Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 829/2023-T
Data da decisão: 2024-07-23  IRS  
Valor do pedido: € 390.503,45
Tema: IRS; rendimentos auferidos no estrangeiro; consequências da falta de resposta da AT; revogação parcial, mas indeterminada, da liquidação na pendência do processo.
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SUMÁRIO:

I – Ao contrário do que acontece em processo civil, a falta de resposta da AT não representa a confissão dos factos articulados pelo impugnante (n.º 6 do artigo 110.º do CPPT), cabendo antes ao juiz, nos termos do n.º 7 do mesmo artigo, “apreciar livremente a falta de contestação especificada dos factos”.

II – Em todo o caso, a falta de resposta da AT não a isenta de apresentar ao Tribunal Arbitral o Processo Administrativo.

III – Não sendo determinável, por omissão de elementos relevantes, os valores sobre que incidiu a revogação parcial da liquidação, a sua anulação só pode incidir sobre o seu valor total, sem prejuízo dos ajustes que tenham de ser feitos, quer em termos de devolução, quer em termos de juros indemnizatórios, em função dos valores que tenham sido previamente anulados.

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

 

  1. No dia 20 de Novembro de 2023, A..., titular do NIF..., residente na ..., ..., ..., ...-... -..., Lagoa (Requerente), apresentou requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).
  2. Pretendia que fosse declarada a ilegalidade e se procedesse à consequente anulação do acto de liquidação de IRS n.º 2022..., referente ao período de tributação de 2018, bem como do indeferimento tácito do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2023..., que sobre ele incidiu.
  3. Nomeados os presentes árbitros, que aceitaram a designação no prazo aplicável, e não tendo o Requerente, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 5 de Fevereiro de 2024.
  4. Seguindo-se os normais trâmites, em 25 de Março de 2024 a AT veio juntar Informação 74/2024 de 26 de Fevereiro de 2024, da Direcção de Finanças de Faro, com despacho de revogação parcial da Senhora Subdirectora-Geral da AT para a Área da Gestão Tributária - IR, datado de 11 de Março de 2024 e, em 4 de Abril de 2024, fazer acompanhar este da comunicação interna dando dele conta à unidade orgânica competente para a execução da aludida revogação parcial e da notificação ao mandatário do Requerente.
  5. Não obstante, a AT não apresentou resposta.
  6. Em 23 de Abril, foi proferido o seguinte despacho:

Uma vez que a AT parece ter procedido à alteração dos montantes a considerar no Campo 803 do Quadro 8 do Anexo J, aceitando que o montante a figurar na conta n.º...  seja de € 8.184,42 (ou GBP 7.370,81) em vez de € 22.321,36, notifique-se a Requerida para o confirmar em 10 dias e a Requerente para se pronunciar, querendo, em 20 dias, sobre a inutilidade/impossibilidade superveniente da lide no que diz respeito a essa correcção.

 

  1. A AT não se pronunciou.
  2. Em 17 de Maio, o Requerente veio confirmar a inutilidade superveniente da lide nessa medida, mas salvaguardar que “Uma vez que foi a AT que deu causa à ação também nesta parte, deve, nos termos do artigo 536.º, n.º 3 e n.º 4 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, ser a AT responsável pelo pagamento das custas também nesta parte.”
  3. Em 29 de Maio, foi proferido o seguinte despacho:

No penúltimo parágrafo da Informação junta aos autos em 4 de Abril, a AT refere que foi “solicitado à Direção de Finanças a remessa dos processos administrativos para essa Direção de Serviços.”. Como ainda não foram remetidos aos autos, fixa-se um prazo de 10 dias para os juntar ou justificar a impossibilidade de o fazer nesse prazo.

 

  1. Em 4 de Junho, a AT juntou o processo administrativo (PA).
  2. Em 17 de Junho, foi proferido despacho a, entre o mais, dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e a produção de alegações. 

 

 

  1. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.
  2. Requerente e Requerida gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.
  3. A interposição do pedido arbitral foi tempestiva.
  4. Não há excepções ou nulidades de conhecimento oficioso de que cumpra conhecer.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

  1. O Requerente é residente para efeitos fiscais em Portugal e em 2018 obteve rendimentos em Portugal e no estrangeiro (ilação dos documentos constantes dos autos);
  2. Em 17 de Maio de 2019, o Requerente procedeu à entrega da sua declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, relativa ao ano fiscal de 2018, apresentando apenas o anexo A de rendimentos, destinado a declarar rendimentos do trabalho dependente auferidos em Portugal (Doc. 1, junto com o PPA);
  3. Por Ofício n.º ... de 23 de Fevereiro de 2022, o Serviço de Finanças de Lagoa notificou o Requerente para declarar rendimentos auferidos no estrangeiro em 2018, identificando os seguintes rendimentos conhecidos:

País/território: GUERNSEY

Categoria E (Capitais)

Rendimento: 127.451,76 € - F… Limited (Guernsey…); B… Limited

País/território: JERSEY

Categoria E (Capitais)

Rendimento: 855.800,78 € - C... Trust

País/território: LUXEMBURGO

Categoria E (Capitais)

Rendimento: 402,86 € - D... Fund; E… Fund (Doc. 2, junto com o PPA);

  1. Face à não pronúncia do Requerente no âmbito do direito de audição e à não apresentação de uma declaração de substituição com os rendimentos da categoria E auferidos no estrangeiro no respetivo Anexo J, foi elaborada a declaração oficiosa que deu origem à liquidação n.º 2022..., de 15 de Novembro de 2022, com o valor a pagar no montante de € 390.503,45 (Doc. 3, junto com o PPA);
  2. Por não concordar com aquela liquidação, o Requerente apresentou em 20 de Abril de 2023 reclamação graciosa (Doc. 5, junto com o PPA), a que foi atribuído o n.º ...2023..., e que não chegou a ser objecto de decisão, mas do qual se conhecem as seguintes diligências:

- em 30 de Outubro de 2023, a Direcção de Finanças de Faro pediu esclarecimentos à Direcção de Serviços de Relações Internacionais da AT (p. 63 e s. do PA) sobre, designadamente, o seguinte:

  1. Tendo a AT considerado que o ora Requerente tinha auferido “€ 127.451,76 no território de Guernsey e o reclamante apenas justifica documentalmente que recebeu €8.184,42 da entidade B... Limited”, se seria de “considerar o remanescente montante de € 119.267,34”;
  2. Tendo o ora Requerente alegado que “o montante de € 855.800,78, constante do SITI, se refere a um Trust e que, na qualidade de beneficiário do mesmo recebeu aquele montante, não havendo qualquer incidência de IRS sobre aquela quantia auferida”, se seria de concluir dos documentos juntos pelo então reclamante se se confirmaria que tais montantes “não são objeto de tributação”;

- em 17 de Novembro de 2023, salientando que a informação emitida “constitui um mero contributo para apoiar a decisão, cuja competência está cometida ao órgão periférico local ou regional”, a Direcção de Serviços de Relações Internacionais da AT emitiu a Informação solicitada (pp. 68 e ss. do PA), em que, entre o mais, tomou posição sobre a primeira das questões mencionadas, referindo que, embora anteriormente constasse do SITI o montante de € 127.451,76, “essa informação foi corrigida em 2019/10/04 e na presente data, o valor do rendimento obtido em Guernsey totaliza apenas € 22.321.36”;

Quanto à segunda das questões mencionadas considerou que “tal questão recai dentro da esfera de competências da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (DSIRS), visto tratar-se de matéria relacionada com normas de incidência de IRS, e como tal, deverá ser colocada junto dessa DS.”;

Acrescentava essa mesma Informação o seguinte: “reconhecendo-se a dificuldade de os contribuintes em obterem documentação originária da AF em causa quanto a esta categoria de rendimentos (capitais), e até porque, a comunicação efectuada pelas AF estrangeiras no que concerne a rendimentos de capitais, tem como fonte a informação que lhes foi anteriormente transmitida pelas respectivas instituições financeiras, poderão aceitar-se documentos emitidos pela entidade pagadora dos rendimentos em causa, desde que não se suscitem dúvidas quanto à entidade pagadora, ao número da conta, tipo de rendimento, etc.”;

- em 20 de Dezembro de 2023, a Direcção de Finanças de Faro questionou a Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares sobre se a obtenção de rendimentos em Portugal por dissolução de um trust de que era beneficiário implicaria ou não sujeição a IRS em Portugal, mas no dia seguinte pediu para que tal solicitação ficasse sem efeito “uma vez que a citada reclamação graciosa encontra-se extinta por efeito da instauração de processo CAAD”;

  1. O Requerente não teve qualquer intervenção no processo de constituição da estrutura fiduciária C..., sendo unicamente seu beneficiário, e tendo auferido rendimentos deste em 2018 em vista da sua extinção (Doc. 9, junto com o PPA);
  2. Nenhum dos bens que compunham o património do trust se encontrava em Portugal e nenhum dos seus investimentos foi feito em activos com qualquer presença, actividade ou conexão com o território português (Doc. 9, junto com o PPA);
  3. O Requerente não procedeu ao pagamento do valor liquidado pela AT (confissão do Requerente, artigo 11.º do PPA), razão pelo qual lhe foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ...2023..., para cobrança coerciva do montante ainda em dívida de € 364.413,08;
  4. Em 9 de Maio de 2023, o Requerente procedeu ao pagamento desse montante (Doc. 4, junto com o PPA);
  5. No dia 20 de Novembro de 2023 o Requerente e seu marido apresentaram um Pedido de Pronúncia Arbitral no CAAD em que reconheceram que tinham omitido na declaração Modelo 3 de IRS referente a 2018 os seguintes montantes:
    1. rendimentos de capitais pagos no valor de GBP 7.380 (€ 8.184,42) pagos pela B... Limited, provenientes de Guernsey;
    2. rendimentos de capitais pagos pelas entidades D... Fund e E... Fund, no montante de € 402,86, provenientes do Luxemburgo;
  6. Na pendência dos autos, a AT revogou parcialmente o acto de liquidação impugnado.

 

          III.2. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO

Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos (tal como indicado em cada um), da ausência de contraditório quanto ao alegado pelo Requerente e, como referido no penúltimo parágrafo da alínea e) dos Factos Provados, da posição assumida na Informação 1870/2023 da Direcção de Serviços de Relações Internacionais da AT, datada de 17 de Novembro de 2023, constante do Processo Administrativo, no sentido de que uma declaração emitida por uma entidade privada sobre os montantes pagos ao Requerente podia prevalecer sobre a informação colhida no Sistema Integrado de Troca de Informações (SITI) sobre esses mesmos montantes. Embora esta concepção não tivesse sido mencionada na Informação 70/2024 – a que sustentou o despacho de revogação parcial da liquidação – foi nela claramente assumida ao considerar como provenientes de Guernsey não os € 22.321.36 que constavam do SITI, mas apenas os € 8.184,42 correspondentes ao declarado pela B... Limited.

 

III.3. FACTOS NÃO PROVADOS E SUA FUNDAMENTAÇÃO

Não se provou que, em 2028, tenha sido pago ao Requerente o montante de € 127.451,26, nem o de € 22.321.36, provenientes de Guernsey. Quanto à primeira importância, porque a informação 1870/2023 da Direcção de Serviços de Relações Internacionais da AT datada de 17 de Novembro de 2023 refere expressamente que embora tal valor tivesse constado do SITI, “essa informação foi corrigida em 2019/10/04 e na presente data, o valor do rendimento obtido em Guernsey totaliza apenas € 22.321.36”; quanto à segunda importância, porque a própria AT, ao revogar parcialmente a liquidação efectuada, reconheceu que tal valor não devia prevalecer sobre o que constava da declaração da sua entidade pagadora (B... Limited) e que era (o equivalente em libras) de € 8.184,42.

Também não se provou qual foi o montante do acto de liquidação que a AT revogou (ou se dispôs a revogar) parcialmente, uma vez que a Informação 74/2024 que sustentou a decisão de 27 de Fevereiro de 2024 da Senhora Subdiretora-Geral da Área de Gestão Tributária - Impostos sobre o Rendimento, era, para dizer o menos, ambígua (como se verá adiante) e a AT não deu resposta à diligência do Tribunal Arbitral para o esclarecer (supra, n.os 6 e 7 do Relatório).

 

  1. DIREITO

IV.1. Questões a decidir

A primeira questão a decidir é a dos efeitos da falta de resposta da AT, tanto mais que o que está em causa nos presentes autos depende essencialmente do estabelecimento dos factos.

A segunda questão, na medida em que não ficar resolvida com a resposta à primeira, é a de saber qual é o valor que ainda está sujeito a litígio, uma vez que a AT procedeu à revogação parcial do acto de liquidação; ainda que algo inusitada, ver-se-á que tem diversas implicações.

A terceira questão, na medida em que não ficar resolvida com a resposta à segunda, é a de saber se nesse valor se pode considerar que houve contra-prova, ie, se os documentos apresentados pelos Requerentes e as suas declarações permitem infirmar o que constava do SITI.

A quarta questão, na medida em que não ficar resolvida com a resposta à terceira, é a de saber se as consequências que a AT fez derivar dessas informações do SITI que não tenham sido afastadas por contra-prova são conformes com o Direito aplicável – ou, por outras palavras, qual é o enquadramento jurídico dos rendimentos efectivamente auferidos do estrangeiro para efeitos de tributação nacional.

Finalmente, haverá que estabelecer as consequências, em termos de devolução ou não das importâncias pagas e do pagamento ou não de juros indemnizatórios, do que se decidir quanto às questões enunciadas.

IV.2. Quanto à falta de resposta da Requerida

Ainda que a regra do processo civil seja a de que na falta de contestação se consideram confessados os factos articulados pelo autor (artigo 567.º, n.º 1, do Código de Processo Civil - CPC), a regra do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) é inversa: nos termos do n.º 6 do artigo 110.º a falta de contestação não representa a confissão dos factos articulados pelo impugnante, cabendo antes ao juiz, nos termos do n.º 7 do mesmo artigo, “apreciar livremente a falta de contestação especificada dos factos[1].

Implica isto que se torna necessário apreciar os requisitos de prova dos rendimentos auferidos no estrangeiro e dos que determinam a sua sujeição ou não à tributação nacional.

 

IV.3. Quanto ao objecto de litígio subsistente

Como resulta dos Factos Provados, a liquidação impugnada contemplava, para 2018, três origens de rendimentos:

País/território: GUERNSEY

Categoria E (Capitais)

Rendimento: 127.451,76 € - F… Limited (Guernsey …); B… Limited

País/território: JERSEY

Categoria E (Capitais)

Rendimento: 855.800,78 € - C... Trust

País/território: LUXEMBURGO

Categoria E (Capitais)

Rendimento: 402,86 € - D… Fund; E… Fund

Em relação aos rendimentos provenientes do Luxemburgo não há dissídio, uma vez que o Requerente admitiu a sua obtenção. Quer dizer que a liquidação de IRS efectuada pela AT em relação aos € 402,86 provenientes do Luxemburgo não merece censura.

Em relação aos rendimentos provenientes de Guernsey, é suposto que, nos termos já referidos supra a propósito da revogação parcial do acto de liquidação impugnado – tal como entendido pelo Tribunal e pelo próprio Requerente na sequência do despacho de 23 de Abril – o objecto de litígio tenha sofrido uma redução de € 390.503,45 para € 376.366,51 (por causa de uma redução de € 14.136,94 resultante de uma alteração para menos do valor do Campo 803 do Quadro 8 do Anexo J da declaração de IRS de 2018 porque, segundo os n.os 22 e 23 da mesma Informação 74/2024 da Direcção de Finanças de Faro,

Por consulta ao SITI (Sistema Integrado de Troca de Informações), verifica-se que foi comunicado pelo Estado de Guernsey, que foram pagos ao requerente, no ano de 2018, pela entidade B... (CI) Limited o montante de € 22.321,36, na conta n.º KGY...3”,

mas, atendendo a que

foi junta uma declaração emitida pela B... (documento n.º 8) na qual é referido que no ano de 2018, foram pagos ao requerente o valor total de GBP 7.370,81, na conta n.º KGY...3, pelo que deve ser este o montante a considerar na liquidação, devendo, assim, a declaração ser corrigida nesta parte do pedido.[2]).

Porém, justamente porque essa Informação era ambígua quanto ao tratamento a conferir ao remanescente do valor proveniente de Guernsey considerado inicialmente para efeitos de liquidação (o montante de € 127.451,76 era proveniente de pagamentos indistintamente feitos pela B... e pela F... Limited)[3], foi determinado, por  despacho de 23 de Abril, que a AT confirmasse qual era o montante que seria alvo de correcção (supra, ponto 6 do Relatório), o que esta não fez (supra, ponto 7 do Relatório).

Quando – mas só por injunção do Tribunal (despacho de 29 de Maio - supra, ponto 9 do Relatório) – a AT juntou aos autos, em 4 de Junho, o Processo Administrativo (supra, ponto 10 do Relatório) de que constava a Informação 1870/2023 da Direcção de Serviços de Relações Internacionais da AT, datada de 17 de Novembro de 2023, tornou-se finalmente perceptível o tratamento que devia ser dado aos montantes pagos pela F... Limited: como aí se escreveu (cfr. supra, al. e) dos Factos Provados), embora anteriormente constasse do SITI o montante de € 127.451,76, “essa informação foi corrigida em 2019/10/04 e na presente data, o valor do rendimento obtido em Guernsey totaliza apenas € 22.321.36” (ou seja: os montantes imputados a pagamentos provenientes da  B...t) – o que, evidentemente, justificava a correcção da liquidação em relação à totalidade dos montantes pagos pela F... Limited.

Porém, como sem acesso a essa Informação 1870/2023 (que nem sequer era mencionada na subsequente Informação 70/2024 da Direcção de Finanças de Faro, que foi a única comunicada ao Tribunal – e ao Requerente) não havia qualquer fundamento para assumir que a AT iria corrigir a liquidação no montante supostamente recebido da F... Limited, nem tal se poderia inferir da Informação 70/2024 e do despacho comunicados ao Tribunal, ao Requerente e, mais importante, à entidade que era suposto dar cumprimento a essa revogação parcial, a condenação da AT não poderá ter em conta o valor da revogação parcial, que não era determinável na altura da pronúncia do Requerente (17 de Maio de 2024), muito embora devesse resultar do documento 4 junto aos autos com o PPA, emitido em nome do International Customer Services da F... (mas que já tinha sido apresentado, infrutiferamente, aquando do pedido de reclamação graciosa), onde se elencavam todos os pagamentos (três) feitos por esse fundo ao Requerente, e que tinham tido lugar em 2010, 2014 e 2016 – fora, portanto, do horizonte de tributação em causa.

Em suma: os rendimentos provenientes de Guernsey imputáveis ao rendimento tributável do Requerente em Portugal em 2018 reduzem-se aos € 8.184,42 pagos pela B..., havendo nisso acordo do Requerente e, considerados todos os elementos agora disponíveis, da AT.

*

Resolvidas as questões suscitadas a propósito dos rendimentos provenientes do Luxemburgo (porque o Requerente confessou tê-los recebido e omitido na sua declaração de IRS referente a 2018) e de Guernsey (porque a AT reconheceu, em dois momentos distintos, que o montante que imputava ao Requerente com essa proveniência era o valor que ele admitiu ter recebido e omitido na sua declaração de IRS referente a 2018), sobra portanto, como único objecto de contencioso, o tratamento a conferir aos € 855.800,78 pagos ao Requerente em 2018 pelo C... Trust, sediado em Jersey, que o requerente igualmente admite ter recebido no período de tributação de 2018.

 

IV.4. Quanto à determinação dos rendimentos auferidos no estrangeiro que ainda são objecto de litígio

Nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da LGT

São abrangidas pelo n.º 1 as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado.”

Por sua vez, o n.º 1 desse artigo dispõe assim:

As informações prestadas pela inspecção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei.”.

Está aparentemente nestas condições o valor que a AT considera ter sido pago ao Requerente em 2018 por parte da estrutura fiduciária C... Trust (€ 855.800,78, provenientes de Jersey). Note-se, porém, que não apenas se verificou já que valores imputados pelo SITI ao Requerente em 2018 estavam errados (os pagos pela F... reportavam-se a períodos anteriores), como a já referida Informação 1870/2023 da Direcção de Serviços de Relações Internacionais da AT reconheceu que “poderão aceitar-se documentos emitidos pela entidade pagadora dos rendimentos em causa, desde que não se suscitem dúvidas quanto à entidade pagadora, ao número da conta, tipo de rendimento, etc.”. Em todo o caso, uma coisa é a factualidade da transferência de valores (o Requerente não põe em causa ter recebido do C... Trust um montante de € 855.800,78), outra coisa é a sua imputação temporal (que já se viu que pode fazer toda a diferença, mas que, neste caso, o Requerente assume que ocorreu em 2018), e outra ainda a sua relevância para efeitos de tributação – que é do que se tratará a seguir.

 

IV.5. Quanto ao enquadramento jurídico dos rendimentos auferidos no estrangeiro que ainda são objecto de litígio

Como referido supra (alínea e) dos Factos Provados), a Informação 1870/2023 da Direcção de Serviços de Relações Internacionais da AT, datada de 17 de Novembro de 2023, omitiu resposta à questão que lhe tinha sido colocada pela Direcção de Finanças de Faro em sede de reclamação graciosa, com fundamento em que “tal questão recai dentro da esfera de competências da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (DSIRS), visto tratar-se de matéria relacionada com normas de incidência de IRS, e como tal, deverá ser colocada junto dessa DS.”.

Consultado o PA, constata-se que essa consulta foi pedida pela Direcção de Finanças de Faro em 20 de Dezembro de 2023, mas, como referido (último parágrafo da alínea e) dos Factos Provados), foi seguida logo no dia seguinte de um pedido para “ser dada sem efeito (…) uma vez que a citada reclamação graciosa encontra-se extinta por efeito da instauração de processo CAAD”.

Salvo melhor opinião, a conclusão que se deve retirar é a de que, no que diz respeito a estes valores, a liquidação efectuada não tem fundamentação: não a teve na altura em que foi emitida, nem a tinha na altura em que o Requerente dirigiu ao CAAD o PPA, uma vez que a entidade emissora dessa liquidação – a Direcção de Finanças de Faro – reconheceu, em sede de tramitação da reclamação graciosa (em que foi apresentada, pela primeira vez, a posição do Requerente), que não sabia se o montante liquidado com tal fundamento era ou não devido, sendo que tal não chegou a ser esclarecido no procedimento de reclamação graciosa porque o pedido para tal, feito num dia, foi cancelado no dia imediato.

Acontece que além de não ter fundamentação, a liquidação não tem, neste ponto, sustentação jurídica: por um lado, o do Direito, o n.º 8 do artigo 12.º do Código do IRS dispõe que “O IRS não incide sobre o valor atribuído em resultado da liquidação, revogação ou extinção de estruturas fiduciárias a sujeitos passivos beneficiários das referidas estruturas distintos daqueles que as constituíram.[4]; por outro, o dos factos, a declaração dos responsáveis pelo C... Trust, notarialmente reconhecida, confirma o preenchimento dos requisitos estabelecidos nessa norma. Como tal declaração não foi controvertida pela AT – pelas razões já mencionadas –, porque não há razão alguma para a pôr em dúvida face ao que é a normal funcionalidade dos trusts e a normal veracidade deste tipo de declarações[5] (de que, aliás, depende a continuidade da oferta de tais mecanismos), e porque o Requerente juntou os cópias dos extractos das contas no Barclays em euros, em libras e em dólares com saldos finais a zero, com assinatura/rubrica dos responsáveis pelo trust, conclui-se que a tributação em sede de IRS[6] dos montantes pagos ao Requerente em 2018 pelo C... Trust foi ilegal.  

 

          IV.6. Quanto aos montantes a devolver e aos juros indemnizatórios

Em circunstâncias normais, o montante a devolver ao Requerente seria a diferença, certa, em relação ao valor igualmente certo que a AT já tivera a iniciativa de lhe restituir, em resultado da revogação parcial do acto de liquidação. Porém, dada a indeterminação do valor dessa revogação parcial – resultante da omissão da indicação do seu montante na Informação de sustentação e da inacessibilidade (incluindo ao autor dessa decisão de revogação) de uma parte da fundamentação para tal, bem como a omissão de esclarecimento desse valor, incumprindo um despacho proferido nos autos – será a AT condenada a devolver aos Requerentes a totalidade do montante pago, devendo algum acerto – a ter de ser feito – resultar do montante processado a título de revogação parcial, e sem prejuízo do eventual apuramento do montante de imposto devido no que diz respeito aos rendimentos auferidos no estrangeiro em 2018 que foram reconhecidos nos presentes autos.

O que acaba de se escrever quanto aos montantes em dívida vale nos mesmos exactos termos para os juros indemnizatórios – já que se não sabe qual o valor, se algum, sobre o qual incidiram juros que a AT possa ter pago em consequência da revogação parcial da liquidação –, e que são devidos desde 9 de Maio de 2023 – data do pagamento indevido dos € 364.413,08 que foram exigidos em execução fiscal (uma vez que o Requerente não invocou a data do pagamento da diferença para o valor apurado de € 390.503,45), até ao processamento da respectiva nota de crédito (n.º 5 do artigo 61.º do CPPT, aplicável ex vi da alínea c) do artigo 29.º do RJAT), sem prejuízo do acerto que haja a fazer nesses juros em função dos que já tiverem sido pagos, contados da mesma data.

 

  1. DECISÃO

Termos em que o presente Tribunal Arbitral decide:

  1. Revogar o acto de liquidação de IRS com o n.º 2022 ... e a respetiva demonstração de liquidação de juros e acerto de contas, que apuraram um montante a pagar de € 390.503,45 (trezentos e noventa mil quinhentos e três euros e quarenta e cinco cêntimos);
  2. Revogar o indeferimento tácito da Reclamação Graciosa n.º ...2023... que teve por objeto a indicada liquidação de IRS;
  3. Determinar a restituição ao Requerente dos montantes que, desse valor de € 390.503,45, ainda lhe não tenham sido devolvidos em resultado da revogação parcial da dita liquidação de IRS;
  4. Determinar o pagamento ao Requerente de juros indemnizatórios, nos termos legais, sobre os montantes a restituir, desde 9 de Maio de 2023 até ao processamento da respectiva nota de crédito.
  5. Condenar a AT nas custas do processo, nos termos fixados infra.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em € 390.503,45 (trezentos e noventa mil quinhentos e três euros e quarenta e cinco cêntimos), que foi o valor inicialmente atribuído ao processo por corresponder ao documento emitido para pagamento e que não foi posto em causa pela AT.

Como visto, ainda que o valor controvertido de imposto devido tenha sido posteriormente reduzido em resultado da revogação parcial da liquidação, a indeterminação desta desaconselha a alteração do valor do processo – o que, de resto, para o que aqui releva, que é o cálculo das custas, não teria quaisquer implicações, já que não foi cumprido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT.

 

  1. CUSTAS

Custas a cargo da Requerida, no montante de € 6.426,00 (seis mil, quatrocentos e vinte e seis euros), nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 4, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que o pedido foi julgado inteiramente procedente, não cabendo ao Tribunal determinar a tributação que incide sobre os valores de rendimentos auferidos no estrangeiro em 2018 por A... e que este assumiu.

 

Lisboa, 23 de Julho de 2024

 

 

O árbitro presidente e relator

 

 

Victor Calvete

 

O árbitro adjunto

 

Augusto Vieira

 

O árbitro adjunto

 

 

Vasco António Branco Guimarães

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o adoptem.

 

 

 

 

 

 



[1] Na decisão do processo n.º 584/2021-T invocou-se antes que “Nos termos do disposto no artigo 12.º, n.º 6, do Regulamento de Arbitragem Administrativa do CAAD, se não for apresentada contestação, o procedimento arbitral prossegue, sem que se considere esta falta, em si mesma, como uma aceitação das alegações do demandante.”. Em outros processos arbitrais, como os n.os 478/2018-T, 553/2018-T, 571/2018-T ou 647/2018-T, acentuou-se antes que a falta de resposta da AT implicava que a factualidade não fosse controvertida.

 

[2] A esse valor em libras correspondiam os referidos € 8.184,42.

 

[3] No n.º 21 da dita informação 70/2024, datada de 26 de Fevereiro de 2024, escrevia-se:

Quanto aos rendimentos considerados no Campo 803 do Quadro 8 do Anexo J, no montante de €127.451,76 auferidos em Guernsey, pagos pelas entidades F... Limited e B..., refere o requerente que por lapso não mencionou o montante de €8.184,42, respeitante a rendimentos de capitais pagos pela B... (vide ponto 52 da petição), devendo, assim, este montante ser considerado na liquidação.”  Desta passagem só se poderia inferir a correcção a introduzir quanto aos rendimentos de capitais pagos pela B....

[4] O Requerente juntou ao PPA, aliás, uma Informação Vinculativa – a que foi emitida no 2017000480 - IVE n.º 11883, com despacho concordante de 20.09.2017, da Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira – em que se escrevia que o tipo de rendimentos distribuídos em função da liquidação do trust não se encontra sujeito a IRS, em virtude da subsunção destes factos à norma de delimitação negativa de incidência do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares - n.º 8 do art.º 12.º do CIRS”.

[5] Tenha-se em atenção que meras declarações de intenções (como as que levaram à emissão das Informações Vinculativas juntas com o PPA como documentos 14, 15 e 16) também não foram postas em causa, e já se viu (penúltimo parágrafo da alínea e) dos Factos Provados) que a Informação 1870/2023 da Direcção de Serviços de Relações Internacionais da AT, datada de 17 de Novembro de 2023, admitiu que “poderão aceitar-se documentos emitidos pela entidade pagadora dos rendimentos em causa, desde que não se suscitem dúvidas quanto à entidade pagadora, ao número da conta, tipo de rendimento, etc.”.

 

[6] O Requerente dedicou ainda algumas páginas do seu PPA à demonstração de que, face às circunstâncias do caso, os valores que lhe foram pagos pela liquidação do C... Trust também não estariam sujeitos a Imposto do Selo. Trata-se de matéria que é irrelevante para o que está em causa nos presentes autos.