais-valias referidos nos art.°s 5.°, 8.°e 10.° do CIRS, conforme resulta do n.° 3 do referido art.22.° do EBF, (ii) estão isentos das derramas municipal e estadual (n." 6) e, (iii) estabeleceu ainda uma dispensa da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos por si obtidos (art.º 22.° n.° 10 do EBF).
6.Tal regime não é aplicável ao Reclamante - pessoa coletiva constituída de acordo com a legislação dos Estados Unidos da América por falta de enquadramento com o disposto no n.° 1 do art. 22.° do 1 EBF, conforme entendimento sancionado superiormente.
7.A consagração da liberdade de circulação dos capitais e, consequentemente, a proibição de adoção de medidas restritivas da mesma, encontra-se consagrada nos arts. 63.° e seguintes do TFUE, concretização do art.° 18.° do TFUE, e é aplicável tanto entre Estados-membros como entre
Estados-membros e Estados-terceiros, ou seja, que não integram a UE.
Vejamos:
8. Efetivamente, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou-se sobre tal exclusão, através do acórdão proferido no processo n.° C -545/19 de 17 de março de 2022, do qual resulta que « O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos }distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.»
9.De notar que, o legislador prevê no n.10 do art.° 22.° do EBF uma dispensa (e não uma isenção) da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos OIC constituídos e que operem de acordo com a legislação nacional (n.° 1).
10. Todavia, não cabe à AT invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável.
11.Evidenciando-se que, a interpretação do direito europeu constante das decisões jurisprudenciais é vinculativa para os órgãos jurisdicionais, mas não afastam a vigência legal das normas consideradas pelo TJUE como contrárias ao direito europeu.
12.E, no que diz respeito aos OIC não residentes (que não disponham de um estabelecimento estável em território português), os mesmos não têm enquadramento na atual previsão do n.° 1 do art.° 22.° ido EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal.
13. Na esteira do Acórdão do TJUE, no âmbito do n.° 10 do art.° 22°do EBF, estão incluídos OIC constituídos nos demais Estados-membros e, por maioria de razão, os OIC constituídos nos demais Estados-Membros da EU e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado.
14.Pelo que, nos parece viável uma interpretação jurídica conforme ao direito europeu, segundo a qual no âmbito da dispensa de retenção, estarão incluídos os OIC constituídos nos demais Estados-Membros da EU e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado.
15.Ora, no caso em apreço, conforme informado, o Reclamante é não residente fiscal (EUA) e não dispõe de estabelecimento estável em Portugal, pelo que, não se encontra enquadrado no n.° 1 do art.° 22.° do EBF.
16.Pelo exposto, é de indeferir o pedido.
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Em 15-03-2024, o Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
2.2.1. Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo, inclusivamente os que foram considerados provados na decisão da reclamação graciosa.
2.2.2. A Autoridade Tributária e Aduaneira, no presente processo, questiona que o Requerente seja um fundo de investimento, dizendo que «o documento nº 1 junto à reclamação graciosa, é um documento extenso redigido em língua estrangeira, o que não permite, em face da complexidade técnica da questão em apreço e da extensão do mesmo retirar do seu conteúdo o sentido e alcance que importa reter para a matéria controvertida nos autos», e que se trata de documento meramente particular e promocional cujo conteúdo não se encontra certificado para os efeitos jurídico-tributários.
No entanto, é manifesto pelo teor desse documento que nele se refere que o A... tem a natureza de um fundo de investimento, contendo-se nesse documento múltiplas referências a essa natureza.
No procedimento tributário e no processo de impugnação judicial, cujas normas são aplicáveis subsidiariamente aos processos arbitrais, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, são admissíveis todos os meios de prova admitidos em direito (artigos 72.º da LGT e 115.º do CPPT), inclusivamente declarações de rendimentos e documentos particulares, pelo que não há qualquer fundamento legal para só dar relevância a qualquer documento «certificado para os efeitos jurídico-tributários», seja qual for a certificação a que se quererá referir a Administração Tributária, pois não está prevista em qualquer norma legal a necessidade de certificação para dar força probatória a documentos particulares, para efeitos fiscais.
De resto, esse documento foi junto à reclamação graciosa e na sua decisão não foi suscitada qualquer dúvida sobre a natureza de fundo de investimento, nem sobre a genuinidade do documento, baseando-se a decisão no pressuposto fáctico de o A... ser um Organismo de Investimento Colectivo (OIC), conceito em que se enquadram os fundos de investimento, como resulta do artigo 22.º, n.º 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais.
Assim, é convicção deste Tribunal Arbitral que está provado que o Requerente é um fundo de investimento, enquadrável no conceito genérico de Organismo de Investimento Colectivo, a que se refere artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais.
2.2.3. A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que o documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, «não prova que a Requerente não deduziu nos EUA, Estado da residência, o imposto retido na fonte em Portugal», «por se tratar de documento particular, assinado pela F... LLP, e redigido em língua estrangeira».
O referido documento é uma declaração de rendimentos e não apresenta dificuldade apreciável de tradução, actualmente acessível automaticamente, designadamente quanto ao ponto que é indicado pelo Requerente como elemento probatório que é apenas o «Scheedule J Tax Computation».
Não se refere aí nenhum valor relativo a «Foreign tax credit» (Crédito fiscal estrangeiro).
Assim, a única prova produzida é no sentido de o Requerente não ter deduzido nos EUA o imposto retido na fonte em Portugal.
De resto, existindo Convenção entre Portugal e os Estados Unidos da América para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 39/95, de 12 de Outubro (doravante “CDT Portugal-EUA”, em que se prevê a possibilidade de troca de «informações necessárias para aplicar esta Convenção ou as leis internas dos Estados Contratantes relativas aos impostos abrangidos por esta Convenção» (artigo 28.º), a Autoridade Tributária e Aduaneira tinha ao seu dispor um meio para apurar a realidade da tributação do Requerente nos EUA, caso duvidasse da correspondência do teor do documento referido à realidade.
Nestas condições, a Autoridade Tributária e Aduaneira tem o dever realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material (artigo 58.º da LGT, que enuncia o princípio do inquisitório).
O princípio do inquisitório consagrado no artigo 58.º da LGT, está situado a montante das regras de distribuição do ónus da prova (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), pelo que, sem ter a Administração Tributária realizado as diligências de prova que estavam ao seu alcance, não se de pode fazer recair sobre o contribuinte o ónus da prova dos factos relevantes para a decisão procedimental ou processual.
Por outro lado, a única prova apresentada sobre essa matéria é o referido documento n.º 3, e o seu sentido probatório é de não ter havido nos EUA dedução do imposto retido em Portugal.
Refira-se, ainda, que, eventualmente, a Autoridade Tributária e Aduaneira estará a incorrer em lapso ao fazer as considerações que faz sobre esta matéria, pois faz referência a um documento «assinado pela F... LLP», que não é qualquer das entidades que assinam o documento referido.
3. Matéria de direito
3.1. Fundamentação relevante dos actos tributários
O processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele].
Por isso, os actos impugnados têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos. ( [1] )
Assim, a fundamentação sucessiva ou a posteriori não é relevante para aferir a sua suficiência, quando não acompanhada de revogação e prática de um novo acto. ( [2] )
O que, de resto, se compreende à luz dos direitos de defesa ínsitos no princípio constitucional da tutela judicial efectiva (arts. 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4 da CRP), pois, se a Autoridade Tributária e Aduaneira tivesse invocado outros fundamentos da liquidação, a fundamentação da impugnação poderia ser diferente e as provas que o Sujeito Passivo a trazer ao processo poderiam ser diferentes.
Por isso, o direito à tutela judicial efectiva não permite que o Tribunal conheça de possíveis fundamentos do acto impugnado que o sujeito passivo não teve oportunidade de conhecer quando elaborou a sua impugnação e relativamente aos quais não teve oportunidade de utilizar todos os meios de defesa administrativos (reclamação graciosa, recurso hierárquico) e contenciosos (impugnação judicial o pedido de constituição do tribunal arbitral) que a lei prevê, nas condições em que a lei atribui esses direitos.
Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 01-07-2020, processo n.º 309/14.6BEBRG), em que se entendeu que:
I – O tribunal, na apreciação da legalidade de uma decisão administrativa, não pode considerar que esta se alicerça noutros fundamentos que não aqueles que aí foram externados.
II – Assim, não pode julgar improcedente a impugnação judicial da decisão que indeferiu o pedido de revisão de um acto tributário alicerçando-se na não verificação de um requisito se a AT não usou esse fundamento para indeferir aquele pedido.
Nos casos em que uma decisão fundamentada da impugnação administrativa aprecia um acto sem fundamentação expressa (como sucede nos casos de reclamação graciosa de actos de retenção na fonte), não se está perante uma situação em que o acto seja confirmativo, à face do preceituado no artigo 53.º, n.º 1, do CPTA, pois os actos de retenção na fonte não têm fundamentação originária emitida pela Administração Tributária.
Por isso, a manutenção em impugnação administrativa de um acto de retenção na fonte gera uma situação de revogação por substituição, em que o acto impugnado subsiste na ordem jurídica após a decisão com a fundamentação que dela consta, como está ínsito no artigo 173.º do Código do Procedimento Administrativo de 2015. ( [3] )
Também neste caso, não é relevante a fundamentação posterior ao acto que decidir a impugnação administrativa.
Assim, neste caso, é à face da fundamentação da decisão da reclamação graciosa que há que apreciar a legalidade dos actos de retenção na fonte, sendo irrelevantes possíveis motivos de indeferimento que naquela não são invocados, designadamente os que apenas forem invocados na Resposta apresentada no processo arbitral, como é o caso da falta de prova de que o Requerente é um fundo de investimento ou de que o Requerente não deduziu nos EUA o imposto, ou de que a Requerente seja qualificada pelo direito norte-americano como Regulated-Investment Company.
Por isso, a legalidade dos actos de retenção será apreciada tendo em conta apenas os fundamentos invocados na decisão da reclamação graciosa que são, em suma,
– apesar do decidido pelo TJUE no processo C-545/19, não cabe à AT invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável:
– a interpretação do direito europeu constante das decisões jurisprudenciais é vinculativa para os órgãos jurisdicionais, mas não afastam a vigência legal das normas consideradas pelo TJUE como contrárias ao direito europeu;
– OIC não residentes (que não disponham de um estabelecimento estável em território português), os mesmos não têm enquadramento na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal;
– o Requerente é não residente fiscal (EUA) e não dispõe de estabelecimento estável em Portugal, pelo que, não se encontra enquadrado no n.º 1 do art.º22.º do EBF.
3.2. Apreciação da fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa
O Requerente é um fundo de investimento (Organismo de Investimento Colectivo) constituído ao abrigo do direito dos Estados Unidos da América.
Em 2020, o Requerente recebeu dividendos, pagos em Portugal por sociedades de direito português, relativamente aos quais foi efectuada retenção na fonte, pelo substituto tributário (E...) à taxa de 15%, aplicando a CDT Portugal-EUA.
Em 15-06-2022, o Requerente apresentou uma reclamação graciosa dos referidos actos de retenção na fonte que foi indeferida por despacho de 14-12-2023.
O artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redacção vigente em 2020, estabelecia o seguinte:
Artigo 22.º
Organismos de Investimento Coletivo
1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.
4 – Os prejuízos fiscais apurados nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º do Código do IRC.
5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.
6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.
7 – Às fusões, cisões ou subscrições em espécie entre as entidades referidas no n.º 1, incluindo as que não sejam dotadas de personalidade jurídica, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 73.º, 74.º, 76.º e 78.º do Código do IRC, sendo aplicável às subscrições em espécie o regime das entradas de ativos previsto no n.º 3 do artigo 73.º do referido Código.
8 – As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime.
9 – O IRC incidente sobre os rendimentos das entidades a que se aplique o presente regime é devido por cada período de tributação, o qual coincide com o ano civil, podendo no entanto ser inferior a um ano civil:
a) No ano do início da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre a data em que se inicia a atividade e o fim do ano civil;
b) No ano da cessação da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre o início do ano civil e a data da cessação da atividade.
10 – Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.
11 – A liquidação de IRC é efetuada através da declaração de rendimentos a que se refere o artigo 120.º do Código do IRC, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 89.º, no n.º 1 do artigo 90.º, no artigo 99.º e nos artigos 101.º a 103.º do referido Código.
12 – O pagamento do imposto deve ser efetuado até ao último dia do prazo fixado para o envio da declaração de rendimentos, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 109.º a 113.º e 116.º do Código do IRC.
13 – As entidades referidas no n.º 1 estão ainda sujeitas, com as necessárias adaptações, às obrigações previstas nos artigos 117.º a 123.º, 125.º e 128.º a 130.º do Código do IRC.
14 – O disposto no n.º 7 aplica -se às operações aí mencionadas que envolvam entidades com sede, direção efetiva ou domicílio em território português, noutro Estado membro da União Europeia ou, ainda, no Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que exista obrigação de cooperação administrativa no domínio do intercâmbio de informações e da assistência à cobrança equivalente à estabelecida na União Europeia.
15 – As entidades gestoras de sociedades ou fundos referidos no n.º 1 são solidariamente responsáveis pelas dívidas de imposto das sociedades ou fundos cuja gestão lhes caiba.
16 – No caso de entidades referidas no n.º 1 divididas em compartimentos patrimoniais autónomos, as regras previstas no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, a cada um dos referidos compartimentos, sendo-lhes ainda aplicável o disposto no Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28 de janeiro.
Nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 7/2015, pelo qual se procedeu, ademais, à reforma do regime de tributação dos organismos de investimento colectivo (OIC), «as regras previstas no artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo presente decreto-lei, são aplicáveis aos rendimentos obtidos após 1 de julho de 2015».
No referido n.º 1 do artigo 22.º estabelece-se que o regime nele previsto é aplicável aos «fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional».
O Requerente é constituído ao abrigo da lei dos EUA e não da lei nacional e, por isso, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF afasta a aplicação daquele regime ao Requerente.
O Requerente defende, em suma, que do regime que se prevê no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) resulta um tratamento discriminatório para os OIC não residentes em relação aos residentes, que é incompatível com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que estabelece o seguinte:
Artigo 63.º
(ex-artigo 56.º TCE)
1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
No entanto, o artigo 65.º do TFUE limita a aplicação deste princípio, estabelecendo o seguinte:
Artigo 65.º
(ex-artigo 58.º TCE)
1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:
a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;
b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.
2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.
3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.
A questão da compatibilidade ou não do regime previsto no artigo 22.º, n.º 1, do EBF com o Direito da União Europeia, designadamente o artigo 63.º do TFUE, foi apreciada no acórdão do TJUE de 17-03-2022, proferido no processo n.º C-545/19, em que se concluiu que
O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
Note-se, de resto, que o Supremo Tribunal Administrativo uniformizou a jurisprudência sobre esta matéria em obediência ao decidido pelo TJUE, no acórdão de 28-09-2023, processo n.º 093/19.7BALSB, com o seguinte sumário: [4]
I – Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação.
II – O art.63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
III – A interpretação do art.63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o art.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo DL 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.
Como se refere neste aresto do Supremo Tribunal Administrativo, em face do decidido pelo TJUE é de concluir que:
– quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos OIC beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação (cfr. acórdão Santander Asset Management SGIIC, do T.J.U.E., de 10/05/2012, Processo C-338/11 e apensos, § 28);
– uma vez que a legislação nacional em causa tem por objeto o tratamento fiscal de dividendos recebidos pelos OIC, deve considerar-se que a situação é abrangida pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais (§ 33 do acórdão Allianzgi-Fonds Aevn, processo C-545/19);
– a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa. (§ 57 do acórdão Allianzgi-Fonds Aevn, processo C-545/19);
– um OIC não residente pode ter detentores de participações sociais que tenham residência fiscal em Portugal e sobre cujos rendimentos este Estado-Membro exerce o seu poder de tributação. Nesta perspetiva, um OIC não residente encontra-se numa situação objetivamente comparável à de um OIC residente em Portugal (§ 69 do acórdão Allianzgi-Fonds Aevn, processo C-545/19);
– o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes. Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis. (§ 73 e 74 do acórdão Allianzgi-Fonds Aevn, processo C-545/19);
– quando um Estado-Membro tenha optado, como na situação em causa, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos (§ 83 do acórdão Allianzgi-Fonds Aevn, processo C-545/19);
– o artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção. (§ 85 do acórdão Allianzgi-Fonds Aevn, processo C-545/19).
Esta jurisprudência é aplicável aos OIC residentes em Estados que não fazem parte da União Europeia, pois, como resulta do teor expresso do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE, a proibição de restrições aos movimentos de capitais aplica-se não só entre Estados-Membros, mas também entre Estados-Membros e países terceiros, o que é o caso dos autos.
Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, p. 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2593).
A supremacia do Direito da União sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, em que se estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
Assim, considera-se ilegal, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo das sociedades constituídas segundo legislações de outros Estados Membros ou de países terceiros.
Consequentemente, tem de se concluir que o acto de retenção na fonte, bem como o indeferimento tácito da reclamação graciosa, enfermam de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia, com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
4. Pedido de reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios
A Requerente pede reembolso da quantia retida na fonte indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios.
4.1. Reembolso
Na sequência da anulação da retenção na fonte o Requerente tem direito a ser reembolsado das quantias retidas, o que é consequência da anulação.
Assim, tendo sido pagas as quantias de € 251.210,06, em 14-05-2020, e € 218.582,64, em 01-07-2020, , o Requerente tem direito a ser dela reembolsado da quantia global de € 469.792,70.
4.2. Juros indemnizatórios
O TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só direito ao reembolso como o direito a juros, como pode ver-se pelo acórdão de 18-04-2013, processo n.º C-565/11 (e outros nele citados), em que se refere:
21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).
22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).
23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).
No entanto, como se refere neste n.º 23, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo.
O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;
b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.
Como há muito vem entendendo o Supremo Tribunal Administrativo, a imputabilidade para efeitos de juros indemnizatórios apenas depende da existência de um acto ilegal, cuja ilegalidade não é imputável ao contribuinte:
– «em geral, pode afirmar-se que o erro imputável aos serviços, que operaram a liquidação, entendidos estes num sentido global, fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou impugnação dessa mesma liquidação» ( [5] );
– «Para efeitos da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, imposta à administração tributária pelo art. 43.º da LGT, havendo um erro de direito na liquidação e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte.
Esta imputabilidade do erro aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro, podendo servir de base à responsabilidade por juros indemnizatórios a falta do próprio serviço, globalmente considerado» ( [6] );
– «há erro nos pressupostos de direito, imputável aos serviços, de modo a preencher o pressuposto da obrigação da Administração de indemnizar aquele a quem exigiu imposto indevido, quando na liquidação é aplicada uma norma nacional incompatível com uma Directiva comunitária» ( [7] );
– «os juros indemnizatórios previstos no art. 43.º da LGT são devidos sempre que possa afirmar-se, como no caso sub judicibus, que ocorreu erro imputável aos serviços demonstrado, desde logo e sem necessidade de mais, pela procedência de reclamação graciosa ou impugnação judicial da correspondente liquidação» ( [8] ).
À luz desta jurisprudência, não sendo os erros que afectam as retenções na fonte imputáveis ao Requerente, eles são imputáveis à Administração Tributária.
O facto de se tratar de actos de retenção na fonte, não praticados directamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira, não afasta essa imputabilidade, pois, a ilegalidade da retenção a fonte, quando não é baseada em informações erradas do contribuinte, não lhe é imputável, mas sim «aos serviços» ( [9] ), devendo entender-se que se integra neste conceito a entidade que procede à retenção na fonte, na qualidade de substituto tributário, que assume perante quem suporta o encargo do imposto o papel da Administração Tributária na liquidação e cobrança do imposto ( [10] ).
O Pleno do Supremo Tribunal Administrativo uniformizou jurisprudência, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, no acórdão de 29-06-2022, processo n.º 93/21.7BALSB, nos seguintes termos:
Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs.1 e 3, da L.G.T.
Tratando-se de jurisprudência uniformizada, ela deve ser acatada.
No caso em apreço, a reclamação graciosa foi apresentada em 15-06-2022, pelo que a presunção de indeferimento tácito se formou em 15-10-2022, nos termos do n.º 5 do artigo 57.º da LGT, decorrido o prazo de quatro meses previsto no n.º 1 do mesmo artigo.
Assim, à face daquela jurisprudência uniformizada, é de concluir que a Requerente tem direito a juros indemnizatórios desde 16-10-2022.
Os juros indemnizatórios devem ser contados, com base na quantia de 469.792,70, desde 16-10-2022, até integral reembolso ao Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
5. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar procedente o pedido de anulação dos actos de retenção na fonte de IRC impugnados, e anular esses actos, quanto aos valores de € 251.201,06 e € 218.582,64, entregues com as guias de nºs ... e ..., em 14-05-2020 e 01-07-2020, respectivamente;
-
Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia de € 469.792,70, e condenar a Administração Tributária a pagar este montante ao Requerente;
-
Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, nos termos referidos no ponto 4.2. desta decisão arbitral.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 469.792,70, indicado pelo Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
7. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 7.344,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 05-07-2024
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(relator)
(Nuno Miguel Morujão)
(Sérgio Santos Pereira)
[1] Essencialmente neste sentido, podem ver–se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito de situação paralela que se coloca nos processos de recurso contencioso:
– de 10–11–98, do Pleno, proferido no recurso n.º 32702, publicado em AP–DR de 12–4–2001, página 1207.
– de 19/06/2002, processo n.º 47787, publicado em AP–DR de 10–2–2004, página 4289.
– de 09/10/2002, processo n.º 600/02.
– de 12/03/2003, processo n.º 1661/02;
– de 22–03–2018, processo nº 0208/17.
Em sentido idêntico, podem ver–se:
– MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume I, 10.ª edição, página 479 em que refere que é "irrelevante que a Administração venha, já na pendência do recurso contencioso, invocar como motivos determinantes outros motivos, não exarados no acto", e volume II, 9.ª edição, página 1329, em que escreve que "não pode (...) a autoridade recorrida, na resposta ao recurso, justificar a prática do acto recorrido por razões diferentes daquelas que constam da sua motivação expressa".
– MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Volume I, página 472, onde escreve que "as razões objectivamente existentes, mas que não forem expressamente aduzidas, como fundamentos do acto, não podem ser tomadas em conta na aferição da sua legalidade".
( [2] ) Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: de 11-2-93, do Pleno, processo n.º 26389, publicado em Apêndice ao Diário da República de 16-10-95, página 103; de 4-11-93, processo n.º 31798, publicado em Apêndice ao Diário da República de 15-10-96, página 6007; e de 3-2-94, processo n.º 32325, publicado em Apêndice ao Diário da República de 20-12-96, página 791.
No mesmo sentido, podem ver-se os acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 24-11-1999, processo n.º 23720; e 19-12-2007, recurso n.º 874/07.
[3] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 06-10-1999, processo n.º 023379, publicado em Apêndice ao Diário da República de 30-09-2002, página 3102; de 29-05-2002, processo n.º 047541, publicado em Apêndice ao Diário da República 10-02-2004, página 4047; de 12-12-2002, processo n.º 047699; de 18-12-2002, processo n.º 048366; de 06-05-2020, processo n.º 512/10.8BEPRT.
[4] Esta jurisprudência foi reafirmada uniformemente, como se pode ver, entre outros, pelos acórdãos de 08-05-2024, processo 02412/21.7BELRS e de 29-05-2024, processo 0806/21.7BELRS.
[5] Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 31-10-2001, processo n.º 26167, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2466, e de 24-04-2002, processo n.º 117/02, publicado em Apêndice ao Diário da República 08-03-2004, página 1197.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 07-11-2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República 13-10-2003, página 2593.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21-11-2001, processo n.º 26415, publicado em Apêndice ao Diário da República 13-10-2003, página 2765.
[8] Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 28-11-2001, processo n.º 26223, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2824, e de 16-01-2002, processo n.º 26508, publicado em Apêndice ao Diário da República 16-2-2004, página 77.
[9] Os «serviços» são, na LGT, um conceito que não se restringe aos actos praticados pela Administração Tributária, como se depreende do n.º 2 do artigo 43.º e do actualmente revogado n.º 2 do artigo 78.º da LGT (por força da Lei do Orçamento de Estado de 2016, aprovada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que revogou o n.º 2 do artigo 78.º da LGT). De resto, há actos tributários que tanto podem ser praticados por entidades públicas como privadas, como sucede, por exemplo, com os emolumentos notariais e impostos cobrados por notários, que podem ser entidades públicas ou privadas.
[10] CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª edição, 2012, página 256: «muito embora tanto em termos legais como em termos doutrinais a substituição tributária seja definida exclusivamente com referência ao contribuinte, o certo é que a figura da substituição não deixa, a seu modo, de se reportar também à Administração Fiscal. Efectivamente, no quadro actual da “privatização” da administração ou gestão dos impostos, o substituto tributário acaba, de algum do, por “substituir” também a Administração Fiscal na liquidação e cobrança dos impostos. O que, de algum modo, não deixa de ser denunciado pela inserção sistemática dos deveres de retenção na fonte os quais aparecem integrados no Código do IRS no capítulo do pagamento e no Código do IRC no capítulo relativo à liquidação».
ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal – Lições, 2016 (reimpressão): «Os deveres de retenção e entrega do tributo significam a delegação do exercício de uma atividade que em princípio deveria caber ao fisco, mas entende-se que o exercício destas funções no interesse público, não restringe desproporcionalmente o direito ao exercício de atividades privadas e por isso não é inconstitucional».