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DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Carla Castelo Trindade (presidente), Professora Doutora Clotilde Celorico Palma e Dra. Sofia Quental (relatora), designadas pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
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A..., S.A., sociedade aberta, com sede social (actualmente) na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, pessoa colectiva n.º..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o mesmo número (doravante, “Requerente”), sociedade dominante de grupo (o “Grupo Fiscal B...”) sujeito em 2020 ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, abreviadamente identificada por “Autoridade Requerida”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente por “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023... e, bem assim, a declaração de ilegalidade parcial da autoliquidação de tributação autónoma sobre veículos e abonos quilométricos relativa ao exercício de 2020 do Grupo Fiscal B..., quanto ao montante de €361.456,96 (trezentos e sessenta e um mil quatrocentos e cinquenta e seis euros e noventa e seis cêntimos), com a sua consequente anulação nesta parte e neste montante, por violação de lei e do princípio da legalidade, com todas as suas consequências legais, designadamente o reembolso de €361.456,96 acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, feito em 12 de Dezembro de 2023, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 14 de Dezembro de 2023, tendo ambas as partes sido notificadas no mesmo dia.
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O Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou as signatárias como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a respectiva aceitação no prazo aplicável.
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As partes foram devidamente notificadas dessa designação no dia 02 de Fevereiro de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
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O Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 20 de Fevereiro de 2024 para apreciar e decidir o objecto do presente litígio, em conformidade com o estipulado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.
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A Requerente sustentou, em síntese, o seu pedido da seguinte forma:
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A Requerente pretende que seja declarada quer a ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa, quer a ilegalidade parcial do acto de autoliquidação que reflecte a liquidação indevida de tributação autónoma sobre despesas e encargos com veículos exclusivamente afectos à actividade de empresas do Grupo Fiscal B..., e sobre compensação pela deslocação em viaturas (motociclos) próprias do trabalhador (carteiro), que originou um montante de imposto indevidamente liquidado no valor de €361.456,96.
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Começa por referir a Requerente que a análise da tributação autónoma sobre despesas e encargos com veículos revela que esta se baseia na desconfiança de utilização mista (empresarial e privada) dos veículos e que, para mitigar esse risco, foi instituída uma tributação compensatória, imputada à empresa.
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Alegando que, conforme os princípios constitucionais (proporcionalidade, igualdade e capacidade contributiva), essa tributação comporta uma presunção que pode ser ilidida.
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E que a este propósito a jurisprudência arbitral reconhece que a presunção de uso não exclusivamente empresarial dos veículos pode ser refutada com provas.
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Refere a Requerente que, no caso específico, os factos apresentados demonstram que os veículos e os abonos quilométricos aos carteiros, que utilizam motociclos próprios na distribuição postal, são de uso exclusivamente empresarial.
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E que, consequentemente, a tributação autónoma sobre essas despesas é indevida, justificando a petição de anulação apresentada pela Requerente.
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A Requerente argumenta que a jurisprudência e a doutrina reconhecem que a tributação autónoma visa tributar despesas que, embora concorram para o lucro tributável da empresa, possam não decorrer claramente da sua actividade normal ou serem de uso misto (empresarial e privado).
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E que essa tributação tem como objectivo desincentivar gastos que podem ser desviados para consumo privado e evitar remunerações não sujeitas a IRS e contribuições para a Segurança Social.
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Alega a Requerente que a razão subjacente à tributação autónoma é sujeitar certas despesas à tributação, devido ao risco de confusão entre as esferas pessoal e empresarial.
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E que esta posição é amplamente corroborada pela jurisprudência arbitral, conforme exemplificado no âmbito dos processos n.ºs 59/2014-T, 80/2014-T, e 187/2013-T, que destacam a intenção de impedir a erosão da base tributável e desincentivar despesas de natureza dúbia, com o objectivo de garantir uma tributação justa e eficiente dos lucros empresariais.
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A Requerente faz ainda referência ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (adiante “STA”) no processo n.º 0830/11 e ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012, que corroboram o entendimento sobre a tributação autónoma.
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No Acórdão relativo ao processo n.º 0830/11, o STA firmou que as taxas de tributação autónoma foram criadas para dissuadir as sociedades de apresentarem despesas elevadas e regulares que possam mascarar a distribuição de lucros.
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O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 310/2012, confirmou que a tributação autónoma visa incentivar os contribuintes a reduzir despesas que afectam negativamente a receita fiscal e evitar a distribuição camuflada de lucros, garantindo que os dividendos sejam devidamente tributados pelo IRC.
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No Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (adiante “TCAS”), de 08.03.2018, proferido no processo n.º 1294/14.0BELRS, concluiu-se que o reconhecimento da natureza presuntiva (ilidível) das normas de tributação autónoma como as aqui em causa “constitui uma salvaguarda da não inconstitucionalidade das mesmas”.
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E no âmbito do processo n.º 628/2014-T do CAAD, o contribuinte foi capaz de ilidir a presunção de utilização promíscua de viaturas onde foi decidido que a possibilidade de ilidir a presunção é fundamental para a preservação da conformidade da tributação autónoma sobre veículos com a Constituição.
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Alega a Requerente que da análise ao teor das normas que regulam as tributações autónomas sobre veículos e do que expôs, deverá concluir-se que as mesmas encerram uma presunção.
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Alega ainda que a interpretação das normas dos n.ºs 3 e 4, do artigo 88.º, do Código do IRC, que estabelece a tributação autónoma sobre despesas e encargos com veículos, como uma presunção-ficção de empresarialidade apenas parcial dessas despesas, é inconstitucional.
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Esta interpretação viola o princípio da igualdade, que exige o tratamento desigual das situações desiguais, excepto quando impraticável, o que não se aplica neste caso.
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Além disso, contraria os princípios da capacidade contributiva, da tributação baseada no rendimento real e da proporcionalidade, que também requerem o tratamento desigual das situações desiguais, sendo impedido por ficções.
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A Requerente argumenta que esta interpretação viola os artigos 2.º (Estado de Direito), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 (repartição justa) e 104.º, n.º 2, da Constituição, uma vez que não permite a refutação da presunção de uso misto dos veículos quando se demonstra que são utilizados exclusivamente para fins empresariais.
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Além da decisão arbitral proferida no processo n.º 628/2014-T, a Requerente destaca outras decisões arbitrais que reafirmaram o carácter de presunção ilidível inerente às tributações autónomas sobre as despesas e encargos com veículos, fortalecendo a sua pretensão de que a tributação aplicada é indevida e deve ser anulada.
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Desta forma, a Requerente justifica a anulação da tributação autónoma sobre determinadas despesas, argumentando que tais despesas são exclusivamente empresariais, conforme demonstrado pelos factos e pela interpretação doutrinária e jurisprudencial.
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A Requerente alega a inconstitucionalidade dos n.º 3 e n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC, argumentando que tributam encargos com veículos e abonos quilométricos de maneira que viola os princípios da igualdade e capacidade contributiva, tratando igualmente situações desiguais.
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Além disso, considera inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil, que exige prova intensa para ilidir a presunção de empresarialidade parcial dos gastos, por violar os princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da tributação do rendimento real e da proporcionalidade.
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A interpretação dos n.º 3 e n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC, que impede a prova de que despesas não foram desviadas para uso pessoal, também é considerada inconstitucional pela Requerente.
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Alega a Requerente que esta exigência, conforme o Acórdão n.º 355/2020 do Tribunal Constitucional, é vista como limitadora do direito ao recurso constitucional e prejudica a tutela jurisdicional efectiva.
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A Requerente argumenta ainda que essas normas criam ficções jurídicas que impedem o tratamento justo e proporcional dos contribuintes, violando vários artigos da Constituição Portuguesa.
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A decisão do Tribunal a quo, conforme o Acórdão do Tribunal Constitucional, caracterizou as normas do Código do IRC como impondo tributação autónoma simplesmente pela realização de certas despesas, sem presunção relacionada ao carácter empresarial dessas despesas.
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A interpretação das normas como aplicáveis objectivamente, sem permitir prova contrária, é considerada inconstitucional, pois viola os princípios já referidos.
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A Requerente reforça que a questão de inconstitucionalidade é materialmente a mesma, independentemente da interpretação adoptada (presunção inilidível ou aplicação objectiva), resultando na mesma violação dos princípios constitucionais e mantendo a tributação mesmo que o contribuinte comprove a não utilização pessoal das despesas.
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Por despacho de 21 de Fevereiro de 2024, foi a Autoridade Requerida devidamente notificada para apresentar resposta ao pedido de pronuncia arbitral.
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Em 05 de Abril de 2024, a Autoridade Requerida apresentou a sua resposta, e juntou o processo administrativo aos autos, invocando, em síntese, o seguinte:
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A Autoridade Tributária argumenta que a interpretação da Requerente não encontra respaldo na letra da lei.
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Destaca que a tributação autónoma dos encargos com viaturas ligeiras de passageiros e outros veículos foi introduzida pela Lei n.º 30-G/2000 e sofreu diversas alterações ao longo dos anos.
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Actualmente, conforme a redacção da Lei n.º 82-C/2014, o artigo 88.º do Código do IRC estabelece a tributação autónoma dos encargos efectuados por sujeitos passivos, independentemente da utilização exclusiva para a actividade empresarial, com excepção dos casos claramente previstos nas exclusões do mesmo artigo.
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Os encargos relacionados com viaturas são sujeitos a tributação autónoma, mesmo quando considerados indispensáveis para a obtenção do lucro tributável, conforme o artigo 23.º do Código do IRC.
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O legislador não excluiu os veículos da tributação autónoma, excepto nas situações específicas mencionadas nas excepções dos números 3 e 6 do artigo 88.º do Código do IRC.
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A Autoridade Tributária também menciona que a Requerente tenta recorrer à equidade, justificando uma justiça no caso concreto, o que é vedado ao Tribunal Arbitral segundo o RJAT.
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A interpretação pretendida pela Requerente, segundo a Autoridade Tributária, busca corrigir a lei com base na equidade, o que não é permitido.
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Além disso, a Autoridade Tributária refuta a ideia de uma “presunção de empresarialidade” das despesas, destacando que não existe na lei fiscal tal conceito ou qualquer possibilidade de afastar a tributação autónoma mediante prova da natureza empresarial das despesas.
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As normas do artigo 88.º do Código do IRC não contemplam presunções que permitam a ilisão mediante demonstração da afectação integral à actividade empresarial.
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Por fim, a Autoridade Tributária reforça que o artigo 88.º do Código do IRC é uma norma de incidência objectiva, que visa, entre outros objectivos, evitar a erosão da base tributável e promover a arrecadação de receita fiscal.
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A tributação autónoma sobre veículos, em particular, também atua como desincentivo à utilização de veículos movidos a combustíveis fósseis, alinhando‑se com objectivos ambientais.
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Assim, a Autoridade Tributária conclui que “não só a tributação autónoma não tem natureza presuntiva (…), como, também, é totalmente desajustada a tese propugnada pela Requerente no sentido de afastar essa tributação, mediante a possibilidade de admissão da ilisão de uma presunção de não “empresarialidade” dos gastos relativos a ajudas de custo.”.
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Sobre a prova carreada pela Requerente tendente à ilisão da (pretensa) presunção, a Autoridade Tributária conclui que tal prova não é suficiente.
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Refere a AT que a Requerente apresentou documentos internos e um manual de procedimentos, argumentando que tais documentos comprovam que os veículos são utilizados exclusivamente para fins empresariais.
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No entanto, a Autoridade Tributária contesta a eficácia desses documentos, questionando se um documento interno pode realmente justificar a empresarialidade das despesas apenas com base na declaração do próprio emitente.
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A Autoridade Tributária argumenta que a simples existência de manuais e procedimentos internos não garante o cumprimento rigoroso desses procedimentos.
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A utilização pessoal dos veículos não pode ser completamente descartada apenas com a apresentação de formulários e declarações internas, especialmente quando não há um sistema de controle suficientemente robusto para assegurar que os veículos são utilizados exclusivamente para fins empresariais.
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A Autoridade Tributária destaca que, mesmo com manuais internos que proíbem o uso pessoal dos veículos, a prática diária pode divergir, permitindo o uso pessoal dos veículos fora do horário de expediente.
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A possibilidade de uso dos veículos durante a noite ou fins de semana, sob autorização expressa, reforça as dúvidas sobre a alegada exclusividade do uso empresarial.
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Em suma, a Autoridade Tributária conclui que a Requerente não forneceu provas materiais concretas, completas e inequívocas que justifiquem a exclusão dos encargos com veículos da tributação autónoma.
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A falta de um sistema de controle rigoroso e a possibilidade de uso pessoal dos veículos inviabilizam a tese da empresarialidade defendida pela Requerente.
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Assim, os documentos apresentados são especificamente impugnados e considerados insuficientes para afastar a tributação autónoma prevista no artigo 88.º do Código do IRC.
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A Autoridade Tributária, rejeita, portanto, a pretensão da Requerente, sustentando que a interpretação e aplicação das normas fiscais vigentes foram correctamente realizadas, sem qualquer violação da letra da lei ou dos princípios subjacentes à tributação autónoma.
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Em 27 de Junho de 2024, foi realizada a reunião arbitral de acordo com o artigo 18.º do RJAT, à qual a Requerida, devidamente notificada, optou por não comparecer por considerar a reunião desnecessária e inútil.
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Nos termos do artigo 19.º, n.º 1 do RJAT, a falta de comparência de qualquer das partes a acto processual não obsta à sua prática nem ao prosseguimento do processo, pelo que a prova foi produzida na ausência da Requerida e apreciada e valorada pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação de prova.
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A Requerente e a Autoridade Requerida apresentaram as suas alegações dia 8 e 12 de Julho de 2024, respectivamente, onde reiteraram as posições já anteriormente expressas.
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O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido que foi tempestivamente apresentado, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
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As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de Março.
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Não se verificam nulidades nem outras excepções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa, pelo que cumpre decidir.
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matéria de facto
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Factos provados
Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade anónima que tem por objecto: a) assegurar o estabelecimento, gestão e exploração das infra-estruturas e do serviço público de correios; b) o exercício de quaisquer actividades que sejam complementares, subsidiárias ou acessórias das referidas na alínea anterior, bem como de comercialização de bens ou de prestações de serviços por conta própria ou de terceiros, desde que convenientes ou compatíveis com a normal exploração da rede pública de correios, designadamente a prestação de serviços da sociedade de informação, redes e serviços de comunicações electrónicas, incluindo recursos e serviços conexos; c) a prestação de serviços os quais incluirão a transferência de fundos através de contas correntes e que podem também vir a ser exploradas por um operador financeiro ou entidade parabancária a constituir na dependência desta sociedade [cf. Certidão Permanente junta com o Processo Administrativo (doravante, “PA”)].
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A Requerente é uma sociedade dominante do grupo (o “Grupo Fiscal B...”) sujeito em 2020 ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS) (cf. documento n.º 1 junto com a PI).
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Em 2020, faziam parte do Grupo Fiscal B... as seguintes sociedades: A..., S.A., C..., S.A., D..., S.A., E..., S.A. e f..., S.A. (cf. documento n.º 1 junto com a PI).
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Em 15 de Julho de 2021, a Requerente, enquanto sociedade dominante do Grupo sujeito ao RETGS, procedeu à apresentação da declaração IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2020, e ainda de declarações de substituição (cf. documentos n.ºs 2 a 7 juntos com a PI).
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Foi apurado na declaração de IRC Modelo 22 primeiramente entregue (cf. documento n.º 2 junto com a PI) um montante de tributação autónoma em IRC de €495.087,26, montante este que se manteve nas declarações de substituição subsequentemente entregues (cf. documentos n.ºs 3 a 7 juntos com a PI).
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A Requerente apresentou reclamação graciosa contra a autoliquidação respeitante ao exercício de 2020, que tramitou sob o n.º ...2023... (cf. documento n.º 8 junto com a PI).
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Em 14 de Setembro de 2023, a Requerente foi notificada do indeferimento da reclamação graciosa (cf. documento n.º 8 junto com a PI).
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Em 12 de Dezembro de 2023, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que originou os presentes autos.
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Factos não provados
Com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que não se tenham considerado provados.
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Fundamentação da matéria de facto
A matéria de facto fixada por este Tribunal Arbitral colectivo assenta nas posições assumidas pelas Partes e na prova documental apresentada e produzida nos autos, nos documentos juntos aos autos e não impugnados por nenhuma das Partes e nos factos admitidos por acordo das Partes, sendo de observar que dos articulados apresentados não emerge discordância das Partes relativamente à matéria de facto, cingindo-se a divergência à matéria de direito.
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelos Requerentes e considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito [cf. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cf. artigos 13.º do CPPT, artigo 99.º da LGT, 90.º do CPTA e artigos 5.º, n.º 2 e 411.º do CPC).
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação aos factos alegados pelas Partes, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme artigo 16.º, alínea e) do RJAT e n.º 4 do artigo 607.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei [e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil (CC) e havendo documentos, a prova testemunhal (ou, subalternamente, as declarações de parte) cingir-se-á à interpretação do contexto desses documentos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam, conforme artigo 393.º do CC], é que não domina o princípio da livre apreciação da prova (cf. artigo 607.º, n.º 5 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).
Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
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Delimitação do objecto
Atenta as posições das partes assumidas nos argumentos apresentados, constitui questão central dirimida, a qual cumpre, pois, apreciar e decidir:
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A determinação da legalidade do indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023... e, bem assim, a determinação da legalidade parcial e consequente anulação parcial da autoliquidação de tributação autónoma sobre veículos e abonos quilométricos relativa ao exercício de 2020 do Grupo Fiscal B..., quanto ao montante de €361.456,96 (trezentos e sessenta e um mil quatrocentos e cinquenta e seis euros e noventa e seis cêntimos).
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A condenação da AT no reembolso do montante de €361.456,96 e no pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais, e das custas de arbitragem.
Encontrando-se fixada a matéria de facto dada como provada, de seguida importa determinar o direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões a decidir.
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Do mérito da causa
Em síntese, a pretensão da Requerente dirige-se à declaração de ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023... e, bem assim, à declaração de ilegalidade parcial da autoliquidação de tributação autónoma sobre veículos e abonos quilométricos relativa ao exercício de 2020 do Grupo Fiscal B..., quanto ao montante de €361.456,96 (trezentos e sessenta e um mil quatrocentos e cinquenta e seis euros e noventa e seis cêntimos), com a sua consequente anulação nesta parte e neste montante, por violação de lei e do princípio da legalidade, com todas as suas consequências legais, designadamente o reembolso de €361.456,96 acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal.
A Requerente assenta o seu entendimento, em suma, na circunstância de considerar que as normas que determinam a tributação autónoma sindicada nos presentes autos, a saber, os n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, assentam numa presunção de “empresarialidade”, admitindo prova em contrário. Ademais, considera a Requerente que, no caso concreto, logrou ilidir as (alegadas) presunções, e, em consequência, a aplicação das tributações autónomas.
Perante o exposto, cabe ao Tribunal Arbitral colectivo decidir, com base na matéria de facto e de direito, se o regime previsto nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, na redacção à data, o qual estabelece a tributação autónoma dos encargos efectuados por sujeitos passivos com (i) viaturas ligeiras de passageiros, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica, e (ii) ajudas de custo e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, consagra, ou não, presunções implícitas iuris tantum, susceptíveis de serem ilididas mediante prova em contrário, em conformidade com o artigo 73.º da LGT.
Desde logo, refira-se que as normas de tributação autónoma são normas às quais subjaz um propósito legislativo de conformar condutas e desencorajar certos comportamentos que, por se encontrarem numa zona de intersecção da esfera privada e da esfera empresarial, podem lesar o erário público (quanto a este ponto vide J. L. SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2007, p. 407 ou GUSTAVO LOPES COURINHA, Manual do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas, Almedina, 2019, p. 183, e a decisão arbitral proferida a 03.04.2024, no âmbito do Processo n.º 575/2023-T).
Neste mesmo sentido, decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 267/2017, de 31.05.2017, proferido no âmbito do processo n.º 466/16, que “(…) a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal”.
Esta mesma questão foi igualmente objecto de Recurso para Uniformização de Jurisprudência, tendo o Pleno Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido o acórdão de 24.03.2021, no âmbito do processo n.º 021/20.7BALSB, no qual entendeu que apesar de terem esta natureza anti-abusiva ou anti-elisiva, as normas de tributação autónoma são verdadeiras normas de incidência, que não consagram uma qualquer presunção de não empresarialidade das despesas a ela sujeitas, susceptível de ilisão pelo sujeito passivo mediante prova em contrário. Sobre esta matéria, entendeu expressamente o Supremo Tribunal Administrativo que “As disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objecto dos n.ºs 3 e 9 do art. 88.º do CIRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passíl de prova em contrário” (sublinhado nosso).
Saliente-se que o referido Acórdão assentou precisamente sobre os mesmos pressupostos de facto e de direito objecto dos presentes autos, circunstância que a Requerente não desconhece, nem podia desconhecer, uma vez que foi parte no mesmo. De facto, o referido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo foi proferido na sequência do recurso interposto pela ora Requerente, da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), no processo n.º 323/2019-T, de 17.01.2020, invocando contradição com a decisão do mesmo CAAD, proferida no processo n.º 628/2014-T, da qual resulta que:
“A questão em análise reporta-se à sujeição a taxas de tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º do Código de IRC, dos encargos suportados pela Requerente e seu Grupo Fiscal com motociclos para distribuição postal, com viaturas ligeiras de passageiros caracterizadas como Viaturas de Serviços Geral e com compensações pelas deslocações em motociclos próprios (abonos quilométricos) aos carteiros pela distribuição de correio.
Sustenta a Requerente, em primeira linha, que todos esses encargos são integralmente imputáveis à exploração do serviço da distribuição postal no território nacional e se encontram justificados pelo seu carácter empresarial, havendo de entender-se que se encontra ilidida a presunção implícita de tributação autónoma que decorre do disposto nos n.ºs 3, 6 e 9 do artigo 88.º do Código relativamente a encargos com motociclos e viaturas ligeiras e despesas de compensação pela deslocação do trabalhador em viatura própria.
A Autoridade Tributária defende, em contraposição, que o artigo 88.º do Código do IRC constitui uma norma de incidência objectiva de tributação autónoma e não contempla qualquer presunção susceptível de ser ilidida por prova em contrário, com base no carácter empresarial dos gastos que se encontrem cobertos por essa disposição.
Sobre essa mesma questão, com os mesmos contornos de facto, pronunciaram-se em sentido negativo os recentes acórdãos proferidos nos Processo n.º 448/2018-T e 516/2018-T, em que se analisavam pedidos idênticos, formulados pela aqui Requerente, e que se referia à liquidação de tributação autónoma em IRC referente aos exercícios de 2015 e de 2016.
E não há motivo para alterar agora o entendimento que foi aí sufragado.
(…)
Resulta especialmente dos (…) n.ºs 3 e 6 que são tributados autonomamente os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos ou motociclos, com exclusão dos veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, bem como as viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes ou destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo, e as viaturas automóveis afectas à utilização pessoal do trabalhador. Decorre também do n.º 9 que são sujeitos a tributação os encargos relativos à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário.
Na perspectiva da Requerente, os mencionados preceitos, ao delimitarem as situações em que há lugar a tributação autónoma, limitam-se a consagrar presunções implícitas iuris tantum suscetíveis de ser ilididas por prova em contrário em conformidade com o artigo 73.º da LGT.
Cabe começar por recordar, a este propósito, que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º do Código Civil). Tratando-se de uma presunção legal ela é uma inferência realizada pela lei de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido (artigo 350.º), distinguindo-se das presunções judiciais que assentam no simples raciocínio de quem julga com base em máximas da experiência ou em juízos de probabilidade.
Assim, as regras legais de presunção apresentam necessariamente na sua estrutura uma implicação entre dois factos, ou seja, estabelecem que um determinado facto conhecido implica um outro facto desconhecido (cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Coimbra, 2012, pág. 234).
As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante a prova do contrário, ou seja, mediante a prova de que o facto presumido não é verdadeiro (presunções tantum juris), excepto nos casos em que a lei o proibir (presunções juris et de jure).
Não está, em todo o caso, excluída a possibilidade de presunções legais implícitas. Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 753/2014, “As presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, quando são reveladas pelo uso da expressão «presume-se» ou de expressão de idêntico significado, mas podem também resultar implicitamente do enunciado linguístico da norma, o que sucede quando se considera como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis no pressuposto de que são esses valores que correspondem à realidade, prescindindo-se do apuramento do valor real ou do valor que tiver sido declarado pelo sujeito passivo”.
Por outro lado, e em vista a detectar uma possível presunção legal nos citados dispositivos do artigo 88.º, importa ter presente a configuração própria das tributações autónomas.
Como se esclareceu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, “a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal”. Nesse sentido, como aí se acrescenta, “[a] despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização da despesa”.
No caso vertente, o mecanismo da tributação autónoma resulta da associação do sujeito passivo à realização de certas despesas. A sujeição a imposto é a consequência jurídica da verificação de um certo facto tributário - a realização da despesa legalmente prevista -, não se descortinando aí uma qualquer condição de aplicação da norma que se prenda com a demonstração, por inferência, de outro facto. A própria realização da despesa determina a aplicação da norma.
A inexistência de uma qualquer presunção legal relacionada com o carácter empresarial das despesas surge também evidenciada pelo contexto verbal das disposições em causa. Excluem-se da tributação autónoma certo tipo de veículos de acordo com critérios de política fiscal e estabelecem-se taxas diferenciadas com base em características atinentes ao custo de aquisição dos bens (artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC) e à tipologia dos veículos (artigo 88.º, n.ºs 17 e 18, cfr. Lei n.º 82-D/2014). Também no que concerne aos encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, a que se reporta o n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC, a incidência da tributação autónoma determina-se em função de certos aspectos relacionados com a específica situação tributária que está em causa.
Acresce ainda o facto de as taxas de tributação autónoma serem elevadas em 10 pontos percentuais relativamente aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem os factos tributários competentes relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC (artigo 88.º, n.º 14, do Código do IRC).
Em suma, as normas de incidência em apreço não assentam na demonstração, por inferência de certos factos presumidos, que possam ser afastados na base de prova em contrário, mas operam objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa.
E basta notar que a razão de ser das tributações autónomas é complexa e múltipla, podendo ter em vista prevenir, por razões de cobrança de receita fiscal, que seja afetada a receita respeitante à tributação do lucro tributável, desincentivar, por razões de política extra-fiscal, certas despesas que são reputadas socialmente como inconvenientes e desincentivar despesas normalmente associadas a comportamentos evasivos ou mesmo fraudulentos (v., entre o mais, o n.º 14 do artigo 88.º).
(…)
A pretendida presunção implícita de não empresarialidade das despesas está, por sua vez, associada ao próprio objectivo fiscal que se pretende com a tributação autónoma.
Como explica SALDANHA SANCHES, a introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa “zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial” e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).
E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal. O legislador tem em vista desincentivar a realização de certas despesas, admitindo a dedutibilidade do custo, mas reduzindo a vantagem fiscal por via da tributação autónoma, assim se compreendendo que a tributação incida não sobre a percepção de um rendimento mas sobre a realização de despesas. Assim sendo, a presunção que se pretende ilidir por prova em contrário não é a natureza não empresarial das despesas mas a própria razão de política fiscal que levou o legislador a tributar essas despesas, levando a discussão para o plano da conformação legislativa que se encontra vedado ao julgador. Certo é que o autor há pouco citado refere, a propósito da tributação autónoma, que se cria aqui “uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial” (ob. e loc. cit.). Mas como se depreende de todas as considerações que antecedem esse excerto, o autor não está a referir-se a uma presunção em sentido técnico jurídico, mas a fazer notar justamente o objectivo fiscal que se teve em vista ao tributar esses custos.
Nestes termos, em face da apontada jurisprudência, não há motivo para alterar o entendimento anteriormente exposto, havendo de concluir-se que as disposições legais que estabelecem tributações autónomas objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.».” (sublinhados nossos).
E, foi precisamente partindo desta argumentação seguida pelo Tribunal Arbitral no processo n.º 323/2019-T, de 17.01.2020, no qual se discutia a mesma questão objeto dos presentes autos, que o Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito do Recurso para Uniformização de Jurisprudência apresentado pela ora Requerente, entendeu que “Não obstante todo o esforço argumentativo da Recorrente para demonstrar o contrário, a interpretação que fez a decisão recorrida dos preceitos em causa é a que, por um lado, desde logo, tem assento na letra da lei, a qual não contém de forma expressa ou de algum modo sugestionada, uma qualquer presunção de empresarialidade das despesas (artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil), e, por outro, a que respeita o espírito e a finalidade da criação da tributação autónoma, tal como o acórdão recorrido explanou, sob pena de, na adoção da tese contrária, e usando as palavras da Recorrida, se esvaziar a teleologia das tributações autónomas, retirando-lhe qualquer conteúdo prático-tributário, pois ela conduz a um efeito nulo do regime, seja nas práticas que visa evitar e desincentivar, seja na arrecadação de receita fiscal.”
Perante o carácter assertivo do que ficou exposto e em conformidade com o artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, há que concluir que não assiste razão à Requerente.
Em face do exposto, julga-se improcedente o pedido formulado pela Requerente no presente pedido de pronúncia arbitral, já que as despesas e encargos com veículos afectos à actividade das empresas do Grupo Fiscal B... e as compensações pela deslocação em viaturas (motociclos) próprias do trabalhador são efectivamente sujeitas a tributação autónoma ao abrigo do disposto nos n.ºs 3, 5 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, na redacção vigente à data dos factos, o qual não tem implícita uma presunção susceptível de ser ilidida, conforme clarificado pelos tribunais superiores na citada jurisprudência.
Por conseguinte, fica prejudicada, porque inútil, a apreciação das demais questões suscitadas nos autos, nomeadamente, dos fundamentos invocados com vista à demonstração de que (i) o uso dos veículos seria exclusivamente empresarial e (ii) os abonos quilométricos pelo uso de motociclos dos carteiros teriam carácter exclusivamente empresarial, e, por conseguinte, ao afastamento da (alegada, mas inexistente) presunção.
Finalmente, no que concerne especificamente às inconstitucionalidades invocadas, não vai o presente Tribunal Arbitral pronunciar-se, uma vez que também o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria, no Acórdão de 20.03.2024, proferido nos autos de recurso n.º 343/22, proveniente da decisão arbitral n.º 512/2020, igualmente apresentado pela ora Requerente e tendo subjacentes os mesmos factos e as mesmas questões de direito objecto dos presentes autos.
No referido Acórdão, concluiu o Tribunal Constitucional “Não julgar inconstitucionais os n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, na redação conferida pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, com o sentido de que constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção passível de prova em contrário, incidindo sobre os encargos aí previstos ainda que se comprove, para lá de qualquer dúvida razoável, que os mesmos foram integralmente suportados para gerar rendimentos sujeitos a imposto” (sublinhado nosso).
Em consequência, o pedido de pronúncia arbitral terá de ser julgado totalmente improcedente.
Em face do exposto, o Tribunal Arbitral colectivo julga totalmente improcedente o pedido de pronuncia arbitral, e, em consequência:
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Declara improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e absolve a Requerida do pedido;
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Condena a Requerente no pagamento das custas do presente processo.
Fixa-se o valor da acção em €361.456,96 (trezentos e sessenta e um mil quatrocentos e cinquenta e seis euros e noventa e seis cêntimos), nos termos do disposto no artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €6.120,00, cujo pagamento fica a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 30 de Julho de 2024
O Tribunal Arbitral colectivo,
Carla Castelo Trindade
(presidente)
Clotilde Celorico Palma
Sofia Quental
(relatora)
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