Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 118/2024-T
Data da decisão: 2024-07-30   Outros 
Valor do pedido: € 277.002,49
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) – Repercussão – Ininteligibilidade do pedido.
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SUMÁRIO

  1. A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, era um imposto, não se verificando, por isso, na sua apreciação, nem a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, nem a falta de vinculação prévia da Autoridade Tributária à jurisdição arbitral.
  2. A CSR não prosseguia “motivos específicos”, na acepção do artigo 1.º, 2, da Directiva 2008/118/CE, na medida em que as suas receitas tinham essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação directa entre a utilização das receitas e um “motivo específico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental que se encontravam consignados no respectivo quadro legal.
  3. A recusa do reembolso integral do imposto indevidamente liquidado, por violação do direito da União Europeia, apenas é admissível se for feita a prova, tanto de que o imposto foi suportado, na íntegra, por uma pessoa diferente do sujeito passivo, e em nenhuma medida pelo sujeito passivo, como de que o imposto não causou perdas económicas ao sujeito passivo.
  4. Não houve nem há repercussão legal da CSR, não podendo presumir-se essa repercussão, nem dispensar-se a prova da repercussão efectiva.
  5. Na ausência de “repercussão formalizada”, não pode alcançar-se a anulação de liquidações através da mera impugnação de repercussões, ou sequer identificar-se os sujeitos passivos das liquidações, ou o nexo entre liquidações e repercussões.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. As contribuintes A..., S.A., NIPC ..., B..., Unipessoal, Lda., NIPC ...  e C..., S.A., NIPC..., doravante “as Requerentes”, apresentaram, no dia 29 de Janeiro de 2024, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2.º, 1, a), e 10.º, 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei n.º 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. As Requerentes pediram a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade dos actos de indeferimento tácito dos pedidos revisão oficiosa por elas apresentados, e, mediatamente, das liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) e consequentes actos de repercussão da CSR, consignados nas facturas referentes ao combustível adquirido pelas Requerentes, de que resultou o suporte, por elas, na qualidade de consumidores finais, de CSR no montante total de € 277.002,49; peticionando o reembolso desse montante, acrescido de juros indemnizatórios.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11.º, 1, b) e c), e 8.º do RJAT, e arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
  6. Em 20 de Fevereiro de 2024 a AT endereçou ao Presidente do CAAD um requerimento solicitando a identificação dos actos de liquidação, em cumprimento do disposto no art. 10.º, 1, a) do RJAT e no art. 102.º, 2 do CPPT, para efeitos de exercer, ou não, a faculdade prevista no art. 13.º do RJAT.
  7. Por Despacho de 20 de Fevereiro de 2024, o Presidente do CAAD remeteu a decisão para o Tribunal a constituir.
  8. Em requerimento de 1 de Março de 2024, as Requerentes tomaram a iniciativa de se pronunciarem sobre as questões suscitadas pela Requerida em 20 de Fevereiro de 2024.
  9. E por Despacho de 1 de Março de 2024, o Presidente do CAAD novamente remeteu a decisão para o Tribunal a constituir.
  10. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 9 de Abril de 2024; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  11. Por Despacho de 9 de Abril de 2024, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17.º do RJAT, apresentar resposta – ressalvando-se, todavia, que a constituição do Tribunal precludia o exercício da faculdade prevista no art. 13.º do RJAT, ao contrário do requerido em 20 de Fevereiro de 2024.
  12. A AT apresentou a sua Resposta em 13 de Maio de 2024, juntamente com o Processo Administrativo.
  13. Por Despacho de 13 de Maio de 2024, concedeu-se às Requerentes o exercício do contraditório sobre a matéria de excepção suscitada na Resposta da AT.
  14. Por Requerimento de 27 de Maio de 2024, as Requerentes responderam a essa matéria de excepção.
  15. Por Despacho de 31 de Maio de 2024, dispensou-se a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, sendo as partes notificadas para apresentarem alegações escritas.
  16. As Requerentes apresentaram alegações em 18 de Junho de 2024.
  17. A Requerida apresentou sumaríssimas alegações em 21 de Junho de 2024, nas quais se limitou a remeter para a sua própria resposta.
  18. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
  19. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e as Requerentes juntaram procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  20. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. As Requerentes são sociedades comerciais que se dedicam, entre outros, à distribuição, comércio e revenda de diversos produtos.
  2. A Requerente C..., S.A. incorporou a sociedade espanhola C..., S.A., tendo sido transferidos, em bloco e por sucessão universal, todos os direitos e deveres desta sociedade para a esfera jurídica da Requerente, incluindo as contribuições em apreços nos presentes autos – pelo que a C... actua aqui em nome próprio e também como incorporante daquela sociedade espanhola.
  3. As Requerentes não são operadores económicos detentores do estatuto IEC de destinatário registado, concedido ao abrigo e nos termos do regime previsto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (“CIEC”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho.
  4. Nos anos de 2019 a 2022, e no exercício das suas actividades comerciais, as Requerentes adquiriram, ao fornecedor D..., S.A., produtos energéticos e petrolíferos, no montante total de € 3.400.909,59, nos seguintes valores:

Requerente

Montante total de produtos energéticos e petrolíferos

A..., S.A.

€ 3.098.551,72

B..., Unipessoal, Lda.

€ 150.446,51

C..., S.A.

€ 151.911,36

Total

€ 3.400.909,59

 
  1. Alegando ter sido integralmente repercutido sobre elas a CSR, o que estaria comprovado através das facturas emitidas pelas fornecedoras de combustíveis e por declarações do fornecedor dos produtos energéticos e petrolíferos, as Requerentes deduziram, em 30 de Junho de 2023, pedidos de revisão oficiosa com vista à anulação das referidas liquidações de CSR, e dos consequentes actos de repercussão.
  2. Esses pedidos de revisão oficiosa entraram nos serviços da AT em 4 de Julho de 2023, considerando-se tacitamente indeferidos em 4 de Novembro de 2023.
  3. Em 29 de Janeiro de 2024, as Requerentes apresentaram no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria de facto não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar (dado o standard de prova estabelecido pelo TJUE no seu despacho de 7 de Fevereiro de 2022 [Proc. n.º C-460/21], nomeadamente vedando presunções em matéria de repercussão da CSR):

  1. Quais os valores de CSR liquidados à fornecedora de combustíveis, com base nas DIC por ela apresentadas, e os valores de CSR por ela pagos ao Estado: nomeadamente, uma relação dos valores totais de CSR liquidado, através de um quadro-síntese que especifique, para todo o período de 2019 a 2022, o registo de liquidação de ISP e a data desse registo de liquidação, o NIF do operador (detentor do estatuto IEC de destinatário registado) e os valores discriminados de ISP e de CSR liquidados em cada mês desse ano.
  2. Que a CSR tenha sido repercutida integralmente pela fornecedora de combustíveis sobre a cadeia de transmissões onerosas a jusante dela, e especificamente sobre as Requerentes.
  3. Qual o grau de repercussão da CSR, dado não se provar que tenha havido repercussão integral.
  4. Quais os efeitos económicos da repercussão da CSR, seja sobre as próprias fornecedoras de combustíveis, seja sobre a cadeia de transmissões onerosas a jusante delas – nomeadamente, a inexistência de prejuízos associados à diminuição do volume das vendas da fornecedora de combustíveis, fosse qual fosse o grau da repercussão da CSR a jusante dela, e a inexistência de repercussão, em qualquer grau, a jusante das Requerentes, na medida em que, sendo elos apenas na cadeia produtiva, elas próprias, como sociedades comerciais com fins lucrativos, não são, manifestamente, consumidores finais.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos ao PPA, ao processo administrativo e a requerimentos oportunamente deferidos.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123.º, 2, do CPPT e arts. 596.º, 1 e 607.º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e arts. 5.º, 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16.º, e) do RJAT, e art. 607.º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607.º, 5 do CPC, ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT).
  5. Além disso, não se deram como provadas, nem não provadas, alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
  6. O Tribunal considera que a facturação apresentada documenta as transacções da fornecedora de combustíveis com as Requerentes, mas não faz, nem pode fazer, prova de repercussão económica da CSR, seja porque os montantes da CSR, dada a forma como a liquidação deste imposto foi inicialmente concebida, não eram discriminados, nem podiam sê-lo, nessa facturação (apenas se discriminando os valores de IVA), seja porque há menção expressa a “descontos” e “bónus” praticados nas transacções comerciais entre a fornecedora e as Requerentes; seja ainda porque está vedada – dada a posição expressa do TJUE – a presunção de que tenha havido repercussão integral da CSR em toda e qualquer das transacções documentadas, ao passo que o cálculo das Requerentes assenta exclusivamente nessa presunção, não somente de que, em cada transacção, ocorreu uma tal repercussão integral de CSR, mas também de que a CSR foi definitivamente absorvida, e nunca repassada a jusante, pelas Requerentes, nos preços cobrados à sua própria clientela.
  7. O Tribunal considera ainda que as declarações da fornecedora de combustíveis, juntas ao pedido de pronúncia arbitral, provam somente que essa fornecedora não actuou sempre como sujeito passivo de ISP e de CSR, mas não fazem prova do que alegam, contendo meras afirmações conclusivas sem um suporte documental e sem uma análise jurídico-económica que permitissem, em conjunto, suprir as insuficiências probatórias acabadas de enumerar – nem sequer chegando a identificar os originais sujeitos passivos de ISP e de CSR, quando não o foi a fornecedora, não podendo, nesses casos, substituir-se a documentos que possam comprovar a liquidação conjunta de ISP e de CSR pelos verdadeiros sujeitos passivos: as Declarações de Introdução no Consumo, ou o Documento Administrativo Único / Declaração Aduaneira de Importação; documentos que, ao menos, permitissem identificar, nesses casos, com um mínimo de certeza, quem foram esses sujeitos passivos originários.
  8. Acresce que a fornecedora de combustíveis confessa, nessas declarações, ter ela própria iniciado diligências administrativas e judiciais destinadas à recuperação dessa CSR – o que só poderá conseguir na medida em que não tenha repercutido integralmente esse imposto – o que, por sua vez, significa que tais declarações são contraditórias e indiciadoras de uma estratégia que, a ter sucesso, redundaria em enriquecimento sem causa, seja daquela fornecedora, seja das ora Requerentes: já que, mesmo em abstracto, a legitimidade de “repercutentes” e “repercutidos” é necessariamente concorrente, e mutuamente exclusiva, no que respeita ao reembolso da CSR.

 

III. Sobre a Matéria de Excepção

 

III. A. Posição da Requerida no Requerimento de 20 de Fevereiro de 2024

 

  1. Em Requerimento de 20 de Fevereiro de 2024, na fase procedimental, a Requerida sugeriu, sem afirmá-lo, que se estaria perante uma ineptidão do pedido de pronúncia, dada a insuficiência na identificação dos actos tributários impugnados, que, mais do que violar o art. 10.º, 2, b) do RJAT, impediria o exercício da faculdade prevista no art. 13.º do RJAT.

 

III. B. Posição da Requerida na Resposta, em 13 de Maio de 2024

 

  1. A Requerida, na sua Resposta, formula um conjunto de questões suscitadas pela alegada legitimidade das Requerentes para peticionarem o reembolso da CSR, enquanto entidades que, embora não revestindo a posição de sujeito passivo relativamente às liquidações em causa, declaram ter suportado a CSR por via da repercussão, ocupando posições de “repercutidos”.
  2. E desde logo insiste na distinção entre:
    1. A liquidação de CSR, que é apurada através do Documento de Introdução ao Consumo (DIC), e da qual resulta um acto tributário stricto sensu, sendo a liquidação de CSR da competência da AT, e impugnável nos termos do art. 51.º do CPTA.
    2. A factura, um documento fiscalmente relevante mas do qual não resulta qualquer acto imputável à AT, quer tributário, quer administrativo em matéria tributária.
  3. Sendo que no DIC se documentam os IECs correspondentes à introdução no consumo dos produtos energéticos e petrolíferos, enquanto nas facturas apenas se documenta o IVA inerente a cada transacção.

 

III. B. 1. Excepção da Incompetência do Tribunal em Razão da Matéria

 

  1. A Requerida sustenta que, sendo a CSR uma contribuição financeira e não um imposto (a CSR seria uma contraprestação/contrapartida pela utilização dos serviços prestados pela IP aos utentes/utilizadores das vias rodoviárias, em nome do Estado), o Tribunal não teria competência para apreciar o litígio, seja por força do disposto nos arts. 2.º e 4.º do RJAT, seja pelo disposto na “portaria de vinculação” (Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
  2. Assim, a CSR estaria excluída da arbitragem tributária. No fundo, seria decisiva a não-vinculação do Estado a decisões respeitantes a tributos sem o nome legal de “impostos”, algo similar à incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o art. 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no art. 29.º, 1, c) do RJAT e no art. 181.º do CPTA), um acordo que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido nos termos do art. 4.º do RJAT, e resultou na “portaria de vinculação”.
  3. Além disso, a própria enumeração do art. 2.º, 1, a) do RJAT bastaria para excluir da competência dos tribunais arbitrais a declaração de ilegalidade de actos de repercussão, seja qual for a natureza de tais actos.
  4. Por uma outra via, a Requerida retira um argumento para excepcionar em termos de incompetência do Tribunal em razão da matéria: é que, no seu entender, o que as Requerentes vêm questionar é, não um conjunto de liquidações (e repercussões), mas o próprio quadro legislativo em si mesmo, em abstracto, a conformidade jurídico-constitucional do regime jurídico da CSR, visando suspender a eficácia de actos legislativos. Ora, exclui-se do âmbito da jurisdição arbitral a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de actos praticados no exercício da função política e legislativa.
  5. Por ambas as vias, a incompetência material do tribunal arbitral consubstancia uma excepção dilatória, nos termos do art. 577.º, a) do CPC, impeditiva do conhecimento do mérito da causa, implicando a absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos arts. 99.º, 1, 576.º, 2 e 577.º, a) do CPC.
  6. A estes argumentos, a Requerida adita ainda o de que, estando em causa, directamente, alegados actos de repercussão, essa repercussão não corresponde a uma repercussão legal, nem sequer é um acto tributário, pelo que não é possível ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre ela – esgotando-se a competência do tribunal na sindicância dos actos de liquidação que estão a montante de tais fenómenos de repercussão.

 

III. B. 2. Excepção da Ilegitimidade das Requerentes

 

  1. Sem prova de que a fornecedora de combustíveis tenha sido sempre o sujeito passivo de ISP/CSR que suportou o imposto, e sem prova de que tenha havido repercussão, e com que extensão, a Requerida coloca em dúvida que as Requerentes sejam, sequer, os consumidores finais dos combustíveis que foram objecto das transacções comprovadas por facturas, não podendo excluir-se que os tenham revendido, repercutindo a jusante a carga da CSR – criando-se assim um problema de legitimidade que verdadeiramente só não afecta os sujeitos passivos a quem o imposto foi liquidado e que efectuaram o correspondente pagamento – os mesmos que são identificados pelo art. 5.º da Lei n.º 55/2007, e a quem os arts. 15.º e 16.º do CIEC reconhecem o direito ao reembolso (não tendo aquela Lei qualquer referência à repercussão da CSR, nem sequer uma remissão para o art. 2.º do CIEC no qual se se prevê a repercussão dos impostos especiais sobre o consumo).
  2. Conclui a Requerida que carecem de legitimidade para solicitar a anulação das liquidações com fundamento em erro, e consequente reembolso do montante correspondente, os requerentes de reembolso que não correspondam à entidade responsável pela introdução dos produtos no consumo e pelo pagamento da CSR: sendo isso que resulta para os IEC nos termos dos arts. 15.º e 16.º do CIEC, é isso que é válido igualmente para a CSR (por força do art. 5.º da Lei nº 55/2007).
  3. Trata-se aqui de impostos monofásicos, que incidem num único ponto do circuito económico, e, sem desconhecerem que uma multiplicidade de transacções e de sujeitos podem ocorrer a jusante ao momento da relação jurídica tributária originária, optam por não se envolverem nessa sequência, mantendo-a numa posição de irrelevância relativamente à liquidação dos tributos, do seu pagamento e do seu eventual reembolso (ao contrário do que sucede com o plurifásico IVA, que incide em todas as fases do circuito económico, através do crédito do imposto a jusante e do débito a montante).
  4. Entende a Requerida que esse é, de resto, o sentido do entendimento plasmado no Despacho proferido pelo TJUE em 7 de Fevereiro de 2022 no Proc. n.º C-460/21, quando legitima o sujeito passivo como titular do direito ao reembolso, mesmo que os impostos tenham sido concebidos para serem repercutidos, na medida em que não se tenha provado a repercussão plena.
  5. Acrescenta a Requerida que, ainda que, no caso concreto, a CSR tivesse sido efectivamente repercutida, e as Requerentes tivessem legitimidade processual para peticionar a anulação das liquidações com fundamento em erro, e o reembolso dos montantes correspondentes, e a repercussão resultasse provada, sempre seria de invocar a jurisprudência do TJUE, resultante do Acórdão proferido no Proc.º n.º C-94/10, de 20/10/2011, de acordo com a qual: “As normas do direito da União devem ser interpretadas no sentido de que: 1) Um Estado-Membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil; 2) Um Estado-Membro pode recusar um pedido de indemnização apresentado pelo comprador sobre quem o sujeito passivo tenha repercutido um imposto indevido, com base na falta de nexo directo de causalidade entre a cobrança desse imposto e o dano sofrido, desde que o comprador possa, com base no direito interno, dirigir esse pedido contra o sujeito passivo e que a reparação, por este, do dano sofrido pelo comprador não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil.”
  6. Assim, as Requerentes, quando adquiriram produto às fornecedoras de combustíveis, estabeleceram com elas uma relação comercial de direito privado entre empresas, à qual a AT é estranha, para efeitos do que aqui releva, que é a liquidação do ISP/CSR e o reembolso da CSR alegadamente repercutida no custo de aquisição de combustível.
  7. Sendo que também só dessa maneira se evitará a duplicação, ou multiplicação, de reembolsos sobrepostos, a sujeitos passivos “repercutentes” e a terceiros “repercutidos”, com locupletamento indevido de alguns deles, sem qualquer controlo sobre a sequência de transacções, e de eventuais repercussões, posteriores ao facto gerador do imposto.
  8. Não sendo as Requerentes sujeitos passivos nos termos e para o efeito do disposto no art. 4.º do CIEC, não têm legitimidade, nem para apresentar pedido de revisão oficiosa, nem, consequentemente, o presente pedido arbitral.
  9. Não só os requerentes de reembolso que não correspondem à entidade responsável pela introdução dos produtos no consumo, e pelo pagamento da CSR, carecem de legitimidade para solicitar a anulação das referidas liquidações e consequente reembolso do montante correspondente (art. 15.º, 2 do CIEC); mas também as Requerentes, na medida em que são meras “repercutidas” numa situação de simples repercussão económica, não são sujeitos passivos, pelo que não têm legitimidade, por efeito do art. 18.º, 4, a) da LGT.
  10. Além disso, invoca a Requerida os arts. 9.º, 1 e 4, do CPPT e 65.º e 78.º da LGT para sustentar a ilegitimidade processual das Requerentes.
  11. As Requerentes seriam apenas clientes comerciais de fornecedoras de combustíveis que plausivelmente terão sido sujeitos passivos que liquidaram e pagaram a CSR – e a sua posição não ficava desprovida de tutela jurisdicional efectiva, nessa dimensão, já que nada impede o ressarcimento, através de uma acção civil de repetição do indevido, instaurada contra as suas fornecedoras, se reunirem os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de Outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (§§ 24 a 29).
  12. A Requerida enfatiza a circunstância de as Requerentes não serem sujeitos passivos de ISP/CSR, não tendo efectuado quaisquer introduções no consumo de produtos petrolíferos, não sendo partes da relação tributária subjacente às liquidações contestadas, não conseguindo definir, quantificar ou provar que efectuaram quaisquer pagamentos a título de CSR – pelo que, à ilegitimidade processual, se somaria a ilegitimidade substantiva das Requerentes, redundando qualquer reembolso a que se procedesse numa ilegítima, infundada e indevida restituição de elevadas quantias monetárias a diversas entidades com base nos mesmos alegados factos, sem qualquer possibilidade de controlo.
  13. A Requerida sustenta ainda que não há qualquer prova de que as Requerentes tenham suportado integralmente a CSR, como alegam – e que, portanto, o montante em causa seja aquele que elas invocam. Sendo que eram elas que estavam oneradas com a respectiva prova, nos termos do art. 74.º, 1 da LGT.
  14. Conclui a Requerida que, não tendo efectiva titularidade do direito, não sendo sujeitos passivos nem repercutidos legais, não se provando se pagaram a CSR, e em que montante, ou se repercutiram, ou não, a jusante, o que tenham pago, falta às Requerentes uma legitimidade que sustente a sua pretensão (faltando um interesse objectivo em agir, minimamente concretizado, que seja necessário tutelar), devendo o Tribunal arbitral abster-se de conhecer do mérito da causa e absolver a AT da instância, em conformidade com os arts. 278.º, 1, d), 576.º, 1 e 3, 577.º e 579.º, todos do CPC.
  15. A Requerida regressa ao argumento de que a multiplicação de pedidos de reembolso de CSR, por parte tanto dos sujeitos passivos como dos alegadamente “repercutidos”, poderá levar a reembolsos sobrepostos e multiplicados, por toda a cadeia de comercialização dos combustíveis, se cada pedido for deferido – redundando num reembolso de valores muito superiores ao valor da liquidação inicial de CSR.
  16. No caso concreto, sublinha que a fornecedora indicada pelas Requerentes, a D..., S.A., está já, ela própria, enquanto sujeito passivo de ISP/CSR, a solicitar o reembolso da CSR, via pedidos de revisão oficiosa e/ou impugnação judicial, relativamente ao mesmo produto e período temporal, alegando a não repercussão da CSR a jusante, pelo que o contencioso das Requerentes poderia corresponder a uma duplicação de pedidos.
  17. Conclui a Requerida que falta às Requerentes legitimidade processual, o que consubstancia uma excepção dilatória nos termos dos artigos 576.º, 1 e 2, 577.º, e) e 578.º do CPC, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, conduzindo à absolvição da instância. E conclui que também lhes falta legitimidade substantiva, o que consubstancia uma excepção peremptória nos termos do disposto nos artigos 576.º, 1 e 3 e 579.º do CPC, conduzindo à absolvição do pedido.

 

III. B. 3. Excepção de Ineptidão do Pedido

 

  1. Na Resposta, a Requerida explicita o tema da ineptidão (já sugerido no seu requerimento de 20 de Fevereiro de 2024), alegando a existência, no pedido de pronúncia arbitral, de deficiências que comprometem irremediavelmente a sua finalidade, mormente a violação do art. 10.º, 2, b) do RJAT, que determina a nulidade de todo o processo e a absolvição da instância, conforme os arts. 186.º, 1, 576.º, 1 e 2, 577.º, b) e 278.º, 1, b) do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT.
  2. Especificamente, sustenta que as Requerentes aludem a actos tributários, mas se limitam a apresentar facturas que não comprovam qualquer acto tributário – nem sequer identificando as liquidações de CSR a que teriam estado sujeitas as fornecedoras de combustíveis “repercutentes”; e que, por outro lado, nem a própria AT tem a possibilidade de suprir essa falta, recolhendo elementos de prova, dado não ser óbvia a correspondência entre as referidas liquidações e as facturas apresentadas.
  3. Não só as Requerentes não são sujeitos passivos de ISP e de CSR, mas não existe qualquer relação evidente entre as provas apresentadas e os factos alegados.
  4. Essa impossibilidade de estabelecimento de uma correspondência específica resulta em larga medida do modo de declaração e liquidação do ISP e da CSR: as companhias petrolíferas, que são os sujeitos passivos nesta relação tributária, declaram para introdução no consumo enormes quantidades de produtos petrolíferos e energéticos sujeitos a imposto, mediante o processamento diário, por via electrónica, de DIC, as quais são, por sua vez, globalizadas no mês seguinte pelas alfândegas competentes, para efeitos de liquidação.
  5. A alfândega competente para a liquidação nem sequer é necessariamente a da sede do sujeito passivo, dependendo do lugar onde são apresentadas as DIC – não podendo excluir-se que as fornecedoras de combustíveis tenham  procedido a introduções no consumo em várias alfândegas: nem que uma mesma fornecedora de combustíveis tenha acordado a colocação dos produtos nos depósitos do entreposto fiscal de outros operadores económicos, para serem expedidos a partir daí, cabendo, neste caso, a estes operadores económicos submeter a DIC relativa às introduções no consumo e, assim, assumir perante a AT a posição de sujeito passivo do ISP – caso em que a fornecedora dos produtos não coincidiria com o sujeito passivo que introduziu os produtos no consumo (os produtos que vieram a ser adquiridos pelas Requerentes).
  6. Esclarece a Requerida que é frequente, no sector dos combustíveis, o circuito económico envolver uma multiplicidade de destinos e de clientes para os produtos após a introdução no consumo, sendo virtualmente impossível acompanhar todos os passos e transacções que vão da introdução no consumo até ao consumo final – sendo raro, e não podendo presumir-se, que uma única liquidação de ISP e CSR seja referente a uma única transacção, aquela que eventualmente teria tido lugar entre o sujeito passivo dos tributos e um seu único cliente.
  7. A normalidade é a situação oposta, da multiplicidade de transacções a jusante da introdução no consumo – sendo, portanto, que uma qualquer factura que documente uma qualquer dessas múltiplas transacções não terá necessária e inequivocamente uma relação com uma única DIC, correspondente à liquidação praticada por uma única alfândega, ou até com os produtos introduzidos no consumo por uma única fornecedora de combustíveis.
  8. Em suma, sendo as vendas dos produtos declarados para consumo destinadas a uma multiplicidade de destinos, e não sendo coincidentes no tempo, em relação ao facto gerador do imposto, torna-se impraticável estabelecer uma relação biunívoca entre DIC e transacções a jusante (a isso acrescem dificuldades de mensuração dos produtos, de que a Requerida dá conta).
  9. Sendo que nada disto altera o facto de apenas os sujeitos da liquidação, isto é, apenas os sujeitos passivos que declararam os produtos para consumo e efectuaram o pagamento das imposições correspondentes, poderem solicitar a revisão das liquidações e o reembolso da CSR junto da alfândega competente: única situação em que, de acordo com as regras aplicáveis, é possível identificar os actos de liquidação, bem como as correspondentes alfândegas de liquidação competentes.
  10. Dado que a fornecedora de combustíveis não foi sempre, admitidamente, o sujeito passivo de ISP e CSR, há que comprovar especificamente, documentalmente, as liquidações que tenham sido feitas daqueles tributos, e comprovar a quem foram feitas.
  11. A Requerida assinala que, não fazendo as facturas apresentadas qualquer prova dos factos relevantes, ou seja, de quaisquer liquidações de CSR ou de qualquer mensuração da repercussão económica que possa ter ocorrido (dado não ser mencionado nelas qualquer valor de CSR, total ou parcelar), a identificação e invocação a que as Requerentes procedem no PPA não se encontram devidamente documentadas.
  12. Mais, sustenta a Requerida que, tomando por referência o período e as facturas apresentadas pelas Requerentes, não é possível fazer qualquer correspondência entre aquelas e as declarações de introdução no consumo apresentadas por qualquer sujeito passivo de ISP/CSR, nem com os registos de liquidação correspondentes.
  13. Lembra a Requerida que, em sede de Impostos Especiais de Consumo, não é possível a identificação dos actos de liquidação nos mesmos moldes em que é possível, por exemplo, em sede de IVA: tudo dependendo de uma Declaração de Introdução no Consumo (DIC), nos termos do art. 10.º do CIEC.
  14. Daí retira a Requerida a inferência de que apenas os sujeitos da liquidação, ou seja, os sujeitos passivos que declararam os produtos para consumo e efectuaram o pagamento das imposições correspondentes, podem solicitar a revisão das liquidações e o reembolso da CSR junto da alfândega competente; só os sujeitos passivos reúnem as condições para identificar os actos de liquidação – não estando ao alcance da própria Requerida identificar os actos de liquidação a serem sindicados, por ser impossível identificar as DICs e os respectivos actos de liquidação que estiveram subjacentes à introdução no consumo dos produtos que vieram alegadamente a ser adquiridos pelas Requerentes.
  15. A Requerida sustenta que as correspondências entre liquidações e transacções a jusante não são possíveis de estabelecer porque a repercussão da CSR era meramente económica (não uma repercussão legal), sendo, por isso, desprovida de um mecanismo de requisitos formais legalmente consagrados, como acontece, por exemplo, com o IVA, o que não permite rastrear a montante, a partir de facturas de venda dos combustíveis a clientes finais concretos, os actos de liquidação (globais) que estiveram subjacentes à introdução no consumo dos produtos que vieram a ser, depois, comercializados para uma multiplicidade de destinos e de clientes.
  16. A Requerida conclui que as Requerentes se limitam a afirmar que suportaram integralmente a CSR, calculando o respectivo montante por aplicação, à quantidade de litros fornecidos e constantes das facturas dos seus fornecedores, da taxa de CSR que se encontrava em vigor às datas das mesmas, sem, todavia, apresentarem qualquer prova de uma repercussão, total ou parcial: sem comprovativos de pagamento ao Estado da CSR, consubstanciados pela apresentação dos respectivos Documentos Únicos de Cobrança (DUC), e das Declarações Aduaneiras de Importação (DAI) com averbamento do número de movimento de caixa, que permitissem, ao menos, estabelecer uma “pista de auditoria” que permitisse rastrear as facturas até à sua origem nas liquidações de imposto.
  17. Isso, segundo a Requerida, tornaria impossível anular, ainda que parcialmente, actos de liquidação não-identificados, no que respeita às declarações para introdução no consumo dos produtos que vieram a ser adquiridos pelas Requerentes às fornecedoras de combustíveis, mediante as facturas apresentadas.
  18. Infere a Requerida que a não-identificação do acto, ou actos, tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral não permite sindicar a legalidade de actos não-identificados, e menos ainda conduzir a uma anulação total ou parcial desses actos não-identificados.
  19. Por essa razão, conclui a Requerida que a não-identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral compromete irremediavelmente a finalidade da petição inicial, verificando-se assim excepção de ineptidão da petição inicial, o que determina a nulidade de todo o processo, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, e dando lugar à absolvição da instância, conforme arts. 98.º, 1, a) do CPPT, e 186.º, 1, 576.º, 1 e 2, 577.º, b) e 278.º, 1, b), do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, c) e e) do RJAT.

 

III. B. 4. Excepção de Caducidade do Direito de Acção

 

  1. Suplementarmente, dessa falta de identificação dos actos de liquidação em causa resultaria a insusceptibilidade de se aferir a tempestividade do pedido de revisão oficiosa – e, reflexamente, a tempestividade do próprio pedido de pronúncia arbitral.
  2. A Requerida aventa a possibilidade de existir intempestividade, dado que, se se pretende sindicar as aquisições efetuadas no período compreendido entre 2019 e 2022, dado o prazo para apresentação de reclamação graciosa, de 120 dias a partir do termo do prazo do pagamento do ISP/CSR, conforme a 1.ª parte do artigo 78.º, 1 da LGT, poderá depreender-se que, em 4 de Julho de 2023, data da apresentação do pedido de revisão oficiosa, aquele prazo se encontrava largamente ultrapassado (rejeitando a Requerida o erro imputável aos serviços, de que as Requerentes se socorrem para lhes ver aplicado o prazo da 2.ª parte do art. 78.º, 1, da LGT).
  3. Ou, mais especificamente, que uma parte dos actos impugnados já teria ocorrido há mais de 3 anos, criando uma nova intempestividade, agora nos termos do art.15.º, 3 do CIEC.
  4. Além disso, lembra a Requerida que os pedidos de reembolso apresentados nas alfândegas devem ser apreciados à luz do disposto no CIEC, que é lei especial, mais especificamente no seu art. 15.º, que estabelece as regras gerais em matéria de reembolso dos IEC, e no art. 16.º, relativo ao reembolso por erro na liquidação – e que essas normas estabelecem um prazo de 3 anos, que estaria parcialmente vencido na altura da apresentação do pedido de revisão, a menos que a identificação rigorosa dos actos de liquidação permitisse concluir em sentido diferente.
  5. A isso acresce também que, não sendo sujeito passivo de ISP/CSR, nem tendo feito prova específica da repercussão económica que possa ter ocorrido, as Requerentes não poderiam ter pedido reembolsos nos termos dos arts. 15.º a 20.º do CIEC, nem ter beneficiado do correspondente prazo de 3 anos.
  6. Essa caducidade do (alegado) direito de acção por parte das Requerentes consubstanciaria uma excepção peremptória, conducente à absolvição do pedido; ou, pelo menos uma excepção dilatória nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 89.º 1, 2 e 4, k) do CPTA, conducentes à absolvição do pedido ou da instância.

 

III. C. Posição das Requerentes quanto à matéria de excepção suscitada pela Requerida

 

III. C. 1. Posição das Requerentes no Requerimento de 1 de Março de 2024

 

  1. Em Requerimento de 1 de Março de 2024, as Requerentes alegam ter procedido à identificação formal / processual do objecto do processo, para efeitos de aplicação do art. 13.º do RJAT.
  2. Quanto ao elemento material, de direito, as Requerentes alegam ter procedido à identificação possível, em termos do art. 74.º, 2 da LGT, e dada a mecânica própria da CSR.

 

III. C. 2. Posição das Requerentes no Requerimento de 27 de Maio de 2024

 

  1. Em Requerimento de 27 de Maio de 2024, as Requerentes tomaram posição quanto às excepções formuladas pela Requerida na sua resposta.

 

III. C. 3. Excepção da Incompetência do Tribunal arbitral em razão da matéria

 

  1. Quanto à excepção de incompetência do tribunal arbitral, as Requerentes sustentam que a CSR era um imposto, e como tal sujeita ao regime do RJAT e da Portaria de Vinculação, e lembram que já tinham deixado claro esse entendimento no pedido de pronúncia – reforçando tal entendimento com jurisprudência e doutrina.
  2. Igualmente esclarecem que o que pretendem é, não uma apreciação ou declaração abstractas do regime da CSR, com alcance na “eficácia de actos legislativos”, mas especificamente, como objecto imediato, a declaração de ilegalidade, e consequente anulação, do acto de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado por elas; e, consequentemente, como objecto mediato, dos actos de liquidação de CSR dos anos de 2019 a 2022.
  3. Aliás, acrescentam, essa apreciação abstracta nem sequer era necessária, porque já tinha sido operada pelo TJUE no Acórdão de 7 de Fevereiro de 2022, proferido no Processo n.º C-460/21 (Vapo Atlantic).
  4. Por outro lado, argumentam que não pretendem impugnar actos de repercussão, mas sim de actos tributários cujo quantum de imposto foi repercutido às Requerentes – não devendo confundir-se questões de competência com questões de legitimidade: a competência do tribunal para apreciar actos tributários com a legitimidade das Requerentes para suscitarem a ilegalidade desses actos.

 

III. C. 4. Excepção da Ilegitimidade das Requerentes.

 

  1. Sobre a excepção de ilegitimidade, as Requerentes lembram que não invocaram a condição de sujeitos passivos de CSR, mas sim a condição de contribuintes desse imposto, na sua situação de consumidores finais de produtos sujeitos a CSR.
  2. As Requerentes invocam em apoio da sua legitimidade processual os arts. 18.º, 4, a) da LGT, 30.º do CPC e 9.º, 1 do CPPT.
  3. Além de diversa doutrina e jurisprudência, as Requerentes invocam ainda o TJUE, que, em Acórdão de 11 de Abril de 2024 (Proc. C‑316/22), estabeleceu que

o princípio da efetividade deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não permite ao consumidor final pedir diretamente ao Estado‑Membro o reembolso do encargo económico adicional que esse consumidor suportou devido à repercussão operada por um fornecedor, em conformidade com uma faculdade que a legislação nacional lhe reconhece, de um imposto que o próprio fornecedor tinha pago indevidamente”.

  1. As Requerentes insistem na verificação de uma situação verdadeira e própria de repercussão legal na CSR, fazendo decorrer essa conclusão da sua natureza de IEC, e do estabelecido no art. 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro.
  2. Por outro lado, insistem na sua qualidade de consumidores finais, com o argumento de que a sua clientela já não consome os produtos energéticos e petrolíferos – sendo em relação a estes que se afere se as Requerentes são, ou não, consumidoras finais.
  3. E insistem que as facturas são a prova possível, e bastante, da repercussão de CSR, além das declarações da fornecedora de combustíveis – tudo reforçado pela circunstância de existir, segundo as Requerentes, um regime de repercussão legal, e pelo facto de a Requerida não ter provado a falsidade dos documentos, nem apresentado contraprova para eles.

 

III. C. 5. Excepção de ineptidão do pedido

 

  1. As Requerentes sustentam que procederam à identificação cabal do objecto imediato do processo, e à identificação possível dos actos objecto mediato do processo.
  2. E argumentam, de novo, que cabia à Requerida suprir deficiências de identificação detectadas, na medida em que dispõe de elementos de que as Requerentes não dispõem – invocando, para tanto, os arts. 417.º, 1 e 429.º, 1 do CPC.
  3. Defendendo que a ineptidão, a entender-se aplicável, redundaria em violação dos arts. 20.º e 268.º, 4 da CRP, traduzindo-se numa leitura desconforme com a Constituição dos arts. 74.º da LGT e 10.º, 2 do RJAT.

 

III. C. 6. Excepção de Caducidade do Direito de Acção.

 

  1. As Requerentes começam por refutar a alegação de falta de identificação, retirando daí a conclusão de que é perfeitamente possível aferir a tempestividade do pedido de revisão oficiosa das liquidações impugnadas.
  2. Por outro lado, as Requerentes fazem assentar a tempestividade no seu entendimento de que o erro nas liquidações / repercussões é imputável aos serviços da AT, pelo que isso ilegitimaria, por si mesmo, a invocação da caducidade por parte da própria AT, por tornar aplicável o prazo mais dilatado de quatro anos, previsto no art. 78.º, 1 da LGT.
  3. E refuta a ideia de que o art. 15.º do CIEC, que trata de um prazo de reembolso, se aplique à anulação de actos tributários tributários ilegais, sendo exclusivamente aplicável, a essa situação o art. 78.º, 1 da LGT.

 

III. C. 7. Posição das Requerentes em Alegações.

 

  1. Em alegações, as Requerentes recapitulam e sintetizam os seus argumentos para a improcedência de todas as excepções formuladas pela Requerida.

 

IV. Sobre o Mérito da Causa

 

IV.A. Posição das Requerentes

 

  1. As Requerentes começam por abordar questões de legitimidade, de identificação do objecto do pedido e de cumulação de pedidos e coligação de autores, concluindo pela arbitrabilidade das suas pretensões, centrada na constatação de que a CSR era um verdadeiro imposto.
  2. As Requerentes passam a referir o circunstancialismo que, levando da Junta Autónoma de Estradas ao Instituto de Estradas de Portugal e à Infraestruturas de Portugal e correspondentes necessidades de financiamento, conduziu à criação da CSR.
  3. Explicam porque é que a CSR é um verdadeiro imposto, uma desagregação do ISP, não constituindo, apesar da sua designação, uma mera contribuição financeira.
  4. Sustentam terem identificado os actos tributários impugnados com os elementos de prova de que dispõem, especificando quando é que suportarem, por repercussão, a CSR, em que transacções facturadas, com que contrapartes, e com que volume de produtos objecto de incidência objectiva de CSR. E sustentam ainda que, dado o art. 74.º, 2 da LGT, a prova que não estiver na posse das Requerentes deverá ser fornecida pela AT, bastando a correcta identificação dos actos (aditando, em apoio do argumento, referência ao regime do art. 429.º, 1 do CPC).
  5. E sustentam que, a entender-se de modo diverso, poderá estar colocar-se em causa princípios como o da proporcionalidade, ou da tutela jurisdicional efectiva, negando-se às Requerentes o direito à sindicabilidade da legalidade dos actos tributários de CSR.
  6. Reconhecendo que, para efeitos do regime da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, não são sujeitos passivos de ISP ou CSR, as Requerentes sustentam que, em compensação, são consumidoras finais de produtos petrolíferos e energéticos sujeitos a CSR, sendo esta inteiramente repercutida sobre elas – e daí o interesse legalmente protegido que, alegam, lhes confere legitimidade (arts.  9.º, 1 do CPPT e 30.º do CPC).
  7. Sustentam ainda que vigorou para a CSR um regime de repercussão legal (não esquecendo de referir o art. 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro), o que lhes conferiria indiscutível legitimidade processual, nos termos do art. 18.º, 4 da LGT.
  8. E analisam também o desenvolvimento paralelo que determinou o regime da Directiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, a sua transposição pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, e o estabelecimento de um regime geral dos impostos especiais de consumo – explicando porque é que acabou por se manter na esfera dos Estados-Membros um poder de tributação residual, reconhecendo-se-lhes a faculdade de sujeitar, sob determinadas condições, os produtos abrangidos pelo referido regime geral a outros impostos indirectos – procurando acautelar-se que daí nascessem entraves às trocas comerciais.
  9. Exigindo-se que esses outros impostos indirectos tivessem um motivo específico, e fossem harmonizados quanto à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto.
  10. Quanto ao motivo específico, será necessário que o produto do tributo seja obrigatoriamente utilizado nos fins específicos que tenham sido invocados, de tal forma que exista uma relação directa entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa; ou, em alternativa, se for concebido, no que respeita à sua estrutura, de modo a influenciar o comportamento dos contribuintes num sentido que permita a realização do motivo específico invocado, por exemplo, tributando significativamente os produtos considerados para desencorajar o seu consumo (cfr. Acórdãos do TJUE de 5 de Março de 2015, Statoil Fuel & Retail, Proc. C-553/13, e de 25 de Julho de 2018, Messer France, Proc. C-103/17).
  11. No que especificamente respeita à CSR, as Requerentes descrevem a sua génese (a Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto), a afectação das receitas à Estradas de Portugal, depois Infraestruturas de Portugal, por invocada contrapartida da utilização da rede rodoviária nacional, tal como ela é revelada pelo consumo de combustíveis rodoviários.
  12. Lembrando-se de referir que a CSR foi extinta através da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, com efeitos a partir do dia 1 de Janeiro de 2023.
  13. As Requerentes analisam a violação do Direito da União Europeia que a CSR representou, e a consequente ilegalidade abstracta dos actos tributários que a consubstanciaram, remetendo para as ponderações do Despacho do TJUE de 7 de Fevereiro de 2022, proferido no caso Vapo Atlantic, Proc. C-460-21, centradas na inexistência de um “motivo específico” da CSR, de uma relação directa e exclusiva entre utilização das suas receitas e a finalidade enunciada para o tributo, sem conexões a finalidades concorrentes ou a finalidades mais gerais ou mais difusamente enunciadas – como aquelas que o TJUE detectou na CSR –, e na inexistência de uma estruturação do tributo que o torne susceptível de motivar ou condicionar as condutas dos sujeitos passivos em direcção à finalidade enunciada para o tributo.
  14. Verificada a antinomia entre a CSR e o Direito da União, e dado o primado deste (art. 8.º, 4 da CRP), que vincula todos os serviços do Estado, segue-se que a AT deveria desaplicar as normas de fonte interna que instituíram, aplicaram e regularam a CSR – sendo que, se não o fez, concluem as Requerentes, isso representa um erro imputável aos serviços, designadamente para efeitos do disposto na segunda parte do art. 78.º, 1 da LGT.
  15. Sustentam as Requerentes que o princípio da legalidade, que, conformado pelo do primado do direito da União, vincula todos os serviços do Estado (incluindo, portanto, a AT), constituindo o primeiro parâmetro de aferição da legalidade dos actos administrativos, o que deve ser conjugado com o princípio da cooperação leal dos Estados-Membros com as instituições europeias, que por seu lado também impõe que todos os serviços do Estado se encontrem vinculados a desaplicar as normas de fonte interna com fundamento na sua desconformidade com as normas europeias, evitando assim a consequente ilegalidade abstracta dos putativos actos de aplicação.
  16. Ou seja, verificada uma antinomia entre as normas dispostas na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, e a Directiva 2008/118/CE, a AT estaria vinculada a desaplicar as primeiras, com fundamento na sua desconformidade com a segunda; e não o ter feito corresponde a um erro imputável aos serviços, para todos os efeitos – mormente para permitirem o recurso à 2.ª parte do art. 78.º, 1 da LGT.
  17. Daí inferem as Requerentes que os actos tributários objecto do processo devem ser anulados e, em consequência, devolvidas as quantias por elas suportadas, por repercussão, a título de CSR.
  18. As Requerentes sustentam a legitimidade do meio processual, socorrendo-se do conceito de “erro imputável aos serviços” para invocar o prazo de 4 anos do art. 78.º, 1 da LGT.
  19. Esse erro resultaria de um dever de recusa de aplicação de normas nacionais contrárias ao Direito da União, que recairia sobre a própria AT, dado o Primado do Direito Europeu e o próprio Princípio da Legalidade. Assim, essa recusa deveria ser assegurada pela AT, por sua própria iniciativa sendo o caso, desaplicando qualquer disposição nacional contrária ao Direito da União, sem pedir nem aguardar pela sua eliminação prévia por via legislativa, ou por qualquer outro procedimento constitucional, assim restaurando e efectivando a ordem jurídica tributária violada, nos termos do art. 100.º da LGT.
  20. As Requerentes terminam peticionando, para lá do reembolso do imposto, o pagamento de juros indemnizatórios –contados desde o pagamento do imposto indevido, e até integral reembolso.
  21. Em alegações, as Requerentes reiteram os seus argumentos essenciais, sublinhando o facto de entenderem que a Requerida não fez prova adequada da (por si alegada) inexistência de repercussão, não fazendo contraprova, e menos ainda alegando a falsidade, da documentação apresentada pelos Requerentes – limitando-se, no entender destas, a lançar suspeitas e formular suposições.

 

IV.B. Posição da Requerida

 

  1. Na sua Resposta, passada uma série de excepções, a Requerida começa a sua impugnação por insistir nas questões de prova, nas regras do ónus da prova e nas consequências da ausência de prova do que é alegado – sustentando que não é possível construir alegações sobre presunções que nenhuma norma, no caso, legitima; sob pena de poder proceder-se, em substância, a uma inversão do ónus da prova (cujos requisitos não se encontram preenchidos, nos termos do art. 344.º do Código Civil), ou estabelecer-se um standard de prova diabólica que forçaria a própria Requerida a fazer prova daquilo que as Requerentes se limitam a alegar.
  2. Retirando dessas circunstâncias a ilação de que a AT não tem de reembolsar um tributo a quem não o pagou (nem, logicamente, de efectuar o pagamento de juros indemnizatórios).
  3. Referindo-se ao despacho do TJUE de 7 de Fevereiro de 2022, no processo n.º C-460/21, a Requerida sustenta que se procedeu aí a uma análise superficial do tributo, e em momento algum o TJUE retirou a conclusão de que a CSR é ilegal – não havendo qualquer decisão judicial nacional transitada em julgado que declare a CSR ilegal.
  4. Pelo que, no seu entender, não há uma antinomia entre a CSR e o Direito da União Europeia.
  5. Pelo contrário, sustenta a Requerida que, à data dos factos, existia efectivamente um vínculo intrínseco entre o destino da CSR e o motivo específico que levou à sua criação, em termos de visíveis e relevantes objectivos não-orçamentais.
  6. Refere ainda a Requerida que a documentação junta ao PPA é inconclusiva, já porque é totalmente omissa quanto a montantes de ISP e CSR efectivamente liquidados, já porque a documentação aparece descontextualizada, não permitindo aferir objectivamente o seu rigor.
  7. Não podendo presumir-se a repercussão total da CSR nas Requerentes, caberia a estas a demonstração, de forma inequívoca, dos montantes efectivamente suportados a título de repercussão em cada uma das transacções comerciais (aquisições de produtos sujeitos a CSR, ao respectivo sujeito passivo/fornecedor), e nem sequer isso resulta da facturação apresentada, na qual os valores de CSR não aparecem discriminados.
  8. Além disso, a Requerida assinala que a fornecedora de combustíveis às Requerentes nem sempre actuou como sujeito passivo de ISP e CSR, antes actuou como mera intermediária na cadeia de comercialização dos combustíveis transaccionados, o que por si só, no entender da Requerida, impediria qualquer juízo quanto à repercussão da CSR nas Requerentes – pois isso exigiria a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelo sujeito passivo daquele tributo aquando da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos.
  9. E sublinha que as declarações emitidas por essa fornecedora de combustíveis, reconhecendo que nem sempre actuou como sujeito passivo de CSR, e sobretudo admitindo ter ela própria peticionado o reembolso de CSR ao mesmo tempo que afirma tê-lo repercutido, revelam uma atitude que não é compatível, seja com qualquer esforço de identificação ulterior das liquidações impugnadas, seja com a necessidade de prevenção de duplicação de reembolsos de CSR – tornando totalmente inidóneas tais declarações.
  10. A Requerida insiste que não há documentação nenhuma que permita fixar valores concretos de repercussão económica em qualquer das transacções, a montante ou a jusante das Requerentes – impugnando especificamente os documentos juntos ao pedido de pronúncia, já que nenhum deles refere a CSR ou permite calcular se houve repercussão, e qual o montante que foi, ou não, repercutido (contendo as facturas referências a “descontos”, que, na prática, excluem qualquer hipótese de repercussão económica plena), e omitem se as Requerentes, sociedades com fins lucrativos, lograram, ou não, e em que montante, repassar aos seus clientes e fornecedores, através dos preços por elas praticados, uma parte, ou o todo, das repercussões que tenham ocorrido nas suas transacções de aquisição de combustível.
  11. Especificamente, a AT entende que não foram apresentados quaisquer comprovativos de pagamento ao Estado do ISP/CSR, consubstanciados pela apresentação dos correspondentes Documentos Únicos de Cobrança (DUC) e Declarações Aduaneiras de Importação/Documentos Administrativos Únicos (DAI /DAU), com averbamento do número de movimento de caixa; e que também não estão documentadas as concretas transacções realizadas entre a fornecedora de combustíveis e as Requerentes, das quais conste a correspondência entre as operações praticadas e as declarações de introdução no consumo dos combustíveis transaccionados, que estabeleçam a relação entre as transacções e as DIC com as correspondentes liquidações emitidas pela AT, e, finalmente, que demonstrem a incorporação do encargo da CSR nas facturas de venda de produtos energéticos e petrolíferos às Requerentes, ou em que grau ou medida tal incorporação se processou.
  12. Logo, as Requerentes não são sujeitos passivos, nem de ISP, nem de CSR; não efectuaram, consequentemente, qualquer introdução no consumo de produtos petrolíferos; não são partes da relação tributária subjacente às liquidações contestadas, juntando documentos cuja veracidade é contestável, e dos quais não é possível inferir, com um mínimo de rigor, um valor discriminado de CSR, o qual também não consta, nem tinha de constar, das facturas que documentam as transacções com a fornecedora de combustíveis.
  13. Por outro lado, lembra que a repercussão económica é um fenómeno que assenta essencialmente numa relação de direito privado – remetendo para o Acórdão do TJUE de 20 de Outubro de 2011 (Proc. C-94/10), atinente à matéria de reembolso e repercussão no âmbito dos impostos especiais sobre o consumo, no qual se estabeleceu que um Estado-Membro pode opor-se a um pedido de reembolso, apresentado por um “repercutido”, com o fundamento de não ter sido este quem pagou o tributo – desde que, nos termos do direito interno, esse “repercutido” possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo “repercutente”, tal como ocorre no direito português.
  14. Termina peticionando a extinção da instância arbitral e a absolvição da Requerida, seja da instância, seja do pedido, por procedência das diversas excepções apresentadas; ou, no mérito, peticionando que seja considerado improcedente o pedido de pronúncia arbitral.
  15. Quanto aos juros indemnizatórios, a Requerida sustenta que não há lugar a eles; advertindo, contudo que, se houver decisão favorável ao seu pagamento, eles serão devidos apenas um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa (que ocorreu em 4 de Julho de 2023), nos termos do art. 43.º, 3, c) da LGT, e como ficou estabelecido pelo STA no Acórdão de 20 de Maio de 2020 (Processo 0630/18.4BALSB).

 

V. Fundamentação da decisão

 

V.A.1- Considerações prévias: um problema no pedido.

 

As Requerentes peticionam “anulação das decisões de indeferimento tácito que recaíram sobre os pedidos de revisão apresentados contra os atos tributários consubstanciados nas liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira e refletidas nas faturas que abaixo melhor se identificam e que totalizam um montante de contribuição paga de € 277.002,49”. E sustentam que “o que materialmente se pretende é a apreciação dos vícios das liquidações, em relação às quais aqueles indeferimentos se apresentam como atos de segundo grau, sem prejuízo de se pretender, igualmente, a apreciação dos atos de primeiro grau”, e que “procederam ao pagamento tempestivo das referidas faturas, tendo suportado integralmente o encargo de CSR”, e ainda que “a repercussão (económica e jurídica) do encargo económico de CSR sobre as Requerentes resulta não só da natureza e mecânica do tributo em apreço, as quais melhor se densificarão mais adiante, mas também do reconhecimento expresso do fornecedor anteriormente referido”.

O que deixa subentendido que, no plano do objecto mediato do pedido, o primeiro plano é ocupado pelos actos de repercussão (tidos por manifestações de um regime de “repercussão legal”); e que no segundo plano surgem as liquidações de CSR, e apenas porque são elas que estão subjacentes às repercussões, precedendo-as lógica e temporalmente.

Esclareçamos, desde logo, que, quanto aos actos de repercussão, eles só seriam actos tributários, susceptíveis de apreciação jurisdicional por parte deste tribunal, se estivesse em causa uma situação de repercussão legal – que, veremos de seguida, não está.

Por outro lado, quanto aos actos de liquidação de CSR, na verdade as Requerentes não chegam a identificar correctamente essas liquidações – sendo que elas poderiam ter tentado obter, ao menos da fornecedora de combustíveis, nas situações em que foi ela própria sujeito passivo de ISP / CSR, a documentação comprovativa de tais liquidações.

Com efeito, os documentos anexos ao pedido de pronúncia consistem em listagens de pagamentos que se limitam a presumir que houve repercussão completa de CSR em cada uma das transacções de combustíveis, a um valor fixo de CSR por litro – sendo, portanto, simples exercícios de conjectura, num contexto no qual, ao contrário do que as Requerentes presumem, nem sequer existia repercussão legal.

E as facturas compiladas também nesses documentos apenas discriminam o valor-base e o valor de IVA, sendo apropriadamente omissas quanto a montantes de ISP e de CSR repercutidos, ou não-repercutidos – visto que, quanto a estes tributos, jamais existiu um sistema de “repercussão formalizada”.

Manifesta-se, aqui, seja uma margem de ininteligibilidade na indicação do pedido, seja uma contradição entre o pedido e a causa de pedir.

Quanto à margem de ininteligibilidade em função do objecto – afinal, o objecto do pedido são as liquidações, ou são as repercussões? – ela poderia ser eventualmente sanada nos termos do art. 186.º, 3 do CPC (aplicável ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT).

Compreende-se o argumento das Requerentes, de que as liquidações se situam no plano da competência, e são elas que são impugnadas, enquanto que as repercussões se situariam no mero plano da legitimação da posição das próprias Requerentes, atribuindo-lhe um título para agirem. Mas, nesse caso, porquê apresentar as facturas como meios de prova das próprias liquidações – já que, manifestamente, é sobre as facturas que assenta o cálculo conjectural do valor (do quantum) da repercussão?

Mais difícil será sanar outro tipo de ininteligibilidades: seja a que resulta da inexistência de comprovação dos actos impugnados, seja a que emerge da contradição entre o pedido (a anulação das liquidações e do indeferimento tácito da revisão dessas liquidações) e a causa de pedir (a ilegalidade de um tributo, por desconformidade desse tributo com o direito da União, para efeitos de reembolso do que foi alegadamente repercutido – isto, não obstante não se ter provado a respectiva liquidação, por se assentar na ideia errada de que vigorava para esse tributo um regime de repercussão legal, e de se ter presumido a repercussão, seja no seu quid, seja no seu quantum, para se inferir, da ilegalidade das liquidações, a invalidade das repercussões, fosse qual fosse o nexo entre liquidações e repercussões).

Dificuldade – desde logo porque, insista-se, este tribunal pode pronunciar-se sobre a legalidade de liquidações, que são actos tributários, mas não sobre a legalidade de fenómenos de repercussão económica, que não são actos tributários: pelo que o pedido poderia ser apreciado por este tribunal, mas não com uma tal causa de pedir.

Tentando remover aquilo que designámos por “margem” de ininteligibilidade, poderíamos presumir que as Requerentes só pretendem impugnar os actos de repercussão que elas consideram serem inerentes à transmissão onerosa de combustíveis – na medida em que só quanto a esses actos de repercussão as Requerentes julgaram ter feito prova, através da documentação junta ao pedido de pronúncia, e posteriormente.

Só que esse passo para fora da “margem” de ininteligibilidade confronta-nos directamente com a natureza do fenómeno de repercussão que pode associar-se à CSR.

 

V.B.2- Problemas de legitimidade.

 

Demonstraremos que não está em causa – não o estava, nem o pode estar retroactivamente – um regime de repercussão legal; mas não sem, antes, esclarecermos alguns pontos relativos a legitimidade.

A questão nasce dos efeitos da consideração da hipótese de repercussão plena do imposto – o que faria com que, não obstante o sujeito passivo de CSR ser aquele que se encontra definido para efeitos de ISP, o encargo desta contribuição seria economicamente suportado pelo consumidor do combustível, ou por alguém a jusante do sujeito passivo no circuito económico da distribuição de combustíveis, o que poderia sugerir a adopção de uma solução de substituição tributária – em termos de o contribuinte de facto da CSR passar a ser a única parte legítima para peticionar a declaração de ilegalidade dos respectivos actos de liquidação, retirando aos “repercutentes” o seu interesse em agir.

É o art. 9.º, 1 e 4 do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, 1 do RJAT, a norma que define a legitimidade activa no processo arbitral tributário, e lá não se prevê que essa legitimidade se possa perder por efeito de uma repercussão que propiciasse a identificação de um interesse, concorrente ou exclusivo, na esfera de um “repercutido” que não seja o sujeito passivo.

E essa conclusão não se modifica com a alteração da redacção do art. 2.º do CIEC pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, a converter a “repercussão económica” em “repercussão legal”, mesmo que essa alteração tenha alcance interpretativo / retroactivo (ou seja, mesmo que não fosse inconstitucional): porque também aí não ocorre, nem passa a ocorrer, substituição tributária, visto que não só não é o consumidor final quem responde pela prestação tributária, como também é a própria lei que exclui do conceito de sujeito passivo quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”.

Por outras palavras, não ocorre nesta situação uma deslocação da obrigação tributária, do contribuinte directo para um terceiro, o contribuinte “de facto” – aquele que, por repercussão, suporta o peso do imposto. E, sem essa deslocação da obrigação, sem essa vinculação jurídica do contribuinte “de facto”, não pode ocorrer uma verdadeira substituição tributária, nos termos dos arts. 20.º e 28.º da LGT.

Com efeito, para que exista a substituição tributária a que se refere o art. 20.º da LGT, é preciso que ocorra a deslocação da obrigação tributária, do contribuinte directo (isto é, de quem se encontra abrangido pelas normas de incidência do imposto) para um terceiro: sendo que a responsabilidade do substituto tributário, nos termos do art. 28.º da LGT, se traduz na obrigação de dedução das importâncias que estiverem sujeitas a retenção, e da respectiva entrega nos cofres do Estado, em termos que exoneram o substituído da entrega dessas mesmas importâncias.

A conjugação do art. 9.º, 1 e 4 do CPPT com o art. 18.º, 3 da LGT dissipa quaisquer dúvidas sobre a ilegitimidade processual das ora Requerentes: têm essa legitimidade os contribuintes, e contribuinte é o “sujeito passivo” na relação tributária, a pessoa singular ou colectiva, património ou organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.

Não sendo as Requerentes sujeitos passivos do ISP, de acordo com a norma de incidência subjectiva constante do art. 4.º, 1, a), do CIEC, elas não são responsáveis pelo pagamento da CSR, por força do disposto nos arts. 4.º, 1, e 5.º, 1, da Lei n.º 55/2007 – não sendo consequentemente, na qualidade de contribuintes directos, titulares da relação jurídica tributária, e partes legítimas no processo (art. 9.º, 1 do CPTA).

Por outro lado, uma vez que a competência dos Tribunais arbitrais se circunscreve, no que é aqui relevante, à avaliação de actos de liquidação, os actos de repercussão são, qua tale, inarbitráveis – restando, como únicos factos relevantes para apurar a legitimidade das Requerentes para impugnarem os actos de liquidação da CSR, os referentes às relações estabelecidas com o verdadeiro sujeito passivo que interveio nesses actos.

Além disso, havendo um regime especial de revisão no CIEC, para o qual remetia o art. 5.º, 1 da Lei n.º 55/2007, que criou a CSR, o círculo dos potenciais impugnantes dos actos de liquidação da CSR tenderá a convergir com o círculo dos potenciais credores do reembolso delimitado no art. 15.º, 2 do CIEC: “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto”; ou seja: “o depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado”, ou ainda “a pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação”. Esses círculos de legitimidade tenderão a convergir, mas não necessariamente a coincidir, visto que, como é óbvio, um pedido de revisão não se confunde com um pedido de reembolso – até porque ambos podem cumular-se.

Em todo o caso, impressiona a circunstância de o art. 15.º, 2 do CIEC se ter mantido inalterado ao longo da história desse Código, e de os arts. 15.º, 2 e 4.º, 1 e 2, a) só terem sofrido, também eles, uma única alteração substancial, o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjectiva” – o que só pode significar que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.

Querendo isto dizer, muito pragmaticamente, que só os sujeitos passivos aí identificados, e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre erros na liquidação.

O entendimento subscrito quanto à ausência, no caso, de substituição tributária prejudica amplamente a atribuição de relevância à repercussão económica deste tributo (e a questão da retroactividade “interpretativa”, dada a inconstitucionalidade, prejudica o alcance da respectiva requalificação como “repercussão legal”).

Se assim não fosse, poderíamos admitir que, tendo havido repercussão plena, e provando-se essa repercussão plena (ou não se ilidindo uma eventual presunção de repercussão plena), fossem os repercutidos a ter legitimidade para impugnar os actos que concretizassem a repercussão, ou os actos que a antecedessem (através dos arts. 18.º, 4, a), 54.º, 2, 65.º e 95.º, 1 da LGT, e 9.º, 1 e 4 do CPPT): pois, num caso desses, apenas os repercutidos seriam afectados nas suas esferas jurídicas pelo acto lesivo, e o substituto só teria legitimidade na medida em que não tivesse repercutido integralmente o tributo que suportou nessa qualidade (por analogia com o estabelecido no art. 132.º do CPPT) – podendo haver concorrência de legitimidades, a reclamar a solução do litisconsórcio necessário; ou a exclusão de uma legitimidade pela outra, sua concorrente.

Sem esquecermos, de novo, que o CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (art. 9.º, 1 e 4 do CPPT).

No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.” E o art. 78.º da LGT assegura a mesma posição de legitimidade ou ilegitimidade conferida pelas regras gerais sobre o tema.

Não se tratando, no caso presente, de sujeitos passivos originários, mas de meros “repercutidos económicos”, coloca-se, em relação às Requerentes, a questão de saber se se constituiu uma relação jurídico-tributária com o credor tributário Estado; podendo, quando muito, fazer-se apelo à noção de “interesse legalmente protegido” para conferir às Requerentes uma legitimidade, via arts. 9.º, 1 e 4 do CPPT e 18.º, 3 da LGT.

 

V.B.3- A inexistência de repercussão legal.

 

No entanto, afigura-se claro que a CSR não implicava, à data dos factos, qualquer repercussão legal.

A Lei n.º 55/2007, que instituiu a CSR, não contemplava qualquer mecanismo de repercussão legal, e nem sequer de repercussão meramente económica – ainda que se saiba que, dado o seu escopo lucrativo, as empresas vendedoras tendem a repassar para os adquirentes, através dos preços, uma parte dos gastos em que incorrem, incluindo entre eles, mas não exclusivamente, os gastos tributários.

É verdade que, como repetidamente temos referido, entretanto a repercussão legal veio a ser associada ao ISP e à CSR, por força da nova redacção do CIEC introduzida pela Lei n.º 24-E/2022, com uma pretensão de retroactividade, acrescentada pelo facto de se atribuir natureza interpretativa a essa nova redacção do art. 2.º do CIEC (art. 6.º da Lei n.º 24-E/2022).

Só que, por um lado, essa solução é problemática, não apenas porque não parece que seja possível ou juridicamente admissível uma retroactividade desse género, e através desse artifício (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 25 de Janeiro de 2021, Proc. n.º 843/19), mas também porque uma tal solução lança a AT para os domínios de uma contradição flagrante na abordagem processual deste tema – como se verá adiante.

Por outro lado, essa nova “repercussão legal”, se fosse válida, surgiria desacompanhada de meios de controlo e prova que permitissem a sua gestão e a dissuasão de abusos, como por exemplo ocorre com a repercussão legal prevista no art. 37.º do CIVA, que, essa sim, surge acompanhada de mecanismos adequados para esses efeitos (começando pela obrigatória discriminação do IVA na facturação) – aquilo que pode designar-se por “repercussão formalizada”.

Seja como for, insistamos: mesmo que tivesse ocorrido repercussão plena da CSR, mesmo que se tivesse provado essa repercussão plena, mesmo que se excluíssem efeitos da CSR sobre o volume de vendas das Requerentes independentemente da repercussão, a ponto de ficar estabelecido que o encargo do tributo foi completa e rigorosamente transferido para as Requerentes pelas suas contrapartes, ainda assim a legitimidade procedimental e processual das Requerentes dependeria, em primeiro lugar, da demonstração de um interesse legalmente protegido, nos termos e para os efeitos do art. 9.º do CPPT; e dependeria ainda, consequentemente, da demonstração de que elas teriam sido os consumidores finais de combustíveis sobre os quais recai, ou deve recair, o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo – ou seja, da demonstração de que as próprias Requerentes, por sua vez, não constituíram um simples elo intermédio do circuito económico, ou seja, não repercutiram economicamente a jusante, elas mesmas, a CSR “embutida” no preço, repassando o encargo económico do tributo para as suas próprias clientelas – como é altamente plausível que tenha sucedido, na medida em que elas próprias são sociedades com escopo lucrativo.

Devendo lembrar-se, contra um argumento das Requerentes, que a repercussão se faz através dos preços, transacção a transacção, não se confinando numa compartimentação artificial que desagregasse a repercussão produto a produto – e daí que a repercussão só termine no final do circuito económico, no consumidor que já não repassa a jusante, em preços, a repercussão a montante que teve de suportar.

Ou seja, mesmo a ter havido repercussão, devidamente comprovada, isto não retiraria aos sujeitos passivos “repercutentes” legitimidade processual, ao menos parcial, nem a atribuiria aos “repercutidos”, a menos que estes demonstrassem, para adquirirem legitimidade concorrente e residual:

  1. a existência de um interesse directo e legalmente protegido na sua esfera – não bastando a invocação e comprovação, pelos repercutidos, da existência de uma repercussão, fosse ela legal, fosse ela meramente económica;
  2. a ausência de repercussão a jusante no circuito económico, pelos próprios repercutidos, através do preço de bens e serviços entregues ou prestados à sua própria clientela.

Mas nunca retiraria completamente aos sujeitos passivos a sua legitimidade processual, visto que – insista-se – não ocorria na CSR, à data dos factos, repercussão legal[1].

A complicar este raciocínio está o facto de a Lei n.º 55/2007 não fazer qualquer referência a quem deve suportar, do ponto de vista económico, o encargo da CSR, mas apenas estabelecer, no seu art. 5.º, 1, que

A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações”.

Ou seja, como assinalado antes, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, não remetendo, o referido art. 5.º, 1, para o art. 2.º do CIEC, no qual se prevê a repercussão legal nos IEC, mas somente para as normas do CIEC que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.

Mas compreende-se que o legislador tenha optado por não estabelecer um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura dessa legitimidade suscitaria:

  • quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão económica e a determinação do seu quantum;
  • quer no potencial de multiplicação de devoluções de imposto indevido – simultaneamente ao sujeito passivo e aos múltiplos repercutidos económicos dentro da cadeia de valor – de forma dificilmente controlável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.

Sobre esta segunda consequência, não podemos deixar de referir advertências formuladas recentemente:

o parque automóvel português é composto por 6,5 milhões de veículos ligeiros, a que acrescem 500 mil veículos pesados, num total de cerca de 7 milhões de veículos em circulação. [§] Se, por hipótese, admitirmos que cada automobilista fará, relativamente à CSR, um “pedido de revisão do ato de liquidação” e considerando que podem ser revistos os atos de liquidação relativos aos últimos quatro anos, temos que este contencioso poderá somar 28 milhões de processos![2]

A ter havido um qualquer grau de repercussão económica, nada impede os repercutidos, não obstante a sua ilegitimidade activa no presente Processo, de buscarem o ressarcimento, através de uma acção civil de repetição do indevido instaurada contra as “repercutentes”, seja nos termos gerais do Direito nacional, seja, a nível europeu, nos termos declarados pelo TJUE em Acórdão de 20 de Outubro de 2011 (Proc. C-94/10, Danfoss A/S (§§ 24 a 29) – preservando-se, por qualquer das vias, o princípio fundamental da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º da CRP).

Não esqueçamos que, a ter havido verdadeira repercussão, mesmo repercussão plena, entre o terceiro repercutido e o Estado credor (o sujeito activo), não existe, nem se forma, vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do imposto, não nascendo a sua obrigação da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga a faculdade de repercutir, que cabe ao sujeito passivo, e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar o sujeito passivo, quando este exerça aquela faculdade.

Daqui decorre que as relações entre o sujeito passivo e qualquer repercutido se regem essencialmente pelo Direito Privado – uma razão suplementar, para lá do que consta dos arts. 2.º a 4.º do RJAT, para se sustentar a incompetência do Tribunal arbitral relativamente à ponderação dessas relações “repercutente - repercutido”, e respectivas implicações – isto, não obstante dever enfatizar-se que a circunstância de o repercutido estar à margem da relação jurídica tributária não significa que ele esteja à margem do Direito, e não lhe assista alguma protecção, ainda que num plano subalterno face à tutela reservada aos sujeitos passivos (como resulta do disposto na LGT – por exemplo, do art. 18.º, 4, a), em casos de repercussão legal – ou do art. 9.º, 1 do CPPT, mediante prova de “interesse legalmente protegido”).

Esse entendimento não é afastado pela doutrina do Acórdão de 11 de Abril de 2024 do TJUE, (Proc. C‑316/22), quando nele se estabelece que “o princípio da efetividade deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não permite ao consumidor final pedir diretamente ao Estado‑Membro o reembolso do encargo económico adicional que esse consumidor suportou devido à repercussão operada por um fornecedor, em conformidade com uma faculdade que a legislação nacional lhe reconhece, de um imposto que o próprio fornecedor tinha pago indevidamente” – porque se afigura muito claro que esta solução supõe, seja um regime de repercussão legal, seja, ao menos, um regime de “repercussão formalizada”, documentando tal impacto nos preços transacção a transacção, como acontece no IVA; sob pena de, na ausência de um ou outro desses regimes, ser impossível a prova de que depende o “reembolso do encargo económico adicional que esse consumidor suportou” – e, como veremos, o próprio TJUE coloca toda a ênfase, nestes domínios, na necessidade de prova, e no afastamento de presunções.

Por outro lado, não consta do RJAT a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, como previsto no art. 29.º, 1, do RJAT, em concreto, e de acordo com a natureza dos casos omissos, das normas de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC.

A regra geral do direito processual, que consta do art. 30.º do CPC, é a de que é parte legítima quem tem “interesse directo” em demandar, sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida” – sendo a mesma regra reproduzida no processo administrativo, conferindo-se legitimidade activa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (art. 9.º, 1 do CPTA).

A legitimidade no processo decorre do conceito central de “relação material”, que, no âmbito fiscal, há-de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um acto tributário, cujo sujeito passivo é delimitado nos termos do art. 18.º, 3 da LGT.

Deste preceito resulta que a figura do “repercutido” não se enquadra na categoria de sujeito passivo, pelo que, não sendo parte em contratos fiscais, a legitimidade do repercutido só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido.

No art. 5.º, 1 da Lei n.º 55/2007, como referimos já, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, nem sequer no art. 3.º, 1, quando estabeleceu que a CSR “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis” – sendo ainda que, como referimos também, a remissão para o CIEC, na Lei n.º 55/2007, é expressamente circunscrita aos procedimentos de “liquidação, cobrança e pagamento”.

De tudo isto decorre que compete à AT demonstrar, nos procedimentos administrativos ou nas acções instauradas pelos sujeitos passivos da CSR, que se verificou a repercussão efectiva e completa do imposto sobre os utilizadores da rede rodoviária nacional para, desse modo, evitar um reembolso do imposto indevidamente liquidado que redundasse em enriquecimento sem causa de sujeitos passivos “repercutentes”, e na possibilidade de um duplo reembolso do imposto – que ocorreria se, na ausência de litisconsórcio, os repercutidos lograssem demandar com sucesso a AT para tutela do “interesse legalmente protegido” de não serem o suporte fáctico do encargo económico de um tributo indevido, porque ilegal.

É pelo facto de os sujeitos passivos da CSR serem partes inequivocamente legítimas que, nos casos em que os requerentes não têm essa qualidade de sujeitos passivos, invocando a de “repercutidos”, a AT tem frequentemente reagido com a invocação do litisconsórcio necessário, suscitando o incidente de intervenção provocada, mas deixando claro que, no entender da AT, sem a intervenção dos sujeitos passivos, dada a própria natureza da relação jurídica, a decisão a proferir não produzirá o seu efeito útil normal, deixando de ser possível a composição definitiva dos interesses em causa (art. 33.º, 2 do CPC).

Isto, sem embargo de poder discordar-se da pertinência da invocação de litisconsórcio necessário, impondo-se a constatação de que as entidades repercutentes e repercutidas têm diferentes interesses em demandar, e quanto a elas não se verifica qualquer dos critérios legais que justificam o litisconsórcio necessário.

Há mais uma diferença entre sujeitos passivos e terceiros “repercutidos” que não podemos deixar de mencionar, em apoio da ilegitimidade processual dos repercutidos, como as ora Requerentes: tem sido comum que a AT invoque, nos processos referentes à CSR, a ineptidão do pedido de pronúncia arbitral.

A AT tem tido esta reacção habitualmente, e teve-a no presente processo, depois de notificada e antes da constituição do tribunal arbitral, tendo o CAAD, invariavelmente, remetido a ponderação de um tal incidente à competência do próprio tribunal arbitral a constituir, o qual deve apreciá-la como questão prévia, prejudicial da pronúncia sobre o mérito.

A razão para a AT suscitar essa questão está claramente ligada ao problema que mencionámos: pode ser totalmente impraticável fazer prova de quais são os actos de liquidação específicos dos quais derivam, a jusante, cada uma das transacções que, após a introdução no consumo, acarretam a repercussão económica por meio da incorporação do tributo nos preços: sendo portanto razoável admitir-se que, por um conjunto de circunstâncias – aquilo que designámos como ausência de “repercussão formalizada” –, os repercutidos não reúnam condições para identificar os actos de liquidação, de modo a poderem solicitar a respectiva revisão.

Daí que, no presente processo, a AT tenha seguido por esse caminho: não sendo as Requerentes os próprios sujeitos passivos da relação tributária, quem declarou os produtos para consumo, a quem foi liquidado o imposto, e quem efectuou o correspondente pagamento, elas não estão em condições de proceder a uma identificação completa, e documentada, dos actos de liquidação específicos que elas pretendem impugnar – por exemplo, relacionando os DIC com as facturas das vendas de combustível, e com as liquidações que sobre eles recaíram.

 

V.B.4- A lei interpretativa e a vedação da retroactividade.

 

Já assinalámos a entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro (Altera o Código dos Impostos Especiais de Consumo, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, e o Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de maio, transpondo as Diretivas (UE) 2019/2235, 2020/1151 e 2020/262).

O art. 3.º dessa Lei dá nova redacção ao art. 2.º do Código dos IEC:

(…) Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.

E o art. 6.º dessa Lei n.º 24-E/2022 estabelece o seguinte:

A redação conferida pela presente lei ao artigo 2.º do Código dos IEC tem natureza interpretativa.

O tema, há muito controvertido, das leis interpretativas na lei fiscal permite dois caminhos para uma tal lei:

  1. o de tornar certo direito que era incerto, aclarando ou declarando direito preexistente, preenchendo alguma lacuna, caso em que temos uma retroactividade puramente formal;
  2. o de modificar direito preexistente e certo, intervindo em disputas doutrinárias ou jurisprudenciais, violando expectativas quanto à continuidade desse direito preexistente, colidindo com prerrogativas jurisdicionais, caso em que temos retroactividade material.

Deste modo, leis e normas autodeclaradas como interpretativas, mas que sejam inovadoras, são materialmente retroactivas.

Ora, como lapidarmente se estabelece no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 25 de Janeiro de 2021, Proc. n.º 843/19,

a retroatividade inerente às leis interpretativas é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição”.

Fica juridicamente vedada a inferência de que, sendo esta uma norma de aplicação retroactiva, o ISP, e com a ele a CSR, é, e foi, sempre repercutido nos consumidores.

Pode encarar-se a Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, somente como um reconhecimento da invalidação da CSR pelo TJUE, e a consequente ilegalidade da CSR – e daí a abolição da CSR através da sua “reincorporação” no ISP, consumada naquele diploma.

Uma leitura possível do art. 6.º da Lei n.º 24-E/2022 é a de que a repercussão dos IEC nos consumidores é um efeito legal, ou seja, passa a presumir-se “iuris et de iure” que a repercussão é inerente à tributação especial do consumo – dada a retroacção propiciada por essa norma interpretativa: só que essa leitura do art. 6.º da Lei n.º 24-E/2022, insiste-se, é inconstitucional, como resulta claramente do supracitado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 25 de Janeiro de 2021.

Além disso, mesmo que essa leitura não fosse inconstitucional, ainda assim ficariam por satisfazer alguns dos critérios estabelecidos no despacho de 7 de Fevereiro de 2022 do TJUE: nomeadamente, ficaria por realizar-se a comprovação da repercussão efectiva da CSR nos consumidores através da subida de preços – e, sublinhemo-lo por pertinência no caso presente, isso excluiria a possibilidade de qualquer alusão, na facturação, a bonificações ou a descontos –; e, por implicação, ficaria por realizar-se a comprovação da medida efectiva do enriquecimento sem causa, se este existisse e pudesse ser provado.

Adicionalmente, e em observância da jurisprudência do TJUE (Acórdão Weber’s Wine World, Proc. n.º C-147/01, Ponto n.º 95), faltaria ainda uma norma interna que permitisse à Requerida fazer uso da excepção do enriquecimento sem causa para afastar o direito ao reembolso de um imposto cobrado em violação do Direito Europeu, norma essa que encontramos no Código do IVA, mas que não se encontra no CIEC – uma razão adicional para não se poder excepcionar ao reembolso, aos sujeitos passivos, da CSR indevida, porque uma tal atitude de “excepção sem lei” constituiria violação do princípio da legalidade tributária consagrado no art. 103.º da CRP.

Esta a questão jurídica em torno do tema da retroactividade, cuja solução destrói os propósitos do expediente de recurso a normas “interpretativas” para resolver um problema jurídico, e interferir na adjudicação judicial e arbitral de interesses em processos já em curso.

 

V.B.5- A incongruência da Autoridade Tributária.

 

Só que aqui se revela, adicionalmente, uma incongruência, que convirá referir, por imperativo de justiça.

Lembremos o esforço de prevenção da duplicação de reembolsos, seja fazendo convergir o direito ao reembolso com o direito à revisão, seja lançando-se mão da figura do litisconsórcio necessário, sempre que se trate de pedidos de pronúncia apresentados por operadores económicos que não sejam os sujeitos passivos da relação tributária, invocando somente a condição de “repercutidos”; seja invocando-se que as legitimidades activas são concorrentes e mutuamente exclusivas, determinando que o reconhecimento de legitimidade a “repercutentes” a retira ipso facto a “repercutidos”, e vice-versa.

Sublinhámos já, por isso, o quão bizarro e inconsistente é que a fornecedora de produtos às Requerentes tenha emitido declarações em que, ao mesmo tempo, assevera ter repercutido integralmente a CSR e confessa ter ela própria iniciado diligências administrativas e judiciais destinadas à recuperação dessa CSR – o que só poderia conseguir na medida em que não tivesse repercutido integralmente esse imposto!

Se não fosse essa prevenção, se se admitisse que a invocação de ilegalidade de liquidações de CSR, assentes nas DIC apresentadas pelas fornecedoras de combustíveis, pudesse alastrar irrestritamente àqueles que invocassem a repercussão dessas liquidações, então seria difícil evitar a duplicação, ou multiplicação, de reembolsos, e um eventual locupletamento repartido entre repercutentes e repercutidos, passando a fazer todo o sentido as advertências antes transcritas.

Outra forma de reagir é a que acabámos de classificar como inconstitucional – a introdução retroactiva de uma “repercussão legal” como forma de travar indiscriminadamente os reembolsos aos sujeitos passivos – com o efeito colateral de alimentar, ou incrementar, as pretensões dos “repercutidos”.

E há ainda a forma incongruente de reagir a esse perigo, e que consiste em, ao mesmo tempo:

  • invocar a repercussão contra os próprios sujeitos passivos da CSR, alegando que, tendo ocorrido essa repercussão, esses sujeitos enriqueceriam sem causa se lhes fosse reembolsado o tributo;
  • não reconhecer legitimidade activa aos repercutidos, mesmo na hipótese de comprovação de uma repercussão económica integral, eventualmente invocando o litisconsórcio necessário com os repercutentes, insistindo no chamamento à demanda destes sujeitos passivos.

Desta combinação de reacções – insistir na repercussão e depois negar-lhe efeitos – pode resultar um obstáculo importante à possibilidade de duplicação de reembolsos, mas resulta também uma atitude incongruente, claramente incongruente, da Requerida, a AT.

Pode, com efeito, admitir-se que a AT insista em apegar-se a um círculo legal estrito de legitimidade activa – nomeadamente assumindo que apenas os sujeitos passivos que declararam a introdução dos produtos para consumo, e efectuaram o pagamento do imposto, podem solicitar a anulação das liquidações e o reembolso por erro na liquidação.

Mas não pode admitir-se que a AT, esgrimindo o argumento da repercussão – o mesmo argumento que recusa aos repercutidos – procure furtar-se a reembolsar o imposto, seja aos sujeitos passivos que pagaram o imposto, seja aos repercutidos sobre os quais tenha comprovadamente recaído, seja parte, seja a totalidade, do suporte económico daquele pagamento.

Negando-se injustificadamente a reembolsar, seja a quem for, um imposto ilegal, será o Estado a locupletar-se, sem causa, com receitas tributárias indevidas.

Impõe-se reconhecer que, não obstante o apoio de princípio que é concedido por lei à posição dos repercutidos, posto que residual, o simples ónus probatório que sobre eles recai é estruturalmente impraticável – bastando pensarmos que, na ausência de “repercussão formalizada”, as repercussões são eventuais efeitos de transacções que ocorrem após a introdução no consumo, a jusante dos sujeitos passivos na relação de imposto, independentemente do número de clientes ou de intervenientes na cadeia de abastecimento e comercialização, pelo que cada uma dessas transacções não tem que ter por base um acto de liquidação específico, o que pode inviabilizar, completa e definitivamente, a identificação, em concreto, do acto tributário que lhe está subjacente.

É razoável, assim, o argumento de que somente o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo, a quem foi liquidado o imposto e que efectuou o correspondente pagamento, reúne condições para identificar, com segurança, os actos de liquidação, para solicitar a respectiva revisão com vista ao reembolso dos montantes cobrados – sendo que essa informação escapa, em princípio (salvo contraprova, estruturalmente impossível), aos repercutidos a jusante dessas entidades responsáveis pela introdução dos produtos no consumo e pelo pagamento da CSR.

O que é reprovável, e causa perplexidade, é a dualidade de critérios da AT, e a evidente incongruência da argumentação, que podemos formular ainda de outro modo:

  • Nos processos arbitrais em que sejam requerentes os sujeitos passivos, a AT defende a ilegitimidade processual deles, na medida em que, alega, o encargo da CSR é, na verdade, suportado pelo consumidor final;
  • Nos processos arbitrais em que sejam requerentes os repercutidos, a AT sustenta que estes não têm legitimidade, por não serem os sujeitos passivos do tributo, os “repercutentes”.

 

V.B.6- A posição do TJUE quanto à necessidade de prova da repercussão

 

Quando, na verdade, e como ficou estabelecido no Despacho do TJUE proferido no Proc. nº C-460/21, o reembolso duplicado, ou multiplicado, é evitado pela prova, ou falta de prova, da repercussão: se não tiver havido repercussão ou ela não for provada, só o sujeito passivo tem direito ao reembolso; se tiver havido repercussão integral, e esta for provada (se não houver “descontos” ou “bónus”), e não existirem efeitos comprovados ao nível de “volume de vendas”, só o repercutido terá direito ao reembolso; e o reembolso será parcial, e reverterá exclusivamente para o sujeito passivo, em caso de ter havido, e ser comprovada, uma repercussão parcial, e em caso de qualquer reembolso do repercutente originar enriquecimento sem causa:

“(…) um Estado-Membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da União quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por uma pessoa diferente do sujeito passivo e quando o reembolso do imposto conduzisse, para este sujeito passivo, a um enriquecimento sem causa. Daqui resulta que, se só tiver sido repercutida uma parte do imposto, as autoridades nacionais só estão obrigadas a reembolsar o montante não repercutido.” [§ 42]

Em suma, não havia – nem há, porque seria inconstitucional – uma repercussão legal de CSR.

Mas, mesmo que houvesse, ela não poderia sobrepor-se à exigência de comprovação da repercussão, estabelecida pelo TJUE no despacho proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no Proc. C-460/21, tendo por objecto um pedido de decisão prejudicial apresentado no âmbito do processo n.º 564/2020-T:

A obrigação de reembolsar os impostos cobrados num Estado-Membro em violação das disposições da União conhece apenas uma exceção. Com efeito, sob pena de conduzir a um enriquecimento sem causa dos titulares do direito, a proteção dos direitos garantidos na matéria pela ordem jurídica da União exclui, em princípio, o reembolso dos impostos, direitos e taxas cobrados em violação do direito da União quando seja provado que o sujeito passivo responsável pelo pagamento desses direitos os repercutiu efetivamente noutras pessoas” (§39) (sublinhado nosso)

Para o caso de subsistirem dúvidas quanto à existência de “repercussões legais” ou de “repercussões presumidas”, o mesmo despacho de 7 de Fevereiro de 2022 do TJUE conclui lapidarmente:

O Direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indireto contrário à Diretiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros (…)”

Vale a pena transcrever alguma da fundamentação do despacho, que esclarece plenamente a irrelevância, para o direito da União, de “repercussões legais”, ou de “repercussões presumidas”, mesmo quando elas existam no direito interno dos Estados-membros:

43. Constituindo esta exceção ao princípio do reembolso dos impostos incompatíveis com o direito da União uma restrição a um direito subjetivo resultante da ordem jurídica da União, há que interpretá‑la de forma restritiva, atendendo nomeadamente ao facto de que a repercussão de um imposto no consumidor não neutraliza necessariamente os efeitos económicos da tributação no sujeito passivo.

44. Com efeito, ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos.

45. Não se pode no entanto admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário. Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção.

46. O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão.

47. Além disso, mesmo na hipótese de vir a ser provado que o imposto indevido foi repercutido sobre terceiros, o respetivo reembolso ao operador não implica necessariamente um enriquecimento sem causa por parte deste, visto que a integração do montante do referido imposto nos preços praticados pode dar origem a prejuízos associados à diminuição do volume das suas vendas.”

Daqui decorre, novamente em consonância com o decidido pelo TJUE, que o Estado não pode recusar a restituição do imposto com fundamento numa presunção de repercussão do mesmo, e consequente enriquecimento sem causa do sujeito passivo.

Não havendo prova concreta de efectiva repercussão, e de repercussão plena, do imposto, mas meros juízos presuntivos, e não havendo prova de que a repercussão que tenha existido não tenha redundado numa quebra de vendas e de receitas dos sujeitos passivos e demais “repercutentes” a montante das Requerentes, e que portanto a restituição redunde necessariamente em enriquecimento sem causa dos sujeitos passivos, não existe fundamento para recusar aos sujeitos passivos o reembolso do imposto indevidamente pago, sendo essa a consequência natural da declaração de ilegalidade das liquidações.

Assim, independentemente de haver, ou não, “repercussão legal”, ou “repercussão presumida” na lei portuguesa – que já vimos não ter havido quanto à CSR, nem à data dos factos, nem posteriormente –, as pretensões das Requerentes só valeriam, nos termos do direito da União, se tivesse sido feita prova de uma repercussão total e efectiva da CSR sobre terceiros, consumada a partir das primeiras transacções dos sujeitos passivos com a respectiva clientela a jusante, e adicionalmente a prova de que as Requerentes são consumidores finais (isto é, sem a possibilidade de também elas repercutirem o tributo); e de que o reembolso da CSR paga não constituiria um efectivo enriquecimento sem causa dos “repercutentes”, ou mesmo dos “repercutidos”.

Resta acrescentar, secundando o TJUE, que a repercussão de um imposto no consumidor não neutraliza necessariamente os efeitos económicos da tributação no sujeito passivo, e, mesmo que viesse a provar-se que o imposto (indevidamente liquidado) foi repercutido sobre terceiros, e o grau em que o foi (necessariamente computando “bónus” e “descontos”), o respectivo reembolso ao operador não implicaria necessariamente um enriquecimento sem causa por parte deste, visto que a integração do montante do referido imposto nos preços praticados pode dar origem a prejuízos associados à diminuição do volume das suas vendas: pelo que sempre seria necessário demonstrar que, nas condições de mercado resultantes do agravamento da tributação, o contribuinte teria beneficiado, ao menos parcialmente, por efeito da repercussão do imposto.

No caso, está ausente qualquer prova de que as margens de lucro dos sujeitos passivos não se reduziram no período em análise, ou a prova de que o volume de vendas dos distintos produtos não sofreu uma redução no mesmo período – para se apurar se o requisito do enriquecimento sem causa, exigido pelo direito da União, se verifica, ou não – voltando a sublinhar-se que a repercussão do imposto, seja ela legal ou económica, não é, só por si, suficiente para alicerçar a excepção de enriquecimento sem causa.

 

V.C. A matéria de excepção.

 

Temos a encarar as seguintes questões suscitadas pela Requerida, na sua defesa por excepção:

 

  1. Excepção da Incompetência do Tribunal em Razão da Matéria
  2. Excepção da Ilegitimidade das Requerentes
  3. Excepção de Ineptidão do Pedido
  4. Excepção de Caducidade do Direito de Acção

 

A procedência de qualquer das excepções levará à extinção da instância, com absolvição da Requerida.

A procedência de qualquer das excepções obstará à apreciação do mérito, ao juízo sobre procedência ou improcedência do pedido de pronúncia, à avaliação dos fundamentos e da prova do pedido.

Dado que são de verificação alternativa – ou seja, dado que a procedência de qualquer delas será suficiente para obstar à decisão de mérito, prejudicando o conhecimento das demais – não se impõe qualquer precedência lógica entre elas.

Resulta da lei, contudo, que o conhecimento da incompetência do tribunal deve preceder o da ineptidão que torna nulo o processo - arts. 278.º, 1, a) e b) e 595.º, 1, a) do CPC. Tal como o conhecimento da ineptidão deve preceder o de todas as restantes excepções (Acórdão TRC de 21.11.2023, proc. 158/19.5T8LRA.C2. Rel: Arlindo Oliveira).

 

V.C.1. A excepção de incompetência do Tribunal em razão da matéria

 

Temos por não-verificada esta excepção.

A CSR era, não obstante a sua designação, um verdadeiro e próprio imposto, uma extensão do ISP, finalmente reincorporada nele.

Se o Tribunal é competente para apreciar actos de repercussão, é uma questão que se envolve nos temas da ineptidão e da ilegitimidade, pelo que não o temos por inequivocamente decisivo para a verificação da competência.

E quanto à alegada instrumentalização do pedido a objectivos de apreciação abstracta de actos legislativos, ela é refutada pela formulação expressa do pedido e pela argumentação das partes, e pela ostensiva inutilidade de um tal objectivo, se tivesse existido, dada a precedência de jurisprudência decisiva do TJUE, centrada no Despacho de 7 de Fevereiro de 2022, proferido no Processo n.º C-460/21 (Vapo Atlantic).

 

V.C.2. A excepção de ineptidão do pedido

 

Concentremo-nos, então, na excepção da ineptidão do pedido, centrada no facto de o pedido de pronúncia arbitral ter como objecto actos de liquidação que não são sequer identificados, e as Requerentes arguirem, em vez disso, a invalidade da lei, por se crerem legitimados através de actos de repercussão.

Mesmo que a questão não tivesse sido suscitada, a ineptidão da petição inicial é de conhecimento oficioso, nos termos do art. 196.º do CPC (aplicável ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT).

Mas o facto é que a Requerida invocou a excepção da ineptidão da petição inicial, por entender que a não-identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral compromete irremediavelmente a finalidade da petição inicial, dada a violação do art. 10.º, 2, b) do RJAT:

Artigo 10.º (Pedido de constituição de tribunal arbitral)

(…)

2 - O pedido de constituição de tribunal arbitral é feito mediante requerimento enviado por via electrónica ao presidente do Centro de Arbitragem Administrativa do qual deve constar:

(…)

b) A identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral;

(…)”

Podendo invocar-se igualmente o art. 78.º do CPTA (aplicável ex vi art. 29.º, 1, c) do RJAT):

Artigo 78.º (Requisitos da petição inicial)

(…)

2 - Na petição inicial, deduzida por forma articulada, deve o autor:

(…)

e) Identificar o ato jurídico impugnado, quando seja o caso;

f) Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação;

(…)”

Ou ainda o art. 108.º do CPPT:

1 - A impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o ato impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido.”

Sendo que as Requerentes não só não identificam esses actos, como não os comprovam, apresentando facturas que as Requerentes julgam servirem como prova bastante de uma repercussão que elas próprias entendem, erradamente, ser uma repercussão legal, e, por isso, presumida.

E, no entanto, logo na comunicação enviada em 20 de Fevereiro de 2024, antes mesmo da constituição do Tribunal, a AT advertia as Requerentes de que “Conforme dispõe expressamente a alínea b), do n.º 2, do artigo 10.º do RJAT, do requerimento em que é formulado o pedido de constituição de tribunal arbitral deve constar a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral”, e por isso solicitava que “seja(m) identificado(s) o(s) ato(s) de liquidação cuja legalidade o requerente pretende ver sindicada”, solicitação à qual as Requerentes mais tarde reagiram com a entrega das declarações da sua fornecedora de combustíveis.

Ficando, por isso, por estabelecer qualquer conexão entre aquilo que as Requerentes alegam e aquilo que documentaram – uma omissão agravada pela circunstância de as repercussões não terem necessária conexão com uma única introdução no consumo, não podendo estabelecer-se, entre liquidações e repercussões de IEC, quaisquer relações biunívocas.

Vimos que as Requerentes alegaram terem feito a identificação que lhes competia, sustentando, no pressuposto (errado) da existência de “repercussão legal”, e de uma relação “causal” entre liquidação e repercussão, que a mera entrega de facturas, a documentar as transacções, acrescida das declarações da fornecedora de combustíveis, bastaria como prova da repercussão da CSR.

Na verdade, a identificação dos actos de liquidação carecia de ser feita pelos verdadeiros sujeitos passivos de CSR, que não são parte no processo – e nem sequer estão todos identificados –, e sobre os quais este Tribunal não dispõe de poderes de autoridade, pelo que não seria possível, no caso, recorrer ao regime previsto no art. 429.º do CPC.

Há que reconhecer que não estaria sequer ao alcance da própria AT identificar os actos de liquidação a serem sindicados, por, na ausência de “repercussão formalizada”, ser impossível identificar as DIC e os respectivos actos de liquidação que estiveram subjacentes à introdução no consumo dos produtos que vieram a ser adquiridos pelas Requerentes.

Aliás, a alfândega competente para a liquidação nem sequer é necessariamente a da sede do único sujeito passivo identificado, dependendo do lugar onde são apresentadas as DIC –não sendo de excluir que uma mesma fornecedora de combustíveis tenha acordado a colocação dos produtos nos depósitos do entreposto fiscal de outros operadores económicos, para serem expedidos a partir daí, cabendo, neste caso, a estes operadores económicos submeter a DIC relativa às introduções no consumo e, assim, assumir perante a AT a posição de sujeito passivo do ISP – caso em que os fornecedores dos produtos, como sucede no presente caso, não coincidem sempre, sequer, com o sujeito passivo que introduziu os produtos no consumo (os produtos que vieram a ser adquiridos pelas Requerentes).

Torna-se, assim, impraticável estabelecer uma relação biunívoca entre DIC e transacções a jusante: o circuito económico envolve uma multiplicidade de destinos e de clientes para os produtos após a introdução no consumo, sendo virtualmente impossível, sem uma “repercussão formalizada”, acompanhar todos os passos e transacções que vão da introdução no consumo até ao consumo final – sendo raro, e não podendo presumir-se, que uma única liquidação de ISP e CSR seja referente a uma única transacção, aquela que eventualmente teria tido lugar entre o sujeito passivo dos tributos e um seu único cliente. Sendo normal o oposto, ou seja, que haja uma multiplicidade de transacções a jusante da introdução no consumo – sendo, portanto, que uma factura que documente uma qualquer dessas múltiplas transacções não terá necessária e inequivocamente uma relação com uma única DIC, correspondente à liquidação praticada por uma única alfândega, ou até com os produtos introduzidos no consumo por uma única fornecedora de combustíveis.

Como concluímos no final das considerações prévias relativas à detecção de uma contradição no pedido, verifica-se, manifestamente, quer uma margem de ininteligibilidade na indicação do pedido, quer uma contradição entre o pedido e a causa de pedir.

Quanto à margem de ininteligibilidade “stricto sensu” sobre o objecto – que se reporta ao facto de ficarmos sem saber se o que se pretende é a anulação de liquidações, se a de repercussões – vimos que ela poderia ser eventualmente sanada nos termos do art. 186.º, 3 do CPC (aplicável ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT), na medida em que a Requerida foi respondendo às questões suscitadas sem se deixar enredar nesse impasse relativo à definição do objecto imediato da acção, apenas realçando as insuficiências probatórias emergentes de tal indefinição de objecto. E vimos que as Requerentes procuraram defender-se, sustentando – ainda que com alguma incongruência relativamente ao que apresentaram como prova – que o objecto da impugnação, as liquidações, não deve confundir-se com um simples meio de legitimação, que são as repercussões.

Mesmo assim, não se negará o princípio de que:

a petição inicial de impugnação que não identifica o acto tributário impugnado, que não formula a pretensão concreta por referência àquele e que não indica os factos concretos que justificariam a adopção da providência judiciária requerida é inepta” (Acórdão do TCAS de 30-06-2022, Proc. n.º 138/17.5BELRS).

Mas também referimos que será mais difícil sanar a contradição entre o pedido e a causa de pedir:

  • o pedido, formalmente, é a anulação das liquidações e do indeferimento tácito da revisão dessas liquidações – e é-o formalmente, porque é assim que está inicialmente formulado o pedido de pronúncia.
  • a causa de pedir é a invalidade de um tributo ilegalmente liquidado, por desconformidade desse tributo com o Direito da União, presumindo-se a respectiva repercussão, para efeitos de reembolso do que foi repercutido – isto, relativamente a um tributo cuja liquidação não se provou, por se assentar na ideia errada de que vigorava para esse tributo um regime de repercussão legal, e de que, de um tal regime, decorria que a repercussão pudesse ser presumida, seja no seu quid, seja no seu quantum, permitindo inferir, da ilegalidade das liquidações, a lesão jurídica do interesse tutelado das Requerentes através das repercussões que suportaram, fosse qual fosse o nexo entre liquidações e repercussões.

Estando nós perante uma acção de anulação, a causa de pedir é “a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido” (art. 581.º, 4 do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT).

Não tendo legitimidade para impugnar directamente a liquidação – porque, muito simplesmente, não foram partes nela, e nem sequer a conseguem identificar – as Requerentes tentam alcançar o efeito equivalente apoiando-se numa presunção de repercussão, para encontrarem na repercussão o acto de que elas se julgam parte legítima, o veículo “legitimador” através do qual é atingido o seu interesse legalmente tutelado.

E fazem-no por implicitamente reconhecerem que é impossível anular, ainda que parcialmente, actos de liquidação não-identificados – apegando-se, pois, à facturação, que, no seu entendimento quanto à natureza “legal” da repercussão, as Requerentes julgam ser suficiente para identificar este outro acto tributário inválido.

Na verdade, esta contradição é fatal para o prosseguimento da acção, comprometendo irremediavelmente a sua finalidade, porque este tribunal pode pronunciar-se sobre a legalidade de liquidações, que são actos tributários, mas não pode pronunciar-se sobre a invalidade que alegadamente inquinaria fenómenos de repercussão económica lesivos de interesses protegidos, e que não são actos tributários: pelo que o pedido poderia ser apreciado por este tribunal, mas não com uma tal causa de pedir.

A causa de pedir, além de existir e dever ser inteligível, deve estar em conformidade com o pedido, formando, com a qualificação jurídica, as premissas que constituem o corolário da pretensão formulada[3].

A contradição entre pedido e causa de pedir bastaria para tornar procedente a excepção de ineptidão da petição inicial, nos termos do art. 186.º, 2, b) do CPC (aplicável ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT):

Artigo 186.º (Ineptidão da petição inicial)

1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

2 - Diz-se inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

 

V.C.3. A ineptidão por ininteligibilidade do pedido. O obstáculo da ausência de “repercussão formalizada”

 

Ocorre, aqui, uma ininteligibilidade em sentido amplo.

Por causa do entendimento que erradamente perfilharam sobre a natureza da repercussão da CSR, as Requerentes não trouxeram para os autos a documentação que, ao menos, pudesse comprovar a liquidação conjunta de ISP e de CSR pelos verdadeiros sujeitos passivos – ao menos aquele sujeito passivo que foi identificado –, nomeadamente as Declarações de Introdução no Consumo (DIC, art. 10.º do CIEC), ou o Documento Administrativo Único / Declaração Aduaneira de Importação (DAU / DAI), de forma a, subsequentemente, permitir imputar, a esses valores totais da introdução no consumo, a parte de combustível vendida a elas Requerentes – antes mesmo de qualquer prova, igualmente necessária, relativa ao quid e ao quantum da repercussão económica.

Na ausência desses elementos mínimos, como fazer, sequer, a prova de liquidação à qual o próprio direito da União obriga, removendo presunções que pudessem prejudicar a legitimidade activa dos sujeitos passivos – em eventual benefício de uma legitimidade sucedânea de “repercutidos”?

Estamos, assim, perante um caso de ininteligibilidade “lato sensu” – uma insusceptibilidade de identificar, com o rigor mínimo atendível, o objecto do processo: o acto ou actos tributários objecto do pedido, o acto ou actos jurídicos impugnados.

Atendamos, especificamente, às implicações da ausência de “repercussão formalizada”, à qual já aludimos, lembrando que, quanto à identificação e comprovação dos actos de liquidação, na CSR não se passavam as coisas do mesmo modo que sucede no IVA.

No IVA, os actos de repercussão do imposto no preço cobrado ao adquirente ocorrem anteriormente à liquidação de IVA propriamente dita, determinando a quantificação e a determinação temporal precisas – criando uma correspondência exacta entre o acto de repercussão e a liquidação de IVA.

Mas, no caso da CSR, e não obstante poder admitir-se a existência de um montante não-quantificado de repercussão económica, os actos de repercussão não só não estavam formalmente ligados ao acto de liquidação, como nem sequer podiam está-lo, dada a própria mecânica do imposto.

Enquanto no IVA o imposto é devido quando ocorre uma venda ou prestação de serviços (sendo essa transacção que determina o nascimento da obrigação do próprio imposto), no caso da CSR era a introdução no consumo que fazia nascer a obrigação tributária (art.º 8.º do CIEC, aplicável à CSR por remissão do art.º 5.º da Lei que estabelece o regime daquele imposto) – pelo que o facto gerador da CSR ocorria sem qualquer conexão com a transacção em que essa mesma CSR pudesse vir a ser, ou não, total ou parcialmente, repercutida.

Na CSR, era possível a um sujeito passivo entregar uma declaração de introdução no consumo (DIC), dando origem a uma liquidação de CSR, e não vender qualquer combustível nesse mesmo período – tal como lhe era possível vender, num determinado período, combustível introduzido no consumo, e sujeito a ISP, CSR e outros, em períodos anteriores àquele em que vendia.

Mais amplamente, e ao contrário do que sucede com o Imposto de Selo ou com o IVA, em sede de IEC não é possível a identificação dos actos de liquidação a partir das transacções a jusante, sendo que as quantidades de combustível vendidas não têm por base um acto de liquidação específico, não constando das facturas um valor discriminado do valor dos IEC.

E por isso o imposto monofásico recai sobre os sujeitos passivos, e não impacta formalmente nas vendas subsequentes, que podem envolver uma extensa multiplicidade de intermediários e consumidores finais – e essa a razão pela qual todos esses participantes subsequentes no circuito de distribuição de combustíveis são excluídos da legitimidade para pedir reembolsos, nos termos dos arts. 15.º e 16.º do CIEC.

Ou seja, na ausência de uma “repercussão formalizada”, ao estilo do IVA, não seria, nem é, possível, nem às Requerentes, nem ao Tribunal, nem à Autoridade Tributária, identificar as liquidações de CSR às quais corresponderiam – a existir repercussão – as facturas dadas como prova. Só as entidades fornecedoras, na melhor das hipóteses, poderiam efectuar uma tal correspondência entre as facturas emitidas e a CSR. Mas tal correspondência não foi realizada; e decerto não o foi com as listas e facturas entregues, as quais nem esboçam (nem podiam) uma tentativa de identificação das liquidações, e do nexo, em cada período ou em cada bloco de transacções, entre liquidações e repercussões (e “descontos”, que podem funcionar como repercussões a montante).

Como, em suma, na ausência de identificação bastante dos únicos actos tributários relevantes – as liquidações originais das quais emerge tudo o resto, se define a própria condição dos “repercutentes”, e a posição dos “repercutidos” –, satisfazer o pedido a partir de uma causa de pedir (a invalidade de um tributo através de uma repercussão tida por “legal”) ostensivamente contraditória com ele, incompatível com ele, à luz do direito português e do direito europeu?

A deficiência na formulação da causa de pedir, e na sua articulação com o pedido, verifica-se quando falte totalmente a indicação dos factos que constituem o núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo concedentes do direito em causa (no caso, a invalidade da repercussão que as Requerentes consideram ter suportado – a repercussão que legitimaria uma impugnação a partir da sua posição – externa à relação jurídica de imposto).

E é isso que determina a nulidade do processo.

E não se diga que as Requerentes fizeram referência às liquidações de CSR da melhor forma que podiam: pelo contrário, desvalorizaram-nas, entendendo-as presumidas, e não carecidas de prova sua, por força de um regime legal que supuseram ser o vigente (regime que, refira-se, também não dispensaria a prova mínima que aqui faltou – porque a presunção de que houve repercussão não pode abarcar, obviamente, a presunção de que houve liquidação, tendo de provar-se que houve liquidação, e qual foi a liquidação).

Não cabendo a este tribunal emitir juízos de equidade (art. 2.º, 2 do RJAT), não terão aqui cabimento considerações sobre a desculpabilidade de um tal erro de direito, ou se um tal erro pode, ou não, aproveitar a quem o cometeu.

A procedência da excepção de ineptidão da petição inicial determina a nulidade de todo o processo (art. 186.º, 1 do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT).

Trata-se de uma nulidade insanável (art. 98.º, 1, a) do CPPT), e de uma excepção dilatória (art. 577.º, b) do CPC), que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância – não obstando, portanto, a que se proponha outra acção sobre o mesmo objecto (arts. 278.º, 1, b) e 2, 279.º e 576.º, 2 do CPC).

Mas obstando, de imediato, ao conhecimento das demais excepções, nada podendo inferir-se, da sua não-consideração por prejudicialidade, quanto à procedência ou improcedência de cada uma delas para efeitos de absolvição da instância ou do pedido.

 

V.D – Aplicação uniforme do Direito.

 

Na fundamentação da decisão, e em obediência ao princípio geral consagrado no art. 8.º, 3 do Código Civil, seguimos de perto as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.os 564/2020-T, 304/2022-T, 305/2022-T, 644/2022-T, 665/2022-T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T, 295/2023-T, 296/2023-T, 298/2023-T, 332/2023-T, 364/2023-T, 374/2023-T, 375/2023-T, 398/2023-T, 408/2023-T, 409/2023-T, 410/2023-T, 438/2023-T, 465/2023-T, 466/2023-T, 467/2023-T, 486/2023-T, 490/2023-T, 523/2023-T, 534/2023-T, 537/2023-T, 605/2023-T e 669/2023-T, todos do CAAD[4].

 

V.E – Questões prejudicadas.

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, pela ordem disposta pelo art. 124.º do CPPT, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29.º, 1, c) e e) do RJAT.

 

VI. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Declarar nulo o processo, por ineptidão da petição inicial;
  2. Absolver da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira;
  3. Condenar as Requerentes no pagamento das custas do processo.

 

VII. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 277.002,49 (duzentos e setenta e sete mil e dois euros e quarenta e nove cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, 1, a), do RJAT e art.º 3.º, 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VIII. Custas

 

Custas no montante de € 5.202,00 (cinco mil, duzentos e dois euros) a cargo das Requerentes (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 30 de Julho de 2024

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

 

Hélder Faustino

 

Rui Marrana

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

            Conquanto adira à conclusão de que as Requerentes não lograram comprovar a qualidade de entidade repercutida e lesada no âmbito da relação jurídico-tributária, com todas as consequências para o desfecho deste processo, entendo que a excepção de ineptidão do pedido arbitral é logicamente precedida pela de ilegitimidade das Requerentes, que entendo procedente, o que prejudicaria o conhecimento daquela excepção que veio a prevalecer.

            Antes de mais, sempre se diga que o Tribunal Arbitral é competente para conhecer da

ilegalidade de liquidações de CSR, por se tratar de um imposto, em linha com a argumentação constante da decisão do processo arbitral 304/2022-T, de 5 de Janeiro de 2023. Já em relação aos “actos de repercussão” impugnados, o Tribunal Arbitral não pode conhecer dos mesmos, pois não são actos tributários, não estando prevista a sua sindicabilidade (cfr. artigo 2.º do RJAT). No entanto, como foram, em simultâneo, contestados pelas Requerentes os actos de liquidação de CSR, é sobre estes que recai a pronúncia do Tribunal Arbitral.

            Por outro lado, na situação em análise, as Requerentes invocam a qualidade de repercutido legal para deduzir a acção arbitral.

            Vejamos,

            Importa começar por notar que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do artigo 18.º, n.º 3, da LGT, pelo que, não sendo parte em contratos

fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um

interesse legalmente protegido (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT).

            Apesar de o repercutido não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT pressupõe que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjectiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”.

            A lei implica desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente

protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do

CPPT).

            Afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, que instituiu a CSR, não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objectivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (cfr. artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil).

            Infere-se do articulado das Requerentes que estas legitimam a sua intervenção processual no facto singelo de lhe ter sido repercutida a CSR pelas empresas distribuidoras de combustíveis.

            Contudo, importa, antes de mais, salientar que a repercussão económica não é, por si só,

atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, ou seja, que mereça a tutela do direito substantivo. Além de que as Requerentes não têm a qualidade de “consumidor” de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos impostos especiais sobre o consumo.

            Na verdade, e começando por esta última parte, as Requerentes são sociedades comerciais que se dedicam à actividade de comércio por grosso de tabaco, livros, revistas e jornais e transporte rodoviário de mercadorias. Desta forma, o combustível adquirido é um factor de produção no circuito económico (de uma cadeia de comercialização de bens), um gasto da actividade comercial realizada pelas Requerentes, não configurando um consumo final.

            Acresce que, nos termos da Lei que prevê a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto), não existe qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo do ponto de vista económico. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1, da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.” Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma. Nem se identifica como prevendo tal repercussão a norma do artigo 3.º, n.º 1, da mesma lei que diz que a CSR “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”. Importa também assinalar, com relevância para esta questão, que a remissão para o CIEC efectuada pela Lei da CSR é expressamente circunscrita aos procedimentos de “liquidação, cobrança e pagamento”.

            Em resultado do acima exposto, é possível concluir, em síntese, o seguinte: (i) a referida Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém

qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica; (ii)

a Requerente não é consumidor final, o que significa que os gastos em que incorre são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços; (iii) se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis às Requerentes, não há razões para crer que estas, no exercício de uma actividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenham também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes.

            Ora, não sendo as Requerentes o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legais desta contribuição, não lhes assiste legitimidade processual, a menos que, como interessadas, aleguem e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, ou seja, a menos que evidencie a existência de um interesse directo e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre a mesma impende.

            Contudo, o único facto que as Requerentes alegam para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR. Qualificam esta repercussão, erradamente, como legal. Recorde-se que essa repercussão – a ser “legal” –, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza (a qual, porém, não existe).

            Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a Lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve

constituir encargo.

            Rigorosamente, as Requerentes são tão-só clientes comerciais do sujeito passivo que liquidou a CSR. Não são o sujeito passivo dos actos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integram, nem são parte da relação tributária, nem são repercutidos legais. E também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenham sido as Requerentes a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas: (i) que a CSR foi repercutida às Requerentes, quais os montantes e em que períodos; (ii) que, por sua vez, o preço dos serviços que presta aos seus clientes não comporta a repercussão de CSR (ou a medida em que não a comporta, se se tratar de repercussão parcial), por forma a poderem sustentar que suportaram, de forma efectiva, o encargo do imposto e o respectivo quantum.

            As Requerentes limitaram-se a juntar declarações genéricas do fornecedor de combustíveis, a qual está longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. De notar, ainda, que das facturas do fornecedor de combustíveis anexas ao pedido arbitral apenas constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas facturas qualquer referência a montantes pagos a título de CSR, sendo absolutamente omissas nesse aspecto. Não logrou, por isso, atestar que suportou o tributo contra o qual reage. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutidos legais da CSR.

            Aliás, compreende-se que o legislador não tenha adoptado um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma

tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento / duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplo(s) repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.

            De assinalar, adicionalmente, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao

actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respectiva liquidação precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (cfr. Acórdão de 1 de Outubro de 2003, processo n.º 0956/03).

            A procedência da excepção dilatória de ilegitimidade das Requerentes obstaria a que o Tribunal Arbitral conhecesse a questão de fundo e demais questões suscitadas (cfr. artigo 608.º do CPC) e teria determinado igualmente a absolvição das Requeridas da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a), e 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea e), do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT.

 

Hélder Faustino

 

 



[1] A jurisprudência do STA já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tinha legitimidade para impugnar a respectiva liquidação, precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (cfr. Acórdão de 1 de Outubro de 2003, Proc. n.º 0956/03).

[2] “A Contribuição de Serviço Rodoviário e a Legitimidade Processual dos Consumidores Finais”, e “A Contribuição de Serviço Rodoviário: Enquadramento e Desenvolvimentos Recentes”, edições de Agosto de 2022 e de Março de 2023 da Newsletter do Tax Litigation Team encabeçado por Rogério Fernandes Ferreira, disponível em https://www.rfflawyers.com/pt/know-how/newsletters/a-contribuicao-de-servico-rodoviario-e-a-legitimidade-processual-dos-consumidores-finais/4579/ e em

https://www.rfflawyers.com/pt/know-how/newsletters/a-contribuicao-de-servico-rodoviario-enquadramento-e-desenvolvimentos-recentes-marco-2023/4755/

[3] António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta & Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I- Parte Geral e Ação Declarativa, 2.ª ed., p. 232.

[4] Processos n.os 564/2020-T (Carlos Fernandes Cadilha, Elisabete Louro Martins, Arlindo José Francisco), 304/2022-T (Nuno Cunha Rodrigues, Nina Aguiar, António de Melo Gonçalves), 305/2022-T (Manuel Macaísta Malheiros, Luís Menezes Leitão, Jesuíno Alcântara Martins), 644/2022-T (Fernando Araújo, Nina Aguiar, Francisco Carvalho Furtado), 665/2022-T (Regina de Almeida Monteiro, Alberto Amorim Pereira, António Manuel Melo Gonçalves), 702/2022-T (Fernando Araújo, Catarina Belim, António A. Franco), 24/2023-T (Carlos Fernandes Cadilha, Raquel Franco, Nina Aguiar), 113/2023-T (Carlos Fernandes Cadilha, Sílvia Oliveira, Eva Dias Costa), 294/2023-T (Jorge Lopes de Sousa, Fernando Miranda Ferreira, Catarina Belim), 295/2023-T (Fernando Araújo, Pedro Miguel Bastos Rosado, Jesuíno Alcântara Martins), 296/2023-T (Victor Calvete, Luís Menezes Leitão, Marcolino Pisão Pedreiro), 298/2023-T (José Poças Falcão, Maria Alexandra Mesquita, António A. Franco), 332/2023-T (Victor Calvete, José Nunes Barata, João Menezes Leitão), 364/2023-T (Fernando Araújo, Jesuíno Alcântara Martins, Rui Miguel Sousa Simões Fernandes Marrana), 374/2023-T (Carlos Fernandes Cadilha, Magda Feliciano, Pedro Miguel Bastos Rosado), 375/2023-T (Alexandra Coelho Martins, Miguel Patrício, Maria do Rosário Anjos), 398/2023-T (Fernando Araújo, João Taborda da Gama, Miguel Patrício), 408/2023-T (Alexandra Coelho Martins, Tomás Cantista Tavares, Marcolino Pisão Pedreiro), 409/2023-T (Victor Calvete, Marisa Isabel Almeida Araújo, Ana Rita do Livramento Chacim), 410/2023-T (Jorge Lopes de Sousa, Sílvia Oliveira, Marta Vicente), 438/2023-T (Victor Calvete, António de Barros Lima Guerreiro, Catarina Belim), 465/2023-T (Carlos Fernandes Cadilha, Rui Marrana, António Franco), 466/2023-T (Victor Calvete, Magda Feliciano, Elisabete Flora Louro Martins Cardoso), 467/2023-T (Carla Castelo Trindade, Nina Aguiar, João Pedro Rodrigues), 486/2023-T (Carlos Fernandes Cadilha, Maria Alexandra Mesquita, António Franco), 490/2023-T (Victor Calvete, Hélder Faustino, Amândio Silva), 523/2023-T (Carlos Fernandes Cadilha, João Taborda da Gama, Miguel Patrício), 534/2023-T (Sílvia Oliveira), 537/2023-T (António de Barros Lima Guerreiro), 605/2023-T (Fernando Araújo, Marcolino Pisão Pedreiro, Amândio Silva), 669/2023-T (Fernando Araújo, Catarina Belim, David Nunes Fernandes).