SUMÁRIO:
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«O artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção».
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A retenção na fonte em IRC feita no desrespeito por esta jurisprudência europeia é anulável por erro sobre os pressupostos de facto e de Direito.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros José Poças Falcão (Presidente), Vasco António Branco Guimarães (relator) e Jónatas Machado, árbitros designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 20-02-2024, deliberam o seguinte:
1. Relatório
A..., organismo de investimento colectivo ("OIC") constituído e a operar no Grão-Ducado do Luxemburgo sob supervisão da Commission de Surveillance du Secteur Financier, contribuinte fiscal luxemburguês n.º ... e português n.º ..., com sede em Rue ..., no Grão-Ducado do Luxemburgo, representado pela sua entidade gestora B..., com sede em Rue ..., ..., no Grão-Ducado do Luxemburgo (doravante "Requerente"), vem solicitar a constituição de Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), apresentou,
PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL
o qual tem por objeto:
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a declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa em referência e, bem assim,
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das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas ("IRC") por retenção na fonte ocorridas em 2019, 2020 e 2021, aquando da colocação à disposição do Requerente de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português;
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o indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada a 09 de maio de 2023, contra os atos tributários de retenção na fonte indevidamente suportados, melhor identificados infra, a título de IRC, que lhe foram efetuados, a título definitivo, sobre dividendos de fonte portuguesa, durante 2019, 202 e 2021, no valor de € EUR 406.829,85, (quatrocentos e seis mil, oitocentos e vinte e nove mil euros e oitenta e cinco cêntimos), devendo o Tribunal funcionar com um coletivo de três árbitros, atento o disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º do RJAT,
iv) O pagamento de juros indemnizatórios que se mostrem devidos nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT.
Termina solicitando ao Tribunal:
a. A dar como provada a presente ação arbitral e, consequentemente, anular o indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente;
b. Em consequência, anular os atos tributários de retenção na fonte indevida, a título de IRC, que foram efetuados a título definitivo, sobre os dividendos auferidos de fonte portuguesa, nos períodos referidos, no valor global de € EUR 406.829,85, (quatrocentos e seis mil, oitocentos e vinte e nove mil euros e oitenta e cinco cêntimos) por violação do artigo 63.º do TFUE;
c. Ordenar o pagamento dos juros indemnizatórios que se mostrem devidos nos termos do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do CPPT;
d. Condenar a Requerida em custas.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira na data de 12-12-2023.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral os acima referidos, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 02-02-2024 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 20-02-2024.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que os pedidos devem ser julgados improcedentes por exceção (ilegitimidade) e impugnação dos fundamentos apresentados.
Por despacho de 27-03-2024, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e marcado o prazo de vinte dias para alegações sucessivas desde que «concluída a fase instrutória do processo ambas as partes apresentarão, no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias, alegações finais escritas, de facto (factos essenciais que consideram provados e não provados) e de direito, formulando expressamente as respetivas conclusões. Com as suas alegações ou no prazo em que as deva apresentar, a Requerente exercerá o direito ao contraditório relativamente à matéria da Resposta da AT que constitua defesa por exceção».
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
As Partes apresentaram Alegações no prazo mencionado tendo reafirmado as posições adiantadas nos articulados.
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
A. O Requerente é um OIC, com sede e direcção efectiva no Grão-Ducado do Luxemburgo, constituído e a operar ao abrigo da Loi du 17 décembre 2010 concernant les organismes de placement collectif, que transpõe para a ordem jurídica luxemburguesa a Directiva 2009/65/CE,
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC, administrado pela sociedade B..., entidade também com residência no Grão-Ducado do Luxemburgo, que cumpre no seu Estado de residência e constituição exigências equivalentes às estabelecidas na legislação portuguesa que regula a actividade dos OIC, também em transposição da referida Directiva — cfr. artigos 3.º a 6.º do Requerimento de Constituição de Tribunal Arbitral e documentos n.os 2, 3 e 4 juntos nessa sede;
B. Em 2019, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de EUR 189.091,74, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória no valor total de EUR 28.363,76, montante esse que foi entregue junto dos cofres da Fazenda Pública através das guias de retenção na fonte n.os ..., de 21 de Junho de 2019, e ..., de 20 de Outubro de 2019, pelo C..., pessoa colectiva com o número de identificação fiscal português ..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo dos artigos 94.º, n.º 7, do CIRC e 10.º, n.º 2, da CEDT Portugal/Luxemburgo – cfr. artigos 7.º e 10.º do Requerimento
de Constituição de Tribunal Arbitral e documento n.º 5 junto nessa sede;
C. Em 2020, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de EUR 25.125,40, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória no valor total de EUR 3.768,81, montante esse que foi entregue junto dos cofres da
Fazenda Pública através das guias de retenção na fonte n.os ..., de 20 de Junho de 2020, e ..., de 20 de Agosto de 2020, pelo C..., pessoa colectiva com o número de identificação fiscal português ..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo dos artigos 94.º, n.º 7, do CIRC e 10.º, n.º 2, da CEDT Portugal/Luxemburgo – cfr. artigos 8.º e 10.º do Requerimento de Constituição de Tribunal Arbitral e documento n.º 6 junto nessa sede;
D. Em 2021, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de EUR 2.497.981,85, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória no valor total de EUR 374.697,28, montante esse que foi entregue junto dos cofres da Fazenda Pública através das guias de retenção na fonte n.os..., de 19 de Maio de 2021, e ..., de 18 de Junho de 2021, pelo C..., pessoa colectiva com o número de identificação fiscal português..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo dos artigos 94.º, n.º 7, do CIRC e 10.º, n.º 2, da CEDT Portugal/Luxemburgo – cfr. artigos 9.º e 10.º do Requerimento de Constituição de Tribunal Arbitral e documento n.º 7 junto nessa sede;
E. O Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo às retenções na fonte em crise nos presentes autos, seja ao abrigo da CEDT Portugal/Luxemburgo, seja ao abrigo da lei interna do Grão-Ducado do Luxemburgo — cfr. artigo 11.º do Requerimento de Constituição de Tribunal Arbitral e documento n.º 8 junto nessa sede;
F. Não se conformando com a tributação por retenção na fonte que incidiu sobre os dividendos auferidos das referidas participações sociais, a 8 de maio de 2023, o Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa, que correu os seus termos sob o n.º ...2023... — cfr. artigos 12.º a 14.º do Requerimento de Constituição de Tribunal Arbitral e documento n.º 1 junto nessa sede;
G. Volvidos mais de quatro meses da data da respectiva apresentação sem ter sido proferida uma decisão, presume-se o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa — cfr. artigo 15.º do Requerimento de Constituição de Tribunal Arbitral;
H. Em 12.12.2023 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral no CAAD que deu origem ao presente processo.
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Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto.
Os factos provados e não provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.
Não se retiram outros factos relevantes dos articulados por serem citações de textos legais, posições de Direito e citações de acórdãos ou posições de parte sem conteúdo fáctico.
3. Matéria de direito
As questões de mérito que são objeto deste processo são:
1. Saber se os dividendos distribuídos de ações cuja detenção é registada em nome de OIC não residentes europeus estão obrigados à retenção na fonte liberatória conforme dispõe a norma aplicável em vigor.
2. Decidir se esta retenção na fonte é conforme ao que dispõe o artigo 63.º do TFUE e não integra uma das exceções previstas no artigo 65.º do TFUE.
3. Saber se a posição da Requerida de que - «está a cumprir a norma em vigor» - é sustentável face ao ordenamento português e qual a posição do Tribunal Constitucional perante a aplicação do artigo 63.º do TFUE pelos Tribunais nacionais.
3.1. Posições das Partes
A Requerente defende o seguinte, em suma:
Que a retenção na fonte, em sede de IRC, dos dividendos distribuídos aos OIC não residentes discrimina negativamente a Requerente porquanto estabelece uma regra de tributação exclusiva para os não residentes em Portugal favorecendo os aqui residentes contra as regras em vigor e expressas no artigo 63.º do TFUE.
Que a questão já foi objeto de julgamento no TJUE no processo C-545/19 que julgou tal norma contrária às regras definidas no artigo 63.º do TFUE.
A Requerida defende:
Que a lei que prevê a tributação dos dividendos distribuídos aos OIC está em vigor e que a distinção entre residentes e não residentes continua válida e em vigor pelo que há que aplicá-la, não estando vinculada às decisões do TJUE que se apliquem a outros casos.
No caso em apreço o Tribunal não é competente, a Parte é ilegítima e o meio utilizado impróprio e fora de prazo.
3.2. Apreciação da questão.
3.2.1. Termos Gerais
A questão da aplicação do direito europeu no ordenamento jurídico português é relativamente pacífica em termos doutrinários e jurisprudenciais.
Reconhece-se, sem mais e porque isso resulta dos Tratados subscritos pela República Portuguesa os princípios estruturantes do direito europeu – o efeito direto e o primado.
A doutrina do Tribunal Constitucional está bem resumida no Acórdão n.º 198/2023 que, em resumo entende que «não compete ao TC controlar a adequação dos juízos acerca da conformidade entre normas de direito interno e as normas de direito primário da União Europeia, dada a natureza deste ordenamento e a sua específica forma de relacionamento com a ordem jurídica nacional».
O TC tem sim competência para apreciação da aplicação das normas do direito internacional que resultam de Convenções Internacionais não se incluindo nestas as que deram origem às instituições e regras Europeias.
Resulta deste non licet que a competência para a apreciação da aplicação dos princípios e regras europeias é dos tribunais de primeira instância, incluindo os Tribunais arbitrais.
No caso em análise dá-se a feliz circunstância de já ter sido julgado pelo TJUE um caso em tudo semelhante ao presente nos autos, que é o Caso C- 545/2019, de 17.03.2022, que resulta de um pedido de reenvio prejudicial feito pelo CAAD.
Aí se concluiu «O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção».
3.2.2. O art. 22º do EBF.
A questão a decidir no presente processo é idêntica a outras sobre as quais a arbitragem do CAAD tem sido chamada a pronunciar-se[1], e reconduz-se a saber se o art. 63º do TFUE deve, ou não, ser interpretado no sentido de vedar que a legislação de um Estado‑Membro imponha a retenção na fonte da tributação correspondente a dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não-residente, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
No centro da questão a apreciar situa-se o artigo 22.º do EBF: o n.º 1 desse artigo 22.º do EBF dispõe que “são tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”, excluindo, portanto, do âmbito do regime aí previsto os OIC como o Requerente, que não foram constituídos de acordo com a legislação nacional.
O art. 22.º do EBF estabelece um regime consideravelmente mais favorável do que o regime geral de tributação em IRC, visto que, nos termos do seu n.º 3, não considera os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do CIRS (juros, dividendos, rendas, mais-valias) para efeitos do apuramento do lucro tributável – excepto quando esses rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças –, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do CIRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1, e a isenção de derramas, estadual e municipal. O n.°10 do mesmo artigo dispensa as empresas que distribuem dividendos aos OIC da obrigação de reter e de entregar esse imposto à Fazenda Pública.
Importa saber se a retenção na fonte em IRC sobre os dividendos distribuídos, por sociedades residentes em Portugal, a OIC estabelecidos noutros Estados-Membros da União Europeia (no caso, a França) – ao mesmo tempo que se isenta de tributação a distribuição de dividendos a OIC residentes em Portugal, e se sujeita os mesmos a tributação trimestral em IS, pela verba 29 da TGIS, e à eventual aplicação da tributação autónoma, designadamente a prevista no artigo 88º, 11 do CIRC – é conforme, ou não, com o art. 63º do TFUE.
Trata-se, em suma, de aferir da conformidade com este artigo, à data dos factos relevantes, das pertinentes normas do CIRC e do EBF respeitantes ao regime de tributação dos dividendos auferidos pela Requerente.
3.2.3. A liberdade de circulação de capitais
O art. 26º do TFUE estabelece uma conexão substantiva entre a criação do mercado interno e a liberdade de circulação de capitais, elevada esta, pelo art. 63º do TFUE, ao estatuto de liberdade fundamental do mercado interno, dotada de relevância constitucional no âmbito do Direito da União Europeia.
A mesma goza da primazia normativa sobre o direito interno dos Estados-Membros, cabendo aos tribunais nacionais, na sua qualidade de tribunais europeus em sentido amplo, assegurar a primazia de aplicação do direito da União Europeia, desaplicando o direito nacional de sentido contrário.
A criação de um mercado interno supõe, por definição, a gradual e efectiva abolição dos diferentes mercados nacionais, em favor de um único mercado interno, de forma a potenciar o crescimento económico à escala europeia, através da mais fácil disponibilização de capital. O objectivo dos OIC, cujo enquadramento jurídico é definido pela Directiva 2009/65/CE, consiste em facilitar a participação dos investidores privados num mercado de valores mobiliários, idealmente integrado a nível da UE.
O TJUE desempenha uma função interpretativa decisiva, nomeadamente em sede de acções por incumprimento e de reenvios prejudiciais, devendo os tribunais nacionais conformar-se com o entendimento sobre as normas dos Tratados que venha a ser vertido na jurisprudência daquele tribunal, sob pena de incumprimento do direito da União Europeia e de responsabilidade por parte do Estado-Membro.
A liberdade de circulação de capitais consagrada no art. 63º do TFUE implica a proibição de discriminação entre capitais de um dado Estado-Membro, e capitais provenientes de fora. Trata-se de uma norma directamente aplicável aos Estados-Membros, que devem abster-se de restringir o seu alcance por via legislativa, administrativa ou jurisdicional, embora isso não impeça os Estados-Membros de regularem em alguma medida a circulação de capitais, desde que o façam em termos compatíveis com o direito da União Europeia.
A autonomia fiscal permite aos Estados‑Membros regularem soberanamente as condições de tributação aplicáveis, desde que o tratamento das situações transfronteiriças não seja discriminatório em comparação com o das situações nacionais. Não obstante a fiscalidade directa ser da competência dos Estados‑Membros, o respectivo regime jurídico deve respeitar o direito da União Europeia, sem qualquer discriminação em razão da nacionalidade ou da residência.
3.2.4. A posição consolidada no TJUE (recapitulação).
Recapitulando:
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De acordo com a respectiva fundamentação e, no seguimento da jurisprudência constante dos Acórdãos de 2 de Junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 27 e de 30 de Janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.º 49, decidiu o TJUE que,
“Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes”, que “pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.ºs 44, 45 e jurisprudência referida).”.
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Averiguou também o TJUE da possibilidade de uma eventual derrogação ao disposto no artigo 63.º, do TFUE, tendo em conta que, nos termos do artigo 65.º, n.º 1, alínea a), do TFUE, aquele não prejudica o direito de os Estados Membros
“Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido”.
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A este propósito, lembrou o TJUE que, de acordo com a jurisprudência firmada,
“a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» (…)”
e que
“para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 30 e jurisprudência referida]”.
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Quanto à comparabilidade das situações dos OIC residentes e não residentes, bem como dos detentores das respectivas participações sociais, concluiu o TJUE que
“Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.º 47 e jurisprudência referida).” (parágrafo 49).
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A este respeito, não obstante as alegações do Governo português, de que a tributação dos dividendos recebidos por estas duas categorias de OIC (residentes e não-residentes) é regulada por diferentes técnicas de tributação – sujeitos a IRC, por retenção na fonte, quando pagos a um OIC não-residente e a imposto do selo e à tributação autónoma prevista no n.º 11 do artigo 88.º, do CIRC, se pagos a um OIC residente, e que, ficando os dividendos distribuídos pelos OIC residentes a detentores das suas participações sociais, pessoas singulares residentes ou não-residentes com estabelecimento estável, sujeitos a IRS à taxa de 28%, e, no caso das pessoas colectivas residentes a IRC à taxa de 25%, enquanto os dividendos pagos a detentores de participações sociais não-residentes no território português, e que não tenham estabelecimento estável neste último, estão, em princípio, isentos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, o que leva a uma estreita coerência entre a tributação dos rendimentos dos OIC e dos detentores de participações sociais, imprescindível à coerência do sistema tributário –, sem esquecer a situação de transparência fiscal da Requerente, que livremente optou por não operar em Portugal através de um estabelecimento estável e cujos detentores de participações sociais podem imputar ou creditar o imposto retido na fonte em Portugal ao imposto por eles devido no país da sua residência, o TJUE concluiu que um OIC não residente se encontra numa situação objectivamente comparável à de um OIC residente em Portugal.
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Quanto ao argumento da tributação dos dividendos pagos por sociedades nacionais a OIC residentes e a OIC não-residentes por técnicas de tributação diferentes, considerou o TJUE que a legislação em causa no processo principal não se limitava a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas previa, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onerava apenas os organismos não-residentes.
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Salientava ainda que embora o imposto do selo, de natureza patrimonial, incidente sobre o rendimento do capital acumulado, pudesse ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente sempre poderia escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, possibilidade que não está aberta a um OIC não-residente.
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Por outro lado, a tributação autónoma prevista no n.º 11 do artigo 88.º, do CIRC apenas incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição, e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período, só ocorre em casos limitados, não podendo ser equiparado ao imposto geral de que são objecto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não-residentes, não colocando estes numa situação objectivamente diferente da dos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.
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Ora, apesar de os OIC residentes poderem ser tributados em sede de imposto do selo, caso optem pela não distribuição de lucros aos titulares das respectivas UP, mas antes pela sua acumulação, bem como pela tributação autónoma prevista no n.º 11 do artigo 88.º, do CIRC, apenas se reunidas as condições ali indicadas, impostos a que não estão sujeitos os OIC não-residentes, estes estão sempre sujeitos a IRC, por retenção na fonte a título definitivo, sem possibilidade de beneficiar de qualquer isenção deste imposto.
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Considerou ainda o TJUE que
“o Estado de residência da sociedade distribuidora deve assegurar que, em relação ao mecanismo previsto no seu direito nacional para evitar ou atenuar a tributação em cadeia ou a dupla tributação económica, as sociedades não residentes sejam submetidas a um tratamento equivalente ao tratamento de que beneficiam as sociedades residentes” (parágrafo 66)
e que
“Tendo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram‑se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal” (parágrafo 67).
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Relativamente à necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional, entendeu o Tribunal de Justiça, na esteira dos Acórdãos de 8 de Novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10 e de 13 de Novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, que
“para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (parágrafo 78).
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Como não estava a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes
“sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte”,
não se verificava
“uma relação direta (…) entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo”
que permitisse invocar a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional como justificação para a restrição à liberdade de circulação de capitais.
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Por outro lado, entendeu também o TJUE que não é de acolher a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre Portugal e o Estado da residência, pois, tal como já decidido, entre outros, no seu Acórdão de 21 de Junho de 2018, Fidelity Funds, C‑480/16,
“quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos.”.
3.2.6. Corolário
Como corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do TFUE, as decisões do TJUE têm carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, ao permitirem a uniformidade na aplicação do direito da União no território dos Estados-Membros em aplicação do princípio do primado ou prevalência do direito da União sobre o direito nacional, acolhido pelo n.º 4 do artigo 8.º, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”.
Face aos factos dados como provados e ao Direito aplicável dúvidas parecem não existir quanto à aplicabilidade desta jurisprudência ao caso em concreto pelo que, sem mais, passamos à decisão. A criação do Mercado Único pretende a consagração de igualdade de oportunidades e liberdade de circulação dos factores de produção que criam riqueza.
Deixa-se consagrado que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil (art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, c) e e) do RJAT).
3.3 – Reembolso de quantias pagas e juros indemnizatórios
Na sequência da ilegalidade das retenções na fonte e da decisão presumida que incidiu sobre o pedido de revisão oficiosa a solicitar a sua correção e devolução, há lugar a reembolso das quantias indevidamente retidas, como consequência da anulação daquelas, por força dos referidos artigos 24º, nº 1, alínea b), do RJAT e 43.º e 100º da LGT.
No caso em apreço, a AT aplicou as normas jurídicas nacionais em vigor, a despeito de as mesmas violarem o direito da União Europeia tal como ele tem sido interpretado pelo TJUE.
Sendo a primazia do direito da União Europeia relativamente ao direito nacional uma primazia de aplicação e não uma primazia de validade, cabe ao presente Tribunal Arbitral desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União Europeia, declarando a respectiva ilegalidade.
Nos termos dos artigos 61º do CPPT e 43º da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando, anulados os actos por vício de violação de lei, se apure que a culpa do erro subjacente à anulação do ato é imputável aos serviços da Administração Tributária, ou, em bom rigor, não é imputável ao contribuinte.
Uma vez verificado o erro, e ordenada judicialmente a sua anulação, é manifesto que, para além da devolução dos montantes ilegalmente retidos, a Requerente tem direito a que lhe sejam pagos os juros vencidos sobre esses valores (ilegalmente retidos) até integral restituição, sendo indiferente, ao reconhecimento desse direito, que o erro decorra especialmente da violação de normas da União Europeia e não apenas de normas nacionais.
Estamos assim, neste caso, perante uma actuação por parte da AT que se traduz num “erro imputável aos serviços”, para efeitos da aplicação art. 43º da LGT. Atendendo ao estabelecido no art. 61º do CPPT, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal.
A revisão oficiosa foi apresentada em 08-05-2023, pelo que o indeferimento tácito se formou em 08-09-2023, findo o prazo de quatro meses, de harmonia com o preceituado nos n.ºs 1 e 5 do artigo 57.º da LGT.
Por isso, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios calculados sobre a quantia que deve ser reembolsada de € EUR 406.829,85, (quatrocentos e seis mil, oitocentos e vinte e nove mil euros e oitenta e cinco cêntimos) a partir de 08-05-2024 até reembolso efetivo.
Os juros indemnizatórios devem ser contados, com base no valor de € 406.829,85, desde a data de um ano sobre o pedido de revisão, até integral reembolso à Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.
4. Decisão.
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, determinando a anulação do acto de indeferimento presumido da revisão oficiosa que se formou em 08.09.2023 e das liquidações impugnadas de IRC constantes das guias de entrega n.ºs guias de retenção na fonte n.º ..., de 21 de junho de 2019, e ..., de 20 de Outubro de 2019, n.º ..., de 20 de Junho de 2020, e ..., de 20 de Agosto de 2020, guias de retenção na fonte n.º ..., de 19 de Maio de 2021, e ..., de 18 de Junho de 2021 com o consequente reembolso da importância indevidamente cobrada acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios contados desde 08.05.2024 até efetivo pagamento.
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 406.829,85, (quatrocentos e seis mil, oitocentos e vinte e nove mil euros e oitenta e cinco cêntimos) nos termos do artigo 97.º -A , n.º 1, alínea a do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º , n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas: Vai a AT condenada em custas por ser sua a responsabilidade da ilegalidade existente, sendo o seu montante fixado em € 6.510,00 (seis mil, quinhentos e dez euros).
Lisboa, 10 de julho de 2024
Os Árbitros,
José Poças Falcão (Presidente),
Vasco António Branco Guimarães (relator)
Jónatas Machado
[1] Em sentido idêntico ao aqui deliberado vide Acórdão proferido ao processo C-917/2023-T.