Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 877/2023-T
Data da decisão: 2024-07-26   Outros 
Valor do pedido: € 503.421,35
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário. Competência dos Tribunais arbitrais. Absolvição da instância. Ineptidão do pedido de pronúncia arbitral
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SUMÁRIO:

  1. A Contribuição de Serviço Rodoviário é um imposto, pelo que se encontra abrangida não apenas no âmbito da competência material dos tribunais arbitrais, definida pelo artigo 2.º do RJAT, como também no âmbito da vinculação prévia da Autoridade Tributária.

 

  1. A falta de identificação dos atos de liquidação de CSR contestados, cuja declaração de ilegalidade e anulação se requer, implica a ineptidão do pedido arbitral e consequente absolvição da Requerida da instância arbitral.

 

DECISÃO ARBITRAL

I - RELATÓRIO

A... LDA, pessoa coletiva nº..., com sede no ..., ...-... Arruda dos Vinhos, apresentou, ao abrigo do disposto nos artigos 95º, nºs 1 e 2, alíneas a) e d) da Lei Geral Tributária,  99º, alíneas a) e d) do CPPT e 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, al. a), 6.º, n.º 2, alínea a), e artigo 10.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista:

  1. À declaração de ilegalidade e à anulação das liquidações respeitantes a Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) referentes aos meses de abril de 2019 a 31 de dezembro de 2019, incidentes sobre a B... SA, pessoa coletiva n,º ...; C... S.A., pessoa coletiva n.º...; D..., S.A., pessoa coletiva n.º..., e E... S.A. pessoa coletiva n.º ...;
  2. À declaração de ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa das mesmas liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário;
  3. Ao reembolso da CSR de € 503.421,35, acrescido de juros indemnizatórios desde a data do pagamento.

É Requerida no pedido a Autoridade Tributária.

Por decisão do Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa foram designados os árbitros Alexandra Coelho Martins, João Pedro Rodrigues e Nina Aguiar para integrarem o coletivo arbitral. Nestas circunstâncias, e em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 e n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 06.02.2024.

Por despacho do tribunal de 06.02.24, nos termos do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, a AT foi notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta, e, no mesmo prazo, remeter ao Tribunal cópia do processo administrativo, o que aquela fez em 11.03.2024.

Na sua resposta, a Autoridade Tributária suscitou as exceções de incompetência material do tribunal, de ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, da ineptidão da petição inicial,  por falta de objeto do processo e da caducidade do direito de ação.

Por despacho de 12.03.2024, o Tribunal Arbitral notificou a Requerente para se pronunciar sobre a matéria de exceção suscitada pela Requerida na sua resposta, o que aquela fez em 05.04.2024.

No dia 23.05.2024, teve lugar uma reunião do tribunal arbitral com as Partes, nos termos do artigo 18º do RJAT, na qual foram ouvidos o gerente da Requerente em declarações de parte e as testemunhas arroladas por esta.

Requerente e Requerida apresentaram alegações finais escritas em 07.06.2024.

 

II - SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

A Autoridade Tributária suscitou as exceções de incompetência material do tribunal, de ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, de ineptidão da petição inicial por falta de objeto do processo e da caducidade do direito de ação, as quais serão apreciadas adiante.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e encontram-se devidamente representadas.

A cumulação de pedidos é admissível ao abrigo do art.º 104.º, n.º 1 al. b) CPPT, aplicável ao processo tributário por força da al. a) do nº 1 do art.º 29.º do RJAT, uma vez que a apreciação dos pedidos cumulados tem por base as mesmas circunstâncias de facto, e os mesmos são suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo.

 

III – POSIÇÃO DAS PARTES

  1. Da Requerente
  • Durante o período compreendido entre 01.04.2019 e 31.12.2019, a Requerente adquiriu às referidas fornecedoras de combustível um total de 4.535.327,51 litros de gasóleo rodoviário na prossecução do seu objeto social;
  • As mencionadas fornecedoras de combustível repercutiram nas correspondentes faturas a CSR referente a cada um desses consumos tendo a requerente por conseguinte suportado integralmente este imposto;
  • A CSR é um imposto ilegal, por violar a Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revoga a Diretiva 92/12/CEE;
  • Por conseguinte, as liquidações de CSR são ilegais e devem ser anuladas.

 

  1. Da Requerida

Em síntese, a Requerida alega o seguinte, na sua resposta:

  1. Por exceção
  • Sendo a CSR uma contribuição, e não um imposto, as matérias que lhe digam respeito encontram-se excluídas da arbitragem tributária, por ausência de enquadramento legal;
  • Além disso, o tribunal arbitral é também incompetente porque, como resulta do teor do pedido, a Requerente suscita junto desta instância arbitral a legalidade do regime da CSR, no seu todo. Pretendendo a Requerente, em rigor, a não aplicação de diplomas legislativos aprovados por Lei da Assembleia da República, decorrentes do exercício da função legislativa, visa, com a presente ação, suspender a eficácia de atos legislativos. Sucede que, conforme decorre do RJAT, a instância arbitral constitui um contencioso de mera anulação. E este contencioso não consente nem o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-legislativa do Estado, nem a pronúncia sobre a restituição de valores/montantes, por conta da declaração de ilegalidade ou anulação de atos de liquidação (o que só pode ser determinado em sede de execução da decisão);
  • Ainda que se considerasse a competência do tribunal arbitral para a apreciação da ilegalidade dos atos de liquidação de ISP/CSR (que a Requerente não consegue identificar), nunca poderia o tribunal arbitral pronunciar-se sobre atos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, e que para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto;
  • Apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago, de acordo com o regime previsto no CIEC (artigos 15.º a 20.º);
  • A Requerente de reembolso não corresponde à entidade responsável pela introdução dos produtos no consumo e pelo pagamento do ISP, e da CSR, carece de legitimidade para solicitar a anulação das referidas liquidações e consequente reembolso do montante correspondente – vide artigo 15.º, n.º 2 do CIEC
  • A Lei n.º 55/2007 define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;
  • A Requerente não logra fazer prova de que efetivamente ocorreu repercussão (económica), parcial ou total, da CSR na aquisição dos combustíveis às suas fornecedoras e que, nessa sequência, efetuou o pagamento e suportou, a final, o encargo da CSR;
  • A Requerente não é consumidor final, o que significa que os gastos em que incorre são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;
  • Na eventualidade de a CSR ter sido economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis à Requerente, não há razões para crer que esta, no exercício de uma atividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenha também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes, que nem sequer são os consumidores finais (os próprios clientes).
  • Não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, i.e., que evidencie um interesse direto e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre si impende.
  • Ocorre ainda ineptidão da petição inicial, porquanto a Requerente não identifica os atos tributários impugnados, não sendo possível à AT estabelecer qualquer correspondência entre os atos de liquidação e as faturas dos fornecedores por esta apresentadas;
  • Por sua vez, a falta de identificação dos atos de liquidação em discussão impede a aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa da liquidação formulado pela Requerente e, em consequência, da presente ação arbitral. No entanto, tudo lega a crer que a ação é intempestiva, pois sendo as aquisições de combustível reportadas a 2019 (abril a dezembro), quando a Requerente submeteu o pedido de revisão oficiosa, em 28 de abril de 2023, já estava há muito ultrapassado o prazo de 120 dias para a reclamação graciosa, conforme previsto no artigo 78.º, n.º 1, I parte da LGT. Acresce que, de acordo com o Código dos IEC, a Requerente só dispunha de 3 anos para requerer o reembolso da CSR, que em 28 de abril de 2023, já tinha expirado. A intempestividade do pedido de revisão oficiosa nos termos expostos importa também a caducidade do direito de ação.

 

  1. Por impugnação
  • A Requerente não logra fazer prova de que pagou e suportou integralmente o encargo do pagamento da CSR por repercussão, nem se pode presumir a existência de repercussão quando estamos perante uma repercussão que não é legal, mas meramente económica ou de facto;

 

  1. Da Requerente, quanto à matéria de exceção

No requerimento em que se pronuncia sobre a matéria de exceção suscitada, a Requerente aduz contra a procedência das exceções invocadas os seguintes argumentos:

  • ACSR é um imposto, pelo que cabe no âmbito da competência dos tribunais arbitrais tributários;
  • A Requerente formulou um pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade do ato de liquidação de CSR referente, invocando como causa de pedir a desconformidade da contribuição com a Diretiva 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao Regime Geral dos

Impostos Especiais de Consumo pelo que não existe qualquer obstáculo a que o tribunal arbitral se pronuncie sobre o fundamento de ilegalidade do ato de liquidação baseado em desconformidade da CSR com o direito europeu;

  •  Quanto à exceção de ilegitimidade, embora não seja o sujeito passivo da relação jurídica tributária subjacente à repercussão, a Requerente, enquanto repercutida, pode impugnar os próprios atos de liquidação do imposto, de acordo com o artigo 18.º, n.º 4 da LGT, sendo que o pagamento da CSR pela Requerente resulta dos documentos juntos com a petição; o pagamento da CSR resulta ainda da configuração legal do tributo e do próprio objeto social da Requerente;
  • Quanto à arguida ineptidão da petição inicial, o pedido da Requerente é perfeitamente inteligível: a declaração de ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário adquirido e das correspondentes liquidações de CSR;
  • Quanto à alegada caducidade do direito de ação: o pedido de revisão foi apresentado em 28.04.2023. tendo por objeto a impugnação de CSR cobrada em faturas emitidas entre Abril de 2019 e 31 de Dezembro 2019. Não houve decisão do pedido de revisão oficiosa até 24-11-2023,

data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral. Tal como aconteceu no processo arbitral 410/2023-T, os pedidos de revisão oficiosa foram apresentados dentro do prazo de quatro anos contados das datas das aquisições em que foi repercutida a CSR.

  •  Pelo que não se verifica alegada caducidade do direito de ação.

 

IV – QUESTÕES A DECIDIR

Antes de iniciar a apreciação das questões de fundo, será necessário apreciar as questões de natureza excetiva suscitadas pela Autoridade Tributária, nomeadamente, pela ordem lógica, e na medida em que não sejam prejudicadas pela solução das antecedentes (v. artigos 278.º, 577.º e 608.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT):

  1. A incompetência material do Tribunal Arbitral;
  2. Ineptidão da petição inicial;
  3. Ilegitimidade processual ativa da Requerente;
  4. Caducidade do direito de ação.

Não se verificando-se nenhuma exceção dilatória que obste à apreciação do mérito da causa, deverão ser apreciadas as seguintes questões relativas ao mesmo:

  1. Se a Contribuição de Serviço Rodoviário impugnada nestes autos foi repercutida pelos fornecedores de combustíveis à Requerente no preço praticado;
  2. Assim sendo, se os atos de liquidação de Contribuição de Serviços Rodoviário repercutida são ilegais e devem ser anulados;
  3. Se, por força dessa anulação, a Requerente tem direito ao reembolso, pelo Estado, das quantias repercutidas.

 

V – FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO

  1. Factos considerados provados

O Tribunal Arbitral dá como provados os seguintes factos:

  1. Durante o período compreendido entre 1 de abril e 31 de dezembro de 2019, a Requerente comprou às sociedades B... SA, C... S.A., D..., S.A., e E... S.A. um total de 4.535.327,51 litros de gasóleo rodoviário para a prossecução do seu objeto social;
  2. Em 28.04.2023, a Requerente apresentou, junto do Diretor-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC), um pedido de promoção de revisão oficiosa, em que pedia a revisão oficiosa das liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira, alegadamente refletidas nas faturas emitidas pelas sociedades vendedoras do combustível adquirido pela Requerente no período referido;
  3. A pedido da Requerente, a sociedade B... S.A. emitiu uma declaração com o seguinte teor:

“B..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na avenida..., nº ..., ..., ...-... Lisboa, pela presente declara, para os devidos efeitos legais que a Contribuição de Serviço Rodoviário entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado - Autoridade Tributária e Aduaneira, por referência ao combustível fornecido à empresa A... Lda., foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa”.

  1. A pedido da Requerente, a sociedade C..., LDA. emitiu uma declaração com o seguinte teor:

“C... , LDA. […], declara, pela presente e para todos os efeitos que nada tem a haver da sociedade A... LDA, com sede em […], relativamente a dívidas vencidas ou a vencer anteriores a 01/01/2023.”

  1. A pedido da Requerente, a sociedade E..., S.A. emitiu uma declaração com o seguinte teor:

“E... SA.. […], pela presente declara que repercutiu nos montantes faturados, o montante relativo à Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), nas vendas de combustível que efetuou à A... LDA […]. Mais declara que os referidos montantes repercutidos integram as declarações de ISP da Declarante, efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.”

  1. A pedido da Requerente, a sociedade F..., S.A. emitiu uma declaração com o seguinte teor:

“F..., S.A, […], pela presente declara, para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si suportada na aquisição de combustível a sujeitos passivos deste tributo foi, por sua vez, integralmente repercutida por si, por referência ao combustível fornecido à entidade Transportes A... Lda […], na esfera da referida empresa.”

  1. A pedido da Requerente, a sociedade D..., S.A. emitiu uma declaração de não dívida com o seguinte teor:

“Vimos pela presente declarar para os devidos efeitos que a empresa Transportes A... Lda […], tem regularizadas todas as faturas e que nada deve, junto da D..., S.A., […], à data de 31/12/2023.”

  1. À data da apresentação do pedido arbitral (24.11.2023), a Requerente não havia ainda sido notificada de decisão sobre o procedimento de revisão oficiosa.

 

  1. Factos considerados não provados

Analisada a prova produzida nos autos, com relevo para a decisão da causa, não se consideram provados os seguintes factos:

  1. Que as B... SA, C... S.A.,  D..., S.A., e E... S.A. entregaram ao Estado, enquanto sujeitos passivos da respetiva relação jurídico-tributária, os montantes de Contribuição de Serviço Rodoviário objeto da presente ação.
  2. Que os fornecedores de combustíveis repercutiram, de facto, nas faturas emitidas à Requerente pelas vendas de combustível a esta efetuadas no período de abril a dezembro de 2023, importâncias relativas à Contribuição de Serviço Rodoviário.

 

O Tribunal não dá como provados ou não provados quaisquer outros factos com relevância para o julgamento da causa.

A matéria de facto dada como provada assenta nos documentos juntos pelo Requerente bem como no processo administrativo, de que foi junta cópia pela AT, os quais, analisados de forma crítica, constituem a base da convicção do Tribunal quanto à realidade dos factos descrita supra.

Com efeito, as faturas de aquisição dos combustíveis juntas aos autos não têm qualquer menção à CSR ou à repercussão da mesma, nem foram apresentados comprovativos de pagamentos da CSR, cujo valor é impugnado, ao Estado.

Em relação às declarações de parte e aos depoimentos das testemunhas, estes não lograram, de igual modo, fazer a prova da repercussão alegada pela Requerente e do facto de esta ter suportado economicamente a CSR. Afirmaram desconhecer a política de preços (através dos quais se operaria a repercussão) dos fornecedores mais declarando que o preço pode ser objeto de negociação.

Por seu turno, os fornecedores que poderiam ter identificado as DIC a que respeitavam os combustíveis e a CSR aqui sindicada, não o fizeram, inviabilizando por essa via o cruzamento/correspondência dos atos de liquidação com as faturas de aquisição de combustível pela Requerente e a prova do pagamento da CSR, limitando-se a emitir declarações vagas sobre a CSR, sem a necessária concretização (montantes, datas, DIC), ou apenas com referência à ausência de dívidas da Requerente. 

 

VI – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

  1. Questões prévias

 

  1. Questão da competência material do tribunal arbitral

 

A Requerida suscita a exceção de incompetência material do tribunal arbitral, alegando que a CSR, sendo uma contribuição financeira e não um imposto, encontra-se excluída da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março.

A competência material dos Tribunais Arbitrais é delimitada pelo artigo 2º do RJAT nos seguintes termos:

Artigo 2.º

Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável

1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

 

Sendo esta a norma, e a única norma, que define a competência material dos tribunais arbitrais tributários, é evidente que a competência material dos tribunais arbitrais abrange todas as espécies de tributos, sendo assim irrelevante, para efeitos de competência material do Tribunal, a qualificação da Contribuição de Serviço Rodoviário dentro das espécies de tributos.

A Autoridade Tributária cita, porém, vários acórdãos arbitrais (processos 31/2023-T, 508/2023-T e 520/2023-T), em que se conclui que, estando em causa um tributo que o legislador designou como contribuição financeira,  este não é abrangido pelo âmbito de vinculação da Autoridade Tributária à arbitragem tributária.

Os referidos acórdãos concluem que, faltando a vinculação da Autoridade Tributária, se está perante incompetência relativa.

Com efeito, o artigo 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março (“Portaria de Vinculação”) veio estabelecer a prévia vinculação da AT do seguinte modo:

Artigo 2.º

Objeto da vinculação

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.

Em vez do termo “tributos”, abrangente de todas as espécies tributárias, a “Portaria de Vinculação” usa o termo “impostos”.

Portanto, apesar de a Autoridade Tributária, na sua resposta, alegar a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, cremos que se pretenderia antes de alegar a incompetência relativa do Tribunal por falta de vinculação da AT.

Desta forma, a qualificação da Contribuição de Serviço Rodoviário como imposto ou como contribuição financeira é, efetivamente uma questão decisiva para aferir da verificação de um pressuposto processual fundamental, embora não da competência material do Tribunal.

A qualificação da Contribuição de Serviço Rodoviário tem vindo a ser debatida pelos tribunais arbitrais e a jurisprudência tem-se dividido.

As decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 31/2023-T, 508/2023-T e 520/2023-T consideraram a CSR como uma contribuição financeira.

No sentido oposto pronunciaram-se as decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022‑T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T, que qualificaram a CSR como imposto.

Por concordarmos com o pensamento exposto acerca da questão na decisão proferida no processo arbitral nº 304/22, reproduzimos aqui o que aí se disse sobre esta matéria:

Desde a revisão constitucional de 1997, que deu à alínea i) do nº 1 do art.º 165.º da CRP a sua atual redação, não pode restar mais qualquer dúvida de que o sistema tributário português comporta três categorias de tributos: os impostos, as taxas e as “demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (acórdãos TC n.º 365/2008, de 02.07.2008; e n.º 539/2015, de 21.10.2015, proc. 27/15).

Quanto à taxa, ela consiste numa prestação pecuniária, definitiva, sem caráter sancionatório, que forma o objeto de uma obrigação ex lege, e que se destina ao financiamento dos gastos públicos; esta espécie de tributo distingue-se do imposto pelo caráter bilateral, ou sinalagmático da relação jurídica da qual é o objeto, na medida em que o sujeito passivo da taxa tem um direito especificamente ligado ao seu pagamento, direito esse a que corresponde um dever jurídico por parte do sujeito ativo, sendo que um e outro se contêm na estrutura da relação jurídica tributária (vd. acórdãos do TC nº 20/2003, de 15.01.2003, proc. 327/02; n.º 461/87, de 16.12.1987, proc. 176/87; n.º 76/88, de 07/04/1988, proc. 2/87; n.º 67/90, de 14.03.1990, proc. 89/89; 297/2018, de 07/06/2018, proc. 1330/17, entre muitos outros).

Quanto ao imposto, ele consiste numa prestação pecuniária, que forma o objeto ou conteúdo material de uma obrigação ex lege, com caráter definitivo, mas sem caráter sancionatório, e que se destina “à satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas” (acórdãos TC n.º 539/2015, de 21.10.2015, proc. 27/15; nº 437/2021, de 22.06.2021, proc. 82/21). O imposto caracteriza-se ainda por se inserir numa relação tributária unilateral, não sinalagmática, o que significa que não existe, pela  parte do sujeito passivo, nenhum direito específico correlacionado com a obrigação tributária, nem da parte do sujeito ativo, nenhuma obrigação específica para com o primeiro, que tenha o caráter de contrapartida pelo pagamento do imposto (esta conceção do imposto encontra-se plenamente sancionada por uma vasta e consistente jurisprudência do Tribunal Constitucional, podendo citar-se os acórdãos  nº 582/94, de 26.10.1994, proc. 596/93; n.º 583/94, de 26.10.1994, proc. 536/93; n.º 584/94, de 26.10.1994, proc. 540/93; n.º 1140/96, de 06.11.1996, proc. 569/96; n.º 274/2004, de 20.04.2004, proc. 295/03, entre muitos outros).

Dada a estrutura unilateral, não sinalagmática, da relação tributária que tem como objeto o imposto, a definição do respetivo quantum baseia-se na capacidade contributiva dos sujeitos passivos (acórdão TC n.º 437/2021, de 22.06.2021, proc. 82/21); já no caso da taxa, dada a estrutura bilateral ou sinalagmática da relação jurídica tributária da qual aquela é objeto, a definição do respetivo quantum baseia-se numa aproximação ou estimativa do valor da contraprestação (princípio da equivalência jurídica) (acórdão TC n.º 301/2021, de 13.05.2021, proc. 181/20), podendo esse valor ser definido pelo custo que a prestação tem para o sujeito ativo, pelo valor do benefício que o sujeito passivo obtém, ou ainda por outras grandezas sempre estreitamente correlacionadas com a prestação pública individualizada que integra o sinalagma.

Quanto à “contribuição financeira” (designemo-la assim, ficando entendido que nos referimos às “demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas” referidas na al. i) do nº 1 do art.º 165.º da CRP, e salvaguardando que não se encontra doutrinal ou jurisprudencialmente encerrada a questão da designação, única ou plural, desta categoria de tributos bem como das espécies que ela possa comportar), o Tribunal Constitucional tem optado por não adotar uma definição fechada, recorrendo antes a vários contributos que vão sendo desenvolvidos pela doutrina.

No acórdão nº 7/2019 (de 13.05.2021, proc. 301/21, relator Almeida Ribeiro), o Tribunal Constitucional diz:

“Segundo Sérgio Vasques estes tributos situam-se no terreno intermédio que vai das taxas aos impostos, incluindo-se nesta categoria «não apenas as taxas de regulação económica, mas toda a parafiscalidade associativa, as contribuições para a segurança social, as contribuições especiais de melhoria, assim como o universo crescente dos tributos ambientais, todos eles com estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários» (...).”

No mesmo aresto o tribunal cita também Suzana Tavares da Silva, nos seguintes termos:

“E de acordo com Suzana Tavares da Silva estes tributos podem «agrupar-se em três tipos fundamentais: 1) como instrumento de financiamento de novos serviços de interesse geral que ocasionam um benefício concreto imputável a alguns destinatários diferenciados (ex. prevenção de riscos naturais) - contribuições especiais financeiras; 2) como instrumento de financiamento de novas entidades administrativas cuja atividade beneficia um grupo homogéneo de destinatários (ex. taxas de financiamento das entidades reguladoras) — contribuições especiais parafiscais; e 3) como instrumentos de orientação de comportamentos (finalidades extrafiscais) — contribuições orientadoras de comportamentos ou (...) contribuições especiais extrafiscais» (...)”

Finalmente, no mesmo aresto, o Tribunal cita a sentença do tribunal a quo, nos seguintes termos:

 “(...) [E]sta linha divisória estabelece-se entre a existência ou não de um nexo de bilateralidade /causalidade entre o Estado e o sujeito passivo do tributo, ou seja, apenas se podem qualificar como contribuições financeiras a favor de entidades públicas os tributos que se possam reconduzir a uma prestação pecuniária coativa destinada a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos, acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública — mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas - sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários.”

Não há, pois, dúvida de que a “contribuição financeira” é hoje entendida, consensualmente, como uma prestação pecuniária coativa definitiva e não sancionatória (um tributo, portanto) que forma o objeto de uma relação jurídica tributária com uma estrutura de “bilateralidade ou comutatividade coletiva ou grupal”, na medida em que a obrigação tributária impende individualmente sobre os membros de um grupo de sujeitos passivos, mas tendo essa obrigação uma contrapartida, a qual consiste numa prestação, de caráter público, a que está obrigado o sujeito ativo, não individualizada, mas coletiva, na medida em que a atividade é prestada de forma difusa ao grupo de sujeitos passivos.

Sendo, assim, a comutatividade coletiva o traço distintivo que caracteriza a contribuição financeira, a dificuldade está em concretizar em que se traduz essa comutatividade coletiva que não assenta, como na taxa, numa contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo.

O Supremo Tribunal Administrativo já por várias vezes analisou a questão e, sem em nenhum momento se afastar da jurisprudência do Tribunal Constitucional, tem caraterizado o “nexo de bilateralidade ou comutatividade coletiva” nos seguintes termos (STA 2 Sec. ac. de 04.07.2018, proc. 01102/17, relator Casimiro Gonçalves):

 “(...) quer os impostos, quer as contribuições, podem ter na sua origem prestações administrativas dirigidas a grupos mais ou menos alargados de sujeitos passivos, embora nenhum desses tributos tenha como pressuposto uma prestação administrativa de que o sujeito passivo seja efetivo e direto beneficiário; todavia, ao contrário dos impostos e, mesmo, das contribuições especiais, as contribuições financeiras têm como finalidade compensar prestações administrativas e realizadas, de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”

Baseando-nos em todas os anteriores contributos jurisprudenciais e doutrinários, mas sobretudo no último acórdão citado do STA, concluímos que não é o simples facto de um tributo ter, desde logo, a designação de “contribuição” (ac. TC nº 539/2015) e nem o facto de esse tributo ter a respetiva receita consignada (ac. TC nº 232/2022), que o qualifica automaticamente como “contribuição financeira”; antes é, para tal, necessário, como judicia o STA, que esse tributo tenha com finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”

Com efeito, o sistema tributário comporta tributos que têm a designação de “contribuições” e são verdadeiros impostos, como se extrai, desde logo, do n.º 3 do art.º 4.º da LGT.

Por outro lado, o sistema tributário comporta igualmente impostos que, ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos (estabelecido no art.º 7.º da Lei de Enquadramento Orçamental[1]), têm a sua receita consignada (vg. ac. TC nº 369/99, de 16.06.1999, proc. 750/98).

Por conseguinte, nem o nomen juris “contribuição”, nem a afetação da receita a uma finalidade específica são suficientes para qualificar um tributo como “contribuição financeira”.

O elemento decisivo para essa qualificação é a existência de uma estrutura de comutatividade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita e os sujeitos passivos do tributo.

A mesma conceção encontra-se plasmada no acórdão do TC nº 232/2022 (de 31.03.2022, proc. 105/22, relator J.E. Figueiredo Dias), em que o tribunal afirma:

“[E]sta linha divisória estabelece-se entre a existência ou não de um nexo de bilateralidade/causalidade entre o Estado e o sujeito passivo do tributo, ou seja, apenas se podem qualificar como contribuições financeiras a favor de entidades públicas os tributos que se possam reconduzir a uma prestação pecuniária coativa destinada a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos (...)”

E o tribunal acrescenta nesse mesmo aresto, com particular importância para a questão que nos ocupa no presente processo:

“(...) acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários”.

Ou seja, para que possamos afirmar estar-se perante uma “contribuição financeira”, é necessário que as prestações públicas que constituem a contrapartida coletiva do tributo beneficiem ou sejam causadas pelos respetivos sujeitos passivos.

Confrontemos esta construção, totalmente amparada na jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, bem como na doutrina por estes citada, com o decidido no processo arbitral nº 629/2021-T (decisão de 03.08.2022, relator Vítor Calvete) sobre a mesma questão de que se ocupa o presente processo arbitral.

A decisão arbitral cita Filipe de Vasconcelos, nos seguintes termos:

“(...) [O] nexo bilateral que subjaz ao respetivo facto tributário [tem] caráter derivado, já que resulta de uma presunção de benefício ou utilidade na esfera dos sujeitos passivos, por pertencerem ou integrarem, num determinado intervalo de tempo, um grupo, tendencialmente homogéneo de interesses”, (...) “homogeneidade de interesses” e (...) “responsabilidade de grupo (…) que se deve ao facto de os sujeitos passivos deste tipo de tributo partilharem um ónus ou responsabilidade de custeamento ou suporte da atividade pública que não pode atribuir-se isoladamente, mas apenas em face daquela que é a respetiva inserção no grupo a que efetivamente pertencem.”

Cita ainda Suzana Tavares da Silva, nos seguintes termos:

“(...) [A] A. recorre, para a delimitação dos contornos das contribuições financeiras, aos critérios desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional Alemão:  “1) incidir sobre um grupo homogéneo; 2) manter uma proximidade com a obrigação tributária e as suas finalidades; 3) corresponder a uma relação encargo/benefício capaz de demonstrar que as receitas geradas são fruídas pelos membros do grupo” (p. 91).”

Concluindo o Tribunal:

“(...) o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas coletivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária.”

A conclusão a que chegámos acima, com base na jurisprudência quer do Tribunal Constitucional quer do Supremo Tribunal Administrativo, mostra-se plenamente coincidente com a decisão arbitral citada.

Entendemos, assim, que o que distingue uma “contribuição financeira” de um imposto de receita consignada é a necessária circunstância, de, na primeira, a atividade da entidade pública titular da receita tributária ter um vínculo direto e especial com os sujeitos passivos da contribuição. Tal vínculo pode consistir no benefício que os sujeitos passivos, em particular, retiram da atividade da entidade pública, ou pode consistir num nexo de causalidade entre a atividade dos sujeitos passivos e a necessidade da atividade administrativa da entidade pública.

A Contribuição de Serviço Rodoviário não cabe em nenhuma destas hipóteses. Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007).

Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se  inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.

A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.

No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o  grupo dos respetivos sujeitos passivos.

Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.

Nos termos do nº 1 do art.º 20.º da LGT, “a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte”.

Para que estivéssemos, no caso presente, perante uma situação de substituição tributária, era necessário que os consumidores que pagam o preço dos combustíveis aos revendedores estivessem na posição de “contribuintes”.

Sobre o conceito de contribuintes, o nº 3 do art.º 18.º diz que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.” De onde se retira que o contribuinte é uma das espécies da categoria “sujeitos passivos” e estes são as pessoas (ou entidades) que estão obrigadas ao pagamento da prestação tributária, o que não acontece com os consumidores dos combustíveis.

Concluímos, assim, que não estamos perante uma situação de substituição, pelo que os sujeitos passivos da CSR são igualmente os respetivos contribuintes diretos.

Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.

Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.

É ainda relevante a posição do Tribunal de Contas, na Conta Geral do Estado de 2008, onde se lê:

 “Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspetos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança.

Com efeito, a contribuição de serviço rodoviário é devida ao Estado, na medida em que é este o sujeito ativo da respetiva relação jurídica tributária, pelo que os princípios constitucionais e legais da universalidade e da plenitude impõem a inscrição da previsão da cobrança da sua receita na Lei do Orçamento do Estado de cada ano.

(...)

Face ao exposto, não se antevê suporte legal bastante, face à Constituição e à lei, para a contribuição de serviço rodoviário ser paga diretamente a uma sociedade anónima, sem passar pelo Orçamento do Estado. Para além disso, o Tribunal de Contas não pode deixar de assinalar que esta situação leva a uma saída de receitas e despesas da esfera orçamental e, por consequência, da sua execução, o que conduz à degradação, nesta sede, do âmbito do controlo das receitas e despesas públicas.”

A posição do Tribunal de Contas apenas reforça a conclusão do Tribunal, já anteriormente enunciada, de que a CSR é um imposto de receita consignada.

A interpretação que adotamos é igualmente corroborada por Casalta Nabais, J., Estudos sobre a Tributação dos Transportes e do Petróleo, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 42-43, em que o Autor afirma que  “estarmos perante tributos que, atenta a sua estrutura unilateral, se configuram como efetivos impostos, muito embora dada a titularidade ativa das correspondentes relações tributárias (e o destino da sua receita), tenham clara natureza parafiscal.”

Tendo por base toda a argumentação expendida, que perfilhamos integralmente, conclui-se pela não procedência, nem da alegada exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral – exceção que, na opinião deste Tribunal, nunca resultaria da exclusão do tributo do âmbito da vinculação prévia da Autoridade Tributária à arbitragem tributária – nem da exceção de falta de vinculação de uma das partes, em virtude da natureza do tributo. Sendo a Contribuição Especial Rodoviária um verdadeiro imposto, ela encontra-se abrangida quer no âmbito da competência material dos tribunais arbitrais tributários, definido pelo art.º 2.º do RJAT, quer no âmbito da vinculação prévia da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais.

A Autoridade Tributária alega ainda que “sempre existiria incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, por outra via”, pois a Requerente pede a não aplicação de um diploma legislativo aprovado por Lei da Assembleia da República, decorrente do exercício da função legislativa e, portante visa, com a presente ação, suspender a eficácia de atos legislativos. Sendo que o contencioso de mera anulação, em que a arbitragem tributária se enquadra, não consente “nem o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-legislativa do Estado, nem a pronúncia sobre a restituição de valores/montantes, por conta da declaração de ilegalidade ou anulação de atos de liquidação (o que só pode ser determinado em sede de execução da decisão)”.

Quanto a este ponto, remetemos mais uma vez a nossa apreciação para o acórdão arbitral no processo já citado (processo arbitral nº 304/22), em que se afirma:

“Estamos aqui perante o que se designa por “ilegalidade abstrata ou absoluta da liquidação”, que se distingue da “ilegalidade em concreto” por na primeira estar em causa a ilegalidade do tributo e não a mera ilegalidade do ato tributário ou da liquidação (STA 2 Sec., ac. de 20.03.2019, proc. 0558/15.0BEMDL 0176/18, relator Aragão Seia). Na ilegalidade abstrata a ilegalidade não reside diretamente no ato que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita, não sendo, por isso, a existência de vício dependente da situação real a que a lei foi aplicada nem do circunstancialismo em que o ato foi praticado (Lopes de Sousa, J., Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 5ª ed., II vol., pág. 323).”

Com efeito, a invalidade da norma em que se baseou a liquidação, resultante de essa mesma norma ofender qualquer norma de categoria hierárquica superior (como é o caso da Constituição da República Portuguesa ou do direito da União Europeia, em relação a uma lei de imposto), dá causa à ilegalidade da própria liquidação, podendo esta ilegalidade ser fundamento de impugnação (STA, Plenário, acórdão de 07.04.2005, proc. nº 01108703. Rel: Jorge de Sousa).

A apreciação que o tribunal faz da validade da norma lega é uma apreciação incidental, necessária para assegurar a impugnabilidade de atos de liquidação feridos de ilegalidade abstrata.

Finalmente, a Autoridade Tributária alega também que o Tribunal seria incompetente para “pronunciar-se sobre atos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, e que para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto, como, à frente, se desenvolverá.”

Quanto a este ponto, apenas se observa que, no caso vertente, a Requerente não pede a apreciação da legalidade dos atos de repercussão, mas apenas das liquidações do imposto.

 

  1. Questão da ineptidão da petição inicial

 

A Requerida invoca também a questão da ineptidão da petição inicial, alegando que a Requerente não identifica, em nenhum lado do seu pedido de pronúncia arbitral, qualquer ato tributário que a Requerente pretenda ver apreciado.

Vejamos:

O artigo 98º, n.º 1, alínea a) do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto no artigo 29º, n.º 1, alínea d) do RJAT, indica como uma das nulidades insanáveis do processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial.

Por seu turno, sobre o que se considera constituir ineptidão da petição inicial, dispõe o artigo 186º, n.º 1 do CPC, também subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT, que se diz inepta a petição inicial:

  1. Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir
  2. Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
  3. Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

No caso vertente estão à partida excluídas as causas das alíneas b) e c), pelo que haverá que averiguar se se verifica a situação prevista na al. a): falta ou ininteligibilidade da indicação do pedido ou da causa de pedir.

O pedido existe. A Requerente pede que o Tribunal arbitral declare a ilegalidade das liquidações de CSR efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira correspondentes ao combustível vendido à Requerente.

A causa de pedir reside na ilegalidade da própria CSR, por violação do Direito da União Europeia, nomeadamente da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, por não prosseguir “motivos específicos” e no facto de ter existido repercussão desse imposto ilegal no preço do combustível cobrado à Requerente. A causa de pedir é, pois, claramente inteligível.

Quanto à inteligibilidade do pedido, consideramos que esta pode ter várias dimensões. Uma delas é a da formulação do pedido em termos jurídicos, linguísticos e lógicos inteligíveis. Essa inteligibilidade não se põe em causa no caso dos autos. Mas uma outra vertente é a identificação do objeto do pedido.

Como já se disse no acórdão arbitral emanado no processo 604/2023-T, para a inteligibilidade do pedido “não basta que o pedido seja claro em abstrato na sua formulação, mas é ainda necessário que ele seja suficientemente concretizado para poder servir de base ao processo, ie, para que o tribunal possa efetivamente conhecer o objeto do processo.” E concretizar o pedido, no caso do contencioso de anulação de atos administrativos, “significa necessariamente identificar os atos cuja anulação se pretende, como, aliás decorre do artigo 108º do CPPT, quando estipula que “[A] impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o ato impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido”.

Importa, pois, ver se estão identificados os atos de liquidação impugnados e se, a verificar-se falta dessa identificação, esta compromete irremediavelmente a inteligibilidade do pedido.

Desde logo, efetivamente, não encontramos no pedido de pronúncia arbitral a identificação dos atos de liquidação de CSR cuja anulação é pedida.

A Requerente pede a anulação das “liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), emitidas pela Administração Tributária e Aduaneira (AT), refletidas nas faturas emitidas pelas sociedades fornecedoras de combustível abaixo mencionadas, referentes a gasóleo rodoviário adquirido pela Requerente àquelas sociedades no período compreendido entre 15.05.2019 e 31.12.2022, no valor total de € 397.014,05”.

É clara e compreensível a intenção da Requerente de identificar as liquidações de CSR impugnadas através da sua correspondência com os atos de repercussão da mesma CSR no preço das aquisições de combustível efetuadas pela Requerente às suas fornecedoras. O que seria, aliás, perfeitamente viável se estivéssemos perante uma repercussão formal, como existe no IVA.

O problema, que faz com que a construção da Requerente não possa ser aceite, está em que uma tal correspondência, entre a liquidação de CSR e a as faturas de aquisição de combustível – das quais não consta qualquer menção à CSR, mas, aliás, mesmo que constasse – não é suscetível de ser realizada por não existir um ato de repercussão formal.

Ao contrário do que acontece no IVA, em que são os atos de repercussão do imposto (no preço cobrado ao adquirente), efetuados anteriormente à liquidação de IVA propriamente dita, que determinam esta, quanto ao seu montante e quanto ao seu período temporal, existindo uma correspondência exata entre o ato de repercussão e a liquidação de IVA, no caso da CSR (mesmo admitindo, a priori, que existem atos de repercussão), estes não estão formalmente ligados ao ato de liquidação.

Os atos de repercussão - a existirem, ressalva-se de novo - não estão formalmente ligados ao ato de liquidação nem podem estar, pela própria mecânica do imposto. No IVA, o imposto é devido quando ocorre uma venda ou prestação de serviços. Mais uma vez, é a transação entre o sujeito passivo e o seu cliente que determina o nascimento da obrigação do próprio imposto. Por esse motivo, existe um elo formal entre a transação, a repercussão e a liquidação. No caso da CSR, é a introdução no consumo que faz nascer a obrigação tributária (art.º 8.º do CIEC, aplicável à CSR por remissão do art.º 5.º da Lei que estabelece o regime daquele imposto), podendo a repercussão do imposto ter lugar em qualquer data dentro de um intervalo de tempo indeterminado. Deste modo, o facto gerador da CSR ocorre sem qualquer conexão com a transação em que a mesma possa ser repercutida.

Ou seja, ao não estarmos perante uma repercussão formalizada, não é possível, nem ao Tribunal, nem à Autoridade Tributária, identificar as liquidações de CSR às quais corresponderiam – a existir repercussão – as vendas de combustível. Só as entidades fornecedoras, na melhor das hipóteses, poderiam efetuar a correspondência entre as faturas emitidas e as liquidações de CSR. Mas tal correspondência não foi realizada, pois não foram indicadas as liquidações de CSR impugnadas.

A propósito da impossibilidade de a Requerida identificar os atos de liquidação a partir das faturas, tenha-se em conta que a própria Autoridade Tributária já alega, na sua contestação (cfr. artigos 108.º e seguintes), que não lhe é possível estabelecer correspondência entre as faturas e quaisquer liquidações de imposto.

E, portanto, embora a Requerente diga várias vezes que a Autoridade Tributária tem conhecimento oficioso dos atos de liquidação que correspondem às faturas, a verdade é que não existem elementos objetivos que permitam estabelecer uma tal correspondência em termos seguros.

Será importante ainda referir que, ainda que o tribunal viesse, numa apreciação do mérito da causa, a dar como provado que nas faturas da compra do combustível foi repercutida CSR, com base na declaração das fornecedoras ou por qualquer outro meio, ainda assim não seria possível ao Tribunal, devido à configuração do processo contencioso de anulação, condenar a Requerida ao reembolso do imposto, por ventura indevido, sem, primeiro, anular as liquidações de CSR. Pelo que, sem a identificação destas liquidações, não é possível satisfazer o interesse da Requerente.

Importa ainda referir que a ineptidão foi invocada pela Requerida e foi dada a possibilidade à Requerente de sobre a mesma se pronunciar, não tendo esta suprido a omissão da identificação dos atos de liquidação.

Com efeito, sobre este ponto, e no âmbito do contraditório sobre a matéria de exceção, a Requerente limita-se a reproduzir alguns excertos da decisão do processo arbitral n.º 410/2023-T, na qual se afirma que esta não tem a possibilidade de identificar os atos de liquidação[2], pelo que seria inviável qualquer convite deste Tribunal ao aperfeiçoamento do pedido arbitral.

Assim sendo, verifica-se efetivamente uma falta de concretização do pedido, por falta de identificação dos atos de liquidação da CSR, com a inerente insuficiência de identificação do objeto do pedido, que o torna ininteligível, verificando-se igualmente, em consequência, a ineptidão da petição inicial, a qual tem por consequência a nulidade de todo o processo e é uma exceção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição da Requerida da instância, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b), 577.º, alínea b), todos do Código de Processo Civil (Ac. TRC, de 18.10.2016, proc. 203848/14.2YIPRT.C. Rel: Manuel Capelo).

Considerada inepta a petição inicial, fica prejudicado o conhecimento das restantes exceções arguidas, bem do mérito da causa.

 

VII – DECISÃO

Por todo o exposto, decide este Tribunal absolver a Requerida da instância, por verificação de exceção dilatória que obsta ao conhecimento do pedido (v. arts.186.º, n.ºs 1 e 2, 278.º, n.º 1, alínea b) e 577.º, alínea b, todos do CPC).

 

VIII - VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC e 97.ºA do CPPT, e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em 503.421,35 € (quinhentos e três mil, quatrocentos e vinte e um euros e trinta e cinco cêntimos).

 

IX - CUSTAS ARBITRAIS

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 7.956,00 nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

Lisboa, 26 de julho de 2024

Os Árbitros

 

(Alexandra Coelho Martins)

Com declaração junta

 

 

 (Nina Aguiar, relatora)

 

 

(João Pedro Rodrigues)

Vencido, conforme declaração junta

 

 

 

 

Declaração de voto relativa ao fundamento

Votei a decisão por concordar com a absolvição da instância da Requerida. No entanto, chegaria ao mesmo desfecho com outro fundamento, o da ilegitimidade da Requerente, de acordo com a linha de argumentação das decisões arbitrais 375/2023-T, 408/2023-T e 1034/2023-T.

 

(Alexandra Coelho Martins)

Lisboa, 26 de julho de 2024

 

Declaração de voto de vencido

A ineptidão da petição inicial constitui uma nulidade processual, de conhecimento oficioso, que determina a absolvição do réu da instância (artigos 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), 577.º, alínea b), 576.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 98.º, n.º 1, alínea a) do CPPT)

Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, norma subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT,  a petição será inepta quando: [a)] faltar ou for ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; [b)] o pedido estiver em contradição com a causa de pedir; ou, finalmente, quando [c)] se cumulem pedidos ou causas de pedir substancialmente incompatíveis. Mais se refere, no n.º 3, do referido artigo 186.º do CPC, que quando arguida “a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.

Como consta do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pretende controverter os atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário, referentes aos meses de abril de 2019 a 31 de dezembro de 2019. Trata-se de um pedido que se encontra formulado em termos claros e percetíveis, sendo perfeitamente inteligível a pretensão da Requerente e, bem assim, a causa de pedir que aqui assenta num “facto ou complexo de factos aptos para pôr em movimento uma norma de lei, um facto ou complexo de factos idóneos para produzir efeitos jurídicos”, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, pp. 56 e ss.. Do mesmo passo, não se verifica qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir, nem se cumulam pedidos ou causas de pedir incompatíveis, o que, ademais, nem vem posto em causa pela Requerida.

No âmbito do nosso sistema jurídico-tributário reconhece-se legitimidade a quem suporte o imposto por repercussão legalmente intencionada para controverter os atos de liquidação originários, pressupostos da efetiva repercussão subsequente, e de, por essa via, obter o reembolso dos valores indevidamente repercutidos. Trata-se de uma opção também presente noutros ordenamentos jurídicos, como o espanhol, onde os “obrigados a suportar a repercussão” têm legitimidade para controverter “atuações ou omissões dos particulares em matéria tributária”, tais como “as relativas às obrigações de repercutir e suportar a repercussão prevista legalmente”, tendo “direito a solicitar o reembolso de impostos indevidos” junto da administração tributária.

É certo que o legislador pátrio, apesar de prever a legitimidade impugnatória dos repercutidos, absteve-se de regular especificamente a matéria de forma a atender às vicissitudes da repercussão, da sua correlação com os correspetivos atos de liquidação e de reembolso, designadamente através da existência de um filtro administrativo, como sucede no âmbito do regime espanhol  (v. artigo 35.º, n.º 2, alínea g), artigo 227.º, n.º 4, alínea a), da Ley General Tributaria e artigo 14.º do Reglamento general de desarrollo de la Ley 58/2003, de 17 de diciembre, General Tributaria, en materia de revisión en via administrativa). Porém, na inexistência dessa regulamentação, não pode obnubilar-se que o ónus de identificação e comprovação dos atos de liquidação tem de ter forçosamente em conta o facto de a Requerente não poder ser considerada sujeito passivo da relação jurídico-tributária, mas de apenas lhe ser atribuída legitimidade para promover a impugnação dos atos tributários que a atinjam por via da repercussão, de modo que, a opção do legislador em conferir legitimidade impugnatória a quem suporte o encargo do imposto por repercussão, implica necessariamente que a identificação dos atos de liquidação se faça sem o conhecimento da liquidação concretamente em causa (v.g. com a data e n.º), outrossim por interposição dos atos que titulam a repercussão do imposto – que são a ratio determinante da possibilidade impugnatória prevista na lei –, sob pena de impossibilidade de reação.

Acompanha-se, assim, o entendimento vertido, entre outros, no Acórdão tirado no Processo n.º 1049/2023, onde se considerou inexistir ineptidão da petição inicial quando os atos de liquidação sejam “identificados e documentados pelo único meio possível qual seja a emissão de faturas pelo fornecedor do combustível” e no Acórdão prolatado no Processo n.º 982/2023, também subscrito pelo ora relator, onde se deixou consignado que a “exigência de identificação das liquidações, numa situação deste tipo, em que o repercutido não tem possibilidade de as identificar e a identificação não é imprescindível para apurar a legalidade da cobrança de CSR ínsita nas faturas, seria incompaginável com o princípio constitucional da proporcionalidade e o direito à tutela judicial efetiva, garantido pelos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, pois inviabilizaria a possibilidade prática de a Requerente impugnar contenciosamente actos que lhe aplicam tributação e lesam a sua esfera jurídica”.

Afasto-me do decidido quanto à prova da repercussão, considerando que, pelo menos em parte das aquisições de combustíveis efetuadas junto dos sujeitos passivos da CSR, a Requerente logrou fazer prova da efetiva repercussão do imposto.

A meu ver, as declarações dos sujeitos passivos do imposto de que repercutiram na Requerente a totalidade dos valores que entregaram ao Estado a título de CSR, conjugadas com os documentos que suportam a aquisição dos combustíveis, cumprem a função de possibilitar a determinação do valor da CSR, na ausência da sua menção expressa em cada um dos documentos de aquisição, sendo que o facto de as faturas individualmente consideradas não se referirem ao valor da CSR repercutida, apartando-o do preço, não se traduz numa qualquer “formalidade ad substantiam” da repercussão – artigo 37.º, n.º 2, do CIVA – , mas apenas exige um esforço ad probationem suplementar que, in casu, considero encontrar-se satisfeito pelas mencionadas declarações,  numa ponderação fáctica do manancial probatório trazido aos autos, estribada em critérios de experiência comum.

 

 

(João Pedro Rodrigues)

Lisboa, 26 de julho de 2024

 

 



[1] Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto.

[2] O excerto relevante para esta matéria é o seguinte: “A exigência de identificação das liquidações, numa situação deste tipo, em que o repercutido não tem possibilidade de as identificar e a identificação não é imprescindível para apurar a legalidade da cobrança de CSR ínsita nas facturas, seria incompaginável com o princípio constitucional da proporcionalidade e o direito à tutela judicial efectiva garantido pelos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP”.