Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 88/2024-T
Data da decisão: 2024-07-26   Outros 
Valor do pedido: € 62.337,13
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário; Pressupostos processuais; Ilegitimidade da Requerente.
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SUMÁRIO:

 

1. Não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade.

 

2. As facturas de venda de combustível e as declarações genéricas de dois dos fornecedores não permitem atestar que a Requerente suportou, efectivamente, o tributo contra o qual reage. E esta seria a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral.

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Fernando Araújo (Presidente), Hélder Faustino (relator) e Pedro Miguel Bastos Rosado, designados pelo CAAD para formar o Tribunal Arbitral Colectivo, constituído em 2 de Abril de 2024, acordam no seguinte:

  1. RELATÓRIO

1. No dia 22 de Janeiro de 2024, na sequência da presunção de indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa apresentado em 26 de Junho de 2023, junto da Direcção de Serviços de Impostos Especiais de Consumo, o contribuinte A..., S.A., com sede na Rua ... ..., ..., ...-..., Lisboa, com número de pessoa colectiva n.º ... (“Requerente”), formulou pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária – RJAT”) e 99.º e seguintes do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida” ou “AT”), solicitando a  declaração de ilegalidade e consequente anulação da decisão tácita de indeferimento do pedido de revisão oficiosa das liquidações de IEC, relativas aos períodos de 05/2019, 06/2019, 07/2019, 08/2019, 09/2019, 10/2019, 11/2019, 12/2019, 01/2020, 02/2020, 03/2020, 05/2020, 06/2020, 07/2020, 08/2020, 09/2020, 10/2020, 11/2020, 12/2020, 02/2021, 03/2021, 04/2021, 05/2021, 06/2021, 07/2021, 08/2021, 09/2021, 10/2021, 11/2021, 12/2021, 01/2022, 02/2022, 03/2022, 04/2022, 05/2022, 07/2022, 08/2022, 09/2022, 10/2022, 11/2022 e 12/2022, liquidadas e pagas pela “B...”, NIPC..., “C...”, NIPC ..., “D..., S.A.”, NIPC..., “E..., Lda.”, NIPC..., “F... Lda.”, NIPC..., “G..., S.A.”, NIPC..., “H..., Unipessoal Lda.”, NIPC..., “ I..., Lda.”, NIPC..., “J... Unipessoal Lda.”, NIPC..., “K..., Lda.”, NIPC..., “L..., S.A.”, NIPC..., “M... Lda.”, NIPC..., “N...– Sociedade Unipessoal, Lda.”, NIPC..., “O..., S.A.” , NIPC..., ”P..., Lda.”, NIPC..., “Q...Unipessoal, Lda.”, NIPC..., “R..., Unipessoal, Lda.”, NIPC..., “S..., S.A.”, NIPC..., “T... Lda.”, NIPC ..., “U..., Lda.”, NIPC..., “V..., Lda”, NIPC..., “W..., Lda.” , NIPC..., “X..., Unipessoal, Lda.”, NIPC..., “Y..., S.A.”, NIPC..., “Z..., Unipessoal, Lda.”, NIPC..., “AA..., S.A.” , NIPC..., “BB..., S.A.”, NIPC ..., “CC..., Lda.”, NIPC..., “DD... S.A.”, NIPC..., “EE..., Lda.”, NIPC..., “FF..., S.A.” , NIPC..., “GG..., Limitada,” NIPC..., “II..., Lda.”, NIPC ..., “..., Lda.”, NIPC..., “J..., Lda.”, NIPC..., “KK..., Lda.”, NIPC..., “LL..., Lda.”, NIPC..., “MM..., Lda.”, NIPC..., na parte correspondente à Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) que foi paga (através do mecanismo de repercussão), e inerente devolução daqueles montantes, acrescidos de juros indemnizatórios.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

 

2.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitros, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os presentes signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, os quais comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

2.2. As Partes foram devidamente notificadas das designações, não tendo manifestado vontade de recusar as mesmas, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

2.3. Por requerimento de 1 de Fevereiro de 2024, a Requerida solicitou a identificação do(s) acto(s) de liquidação cuja legalidade a Requerente pretende ver sindicada. Por Despacho, na mesma data, do Presidente do CAAD, ficou a matéria remetida para decisão do tribunal a constituir.

 

2.4. Por requerimento de 9 de Fevereiro de 2024, no exercício, por iniciativa própria, do direito ao contraditório, a Requerente apresentou resposta ao Requerimento da Requerida. Por Despacho, na mesma data, do Presidente do CAAD, ficou a matéria remetida para decisão do tribunal a constituir.

 

2.4.1. Entende a Requerente que apresentou o pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação da decisão tácita de indeferimento do pedido de revisão oficiosa das liquidações de IEC cuja anulação de peticionou.

 

2.4.2. Alega que identificou o acto de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que tem por objecto as liquidações de IEC identificadas no pedido de pronúncia arbitral.

 

2.4.3. E que não dispondo a Requerente das e-DIC correspondentes a cada período, naturalmente, atenta a forma de processamento da liquidação do tributo em causa, entende ter-se procedido à sua correcta identificação junto do Tribunal Arbitral e da Requerida, nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 74.º, n.º 2, da LGT.

 

2.4.4. Cabendo à Requerida, de toda a forma, fazer chegar esses elementos ao Tribunal Arbitral, enquanto parte do processo administrativo (cf. artigo 17.º, n.º 2, do RJAT e artigo 111.º do CPPT).

 

2.4.5. Alega que caso não o fizesse estaria a Requerida a violar o princípio da cooperação e o princípio da boa-fé (cf. artigo 266.º da CRP, artigos 7.º e 8.º do CPC e artigo 8.º do CPTA), aos quais a Requerida está vinculada, devendo realizar todas as diligencias necessárias à justa resolução do litígio.

 

2.4.6. Defende que a Requerida tem a obrigação de respeitar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, nos termos do artigo 20.º da CRP, sob pena de se restringir o acesso da Requerente aos tribunais.

 

2.5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 2 de Abril de 2024.

 

3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

 

4. A Requerida apresentou resposta em 10 de Maio de 2024, defendendo-se por excepção(ões) e impugnação. Em relação às excepções, a Requerente apresentou em 23 de Maio de 2024, resposta escrita, em respeito do princípio do contraditório.

 

5. Tendo sido exercido o contraditório em matéria de excepção(ões), entendeu o Tribunal Arbitral dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, convidando as Partes a apresentar alegações escritas no prazo sucessivo de 10 dias.

 

6. As Partes não apresentaram alegações.

 

 

  1. SANEAMENTO

 

7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

 

8. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão devidamente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

9. Em face das excepções invocadas (relativas à ineptidão do pedido arbitral por falta de objecto, à ininteligibilidade do pedido e contradição entre este e a sua causa de pedir à ilegitimidade processual e substantiva da Requerente à incompetência do Tribunal em razão da matéria e à caducidade do direito de acção), impõe-se o conhecimento prioritário das mesmas (vd., ponto IV abaixo). Seguir-se-á – se a resposta àquelas o permitir – a análise do mérito do pedido.

 

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO

 

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

10. Com relevância para a presente decisão, consideram-se assentes e provados os seguintes factos:

 

10.1. A Requerente exerce, a titilo principal, a actividade de comércio por grosso de cereais, sementes, leguminosas, oleaginosas e outras matérias-primas agrícolas.

 

10.2. A B...”, NIPC..., “C...”, NIPC ..., “D..., S.A.”, NIPC..., “E..., Lda.”, NIPC..., “F... Lda.”, NIPC..., “G..., S.A.”, NIPC..., “H..., Unipessoal Lda.”, NIPC..., “ I..., Lda.”, NIPC..., “J... Unipessoal Lda.”, NIPC..., “K..., Lda.”, NIPC..., “L..., S.A.”, NIPC..., “M... Lda.”, NIPC..., “N...– Sociedade Unipessoal, Lda.”, NIPC..., “O..., S.A.” , NIPC..., ”P..., Lda.”, NIPC..., “Q...Unipessoal, Lda.”, NIPC..., “R..., Unipessoal, Lda.”, NIPC..., “S..., S.A.”, NIPC..., “T... Lda.”, NIPC ..., “U..., Lda.”, NIPC..., “V..., Lda”, NIPC..., “W..., Lda.” , NIPC..., “X..., Unipessoal, Lda.”, NIPC..., “Y..., S.A.”, NIPC..., “Z..., Unipessoal, Lda.”, NIPC..., “AA..., S.A.” , NIPC..., “BB..., S.A.”, NIPC ..., “CC..., Lda.”, NIPC..., “DD... S.A.”, NIPC..., “EE..., Lda.”, NIPC..., “FF..., S.A.” , NIPC..., “GG..., Limitada,” NIPC..., “II..., Lda.”, NIPC ..., “..., Lda.”, NIPC..., “J..., Lda.”, NIPC..., “KK..., Lda.”, NIPC..., “LL..., Lda.”, NIPC..., “MM..., Lda.”, NIPC..., enquanto empresas que comercializam combustíveis e sujeitos passivos formais de ISP e CSR, forneceram à Requerente gasóleo, sobre os quais incidiu CSR, nos montantes correspondentes às facturas de aquisição de combustíveis (Documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

10.3. A Requerente adquiriu aos fornecedores de combustíveis, 561.595,78 litros de gasóleo (Documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

10.4. Em 26 de Junho de 2023, a Requerente deduziu, junto da Direcção de Serviços dos Impostos Especiais do Consumo e do Imposto sobre Veículos, um pedido de revisão oficiosa com vista à anulação parcial das liquidações de IEC nos exercícios de 05/2019 a 12/2022 – pedido sobre o qual não recaiu, até ao momento, qualquer decisão (Documento n.º 2 e n.º 3 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

10.5. Para tanto, a Requerente alegou que com a aquisição do referido combustível, em resultado da repercussão efectuada pelos fornecedores de combustíveis, suportou, a título de CSR, a quantia global de € 62.337,13 (Documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

10.6. Em 22 de Janeiro de 2024 foi apresentado o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

 

11. Não foi feita prova de que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto em causa, dado que, para fazer tal prova, seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas: i. Que a CSR foi repercutida à Requerente, quais os montantes e em que períodos; ii. Que foi a Requerente que suportou em definitivo o encargo da CSR, ou seja, que no preço dos bens / serviços que presta aos seus clientes não estava abrigada uma segunda repercussão de CSR (e/ou a medida em que não o estava), por forma a poder sustentar que suportou, de forma efectiva, o encargo do imposto. A Requerente limitou-se a juntar as facturas de aquisição de combustível aos seus fornecedores de combustíveis e, bem assim, duas declarações genéricas (G..., Lda. e S..., S.A.), as quais não contêm os elementos concretos indispensáveis à comprovação da alegada repercussão.

 

 

III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

12. O Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

13. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objecto do litígio no direito aplicável (cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

14. A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos.

 

 

  1. APRECIAÇÃO DE EXCEPÇÕES E QUESTÕES PRÉVIAS QUE PODEM OBSTAR (OU NÃO) AO CONHECIMENTO DO MÉRITO DO PRESENTE PEDIDO ARBITRAL

 

       IV.1. INTRODUÇÃO E SEQUÊNCIA

 

15. A questão jurídica material ou de fundo reporta-se à ilegalidade (ou não) da CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, por ser (ou não) um tributo desconforme ao Direito da União Europeia, nomeadamente com o n.º 2 do artigo 1.º da Directiva 2008/118/CE, de 16 de Dezembro de 2008, tendo por base o entendimento sufragado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia de 7 de Fevereiro de 2022, no Processo n.º C-460/21.

 

16. Porém, na resposta, a Requerida invoca várias excepções (muito bem resumidas na resposta da Requerente às excepções invocadas), que, a proceder alguma, obstam ao conhecimento do pedido – e que, por isso, são de decisão prévia e antecedente.

 

17. A decisão arbitral tem de conhecer, em primeiro lugar, estas questões – as quais, a proceder, algum delas, prejudicam o conhecimento das restantes (das questões materiais suscitadas nos presentes autos) – cfr. artigo 608.º do CPC.

 

IV.2. A POSIÇÃO DAS PARTES

 

18. Efectua-se, de seguida, a súmula dos argumentos das partes, sem prejuízo de mais desenvolvimentos aquando da decisão destes temas na decisão arbitral.

 

IV.2.1. DA INEPTIDÃO DO PEDIDO ARBITRAL – DA FALTA DE OBJECTO

 

19. A Requerida defende a ininteligibilidade do pedido e contradição deste com a causa de pedir, alegando que, pelo facto de a Requerente assentar o seu pedido na ilegalidade de um imposto que lhe foi repercutido, não é possível descortinar se se pretende discutir a ilegalidade de uma liquidação de imposto ou da sua repercussão.

 

20. A Requerente considera que não existe qualquer ininteligibilidade do pedido formulado, nem contradição entre este e a causa de pedir: a Requerente alega a ilicitude do tributo repercutido, a qual se traduz na ilicitude da repercussão. A ilegalidade do imposto repercutido torna ilegal a sua repercussão. O pedido formulado nos autos dirige-se à declaração da ilicitude da liquidação, cuja anulação, na parte referente à Requerente, i.e., sobre ela repercutida, se requer. A repercussão constitui parte da causa pedir: é pelo facto de a liquidação ter sido repercutida que a Requerente tem legitimidade para agir. Qualquer pedido destinado à anulação dos efeitos da repercussão mais não é que consequência do conhecimento da ilicitude da liquidação e declaração da sua anulação, devendo o tribunal arbitral constituído condenar a AT nos actos necessários à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, mormente na restituição à Requerente do imposto ilegalmente repercutido.

 

 

 

IV.2.2. DA ILEGITIMIDADE PROCESSUAL E SUBSTANTIVA DA REQUERENTE

 

21. A Requerida defende que a Requerente não dispõe de legitimidade processual e substantiva para apresentação do pedido de revisão oficiosa.

 

22. A Requerente sustenta que resulta clara a incongruência da posição perfilhada pela AT quando afirma nos processos arbitrais em que são Requerentes entidades comercializadoras de produtos petrolíferos que, sendo os consumidores finais quem, na verdade, suporta o encargo do tributo, são estes últimos os contribuintes da CSR e que, por isso, aquelas entidades carecem de legitimidade que sustente a sua pretensão, e, nos processos arbitrais em que são Requerentes consumidores finais do combustível, afirma que estes não têm legitimidade por não serem os sujeitos passivos do tributo. Esta posição é claramente reprovável, bulindo inexoravelmente com o princípio da boa-fé (na vertente de tutela da confiança). Veja-se que todos os actos em matéria tributária que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos são impugnáveis ou recorríveis nos termos da lei. A multiplicidade de intervenientes no circuito económico de venda e de revenda de combustíveis é irrelevante para este efeito, posto que a aplicação correta da jurisprudência do TJUE, cotejada com os efeitos do contencioso de anulação vigente no plano doméstico, será sempre suficiente para, sem mais, eliminar qualquer situação de duplicação de reembolsos e inerente enriquecimento sem causa. Caso se entenda que a Requerente, enquanto repercutida de CSR, se encontra excluída do âmbito de aplicação subjetivo do regime vertido no artigo 78.º da LGT – ou, bem assim, do regime especial de reembolso previsto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, caso se considere ser esse o regime aplicável à CSR – então, sempre se terá de concluir que o ordenamento jurídico doméstico não confere qualquer meio de reação às entidades repercutidas para obterem, eficazmente, a restituição do tributo que tenham indevidamente suportado em violação do direito da União. Essa legitimidade é assegurada, a nível do direito ordinário, tanto a nível procedimental como processual, pelos artigos 18.º, n.º 4, alínea a), 54.º, n.º 2, 65.º e 95.º, n.º 1, da LGT, conjugados com os n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT, aplicáveis aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, na medida em que reconhecem legitimidade procedimental e processual a quem for titular de um interesse legalmente protegido.

 

 

IV.2.3. DA INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL EM RAZÃO DA MATÉRIA

 

23. A Requerida alega que o Tribunal Arbitral constituído não tem competência para julgar a acção em razão da matéria.

 

24. A Requerente defende que segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma contribuição, um imposto, uma taxa ou um direito, à luz do Direito da União Europeia, compete ao Tribunal de Justiça, em função das características objectivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional. Para o Tribunal de Justiça, o tributo instituído pela lei portuguesa – e que este designou por “contribuição” – constitui um imposto porquanto, em virtude do desenho escolhido pelo legislador português, representa uma imposição indireta sem motivo específico e como tal suscetível de frustrar os desideratos de harmonização positiva subjacentes à Directiva 2008/118. Portanto, mesmo que, à luz da jurisprudência nacional, a CSR houvesse de ser qualificada como uma contribuição financeira, nem por isso ela – tal como está desenhada – deixaria de ser um imposto indirecto na aceção da Directiva. Isto sob pena de os Estados-membros poderem, em função da maior ou menor criatividade constitucional em termos de tributos públicos, frustrar os propósitos de harmonização e de neutralidade no plano dos impostos indirectos sobre o consumo. Atentos os princípios da interpretação conforme e do primado do Direito da União Europeia (consagrado no artigo 8.º, n.º 4 da CRP) há que considerar que os dispositivos legais que regulam a CSR devem ser interpretados no sentido de que consagram um imposto indirecto sobre o consumo de produtos petrolíferos. Em consequência, entende a Requerente que se impõe concluir que todos os actos tributários relacionados com a CSR serão plenamente arbitráveis nos termos dos artigos 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, e artigo 2.º do RJAT, improcedendo, em conformidade, a excepção de incompetência material invocada pela AT.

 

 

IV.2.4. SOBRE A CADUCIDADE DO DIREITO À ACÇÃO

 

25. A Requerida alega ainda que a falta de identificação dos actos de liquidação impede a aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa, na medida em que a contagem do prazo para a sua apresentação se inicia a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do acto de liquidação. E considera, por outro lado, que o pedido de revisão oficiosa não poderia ser apresentado no prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, porquanto esse prazo apenas é aplicável quando o acto de liquidação seja imputável a um erro dos serviços, e, na situação do caso, encontrando-se a AT vinculada ao princípio da legalidade e tendo efectuado a liquidação em estrita observância das normas legais, não ocorreu qualquer erro de direito imputável aos serviços.

 

26. A Requerente sustenta, conforme é também jurisprudencialmente aceite, existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pela AT, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, em resultado da obrigação genérica da AT actuar em plena conformidade com a lei. Por outro lado, a existência do erro que constitui fundamento do pedido de revisão é aferida com base nos vícios de ilegalidade que tenham sido arguidos pelo contribuinte na formulação do pedido de impugnação judicial. Sendo que o processo arbitral foi deduzido precisamente para discutir a validade do entendimento adoptado pela AT na decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.

 

 

IV.3. DECISÃO

 

27. Impõe-se o conhecimento prioritário das excepções da incompetência material e da

Ilegitimidade da Requerente, atenta a sua precedência lógica.

 

IV.3.1. QUANTO À (IN)COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL

 

28. O Tribunal Arbitral é competente para conhecer da ilegalidade de liquidações de CSR, por se tratar de um imposto, em linha com a argumentação constante da decisão do processo arbitral 304/2022-T, de 5 de Janeiro de 2023. Neste sentido, reproduzem-se alguns excertos da mencionada decisão:

«Baseando-nos em todas os anteriores contributos jurisprudenciais e doutrinários, mas sobretudo no último acórdão citado do STA, concluímos que não é o simples facto de um tributo ter, desde logo, a designação de “contribuição” (ac. TC n.º 539/2015) e nem o facto de esse tributo ter a respetiva receita consignada (ac. TC n.º 232/2022), que o qualifica automaticamente como “contribuição financeira”; antes é, para tal, necessário, como judicia o STA, que esse tributo tenha com finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”

Com efeito, o sistema tributário comporta tributos que têm a designação de “contribuições” e são verdadeiros impostos, como se extrai, desde logo, do n.º 3 do art.º 4.º da LGT.

Por outro lado, o sistema tributário comporta igualmente impostos que, ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos (estabelecido no art.º 7.º da Lei de Enquadramento Orçamental[5]), têm a sua receita consignada (vg. ac. TC n.º 369/99, de 16.06.1999, proc. 750/98).

Por conseguinte, nem o nomen juris “contribuição”, nem a afetação da receita a uma finalidade específica são suficientes para qualificar um tributo como “contribuição financeira”.

O elemento decisivo para essa qualificação é a existência de uma estrutura de comutatividade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita e os sujeitos passivos do tributo.

[...]

Ou seja, para que possamos afirmar estar-se perante uma “contribuição financeira”, é necessário que as prestações públicas que constituem a contrapartida coletiva do tributo beneficiem ou sejam causadas pelos respetivos sujeitos passivos.

[...]

Entendemos, assim, que o que distingue uma “contribuição financeira” de um imposto de receita consignada é a necessária circunstância, de, na primeira, a atividade da entidade pública titular da receita tributária ter um vínculo direto e especial com os sujeitos passivos da contribuição. Tal vínculo pode consistir no benefício que os sujeitos passivos, em particular, retiram da atividade da entidade pública, ou pode consistir num nexo de causalidade entre a atividade dos sujeitos passivos e a necessidade da atividade administrativa da entidade pública.

A Contribuição de Serviço Rodoviário não cabe em nenhuma destas hipóteses. Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6.º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 55/2007).

Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.

A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1.º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2.º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.

No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4.º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos.

Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.

Nos termos do n.º 1 do art.º 20.º da LGT, “a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte”.

Para que estivéssemos, no caso presente, perante uma situação de substituição tributária, era necessário que os consumidores que pagam o preço dos combustíveis aos revendedores estivessem na posição de “contribuintes”.

Sobre o conceito de contribuintes, o n.º 3 do art.º 18.º diz que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.” De onde se retira que o contribuinte é uma das espécies da categoria “sujeitos passivos” e estes são as pessoas (ou entidades) que estão obrigadas ao pagamento da prestação tributária, o que não acontece com os consumidores dos combustíveis. Concluímos, assim, que não estamos perante uma situação de substituição, pelo que os sujeitos passivos da CSR são igualmente os respetivos contribuintes diretos.

Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.

Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.

[...]”.

 

29. Em relação aos “actos de repercussão” impugnados, o Tribunal Arbitral não pode conhecer dos mesmos, pois não são actos tributários, não estando prevista a sua sindicabilidade (cfr. artigo 2.º do RJAT). No entanto, como foram, em simultâneo, contestados pela Requerente os actos de liquidação de CSR, é sobre estes que recai a pronúncia do Tribunal Arbitral.

 

 

IV.3.2. SOBRE A EXCEPÇÃO DE ILEGITIMIDADE DA REQUERENTE

 

30. Não consta do RJAT a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, como previsto na closure rule do artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, em concreto e de acordo com a natureza dos casos omissos, das normas de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC.

 

31. A regra geral do direito processual, que emana do artigo 30.º do CPC, é a de que é parte legítima quem tem “interesse directo” em demandar , sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade activa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (cfr. artigo 9.º, n.º 1, do CPTA).

 

32. A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um acto tributário , cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da LGT, como “a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.”.

 

33. No domínio tributário, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a AT, agindo como tal, e as pessoas singulares ou colectivas e entidades equiparadas (cfr. artigo 1.º, n.º 2, da LGT).

 

34. O CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT). No mesmo sentido, ainda que referindo- se somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”.

 

35. De notar que, em relação aos responsáveis (sujeitos passivos não originários, tal como os substitutos), o legislador teve a preocupação de justificar a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Quanto aos responsáveis solidários, deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (cfr. artigo 9.º, n.º 2, do CPPT). No tocante aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do CPPT). Em ambas as situações, apesar de não corresponderem à figura do sujeito passivo originário, constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias, o que sucede igualmente com o substituto.

 

36. Na situação em análise, a Requerente invoca a qualidade de repercutido legal para deduzir a acção arbitral.

 

37. Importa começar por notar que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3, da LGT, pelo que, não sendo parte em relações jurídicas fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT).

 

38. Apesar de o repercutido não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT pressupõe que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjectiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT).

 

39. Neste âmbito, assinala LIMA GUERREIRO, em anotação ao artigo 18.º, n.º 4, da LGT, refere que o preceito “admite que, da repercussão do IVA, possa resultar a lesão de um interesse legitimamente protegido (é no mesmo sentido a anotação de Saldanha Sanches ao referido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, in ‘Fisco’, número 28, pgs. 29 e sgs.). Essa lesão será suficiente para a fundamentação de impugnação judicial ou, se verificasse que este não era o meio apropriado dado o princípio constitucional da tutela plena e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido. A fórmula utilizada declara expressamente, no entanto, a possibilidade de reclamação, impugnação ou recurso contra repercussão ilegalmente efectuada pelo sujeito passivo do IVA, imposto de selo ou de outros tributos sujeitos a mecanismo idêntico, pelo que se infere implicitamente não ser em geral a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse, mas a impugnação judicial o meio adequado para reacção contra a repercussão ilegal do imposto, por razões certamente resultantes da similitude da lesão causada por acto ilegal de liquidação e da lesão resultante de repercussão ilegal e do facto de, no nosso sistema processual tributário, a impugnação não visar necessariamente efeitos meramente demolitórios do acto tributário mas também a reparação de qualquer lesão sofrida pelo impugnante. [...]. O não ser sujeito passivo não quer dizer obrigatoriamente ilegitimidade para intervir no procedimento, em caso de lesão de direito ou interesse legalmente protegido de qualquer natureza.”.

 

40. No entanto, afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, que instituiu a CSR, não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários).

 

41. Infere-se do articulado da Requerente que esta legitima a sua intervenção processual no facto singelo de lhe ter sido repercutida a CSR pelas empresas distribuidoras de combustíveis.

 

42. Contudo, importa, antes de mais, salientar que a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, ou seja, que mereça a tutela do direito substantivo.

 

43. Acresce que, nos termos da Lei que prevê a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto), não existe qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo do ponto de vista económico. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1, da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”  Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma. Nem se identifica como prevendo tal repercussão a norma do artigo 3.º, n.º 1, da mesma lei que diz que a CSR “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”.

 

44. Importa também assinalar, com relevância para esta questão, que a remissão para o Código do IEC efectuada pela Lei da CSR é expressamente circunscrita aos procedimentos de “liquidação, cobrança e pagamento”.

 

45. Em resultado do acima exposto, conclui-se, em síntese, o seguinte:

 

i. A referida Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;

ii. A Requerente não é consumidor final, o que significa que os gastos em que incorre são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;

iii. Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis à Requerente, não há razões para crer que esta, no exercício da sua actividade, não tenha também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes.

 

46. Ora, não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, ou seja, a menos que evidencie a existência de um interesse directo e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre a mesma impende.

 

47. Contudo, o único facto que a Requerente alega para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR. Qualifica esta repercussão, erradamente, como legal, invocando timidamente o disposto no artigo 2.º do Código do IEC.  Recorde-se que essa repercussão – a ser “legal” –, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza (a qual, porém, não existe).

 

48. Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a Lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo.

 

49. Rigorosamente, a Requerente é tão-só cliente comercial do sujeito passivo que liquidou a CSR. Não é o sujeito passivo dos actos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integra, nem é parte da relação tributária, nem é repercutido legal. E também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:

 

i. Que a CSR foi repercutida à Requerente, quais os montantes e em que períodos;

ii. Que, por sua vez, o preço dos bens / serviços que presta aos seus clientes não comporta a repercussão de CSR (ou a medida em que não a comporta, se se tratar de repercussão parcial), por forma a poderem sustentar que suportou, de forma efectiva, o encargo do imposto e o respectivo quantum.

 

50. A Requerente limitou-se a juntar as facturas dos seus fornecedores de combustíveis e, bem assim, duas declarações genéricas emitidas pela G..., Lda. e pela S..., S.A, que estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. Com efeito, das facturas anexas ao pedido arbitral apenas constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas qualquer referência a montantes pagos a título de ISP ou CSR, sendo absolutamente omissas nesse aspecto. Não logrou, por isso, atestar que suportou o tributo contra o qual reage. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legal da CSR.

 

51. Aliás, compreende-se que o legislador não tenha adoptado um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento / duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplo(s) repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.

 

52. Por fim, não se diga que a Requerente ficou desprovida de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma acção civil de repetição do indevido instaurada contra o seu fornecedor, se reunirem os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de Outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspectiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efectiva (cfr. artigo 20.º da Constituição).

 

53. De assinalar, adicionalmente, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respectiva liquidação precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (cfr. Acórdão de 1/10/2003, processo n.º 0956/03).

 

54. Em face do exposto, deve julgar-se verificada a excepção de ilegitimidade da Requerente, constituindo a mesma excepção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal Arbitral conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a), e 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea e), do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT.

 

 

IV.3.3. SOBRE A INEPTIDÃO DO PEDIDO ARBITRAL, A ININTELIGIBILIDADE DO PEDIDO E CONTRADIÇÃO ENTRE ESTE E A SUA CAUSA DE PEDIR E A CADUCIDADE DO DIREITO À ACÇÃO

 

55. Perante o que se concluiu quanto à ilegitimidade da Requerente, é desnecessário o pronunciamento sobre os temas da ineptidão do pedido arbitral por falta de objecto, por ininteligibilidade do pedido ou por contradição entre este e a sua causa de pedir, e da caducidade do direito à acção, nos termos do artigo 608.º do CPC, porque prejudicados pela decisão dada ao tema da ilegitimidade.

 

 

  1. DECISÃO

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral:

• Julga não verificada a excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade de actos de liquidação de CSR;

• Julga verificada a excepção de incompetência para apreciar a legalidade de actos de repercussão de CSR, absolvendo a Requerida quanto a esta parte da instância;

• Julga verificada a excepção de ilegitimidade (activa) da Requerente, constituindo uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal Arbitral conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a), e 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea e), do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT;

• Condena a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 62.337,13 (sessenta e dois mil, trezentos e trinta e sete euros e treze cêntimos), nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

  1. CUSTAS

Custas a cargo da Requerente, no montante de € 2.448,00 (dois mil, quatrocentos e quarenta e oito euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT.

 

Notifique-se

Lisboa, 26 de Julho de 2024

 

Os Árbitros,

 

Fernando Araújo, Presidente

 

(ressalvando que julgo verificada a excepção de ineptidão por ininteligibilidade do pedido, e que entendo que ela teria precedência lógica sobre as outras duas excepções, que considero igualmente verificadas)

 

Hélder Faustino, Relator

 

Pedro Miguel Bastos Rosado, Vogal

(vencido nos termos da declaração anexa)

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.

 

Declaração de voto de vencido

 

Votei vencido quanto a questão da procedência da excepções de incompetência e de ilegitimidade, pelas seguintes razões:

 

I - Questão da incompetência o Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade de actos de repercussão de CSR subsequentes a actos de liquidação

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, que nunca poderia o tribunal arbitral pronunciar-se sobre atos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, que não são atos de tributários e que, para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto.

 

A repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis é pretendida por lei, pois é a única forma de assegurar que «para financiamento da rede rodoviária nacional» seja «assegurado pelos respectivos utilizadores» e que a CSR seja a «contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis» (artigos 2.º e 3.º, n.º 1, da Lei n.º 55/2007 de 31 de Agosto, na redacção anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro).

 

Por isso, está-se perante repercussão legal, prevista na lei e por ela pretendida, e não perante repercussão económica.

 

De qualquer modo, a Requerente, nem no pedido de revisão oficiosa nem no pedido de pronúncia arbitral, pede a anulação de actos de repercussão, mas apenas das liquidações de CSR (cfr.Introdução e Artº 2º do PPA).

 

Estas liquidações de CSR inserem-se no âmbito de competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, como decorre da alínea a) do n. 1 do artigo 2.º do RJAT.

 

Entendemos dever improceder, assim, esta excepção.

 

Neste sentido, entre outros, o acórdão proferido no processo nº 1015/2023-T, que subscrevi.

 

II - Questão da ilegitimidade da Requerente

 

O regime da CSR, na versão anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, foi criado tendo em vista a repercussão nos consumidores das quantias cobradas a esse título pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos.

 

Na verdade, no artigo 2.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (na redacção da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, vigente em 2018 e 2019) estabelece-se que «o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP, S. A., tendo em conta o disposto no Plano Rodoviário Nacional, é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável» e no n.º 3 do mesmo artigo (na redacção inicial) estabelece-se que «a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis».

 

Resulta destas normas que, na perspectiva legislativa, o destinatário do encargo económico resultante da imposição da CSR é o consumidor de combustíveis, sendo as empresas comercializadoras, que devem efectuar o seu pagamento ao Estado, meras substitutas tributárias. Neste contexto, a repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis é uma repercussão legal, já que é pretendida por lei.

 

A imposição constitucional do reconhecimento do direito de impugnação a quem for lesado por qualquer acto de natureza administrativa, que resulta do artigo 268.º, n.º 4, da CRP, leva a concluir que, tendo havido repercussão do tributo, é o repercutido o único lesado pela liquidação do tributo, quem tem legitimidade para impugnar os actos que afectaram a sua esfera jurídica, no exercício do direito de impugnação de todos os actos lesivos que lhe é constitucionalmente garantido.

 

Essa legitimidade do substituído para impugnação contenciosa é assegurada pelo artigo 18.º, n.º 4, alínea a), da LGT e pelos n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT, aplicáveis aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, na medida em que reconhecem legitimidade procedimental e processual aos contribuintes e a todos que forem obrigados tributários e mesmo a quem for titular de um interesse legalmente protegido.

 

Na pena de CASALTA NABAIS (Direito Fiscal, 7.ª edição, páginas 243-244), «Tanto é contribuinte o contribuinte directo, em relação ao qual o referido desfalque patrimonial ocorre directamente na sua esfera seja ele ou não o devedor do imposto, como o contribuinte indirecto, em relação ao qual o mencionado desfalque patrimonial ocorre na sua esfera através do fenómeno económico da repercussão do imposto».

A este respeito, costumam alguns autores distinguir entre contribuinte de direito e contribuinte de facto, sendo o primeiro a pessoa em relação à qual se verifica o pressuposto de facto do imposto, e o segundo o que, em virtude da repercussão, suporta economicamente o imposto. Todavia, o conceito de contribuinte é um conceito jurídico e a repercussão, quando legalmente prevista como é a regra dos impostos sobre o consumo, convoca o suportador do imposto não apenas em termos económicos, mas também em termos jurídicos, uma vez que, para além de uma obrigação jurídica de repercussão formal, temos uma de obrigação natural de repercussão material.

Por isso mesmo, não admira que a al. a) do n.º 4 do art. 18º da LGT fale de repercussão legal e reconheça legitimidade processual activa ao consumidor final ou adquirente de serviços para impugnar, administrativa ou judicialmente, o correspondente acto tributário. Um reconhecimento que a nossa jurisprudência já vinha aceitando e que, a nosso ver, é mesmo exigido pelo respeito do princípio da capacidade contributiva, uma vez que a capacidade contributiva, que em tais impostos se visa atingir, é efectivamente a do consumidor final ou do adquirente de serviços e não a do sujeito passivo do IVA»  

 

De resto, uma interpretação do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4, do CPPT no sentido da ilegitimidade do substituído para impugnar actos de liquidação que lesem a sua esfera jurídica, será materialmente inconstitucional, por incompatibilidade com aquele n.º 4 do artigo 268.º da CRP. 

 

Por isso, mesmo que se possa aventar uma interpretação daquele artigo 9.º, n.ºs 1 e 4, do CPPT no sentido da ilegitimidade, ela seria de rejeitar por haver uma interpretação possível conforme à Constituição, que é a de reconhecer ao substituído o direito de impugnação.

 

O direito de o substituído impugnar os actos de liquidação subjacentes à repercussão decorre também do regime do artigo 132.º do CPPT, adequadamente interpretado.

 

Trata-se de um direito à anulação desses actos de liquidação, para obter o reembolso do imposto indevidamente liquidado e não meramente de um direito a indemnização pelo substituto.

 

Com efeito, embora o artigo 132.º do CPPT se refira expressamente aos casos de substituição com retenção na fonte, esse regime deve aplicar-se a todos os casos de substituição. Como, no essencial, entendeu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 06-09-2023, processo n.º 067/09.6BELR, identificando «o princípio segundo o qual tem direito ao reembolso o substituto em caso de entrega em excesso e o substituído em caso de pagamento ou retenção em excesso».

 

Na verdade, como foi esclarecido na redacção do n.º 2 do artigo 20.º da LGT introduzida pela Lei n.º 7/21, de 26 de Fevereiro, ao dizer que «a substituição tributária é efetivada, designadamente, através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido», a retenção na fonte do imposto devido é apenas uma das formas de substituição tributária e os fundamentos do reconhecimento do direito de impugnação do substituído vale manifestamente para todas as situações de substituição.

 

A aplicação do regime do artigo 132.º, com as adaptações que eventualmente forem necessárias, a todos os casos de substituição tributária, inclusivamente sem retenção na fonte, decorre desde logo, do teor expresso da epígrafe da SECÇÃO VIII, em que está incluído o art. 132.º: «SECÇÃO VIII  Da impugnação dos atos de autoliquidação, substituição tributária, pagamentos por conta e dos atos de liquidação com fundamento em classificação pautal, origem ou valor aduaneiro das mercadorias.

 

Nesta epígrafe nem se faz referência a «retenção na fonte», mas apenas a «substituição tributária», o que revela uma intenção legislativa, que acabou por ser mal traduzida na letra do artigo 132.º, de estabelecer um regime aplicável a todos os casos de substituição tributária.

 

A confusão dos conceitos, reduzindo os casos de substituição tributária aos de retenção na fonte, já vem do Código de Processo Tributário de 1991, mas poderá ter sido incentivada pelo infeliz art. 20.º da LGT, na redacção inicial, que dizia que «a substituição tributária é efectivada através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido», embora fosse evidente que havia casos de substituição sem retenção na fonte, como era, ao tempo, o caso de várias taxas, como, por exemplo, a  «taxa anual de radiodifusão», prevista no DL 389/76, de 24 de Maio em cujo artigo 2.º, n.º 1, se estabelece que «é instituída uma taxa anual de radiodifusão de âmbito nacional, a cobrar em duodécimos, mensal e indirectamente, por intermédio das distribuidoras de energia eléctrica, a ela ficando sujeitos os consumidores domésticos de iluminação e outros usos». Outro exemplo, é a «taxa de seguração» criada pelo DL n.º 102/91 de 8 de Março, que opera através de um mecanismo de substituição tributária, nos termos do qual a operadora de transporte aéreo substitui o INAC na cobrança da taxa aos passageiros e substitui-se aos passageiros na entrega do seu valor ao INAC, a que se refere o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06-09-2023, processo n.º 67/09.6BELRS.

 

A Lei n.º 7/2021, de 26 de Fevereiro, acabou por reconhecer expressamente que há substituição tributária sem retenção na fonte ao dizer que «a substituição tributária é efetivada, designadamente, através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido».

 

Mas, como se referiu, no citado acórdão do STA de 06-09-2023, acaba por se concluir, embora sem fundamentação explícita, que o artigo 132.º do CPPT, «exprime, no plano processual, um princípio material aplicável a todos os casos de substituição tributária».

 

Dando alguma solidez hermenêutica a esta conclusão, poderá dizer-se que a regra se aplicará com base numa interpretação extensiva: disse-se «retenção na fonte» no artigo 132.º do CPPT quando pretendia incluir-se na SECÇÃO VIII em que ele se insere o regime da impugnação dos actos praticados no âmbito de substituição tributária, independentemente de se tratar de casos em que ela opera através de retenção na fonte.

 

Em última análise, se se entendesse inviável uma interpretação extensiva (apesar do seu suporte expresso na epígrafe referida), em face do reconhecimento constitucional do direito de impugnação de todos os actos lesivos, sempre se teria de concluir que se estaria perante uma lacuna de regulamentação, que importaria preencher através da aplicação do regime do artigo 132.º, com as adaptações necessárias, por existir evidente paralelismo de situações de substituição com e sem retenção na fonte , que seria fundamento para a sua aplicação analógica.

 

O direito de reembolso do substituído a quem foi repercutido imposto liquidado com violação do Direito da União Europeia, é também assegurado, na interpretação que dele fez o TJUE no despacho do TJUE de 07-02-2022, processo n.º C-460/21:

«39 A obrigação de reembolsar os impostos cobrados num Estado-Membro em violação das disposições da União conhece apenas uma exceção. Com efeito, sob pena de conduzir a um enriquecimento sem causa dos titulares do direito, a proteção dos direitos garantidos na matéria pela ordem jurídica da União exclui, em princípio, o reembolso dos impostos, direitos e taxas cobrados em violação do direito da União quando seja provado que o sujeito passivo responsável pelo pagamento desses direitos os repercutiu efetivamente noutras pessoas».

«42 Por conseguinte, um Estado-Membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da União quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por uma pessoa diferente do sujeito passivo e quando o reembolso do imposto conduzisse, para este sujeito passivo, a um enriquecimento sem causa. Daqui resulta que, se só tiver sido repercutida uma parte do imposto, as autoridades nacionais só estão obrigadas a reembolsar o montante não repercutido».

43 «... a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos».

 

Como decorre desta jurisprudência, há uma obrigação de a Administração Tributária reembolsar os tributos cobrados em violação do Direito de União a quem efectivamente os suportou, pelo que no caso de tributos susceptíveis de repercussão, a titularidade do direito ao reembolso dependerá de ela ter sido ou não concretizada.

 

É corolário desta jurisprudência do TJUE que, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem legitimidade para impugnar os actos que a concretizem ou os que a antecedam, pois apenas o repercutido é afectado na sua esfera jurídica pelo acto lesivo e o substituto só terá legitimidade na medida em que não tenha repercutido integralmente o tributo que suportou nessa qualidade.

 

No caso em apreço, deu-se como provado que ocorreu efectivamente repercussão da CSR (cfr. Fatos 10.2 e 10.3), pelo que apenas a Requerente é titular do direito ao reembolso.

 

Assim, não se coloca a questão da plúrima possibilidade de reembolso pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pois, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem direito ao reembolso.

De qualquer modo, é manifesto que não há qualquer fundamento legal nem lógico para os direitos económicos e processuais do repercutido, que pagou o tributo indevido, serem prejudicados pelo facto de poder também ser efectuado indevido reembolso do tributo às entidades que o repercutiram.

 

Pelo exposto, entendemos que deveria improceder a excepção da ilegitimidade substantiva e processual e o processo prosseguir com a análise do mérito.

 

 

O Árbitro

 

Pedro Miguel Bastos Rosado